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Cerveja é Coisa de Mulher, Sim: Sociabilidade, Consumo e Lazer em uma Comunidade no Instagram

Yes! Beer Is Girl Stuff!: Sociability, Consumption and Leisure in an Instagram Community

EULER DAVID DE SIQUEIRA
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
THAIS CRISTOVÃO DE MELO
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil

Cerveja é Coisa de Mulher, Sim: Sociabilidade, Consumo e Lazer em uma Comunidade no Instagram

Rosa dos Ventos, vol. 11, núm. 2, pp. 417-434, 2019

Universidade de Caxias do Sul

Recepção: 31 Janeiro 2019

Aprovação: 13 Fevereiro 2019

Resumo: As redes sociais e as plataformas digitais de compartilhamento de vídeos e imagens intensificaram os efeitos na constituição de diferentes grupos sociais nas cidades. Criado no início de 2016, em Curitiba, o perfil no Instagram ‘Comunidade Mulheres Cervejeiras’ mobiliza e agencia representações sobre empoderamento da mulher, assim como a troca e o compartilhamento de saberes sobre o universo da bebida. O objetivo de nosso trabalho é investigar a produção de sentidos mantidos e negociados pelas integrantes do grupo de jovens mulheres que apreciam cervejas artesanais no Instagram. Teoricamente, lançamos mão de conceitos importantes, como midiatização, sociabilidade, consumo e lazer. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa orientada por uma abordagem hermenêutico-interpretativa. Também realizamos pesquisa bibliográfica e entrevistas semiestruturadas. Alguns dos resultados mostram que as esferas de trabalho e lazer não se opõem, complementam-se. Da mesma forma, empoderamento feminino e a luta contra o machismo não se excluem do universo do consumo e dos negócios.

Palavras-chave: Lazer, Sociabilidade, Cerveja, Instagram, Comunidade Mulheres Cervejeiras.

Abstract: Social networks and digital platforms for sharing videos and images have intensified the effects on the constitution of different social groups in cities. Created in early 2016, in Curitiba, the profile in the Instagram 'Comunidade Mulheres Cervejeiras' mobilizes representations on women's empowerment, as well as the exchange and sharing of knowledge about the beverage universe. The objective of our work is to investigate the production of senses maintained and negotiated by members of the group of young women who enjoy artisan beers on Instagram. Theoretically, we use important concepts such as mediatization, sociability, consumption and leisure. Methodologically, this is a qualitative research guided by a hermeneutic-interpretative approach. We also carried out bibliographic research and semi-structured interviews. Some of the results show that the spheres of work and leisure are not opposed, but complement each other. In the same way, female empowerment and the fight against sexism are not excluded from the universe of consumption and business.

Keywords: Leisure, Sociability, Beer, Instagram, Community Mulheres Cervejeiras.

INTRODUÇÃO

O objetivo desta pesquisa é o de discutir como o consumo, o lazer e a sociabilidade presentes nas redes e plataformas sociais constituem-se em fatores centrais à constituição de uma comunidade de mulheres cervejeiras no Instagram. Ao contrário de abordagens instrumentais ou ainda funcionalistas, na contemporaneidade consumo e lazer mostram-se como importantes elementos no processo de construção das identidades coletiva e individual. É na cidade que, nas palavras de Durand (1996), o mito explode, fazendo cultural o inconsciente. Na cidade, a concentração e a densidade das redes e dos meios de comunicação atingem seus níveis mais elevados, favorecendo o que Durand trata como inflação imagética. Mito e mídia encontram na cidade a ambience adequada à emergência e à produção da diferença. Refletindo sobre Berlin, Simmel (1973) já havia assinalado o quanto o hiperdesenvolvimento do espírito objetivo e da cultura material impõem ao indivíduo metropolitano um fardo pesado, com repercussões sobre a constituição de sua própria subjetividade. É também na cidade, habitada, percorrida, atravessada e imaginada por diferentes grupos que nela inscrevem suas relações (Agier, 2011; Magnani, 1996) que se buscou compreender, nesta pesquisa, a produção de sentidos que um grupo de mulheres no Instagram, autodenominadas como cervejeiras, atribui a suas práticas e representações em contextos de sociabilidade, consumo e lazer.

A pesquisa, de natureza qualitativa, faz uso de uma abordagem hermenêutico-interpretativa (Geertz, 1978; Minayo, 1989, 1994). Do ponto de vista de uma metodologia qualitativa e relacional, caracteriza-se como uma pesquisa exploratória e descritiva quanto aos seus objetivos (Minayo, 1989; Santos, 1999). Com isso, privilegiou-se o significado socialmente construído pelos atores sociais a partir de suas interações em uma rede social de compartilhamento de fotografias. As técnicas de coleta de dados incluem a pesquisa bibliográfica, o uso de entrevistas semiestruturadas, assim como a interpretação de imagens e discursos postados pelos membros do grupo no Instagram, com identificação e seleção de categorias de entendimento ou de pensamento (Durkheim & Mauss, 1981; Gonçalves, 2007; Velho, 1978) presentes nos discursos de três entrevistadas. A partir do perfil no Instagram do grupo investigado, as entrevistas foram realizadas através do aplicativo WhatsApp e da plataforma Facebook. As três entrevistadas não representam, evidentemente, a totalidade do grupo no Instagram. Trata-se, portanto, de amostra não-probabilística e cuja validade dos resultados se refere, em primeiro lugar, ao universo de sujeitos contatados e entrevistados.

A presença cada vez mais frequente e participativa da mulher em universos antes predominantemente masculinos, tem ganhado visibilidade a partir de sua exposição em redes sociais, notadamente no Instagram e no Facebook. Esse fenômeno é tributário, acredita-se, do fenômeno urbano, da midiatização e do consumo, ao mesmo tempo em que um sinal das mutações pelas quais a cidade, os diversos grupos e o indivíduo passam. A Comunidade Mulheres Cervejeiras, em estudo, foi criada em Curitiba, cidade em que reside sua fundadora, mas abarca mulheres residentes em outros locais, o que não se coloca como um obstáculo, em se tratando de redes sociais on line, para que sejam realizadas reuniões e compartilhamentos, mesmo que momentaneamente, de um conjunto de crenças, valores e estilos de vida. Na verdade, a Internet e suas plataformas digitais criam condições favoráveis para que novas formas de interação e sociabilidade sejam tecidas ou, ainda, negociadas com base nos interesses individuais (Bozon, 2005; Kellner, 2001; Featherstone, 2012; Agier, 2011; Heilbrunn, 2005).

Buscou-se, então, refletir sobre um grupo de mulheres que produz e consome cervejas artesanais em contextos urbanos, tendo o lazer e a sociabilidade como aspectos centrais de suas interações. Contudo, não é de toda a cidade e nem de todas as mulheres de que se fala. A cidade é suficientemente heterogênea a ponto de, mesmo vivendo lado a lado, torna estrangeiros mesmo quem vive em uma mesma cidade. Em nosso estudo, refletimos, portanto, sobre mulheres que elegeram a cerveja artesanal como seu ícone para dela extraírem aspectos que julgam importantes para representá-las simbolicamente. A cerveja artesanal é boa para beber, mas melhor ainda para pensar e para agir (Schutz, 2003; Velho, 1994; Lévi-Strauss, 1976).

A ‘mulher cervejeira’ é, antes de tudo, uma construção social que se arma no conjunto de linguagens, discursos e imagens veiculados consciente ou inconscientemente. Na construção da mulher cervejeira, as imagens do consumo de cervejas em momentos de lazer e ou entretenimento ganham visibilidade e se tornam centrais nesse processo. As mulheres presentes em no estudo se dão a ver em momentos de lazer, notadamente em suas residências, mas também se mostram juntas, compartilhando experiências e significados em torno da produção e do consumo da cerveja artesanal. As fronteiras entre os mundos do trabalho e do lazer flertam a todo instante no grupo investigado, a ponto de se tornarem borradas, nas mulheres que, reunidas em plataformas digitais, produzem e compartilham sentidos em situações sociais em diferentes cidades. Portanto, o olhar adotado faz coro com Agier (2011), quando afirma que quando se pesquisa na cidade, “isso significa que nossos conhecimentos inevitavelmente parciais não abraçam nunca a totalidade urbana, senão pelos procedimentos de análise: metonímias [a cidade é a rua], metáforas [a cidade é uma selva ou um mosaico]” (p.30).

O quadro social em que as mulheres se inserem e se movimentam não é, contudo, o de total liberdade e autonomia. A maior inserção da mulher no mundo do trabalho, na política e na cultura é o desdobramento de profundas mutações ocorridas no modo de regulação da economia global e situa-se na crise sem precedentes experimentada pelas principais potências econômicas capitalistas entre o final dos anos 1960 e a metade dos anos 1970 (Queval, 2008; Vigarello, 2007). É nessa época que importantes transformações no campo das representações sociais, dos afetos (Sodré, 2006) e mesmo da percepção[i] (Gómez, 2006), inscrevem-se nisso que Kellner (2001) cunhou como cultura da mídia e Featherstone (2012) de cultura do consumo. Constitutivas do processo comunicacional e do consumo, as mudanças na mídia tornaram as representações iconográficas quase que absolutas, assevera o antropólogo britânico Jack Goody (2003).

A identificação da Comunidade Mulheres Cervejeiras se deu através do Instagram, rede social de compartilhamento instantânea de fotos. A partir daí, notou-se um aspecto interessante na cena contemporânea: o perfil veicula representações de empoderamento ou autonomização e identificação feminina com o chamado ‘mundo da cerveja’, universo acentuadamente masculino. Tomamos a noção de empoderamento como uma categoria que busca dar conta da maior inserção e participação dos diversos grupos excluídos ou marginalizados das principais agendas sociais. Sardenberger (2014) define empoderamento, de uma perspectiva feminista, como “o processo de conquista da autonomia, da autodeterminação” (p.2). Tanto no perfil do Instagram, como no do Facebook, a Comunidade Mulheres Cervejeiras identifica-se como uma confraria, isto é, como um grupo de mulheres que se associam com objetivos e interesses em comum, o que não exclui, entretanto, a possibilidade de tensão, disputa e conflito em seu interior. A temática do empoderamento é permeada de controvérsias. O termo empoderamento originou-se no campo prático das lutas feministas ganhando, em seguida, o universo acadêmico, no qual foi teorizado em associação com a categoria poder. Posteriormente, o termo migrou para o campo do desenvolvimento e vem sendo empregado de maneira indiscriminada tanto por ONG’s quanto por instituições como o Banco Mundial e pelo ex-presidente dos Estados Unidos da América, George Bush II (2014). O deslizamento da categoria foi responsável pela perda de seus aspectos anteriormente mais radicais. Em muitos casos, reina um clima de desconfiança por parte das integrantes de movimento feministas, que desconhecem o percurso do termo (Sardenberger, 2014).

Ainda a respeito do empoderamento feminino, diversos trabalhos abordam a relação entre o uso das tecnologias como a Internet e o feminismo. O termo <cyberfeminismo>, mesmo não esgotando a pluralidade de termos presentes no universo digital, expressa um fenômeno que articula gênero, tecnologia e estética feminista nas últimas décadas. Ferreira (2015), por exemplo, discute os usos da Internet por parte das novas gerações de mulheres, notadamente universitárias que acederam à universidade através de políticas públicas implementadas nas últimas duas décadas. A Internet, ao contrário de um espaço neutro, é apropriada por feministas como um espaço social que possibilita sua organização, reflexão e expressão:

A partir dos anos 2000, as análises incorporaram uma visão interseccional sobre o tema e passaram a abranger diversas temáticas, como o papel e a presença das mulheres na história da informática e da tecnologia, de inclusão e exclusão digitais e os usos das tecnologias da informação e comunicação (TIC’s) em relação ao que se tem entendido como empoderamento das mulheres e suas organizações (Ferreira, 2015, p.44).

De acordo com Ferreira (2015), o uso das TIC’s pelas feministas representa uma “fratura tecnológica de gênero” (p.44), decorrente em grande parte da dimensão binária do habitus tecnológico amplamente desfavorável às mulheres. As integrantes do grupo, formado exclusivamente por mulheres, se identificam através de formas de gosto e experiências, tendo a cerveja artesanal como emblema ou ainda ícone. As integrantes da Comunidade residem em cidades das regiões Sul e Sudeste [Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro], mas também há as que residem nas regiões Norte e Nordeste. Algumas das integrantes reúnem-se em eventos festivos em torno do consumo de cerveja artesanal. Os encontros ganham relevância por não se resumirem unicamente à degustação de cerveja artesanal. Conselhos, dicas, eventos, cursos e workshops, como os de harmonizações entre cervejas e pratos, compõem o portfólio das experiências do grupo, entrevendo uma importante ferramenta de marketing orientada para um nicho do público feminino.

Fundado em Curitiba, em 2016, o objetivo inicial das Mulheres Cervejeiras era o de formar um grupo sólido, de pessoas com paixão e com interesse em desenvolver seu conhecimento sobre o mundo das cervejas artesanais. O grupo ganhou maior visibilidade através das redes sociais, atraindo a atenção de mulheres de outras regiões do país. A ideia era a de montar um grupo associativo, para troca de experiências, informações e também para gerar negócios entre as participantes. Aos poucos, a idealizadora do grupo, Daiane Santos, observou que precisaria nivelar o conhecimento das integrantes. O interesse em se aprofundar nesse cenário e também em participar dele ativamente, atraia mais mulheres. O Instagram joga um papel maior nesse processo em função de suas propriedades, como o uso das imagens, vídeos e fotografias que podem ser curtidas, comentadas e compartilhadas instantaneamente em outras redes sociais, como Facebook, Twiter, Tumblr, Foursquare. Atualmente, o grupo é formado por 30 pessoas ativas e não se reúne mais presencialmente, apenas on line, pois há mais pessoas dispostas em disseminar o grupo em outras cidades.

O uso do Instagram permitiu divulgar as ações do grupo, empresas parceiras e empresas patrocinadoras. A página possui 643 publicações e 21.885 seguidores, entre mulheres, homens e cervejarias. A página pública ou compartilha momentos de mulheres com a cerveja, seja individualmente ou em grupos. Ao mesmo tempo em que se fotografam ou se deixam fotografar tendo uma garrafa ou um copo de cerveja artesanal em mãos, redobram-se os cuidados para se evitar atravessar a tênue fronteira entre degustação e perda de controle, assunto caro para o sujeito moderno (Dumont, 1993). Expor-se nas redes sociais consumindo cerveja não é algo evidente e isento de consequências. Trata-se do consumo de uma bebida ainda cercada de preconceitos ainda mais quando consumida por jovens mulheres. Por isso a atenção redobrada e cuidadosa nas postagens e comentários. Controle de si, elegância, sofisticação, bom gosto e sabedoria são alguns dos atributos acionados na construção da mulher cervejeira no perfil Instagram investigado (Detrez, 2002; Lebreton, 2010; Marzano, 2010).

A construção da mulher cervejeira remete à ideia de gênero como um movimento social que emergiu nos anos 1970 nos Estados Unidos e na França, e que buscava desconstruir o discurso heteronormativo segundo o qual a diferença entre homens e mulheres ou, ainda, entre o masculino e o feminino, repousa sobre a base genética ou biológica. Para todos os efeitos, tomamos a ideia de gênero como uma ficção ou o efeito de um discurso. Em resumo, o gênero é socialmente construído e não um dado da natureza (Bozon, 2005; Marzano, 2010; Detrez, 2002; Lebreton, 2010).

CIDADE, COMUNICAÇÃO E REDES SOCIAIS

Em muitas postagens das integrantes da Comunidade Mulheres Cervejeiras[ii], o espaço urbano é acionado na produção de sentidos. Ao postarem fotos consumindo diferentes rótulos de cerveja artesanal, as integrantes da Comunidade constroem sua subjetividade ao mesmo tempo em que se diferenciam umas das outras. É o quadro maior da cidade, aliado às redes sociais e ao mito, para voltar a ideia central de Durand, que o imaginário da liberdade e da autonomia pode se dar a ver. O deslocamento entre cidades para participar de feiras e eventos que tenham a cerveja artesanal como o foco principal também é visto como um valor e uma qualidade da mulher cervejeira. Frequentar eventos festivos dedicados a cerveja é sinal de status, conferindo distinção. Como nem todas as integrantes podem viajar, aquelas que o fazem gozam de um status mais elevado. A mulher cervejeira não se caracteriza somente do consumo de cervejas: ela também articula aspectos profissionais, estéticos e domésticos. Contudo, parece haver um consenso nas postagens das integrantes da comunidade: suas integrantes dependem somente delas mesmas para produzir, degustar e comentar o que pensam sobre cervejas artesanais. Trata-se de um discurso que coloca em evidência a autonomia das integrantes do grupo, mas que não afasta a possibilidade de conflito (Simmel, 1987).

A cidade, com sua diversidade, ritmo e complexidade, ganha relevância nos processos interacionais da Comunidade. Destacar-se da multidão e do anonimato impunha ao indivíduo distinguir-se do outro a todo custo (Simmel, 1973) é aspecto de grande importância: a Comunidade é uma forma social que depende das interações entre suas participantes. Ao mesmo tempo, integrar ou não integrar a Comunidade, guardando-se os devidos cuidados, passa a ser um assunto que somente compete ao sujeito, podendo esse retirar-se ou permanecer segundo sua escolha. Na cidade, o controle social não é mais, pelo menos em tese, aquele exercido nas formas tradicionais de vida comunitária, como a família, o clã e a tribo. Somente uma leitura superficial poderia situar a Comunidade como uma forma tradicional que se aproximaria da tribo ou do clã para então deduzir toda uma sorte de estereótipos e preconceitos. A cidade não é, tão pouco, uma massa justaposta de indivíduos homogêneos atomizados. Uma última lição deixada por Simmel é preciosa para compreender os desafios em jogo: a constituição de infinitos círculos sociais implica caber a seus membros estipular regras e normas de convívio, em detrimento de forças coercitivas exteriores. Na cidade os grupos sociais se autonomizam, libertando-se da esfera regulatória de outros grupos. Dito de outra forma, a coerção exterior cede lugar a uma maior autonomia dos círculos sociais, podendo o sujeito optar por retirar-se ou permanecer neles[iii].

O processo de individualização e de autonomização dos grupos sociais encontra nas redes sociais um espaço potencializador. Guardadas as devidas proporções, a Internet e suas redes sociais, elas mesmas formas sociais resultantes de múltiplos processos interacionais, ampliaram o alcance das interações em um nível ainda difícil de mensuração. Como sustenta Sodré (2006), vivemos em uma era de midiatização ou de tecnomediações com profundas transformações do espaço público, da subjetividade e, inclusive, dos afetos. Ao contrário do que se assevera, a Internet e as redes sociais não significam a liberdade absoluta e o fim das coerções, mas a internalização altamente codificada de regras e normas acionadas em interações nas redes sociais (Detrez, 2002). Nessa mesma esteira, Gómez (2006) convida, primeiro, a abandonar a ideia de que as mediações derivam exclusivamente dos meios e, em segundo, que seriam suas simples extensões. Tendo fontes variadas, as mediações tecnológicas ganham centralidade em detrimento de outras mais tradicionais, como a escola, a família e o Estado, fato também assinalado por Kellner (2001).

CONSUMO, SOCIABILIDADE E LAZER

O grupo social[iv] que investigamos possui contornos de uma forma social lúdica em que a ação recíproca de suas integrantes é ela mesma a condição de sua existência (Simmel, 1987). Em linhas gerais, a Comunidade caracteriza-se como um grupo razoavelmente coeso de jovens mulheres cujo objetivo principal é compartilhar experiências e construir aprendizados em torno da apreciação de cervejas, notadamente as chamadas artesanais, além de veicular o discurso do empoderamento da mulher, fato esse atravessado de ressalvas. Apesar de homens não serem aceitos no grupo no Instagram, podem seguir as integrantes assim como curtir e postar comentários acerca das postagens.

Nos estudos sobre a cidade tanto o consumo quanto a mídia surgem como instâncias centrais à produção de significado. As ações e práticas de consumo das integrantes da Comunidade deixam de ser comportamentos bizarros e extravagantes quando pensadas a partir da noção de cultura de consumo. Barbosa (2004) assinala que “o consumo é central no processo de reprodução social de qualquer sociedade, ou seja: todo e qualquer ato de consumo é essencialmente cultural” (p.14), não sendo restrito a um indivíduo atomizado. Featherstone (2012) assinala que o termo cultura de consumo permite compreender a sociedade contemporânea a partir da forma como as mercadorias são mobilizadas para comunicar e, assim, produzir sentido. Cultura de consumo implica em situar as mercadorias ou o mundo dos bens para além de sua mera perspectiva instrumental ou utilitarista. Somente dentro de uma matriz cultural é que bens, sua produção, assim como a troca e o consumo ganham sentido. É preciso levar em conta o papel da cultura no processo de reprodução do capitalismo, sem o qual dificilmente compreender-se-ia as escolhas dos atores sociais. A esse processo se somaria o papel jogado pela mídia.

O Instagram e o lazer são temas abordados recorrentemente no campo da Comunicação. Limeira e Araújo (2016) procuram compreender as apropriações e as ressignificações do lazer na rede social digital Instagram. Rede social voltada ao compartilhamento de imagens, o Instagram proporciona que fatos simples da vida ordinária ganhem notoriedade e se propaguem em apenas poucos segundos, sustentam os autores. Tradicionalmente compreendido em oposição ao mundo do trabalho, o tempo de lazer teve suas bases teóricas lançadas por Dumazedier (1973), para quem a liberdade das obrigações laborais, sociais e familiares estava no âmago do fenômeno. Central à compreensão do lazer, enfatiza-o como uma esfera que se inicia findadas as obrigações laborativas e familiares dos sujeitos. Entende-se que o tempo de lazer nem sempre significa a total ruptura com o universo heterônomo do trabalho, mas estabelecendo “relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o trabalho produtivo” (Gomes, 2004, p.125). Lazer e trabalho se mesclam nessas ocasiões, de forma que não é evidente a separação dessas duas esferas.

Nas práticas das integrantes da Comunidade, lazer e trabalho têm suas fronteiras borradas. Mesmo que para alguns autores, como Gutierrez (2001), a definição de lazer implica na de prazer, entre ambas pode haver tensão. A obrigatoriedade do prazer em se relacionar com o tempo livre adiciona um componente de frustração quando não alcançado, aflorando a contradição entre lazer e prazer. Conforme assinala Gutierrez (2001), “o lazer não pressupõe necessariamente a consumação do prazer. Seu compromisso é com a busca do prazer, com a luta por uma sensação de prazer que pode, ou não, vir a ocorrer” (p. 7).

As integrantes da Comunidade costumam investir valores consideráveis na degustação de cervejas artesanais, assim como em viagens e encontros, o que assinala seu pertencimento ao universo de camadas médias. Em muitos casos, uma garrafa de cerveja ou chope artesanal pode alcançar facilmente a soma de R$ 30,00, R$ 40,00 reais ou mais ainda, o que faz de seus membros pessoas detentoras de capitais econômicos e culturais não negligenciáveis. Esse valor se eleva quando associado à gastronomia e às viagens. As integrantes do grupo são, portanto, em sua maioria, oriundas das camadas médias, o que já informa algo a respeito do uso de seu tempo livre e seus estilos de vida, mas não explica tudo. Velho (1994) cunhou o termo cultura de classe média para enfatizar a proximidade entre o processo de individualização e as camadas médias, ainda que chamasse a atenção para os limites analíticos da categoria[v].

As fotos postadas pelas integrantes do grupo, assim como seus comentários, são refletidas e construídas cuidadosamente, o que aponta para gestos e atos refletidos envolvidos na construção da subjetividade. Nas postagens das integrantes do grupo, observa-se a conversação como uma forma de sociabilidade básica (Simmel, 1987). Um sujeito comunica seus gostos, suas experiências, suas frustrações, enfim, tudo o que ele quer transmitir a outro indivíduo de seu grupo ou de um novo grupo através da conversa. A sociabilidade “tece a trama do cotidiano: relatando em que a vida do dia-a-dia, prática da devoção, a troca de informações e pequenos serviços, os inevitáveis conflitos, a participação em atividades vicinais” (Magnani, 1996, p. 32).

As publicações dos membros do grupo no Instagram frequentemente mostram jovens mulheres, eventualmente vestindo a camisa do grupo e degustando cervejas artesanais com ou sem a harmonização de pratos. Othon e Coelho (2016) enfatizam as novas estratégias de marketing e consumo através do Instagram. Ao articular a ideia de rede social com a de câmera fotográfica presente nos dispositivos móveis, o Instagram fornece as condições de interação instantânea assim como de uma maior autonomia e participação dos sujeitos envolvidos. É comum as integrantes comentarem, em suas postagens, o tipo de cerveja que está sendo degustado. Nesse momento, as integrantes da Comunidade fazem mais do que unicamente emitir uma opinião, elas produzem sentido ao organizar e classificar, cervejas, tempo, espaço e pessoas.

GÊNERO E EMPODERAMENTO

A temática do empoderamento ou da autonomização feminina no cenário cervejeiro é um tema recorrente nas postagens das integrantes da comunidade. Trata-se de uma temática que surge nas postagens sem que necessariamente se torne um assunto cujas discussões se prolonguem ou se aprofundem demasiadamente. Fomentar a participação da mulher que deseja trabalhar com cerveja, além de levantar as barreiras que ainda reproduzem desigualdades entre homens e mulheres são algumas das representações ou, ainda, bandeiras expressas nas postagens da Comunidade e que apontam o valor do empoderamento feminino.

A Comunidade despertou nossa atenção através do Instagram na simples opção Explorar do aplicativo. Em seguida, a procura se expandiu para o Facebook com uma simples ‘curtida’ na página para manter atualizações. Os integrantes do universo cervejeiro, complexo e diversificado, além das redes sociais contam com aplicativos [apps] específicos para o nicho de mercado. As integrantes contam com as redes sociais como os meios mais comuns para se comunicarem. Além do Instagram e do Facebook, elas também se utilizam do aplicativo Whatsapp. Conforme mostra Marteleto (2001), o estudo das redes indica mudanças e permanências nos modos de comunicação e transferência de informações, nas formas de sociabilidade, aprendizagem, autorias, escritas e acesso aos patrimônios culturais e de saberes das sociedades mundializadas. Como todo grupo social que de tempos em tempos necessita recarregar suas energias morais e atualizar a consciência que possui de si mesma (Durkheim, 1996), a Comunidade busca realizar encontros presenciais regulares. O caráter instantâneo, prático e de livre acesso a informações e atualizações de acontecimentos estão entre as principais razões para o entusiasmo pelo Instagram. Além do perfil no Instagram e no Facebook, a Comunidade possui também uma loja virtual cujo site se encontrava em manutenção no momento dessa pesquisa. A Comunidade possui sua própria marca registrada, cuja imagem é aplicada em diferentes objetos. Copos, taças e growlers[vi]são alvos frequentes de postagens e de numerosos comentários sobre sua aquisição. Mais do que a simples posse de um objeto, trata-se de portar um signo distintivo altamente identitário para seus membros (Heilbrunn, 2005).

O consumo, visto pela ótica da Antropologia, somente ganha sentido no interior do grupo ao qual o sujeito encontra-se inserido: .o fato de adquirir um produto hoje não satisfaz apenas ‘necessidades econômicas’, mas também as subjetivas, dentre elas o lazer. (Oliveira & Freitas, 2004, p. 48). Além de fotografias, vídeos de curta duração também são acionados na troca de mensagens e no compartilhamento de experiências, mas também para divulgar e promover eventos cervejeiros. A harmonização entre cervejas e pratos é outro tema que ganha destaque nas postagens por expressar um caráter mais técnico e profissional, podendo operar como signo distintivo de conhecimento e experiência. Cervejarias artesanais costumam enviar amostras para serem degustadas e comentadas em vídeos que são postados no perfil do Instagram, acentuando seu caráter como ferramenta de marketing.

Destacam-se, a seguir, algumas postagens, selecionadas em ordem cronológica, com temas de importância para pesquisa, notadamente o empoderamento, em imagens, comentários e gestos, mesmo que os sentidos jamais sejam inequívocos (Barthes, 1981; Flusser, 2002). Cumpre esclarecer que a amostra é qualitativa e intencional, situação em os limites e alcances da pesquisa em termos de sua generalização são relativizados. Um aspecto que chama a atenção nas postagens é a fronteira entre lazer e trabalho, que não se encontram delimitadas em muitas das postagens do grupo. Eventos festivos são ocasiões para reunir-se, compartilhar experiências, mas também promover produtos e serviços, em um claro sinal do universo do trabalho.

Em 12 de julho de 2016 foi publicado na página da Comunidade no Facebook, a 1º Festa das Mulheres Cervejeiras, realizada no Clube do Malte[vii], em Curitiba. Trata-se da primeira festa dedicada inteiramente às mulheres, com presença aproximada de 15 integrantes do grupo e um total de 92 participantes, entre homens e mulheres. Um trecho da publicação ressalta a ideia principal da festividade: “Uma festa para as cervejeiras, mas com espaço para eles!”. O objetivo da festa era o encontro das mulheres cervejeiras, momento de interação, socialização, e claro, uma festividade dedicada a elas, mas com participação do gênero masculino, sem restrição ou exclusão. Uma observação na postagem alerta aos integrantes da necessidade de apresentar o comprovante de compra, o que aciona de forma explicita a dimensão comercial do evento.

No dia 19 de agosto de 2016, uma postagem mostra uma cervejeira diante de dois grandes recipientes utilizados na fabricação de cerveja: lazer ou trabalho? A postagem é ambígua, afinal, cozinhar a cerveja em grandes recipientes significa também muito esforço e trabalho. A postagem faz referência ao fato de que a mulher não necessariamente conhece sua força. Essas experiências operariam como um tipo de autoconhecimento do próprio sujeito. Cerca de um mês depois, no dia 22 de agosto de 2016, uma postagem coloca em evidência a capacidade e o profissionalismo da mulher como sommelier de cervejas. Na postagem, uma frase sublinha a humildade como sendo a parte mais bela da sabedoria. Nessa postagem, temos a imagem de uma mulher avaliando cervejas tendo ao fundo alguns homens que também avaliam cervejas. A associação entre imagem e texto sugere que a cervejeira é sábia devido a sua humildade, uma qualidade feminina. Aqui há um claro antagonismo entre homens e mulheres, principalmente quando os homens ocupam a posição de sommelier há muito mais tempo do que as mulheres.

Alguns meses depois, no dia 28 de novembro de 2016, uma postagem critica explicitamente a campanha publicitária da cerveja Irada, produzida na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo da campanha, segundo seus organizadores, era pegar carona na polêmica da censura da guarda municipal, ao topless de mulheres na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Nessa publicidade, uma cerveja era oferecida as mulheres que tirassem a parte superior do biquíni. A polêmica foi imediata, devido ao caráter ofensivo da publicidade, segundo algumas das integrantes da Comunidade. A Comunidade reagiu rapidamente. Na postagem do grupo é destacado que a cervejaria Irada perderá uma enorme fatia do mercado. Ainda de acordo com essa postagem, as integrantes do grupo são conclamadas a boicotar a cerveja ao mesmo tempo em que sublinha quem de fato luta pela verdadeira[viii]cultura cervejeira.

Do ponto de vista antropológico, nenhuma cultura é melhor ou pior, mais autêntica ou artificial do que outra, mas, apenas diferente. Contudo, as integrantes situam aqueles que produzem a cerveja Irada como estando fora desse universo, em uma clara alusão de que estariam apenas interessados nas vendas e nos lucros. O grupo também assinala que as cervejeiras são mais fortes unidas e não se resumem a ‘peitos’, parte do corpo feminino muito explorado na publicidade tradicional de cerveja e cujo conteúdo é amplamente sexista. Um importante comentário de uma integrante do grupo destaca que os responsáveis pela campanha ainda veem a mulher como objeto, ao fingir apoiar a liberdade da mulher, mas, na verdade tirando somente proveito de uma causa feminina. Nessa postagem o empoderamento feminino aparece sob a forma de um discurso que identifica a estratégia da cervejaria Irada como reproduzindo preconceitos e naturalizando os papéis e lógicas binárias tradicionalmente assinaladas às mulheres em uma cultura machista.

A postagem de uma fotografia no dia 5 de janeiro de 2017 rendeu 732 curtidas[ix], um número significativo em relação universo de participantes. Essa postagem assinala a incompreensão dos homens pelo gosto feminino pela cerveja, segundo o discurso presente na postagem: “Eles não entendem...Cerveja de mulher é qual ela quiser, mas se for IPA é ainda melhor”. Entre os comentários um reforça a bandeira do grupo: “Meninas, temos que nos unir e mostrar para que viemos. Chega de machismo camuflado em publicidade. Chega de rótulos, viva as mulheres FORTES...Tamu junto! [sic]”. No discurso da postagem é estabelecida uma associação entre a cerveja Indian Pale Ale [IPA] e as mulheres, consideradas como moralmente fortes. Isso endossa a representação contra a qual o grupo se opõe, a de que mulheres são fracas e somente bebem cervejas leves e adocicadas. Há uma significativa inversão na hierarquia tradicional que ainda representa as mulheres como sendo frágeis e delicadas. Podendo optar pela cerveja que quiserem, afinal, cerveja de mulher é qual ela quiser, a preferência pela IPA reforça o sentido que se quer expressar. Há cerveja apropriada para mulher, para o gosto feminino? Não, segundo podemos ver em uma postagem do grupo no dia 17 de janeiro de 2017. O tom adotado para expressar a autonomia da mulher em decidir qual cerveja prefere assinala o quão representativo é exercer sua capacidade de escolha: “Cerveja de mulher é o car&$:oo. Cerveja de mulher é qual ela quiser”.

Na postagem do dia 5 de fevereiro de 2017 acentua-se o fato do grupo estar há um ano repetindo que é preciso ações contra a intolerância e o preconceito. “Se você acha que cerveja e mulher não combinam você: não entende nada nem de um e da outro .sic]”. Um mês depois, a luta pelo empoderamento da mulher cervejeira, profissional ou apreciadora, foi o tema abordado em uma postagem no perfil do grupo no dia 17 de fevereiro de 2017. Essa postagem comemorava um ano de lutas da Comunidade e o ícone feminino, banhado em lúpulo, segundo a postagem, foi acionado para representar essa data. Também, segundo a postagem, a loja da Comunidade encontrava-se aberta para todos, homens ou mulheres. Nas comemorações do aniversário de um ano da criação do grupo o tema de luta e combate ao machismo e a intolerância são enfatizados nessas postagens.

Em 6 de março de 2017, uma postagem no grupo mostra a imagem de uma jovem mulher só em sua casa, degustando uma cerveja em lata, ressaltando as seguintes ideias: “Ser mulher é questionar os padrões da sociedade, é um ato de coragem. Acredite no seu poder, seja forte e mostre para o mundo que quem manda na sua vida é somente você”. Em seguida, comentários de integrantes do grupo assinalam que ela está “Certíssima!” e que se trata de “Uma bela cerveja, texto e foto”. Poder, força, coragem e autonomia são categorias mobilizadas no discurso de uma mulher que é pensada como a única a ditar os rumos de sua vida, obedecendo exclusivamente a sua vontade. Novamente observamos o discurso do empoderamento sendo construído através da ênfase em valores como autonomia, coragem e força da mulher cervejeira.

No 8 de março, Dia Internacional da Mulher de 2017, uma postagem convoca as integrantes do grupo a lutar pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Conforme o discurso, “Igualdade de oportunidade entre mulheres e homens significa superação de barreiras em todos os âmbitos da vida”. As desigualdades representam barreiras históricas cuja superação possibilitaria oportunidades iguais entre os sexos. Na postagem ainda é possível ler sobre a mobilização em busca de uma sociedade mais justa e igualitária, além de reforçar com a seguinte frase: “Portanto, nesse 8 de março, espalhe amor, parabenize cada mulher, mas não se esqueça lute por IGUALDADE”! Essa mesma postagem convoca as integrantes do grupo a lutar pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Conforme esse discurso, as desigualdades representam barreiras históricas cuja superação possibilitaria oportunidades iguais entre os sexos. Na postagem ainda podemos ler que a existência dessas barreiras, agora mais questionadas do que nunca, é responsável por ainda reproduzir um modelo de mulher cuja sociedade não somente deseja, como necessita. O universo doméstico, tradicionalmente visto como feminino, é frequentemente acionado nos discursos veiculados no perfil do grupo. No dia 14 de maio de 2017, uma postagem homenageia o Dia das Mães. Categoria do universo da cerveja, a harmonização é mobilizada para construir a ideia de um lar livre de tensões e conflitos: “A melhor harmonização para uma mulher é receber os netos, filhos, marido e uma boa cerveja”. Nota-se a construção de uma concepção de feminino que articula o universo doméstico e família.

Além das postagens no perfil, três integrantes do grupo também foram entrevistadas. Observamos na composição das integrantes, a existência das cervejeiras que fabricam e produzem cerveja, a cervejeira que degusta e a cervejeira que estuda buscando conhecimento teórico. Selecionamos algumas das categorias mais significativas presentes nessas entrevistas através do recurso metodológico de mapeamento pela posição e sentido das palavras no texto, além de sua redundância (Barthes, 1980; Velho, 1973). Para todos os efeitos, toma-se Velho (1973), como modelo de análise de categorias. Sistematizam-se no Quadro 1, as Unidades Mínimas Ideológicas, suas características, assim como também suas frases mais significativas e frequência.

A categoria cerveja ocupa lugar de destaque, representando as integrantes do grupo. Em poucas palavras, ela é boa para pensar. As propriedades semiológicas da cerveja fornecem elementos interessantes para se pensar o grupo: é líquida, amarga, adocicada, refrescante, com alto ou baixo teor alcoólico, mas também pode ser forte e misteriosa. Não há a imposição de degustarem uma cerveja adocicada que as generalize como mulheres dóceis, pelo contrário. Durante a pesquisa, perceberam-se mulheres que se apresentam como fortes e que apreciam com maior frequência uma cerveja de estilo forte e grande amargor. Observam-se diversas frases no grupo do WhatsApp, tais como: “Mulheres que amam Ipa” ou “Amo cerveja amarga”. Essa categoria se articula ao consumo exagerado da bebida e coloca em destaque a ideia de perda de controle mediante o consumo de álcool, um tema que nos remete à interiorização de novos códigos presentes nas redes sociais (Detrez, 2002).

Redes Sociais é outra categoria importante do universo mental do grupo. Ela ganha centralidade por ter possibilitado que as integrantes descobrissem a Comunidade. Em suas falas, as redes surgem não somente como um canal de troca de informação instantânea, mas como forma de novos usuários descobrirem a existência da Comunidade e do universo cervejeiro. Ao analisar essa categoria presente nos discursos, nota-se uma certa ambiguidade em relação as redes sociais. Quando a Comunidade foi criada, insultos iniciais foram relatados e acusações de que o grupo seria uma panelinha. Segundo a fala de Daiana: “No começo senti muito preconceito nas redes sociais, até porque nesse meio existem as “panelinhas”. Ouvi deboches, pediram para eu excluir o canal do Instagram, para desistir. Mas muitas mulheres se uniram a nós, pois entenderam a nossa iniciativa e se identificaram com ela”[x].

Unidades Mínimas Ideológicas
Quadro
Unidades Mínimas Ideológicas
Os Autores

Na sequência das categorias mais relevantes nos discursos das entrevistadas, destacam-se a Aprender e Conhecimento. Em seus discursos, tanto o aprender quanto o conhecimento opõem-se ao preconceito e apontam para a noção de luta. A fala de uma das integrantes da Comunidade enfatiza esse aspecto: “Por mais que o grupo seja 100% feminino, aqui não há nenhum movimento feminista extremista, pois qualquer tipo de movimento contra o preconceito é machismo; a nossa arma é o conhecimento” (Daiana). Para Fabiana, outra integrante da Comunidade, é importante que uma comunidade exclusiva ganhe espaço e notoriedade, pois o mundo cervejeiro ainda é um mundo machista. No decorrer de nossa pesquisa, analisaram-se alguns eventos no qual a Comunidade esteve envolvida, contudo, apenas no evento Mondial de La Bière [Festival Internacional de Cerveja], manteve-se contato para trocar ideias com algumas integrantes do grupo. Evento foi outra categoria chave à compreensão dos significados expressos pelas participantes da Comunidade e ganha sentido quando posta em relação à categoria Encontro. Encontrar-se coloca em evidência o estar com o outro.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Grupo social composto por indivíduos altamente heterogêneos, a Comunidade Mulheres Cervejeiras se inscreve em um quadro de mudanças e transformações sociais estruturais que articulam fenômenos sociais contemporâneos como a urbanização, midiatização, consumo, empoderamento e lazer. Categoria de pensamento boa para pensar e agir, a cerveja artesanal é alçada ao status de representante de mulheres fortes e determinadas. Em poucas palavras, de um estilo de vida (Featherstone, 2012). Para além de uma perspectiva utilitarista e funcional, as mercadorias se deslocam do contexto da produção para comunicar e produzir sentido quando inseridas nas redes de significados tecidas por mulheres através das redes sociais. Ao mesmo tempo, mulheres manipulam signos antes profundamente masculinizados para reivindicar igualdade e expressar sua autonomia.

Em comentários mais técnicos sobre cervejas artesanais, harmonização e degustação, as integrantes da Comunidade sentem-se reconhecidas e autorizadas a falar de temas sem depender de outra fonte de poder senão a do próprio grupo, aspecto assinalado por Simmel (1973) a respeito da autonomização dos círculos sociais na cidade. São mulheres falando para outras mulheres horizontalmente de um tema considerado por muitos como masculino. A troca e o compartilhamento de saberes sobre a degustação e mesmo a fabricação de cerveja articulam, então, autonomia com a possibilidade de negócios e lazer.

A suposta liberdade representada pela Internet é acompanhada, paradoxalmente, de novas formas de restrição e controle altamente codificados. Mostrar-se apreciando cervejas artesanais no Instagram impõe as integrantes um maior controle de seus corpos [forma] e de seu consumo [quantidade ingerida de cerveja]. Esse fenômeno guarda profunda relação com a análise de Queval (2008) sobre o duplo processo de individualização e subjetivação em que ao internalizar a norma o sujeito é responsabilizado por suas escolhas ao ponto de ser estigmatizado em caso de fracasso. A postagem de fotografias em que integrantes aparecem bem vestidas, maquiadas e em ambientes esteticamente planejados enfatizam esse aspecto. O consumo de cervejas artesanais no tempo de lazer das integrantes é uma forma de falar de si ao mesmo tempo em que do grupo. À mercadoria-signo juntam-se o corpo-signo sem prejuízo do significado socialmente negociado por suas integrantes. Nesse âmbito, lazer e trabalho não se encontram em esferas separadas. Tempo de lazer e tempo de trabalho sobrepõem-se em diversos momentos nas postagens, o que não deve ser tomado como evidente e livre de contradições. Para muitas integrantes o tempo de lazer não necessariamente começa somente depois de terminadas as obrigações.

Curtidas e palavras de estímulo seguidas das postagens de imagens das integrantes apreciando cerveja reforçam sentidos veiculados nas imagens. A sociabilidade é, então, submetida a uma tensão: a interação lúdica, onde o importante é impedir a emergência de assuntos do cotidiano, cede terreno aos temas sérios que marcam a rotina do mundo do trabalho. No entanto, isso não necessariamente constitui um problema para suas integrantes, afinal, as fronteiras entre sociabilidade, lazer e demais obrigações próprias da vida cotidiana não deixam de figurar nas postagens. Isso fica evidente quando em uma postagem comemorando o dia das mães, família, marido, namorado, filhos e netos são acionados para falar de um lar harmônico, livre de tensões e conflitos. Finalmente, somente o espaço urbano poderia comportar tal ordem de fenômenos mediante a articulação de diferentes esferas como o mito, a comunicação, o urbano, o consumo, a socialidade e a individualidade.

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Notas

[i] Fazemos referência à obra de Durkheim (1996), As formas elementares da vida religiosa, para abordar a percepção como a apreensão da realidade a partir de um sistema de coordenadas simbólicas operadas por categorias de entendimento ou pensamento.
[ii] A partir desse momento, adota-se o termo Comunidade ou Grupo para nos referirmos às Mulheres Cervejeiras.
[iii] Claro, não se trata de admitir o reino absoluto da liberdade individual, mas suas estratégias, escolhas e opções ganham importância nesse universo.
[iv] Mulheres Cervejeiras não é o único grupo que luta pelo empoderamento da mulher adentrando ao campo da cerveja. O grupo Empoderamento, Liberdade e Agir [ELA] também atua nessa frente.
[v] Para além das classificações fundadas em indicadores socioeconômicos, por camadas médias compreende-se, principalmente, o universo de valores que situam o indivíduo tido como autônomo e dotado de racionalidade como central à constituição da sociedade moderna. A enorme variação das ocupações, trajetórias de vida e experiências em contextos urbanos colocam obstáculos para se tomar a noção de camadas médias como um universo suficientemente coerente e definido (Velho, 1994).
[vi] Espécie de recipiente apropriado para o acondicionamento de cervejas especiais.
[vii] Clube do Malte: Rua Desembargador Motta, 2200, Curitiba-PR.
[viii] A ideia de que há uma verdadeira cultura cervejeira somente ganha sentido na fala expressa nessa postagem. Para todos os efeitos nenhuma cultura é falsa ou verdadeira.
[ix] Atualmente, a meta é sempre manter a relação entre o número de seguidores por curtidas e comentários acima de 2,5%. Quanto às curtidas, as postagens apresentam uma quantidade elevada se comparado com publicações anteriores.
[x] Daiana, em entrevista aos autores.
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