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‘Meus 15 Anos’ e seus Significados: Rito de Passagem e Rito de Consumo em Festas de Debutantes
The 15th Birthday Party Meanings: Rite of Passage and Rite of Consumption in Debutante’s Balls
‘Meus 15 Anos’ e seus Significados: Rito de Passagem e Rito de Consumo em Festas de Debutantes
Rosa dos Ventos, vol. 12, núm. 3, pp. 762-776, 2020
Universidade de Caxias do Sul
Recepção: 13 Fevereiro 2020
Aprovação: 21 Junho 2020
Resumo: Este artigo pretende expor os principais resultados da pesquisa realizada entre os anos 2017 e 2018 e que resultou no documentário “Meus 15 anos e seus significados”. O objetivo principal da pesquisa foi compreender quais os sentidos que estão em jogo quando pensamos, atualmente, na festa de 15 anos [ou baile de debutantes]. Como ritual, a festa de 15 anos configura-se em evento rico para compreender uma sociedade, pois é imbuído de significados simbólicos codificados pelas tradições culturais. Ao buscar esses significados, a metodologia contou com levantamento bibliográfico capaz de construir o arcabouço teórico necessário para dar suporte à pesquisa; entrevistas que foram realizadas com debutantes e suas mães, cerimonialistas e meninas que optaram por não realizar a festa de 15 anos; e observação participante de festas de 15 anos. Após a coleta de dados é possível vislumbrar alguns resultados. O principal deles aponta para a existência de dois tipos de rituais: de passagem e de consumo. Os dois tipos de rituais não são excludentes, como a hipótese inicial previa, ao contrário, coexistem dando um sentido especial a este tipo de evento.
Palavras-chave: Evento, Rito, Baile de Debutantes, Festa de 15 anos.
Abstract: This paper aims to expose the main results of the research conducted between 2017 and 2018 and which resulted in the documentary entitled “My 15 years and their meanings”. The objective of the research was to understand which meanings are at play when one reflects upon the 15th birthday party [debutante ball, quinceañera]. As a ritual, this party is a rich event to understand society, as it is imbued with symbolic meanings encoded by cultural traditions. In seeking these meanings, the methodology relied on a bibliographic survey capable of constructing the theoretical framework necessary to provide the support for the research: interviews conducted with debutantes and their mothers, ceremonialists and girls who chose not to hold the 15th birthday party; and participant observation of debutant balls. After data collection, it is possible to glimpse some results. The main point is the existence of two types of rituals: passage and consumption. Both types of rituals are not exclusive, as the initial hypothesis predicted. On the contrary, they coexist, which gives special meaning to this type of event.
Keywords: Event, Ritual, Debutante Ball, 15th Birthday Party.
INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe-se a apresentar os principais resultados da pesquisa[i] que intencionou compreender quais são os atuais significados da festa de 15 anos. Desenvolvido entre os anos 2017 e 2018, este estudo foi ancorado na hipótese de que houve uma mudança nos sentidos da festa de 15 anos, passando de um ritual de passagem para um ritual de consumo. Historicamente representado como um modo de apresentar a moça à sociedade, configurando a entrada desta no mundo matrimonial (Stéban & Pépece, 2015), atualmente os 15 anos continuam sendo um evento que marca simbolicamente a vida da menina na sociedade brasileira, constituindo-se em um ritual de importância significativa. Quais são os significados sobre este tipo de festa que são compartilhados de modo a perpetuar a importância deste evento em nossa sociedade?
Para responder tal pergunta, a pesquisa contou com a seguinte metodologia: pesquisa bibliográfica, entrevistas e observação participante de festas de debutantes. As entrevistas[ii] foram conduzidas em três etapas[iii], a saber: (i) a primeira com cerimonialistas[iv] que atuam diretamente na organização deste tipo de evento; (ii) posteriormente com meninas debutantes e suas mães; (iii) em um último momento com meninas que, mesmo em condições de realizar a festa de 15 anos, optaram por outra forma de comemoração, como viagens. Após a coleta, os dados foram examinados à luz da análise de conteúdo[v] por categorias temáticas[vi] (Bardin, 2011), que permitiram a criação e classificação das seguintes categorias: rito de passagem, rito de consumo, família e sociabilidade. Os principais resultados sugerem que, contrariando a premissa inicial, na festa de 15 anos parece coexistir os dois tipos de rituais, de passagem e de consumo, sendo que cada um deles confere afinidade com um tipo de público específico deste tipo de evento: a família e os amigos da debutante. O desenvolvimento de tal premissa é o principal objetivo deste artigo.
CERIMÔNIA
O surgimento das festas de 15 anos se deu no século XVI (Escalas, 1993), num contexto político e histórico em que o sucesso da mulher estava relacionado a conseguir um bom casamento, a fim de ter filhos e manter a ordem do lar. Esses primeiros bailes serviram, então, para apresentar a mulher à sociedade, marcando uma mudança em suas relações, já que esse rito de passagem significava uma série de novos comportamentos, como o reconhecimento daquela menina como mulher adulta (Stéban & Pépece, 2015; Escalas, 1993). Hoje, o baile de debutante parece ter diversos sentidos, para além de ser uma festa simbólica que marca a passagem da fase infantil para a adulta.
Desde seu surgimento até os dias atuais, o baile de debutantes vem ganhando novos significados por diversas razões e compreender os sentidos deste tipo de festa é relevante para entender comportamentos culturais, posto que a festa “pode ser uma dimensão privilegiada para o estudo das sociedades e grupos” (Amaral, 1998, p. 16), já que o grupo revigora "periodicamente o sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade. Ao mesmo tempo, os indivíduos são reafirmados na sua natureza de seres sociais" (Durkheim apud Amaral, 1998, p.14). Deste modo, estudar a festa e seus significados para determinado grupo é importante para o conhecimento da própria cultura, já que as cerimônias festivas auxiliam a reavivar os “laços sociais que correm, sempre, o risco de se desfazerem” (Idem, p.14). Ainda, para a autora, toda festa pode ser considerada um ato coletivo que pressupõe a participação de um grupo,
Uma festa com pouca participação ou poucas pessoas não é considerada uma boa festa. O tempo da festa também pode ser apontado como um princípio classificatório: no limite, tudo é festa durante o tempo da festa, o que faz dela um fato social total, no sentido maussiano. Uma multiplicidade de relações de diversas naturezas (religiosas, econômicas, artísticas, lúdicas, etc.) as diferencia de uma simples cerimônia (p.17).
Nesta perspectiva, a festa de 15 anos pode ser encarada como um acontecimento social relevante para um grupo que participa efetivamente do evento. Contudo, tendo como pressuposto o fato de as festas de 15 anos apresentarem sentidos distintos quando analisadas historicamente, busca-se compreender quais são, no presente momento, as significações da festa de 15 anos em nossa sociedade. Stéban e Pépece (2015) sugerem, a partir dos resultados de pesquisa empírica realizada em 2013, que a festa de debutantes visa reforçar o status da família na sociedade, sendo, portanto, um evento fortemente vinculado ao consumo[vii].
Um modo de compreender quais são os sentidos da festa de 15 anos hodiernamente é analisando os elementos protocolares e o cerimonial deste tipo de evento[viii]. Muito é comunicado através do cerimonial e protocolo, pois têm a função de transmitir valores, etiqueta, tratamento de acordo com a cultura que o recebe, definindo rituais (Lins, 1991). De modo geral, há determinados protocolos que são associados à festa de 15 anos, como a celebração e os elementos rituais. A celebração pode ser de cunho religioso [missa, culto] e profano [a festa ou baile de debutantes]. Já dentre os elementos rituais mais comuns, podemos destacar: a entrega de uma joia por algum membro da família da debutante; a boneca - a debutante entra na festa com uma boneca que é entregue à uma menina mais nova, simbolizando a transição da menina à moça; sapato - o simbolismo é parecido, a debutante entra de sapatilha e calça um sapato de salto, para representar a passagem; e a valsa - elemento fortemente associado às festas de 15 anos, no qual a menina realiza uma performance artística.
A partir da pesquisa realizada com cerimonialistas (Gama, Silva & Castro, 2018) foi possível concluir que alguns elementos protocolares são comuns nas festas de 15 anos, enquanto outros são renegociados e incorporados ou não de acordo com a aniversariante, sua família e dos profissionais envolvidos na organização do evento. Isso acontece porque os protocolos de cerimoniais sociais - ao contrário do cerimonial oficial que é regido por leis - não são rígidos, permitindo alterações nesses rituais, de acordo com a vontade dos anfitriões. Sendo assim, no caso das festas de 15 anos, os protocolos variam de acordo com a demanda dos contratantes, e nem sempre estão presentes, tais como: a menina entrar com a boneca na festa, trocar a sapatilha pelo sapato de salto, a entrega de uma joia como presente do pai. Exceção à dança, que continua como elemento de destaque da festa de 15 anos, a diferenciando de outros tipos de festa de aniversário (Gama, Silva & Castro, 2018). Deste modo a dança é um elemento presente em todas as festas, ensaiado e esperado com ansiedade pelos convidados. Todavia, mesmo a valsa pode ser ressignificada em muitos casos, transformando-se em, mais que uma dança, um elemento performático e coreografado.
Outro elemento que marca este tipo de festa é a importância do traje, com destaque ao vestido [ou os vestidos] da aniversariante, que garante o protagonismo da debutante e são decisões pessoais que passam uma ideia de exclusividade. Entretanto diretamente ou indiretamente, essas escolhas estão marcadas por fortes influências, que muitas vezes passam despercebidas. Ou seja, há um padrão ritualístico em que todas as debutantes seguem a mesma lógica para escolherem os elementos de sua festa (Stéban & Pépece, 2015). Desta maneira, os elementos rituais estão presentes neste tipo de solenidade, conferindo características únicas a este tipo de evento. Esses artefatos são produzidos a fim de dar sentido à experiência da festa, funcionando como um item de memória, uma lembrança ao vivido, bem como um item de consumo, expressando status simbólico.
RITOS NOS 15 ANOS
O ritual é especialmente adequado para compreendermos uma sociedade porque, no longo processo de reflexão sobre suas características intrínsecas, reconheceu-se que ele tem o poder de ampliar, iluminar e realçar uma série de ideias e valores que, de outra forma, seriam difíceis de discernir (Peirano, 2003). Os rituais e cerimônias [aqui, inclui-se a festa] distinguem-se por serem realizados de maneira formal, seguindo padrões estabelecidos pela tradição. Outra característica do ritual é sua natureza simbólica, já que ocorre em ocasiões específicas e períodos determinados. Para Peirano (2003), o rito é um sistema cultural de comunicação simbólica, especialmente adequado para compreender uma sociedade. Brêtas, Moreno, Eugenio, Sala, Vieira e Bruno (2008) confirmam esta ideia, ao afirmar que o ritual é “um tipo de linguagem, um modo de dizer coisas, na medida em que não só incorpora, mas expressa concepções e valores sociais, religiosos, políticos, econômicos importantes para a sociedade que o pratica” (p.405).
Neste sentido, o baile de debutantes pode ser compreendido como um ritual, já que trata- se de evento social imbuído de valor e significados simbólicos codificados pelas tradições culturais de uma sociedade. O ritual também pode ser definido como um acontecimento roteirizado que se caracteriza pela repetição. Esse roteiro é definido por normas protocolares, por objetos com significado simbólico e por pessoas que desempenham um papel específico no cerimonial. Essas qualidades são facilmente reconhecíveis na festa de 15 anos e algumas delas foram apontadas do item precedente deste artigo.
Outrossim, o baile de debutantes é concebido, por alguns autores que se debruçaram sobre o tema, como um ritual de passagem, já que representaria, para as debutantes, a mudança da infância para a adolescência (Escalas, 1993; Stéban & Pépece, 2015). Os ritos de passagem, para Van Gennep (2013), não dependiam da crença em poderes sobrenaturais, simplesmente marcavam uma mudança na vida de um indivíduo ou grupo, capazes de acompanhar mudanças de lugar, estado, posição social, de idade. O antropólogo Victor Turner (2013) trabalha esse conceito de ritos de passagem, ou seja, a passagem entre estados, sendo a noção de estado nos rituais de passagem como algo que se estende além do status e posição social, englobando estados mentais, sentimentais e afetivos e “a qualquer tipo de condição estável ou recorrente, culturalmente reconhecida” (p.97).
Por outro lado, a festa de 15 anos, também pode ser concebida como um rito de consumo. A diferença estaria no fato de, enquanto o rito de passagem aproveita seus artefatos simbólicos, o roteiro e os atores presentes para simbolizar uma mudança do indivíduo, pressupondo uma mudança na estrutura social, no rito de consumo as características do ritual são usadas para comunicação de status, capaz de classificar e de gerar prestígio. No ritual de consumo o bem “não significa simplesmente satisfação das necessidades objetivas, mas, antes, opera como marcador da vinculação social a um determinado grupo. Em outras palavras, o que está em questão são necessidades sociais, bem como uma forma de expressão da identidade de indivíduos e/ou de grupos” (Ferreira, 2016, 127).
Esta abordagem aproxima-se do ponto de vista teórico em que avaliamos o rito de consumo nas festas de 15 anos, no qual costumes culturais impactam na aquisição de bens por meio dos quais as pessoas buscam gerar status perante o grupo social em que vivem. Assim, o consumo é estimulado pelo desejo de reconhecimento e reputação social. “Trata-se, portanto, de conceber o consumo não como reflexo da produção, mas sim indagar sobre seu significado cultural, naquilo que o fenômeno, como campo de força, é capaz de dizer a respeito das relações sociais” (Ferreira, 2016, p. 129). Neste sentido, a abordagem deste trabalho está preocupada com as razões culturais e sociais no ato de consumir, enxergando o consumo como uma ferramenta de diferenciação social, como meio de produzir prestígio social e de gerar relações sociais. Assim, ao visualizar a festa de 15 anos como um rito de consumo, busca-se compreender os elementos simbólicos deste ritual – tais como: os protocolos, bem como a festa em si – capazes de gerar status para o anfitrião. Nesta vertente, a festa de 15 anos seria, como rito de consumo, meio para se construir identidades de grupos, conduzida pelo desejo de estima, reconhecimento e reputação social, posto que o ato de consumir envolve formas de sociabilidade (Ferreira, 2016).
Como afirmado na introdução deste artigo, a hipótese inicial desta pesquisa era a de que a festa de 15 anos se modificou, de um ritual de passagem a um ritual de consumo. Deste modo a pesquisa foi realizada, seguiu o percurso da revisão literária sobre o assunto e posteriormente foi a campo, buscando levantar dados que confirmariam ou não a hipótese inicial. O campo nos revelou alguns resultados distintos do imaginado inicialmente, provocando reflexões que nos permitiram refutar a hipótese original. Os dados levantados, bem como o caminho metodológico para sua coleta, serão apresentados a seguir.
APRESENTAÇÃO DOS DADOS
A metodologia de coleta de dados aconteceu em algumas etapas: [a] No primeiro ano da pesquisa, realizada na cidade Juiz de Fora-MG. foram entrevistadas cinco cerimonialistas, quatro debutantes com suas respectivas mães (que também somavam quatro). Também fizemos a observação participante[ix] de dois bailes de debutantes, um individual e o outro foi o baile coletivo[x]. [b] No segundo ano entrevistamos três adolescentes que optaram por não fazer a festa de debutantes, mas tiveram outra maneira de comemorar [no caso as três fizeram viagens para o exterior]. As entrevistas foram gravadas e, juntamente com as imagens captadas das festas que participamos, tivemos material para montar o documentário “Meus 15 anos e seus significados” que está disponível, gratuitamente, na Internet[xi].
Os dados apresentados neste item do artigo são compilações das entrevistas. Embora não seja necessário manter sigilo sobre a identidade das participantes, pois todas fazem parte do documentário, ainda assim optou-se por identificá-las neste artigo a partir dos grupos aos quais pertencem[xii], sendo eles: cerimonialistas [responsáveis pela produção de festas de 15 anos], debutante, mãe da debutante e adolescente (aquelas que viajaram ao invés da festa de debutante). As participantes foram selecionadas a partir da amostragem nomeada como bola de neve, um tipo de amostra não probabilística, que utiliza cadeias de referência e redes de contato. Deste modo, para selecionar as participantes da pesquisa, começamos fazendo contato com as cerimonialistas conhecidas pelos trabalhos em festas de debutantes, e, posteriormente, essas cerimonialistas indicaram as debutantes – e consequentemente suas mães. Para a segunda fase das entrevistas a seleção das participantes se deu do mesmo modo, o contato foi estabelecido através da rede de contatos, divulgando nossa pesquisa até aparecerem interessadas que cumpriam os critérios de inclusão e exclusão.
Em 2017, inicialmente, realizamos as entrevistas com cerimonialistas que trabalham com o tipo de evento objeto de estudo neste artigo: a festa de 15 anos. As entrevistas, semiestruturadas, tiveram um tempo médio de duração de uma hora e foram abordadas questões sobre os tipos de protocolo existentes na festa e se elas observam algumas mudanças em relação aos mesmos desde que começaram na carreira. Também perguntamos sobre quais são as principais características deste tipo de evento, tipos de públicos e a importância da festa de debutantes. Em seguida, realizamos as entrevistas com as debutantes e suas mães. As mães foram entrevistadas, pois exercem um protagonismo neste tipo de evento, como será discutido posteriormente[xiii]. Às debutantes indagamos se sempre comemoraram os aniversários pregressos, se as amigas também fizeram a festa de debutantes, o que não poderia faltar na festa e também sua importância. Às mães perguntamos se também realizaram a própria festa de 15 anos, como havia sido a experiência e quais eram as expectativas em relação à festa da filha.
Todas as quatro entrevistas, com a debutante e sua mãe, aconteceram em dois momentos: antes e depois da festa. A primeira entrevistada, a Debutante 1 [e sua mãe], teve uma festa grandiosa, realizada em importante casa de festas da cidade e o tema foi ‘A bela e a fera’. Com a debutante 4 e sua mãe, além das entrevistas, também realizamos a observação participante, pois estivemos presentes na festa observando o ritual e os elementos que o constituem. Utilizamos o diário de campo para anotações pertinentes e também filmamos o evento, com o consentimento da família, e as imagens fizeram parte do documentário já citado. As debutantes 2 e 3 – e suas respectivas mães – participaram do projeto do baile de 15 anos coletivo, organizado pela Casa de Cultura Evailton Vilela; as entrevistas aconteceram separadamente, mas este evento foi acompanhado de perto pela equipe da pesquisa. Iniciamos nosso contato com o projeto entrevistando as organizadoras do evento, posteriormente acompanhamos as reuniões, o evento de “moção de aplausos” na Câmara de Vereadores da cidade, os ensaios da coreografia que foi feita (posteriormente à valsa) coletivamente, e também o próprio baile. Assim como na observação participante anterior, utilizamos o diário de campo e filmamos o evento.
Já em 2018 foram feitas três entrevistas, desta vez com adolescentes que optaram por outra forma de comemoração dos 15 anos, que não a festa de debutante. Não foi intencional, mas em todos os casos as meninas realizaram viagens internacionais. As entrevistas foram curtas, em média trinta minutos, e as perguntas foram sobre os 15 anos, se gostavam de comemorar aniversários, qual era a importância desta data, se as amigas fizeram festa ou não, se elas gostavam de ir neste tipo de evento, dentre outras. Posteriormente à ida a campo, as entrevistas foram transcritas e todo material de vídeo assistido sistematicamente. Em seguida o material foi estudado e, à luz do referencial teórico, categorizado. Dessa maneira, os dados levantados foram organizados no Quadro 1.
| Categoria | Frase ilustrativa[xiv] |
| Rito de Passagem | “Aquela transição da menina que passa a ser mulher. Quinze anos é um marco na vida da menina-mulher. É um marco que já vem cultural e que faz parte da nossa história de vida” (Cerimonialista 1) “15 anos é a apresentação da menina para a sociedade. Esse seria o sentido dos 15 anos.” (Cerimonialista 2) “15 anos você só faz uma vez na vida, é você deixando de ser criança e se tornando adolescente, tipo assim indo pra vida, digamos” (Debutante 2) “O significado dos 15 anos pra mim é a passagem, de você ser uma criança querendo passar para a adolescência à adolescência em si. Eu acho que é uma coisa muito marcante” (Adolescente 1) “Vai marcar, como minha mãe falou é uma passagem, vou criar mais responsabilidade depois de fazer 15 anos” (Debutante 4) “Eu acho que muda toda uma etapa de vida, querendo ou não já começa a carregar uma responsabilidade maior, uma maturidade maior” (Mãe da Debutante 4) “15 anos já tem aquela tradicionalidade da festa ser de tal modo, de ter tais cerimônias que não combinariam com outras datas de aniversário. Essa coisa aí da passagem, por exemplo você não vai dançar valsa numa festa de 18 anos, né?! Você não vai dançar valsa numa festa de 13. Você não vai trocar a sapatilha por um salto numa festa de 18. Pra mim isso tudo, tipo, 15 anos. É uma coisa muito marcante mesmo”. (Adolescente 1) |
| Rito de Consumo | “Hoje as festas são superproduções e uma menina quer mais bonita que a outra e não pode ser igual... é igual, mas diferente. É igual, assim, de ser uma festa com muito adolescente, de ser uma festa que a pista bombe, de ser uma festa assim, bonita, bacana, com clipe legal, com foto bacana” (Cerimonialista 3) “Cada dia os eventos de 15 anos estão sendo produzidos pra esse lado, você tem uma mini balada numa festa” (Cerimonialista 1) “Hoje elas querem a festa, então a festa vem temática, escolhem um tema focado em algo que gostem e a busca é toda em cima do tema. Elas querem sair deste rótulo de festa infantil.” (Cerimonialista 2) “O glamour hoje em dia, a sociedade hoje em dia cobra ter um certo glamour na festa de 15 anos. Quando se fala em festa de 15 anos envolve muita coisa.” (Mãe da debutante 4) “Assim, pra mim o que eu acho mais importante são minha família, que não pode faltar, meus amigos e assim não precisa ser aquela festa de 15 anos igual foi, podia ser uma festa de 15 anos simples, mas o que eu queria usar mesmo era o vestido, eu queria o vestido”. (Debutante 3) “Os pais dão todo o gás, toda emoção mesmo, ralam por aquilo as vezes por anos. Já fiz evento que o pai já vinha juntando por quase 10 anos pra fazer o grande dia, desde quando a minha menininha nasce até ela virar mulher.” (Cerimonialista 1) “É diferente de outros eventos que você tem pela vida, porque assim você não tem mais um evento solitário, se você for casar o evento não é só seu, se você for formar o evento não é só seu, então, assim, no 15 anos é o evento dela” (Mãe da debutante 1) |
| Família | “Muitas das vezes a expectativa é a mãe que tá se realizando na filha, é a vó que se realizou na mãe ou que não pode proporcionar aquilo pra mãe, mas hoje consegue proporcionar pra neta, então não é uma realização única, não é só a debutante que sonha, o sonho muitas vezes vem da mãe, porque as vezes aquela mãe lutou a vida inteira pra criar aquela filha, as vezes sozinha, ou a avó que ficava, então você vê que é uma jornada muito emocionante, então o 15 anos é repleto e é pesado de emoção” (Cerimonialista 1) “A gente observou também que é muito um protagonismo familiar, é ser protagonista da própria história, é ser protagonista da própria família, então eu acho que mais que ser protagonista pros outros para outras pessoas verem, ou querer se destacar no meio coletivo, é se destacar no meio individual familiar.” (Cerimonialista 4) “O sonho dela é um sonho meu também, é uma coisa que eu queria ter dado pra ela sempre falei pra ela que eu ia ver se conseguia”. (Mãe da debutante 2) “Eu sempre quis, as pessoas falam e é uma verdade que as vezes a mãe quer fazer pra filha o que ela sempre quis pra si, sempre achei muito lindo, sempre achei maravilhoso”. (Mãe da Debutante 4) |
| Sociabilidade | “É muito legal quando tem uma foto da festa, você posta uma foto minha com fundo da festa vai um monte de gente comentar ‘saudade’, ‘faz mais uma’, um monte de gente já veio falar pra eu fazer festa de 18” (Debutante 1) “Quem vai fazer festa e já vai aumentando seguidores já vai aumentando comentário em fotos só pra ir ganhando convite. Acabou a festa te esquecem, se a foto tinha 300 curtidas passa a ter 100, já passou a festa não têm mais interesse.” (Debutante 1) |
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar os discursos divididos por categorias é possível vislumbrar alguns resultados. Como ritual, a festa de 15 anos configura-se num tipo de evento rico para compreender a sociedade. Nas falas das entrevistadas há similitudes, mas também contradições, que são próprias destes elementos. Uma boa ilustração deste argumento é com relação às respostas das debutantes e suas mães, quando indagadas sobre o significado da festa de 15 anos, muitas vezes não sabendo explicar o motivo e recorrendo ao senso comum, sobre a passagem da menina para mulher [moça]. Como enfatizado por uma entrevistada, a festa de debutantes é um marco cultural e como tal está impregnado de sentidos que são compartilhados socialmente e nem sempre racionalizados. Essa ideia é perfeitamente ilustrada quando perguntamos sobre a importância da data e ouvimos como resposta: “15 anos você só faz uma vez na vida”.
A pesquisa demonstrou[xv], a partir das entrevistas, que a festa de 15 anos, ou baile de debutantes, se confirma como um ritual relevante para nossa sociedade, caracterizado pela repetição, pela força do roteiro, que segue uma sequência repleta de elementos simbólicos e pessoas que desempenham um papel específico naquele evento [como confirma Amaral,1998, a festa supõe não só a presença de um grupo, mas, também, sua participação].
Assim sendo, as festas de 15 anos seguem o padrão ritualístico, para que sejam reconhecidas como tal, porém, por outro lado, há a necessidade de diferenciação, já que cada debutante que ter uma festa única, “hoje as festas são superproduções e uma menina quer mais bonita que a outra e não pode ser igual... é igual, mas diferente”. O protagonismo é ressaltado a ponto de uma mãe justificar a importância da festa de 15 anos por ser o único evento, na vida da filha, que ela não precisará compartilhar os holofotes com ninguém: “é diferente de outros eventos que você tem pela vida, porque assim você não tem mais um evento solitário, se você for casar o evento não é só seu, se você for formar o evento não é só seu, então, assim, no 15 anos é o evento dela”. Além, foi possível observar a ênfase em duas categorias: a sociabilidade e as relações familiares [especialmente relações maternas]. A sociabilidade pode ser associada ao ritual de consumo, posto que a festa é importante para gerar status para a debutante, seja em mídias sociais, expectativa para a festa, geração de novas relações de amizades. Nesse sentido podemos, inclusive, associar a escolha da cerimonialista como uma ‘garantia’ de que sua festa será dotada de elementos marcantes e inesquecíveis.
A sociabilidade tem força neste tipo de evento, confirmado pela importância gerada na lista de convidados. O convite é uma forma de relação e de status, de negociação e de poder. A expectativa em torno da festa é relevante para a debutante, observado também no número de penetras no dia da festa. Ao descrever sua relação com convidados, a debutante 1 disse ser comum que a popularidade crescesse em dias anteriores à festa, pois todos queriam um convite. Desse modo a debutante ficou em evidência nas redes sociais, ganhando curtidas e seguidores. Este fato a fez concluir que o período que antecedeu a festa tenha sido mais interessante que a festa em si. Sabendo da importância do status para a debutante, a cerimonialista 3 disse trabalhar auxiliando as meninas a postarem as fotos, criando um esquema de qual foto postar em qual dia e com qual legenda. Tudo pensado a fim de aumentar a visibilidade em torno da festa.
Os elementos simbólicos que fazem parte da festa de 15 anos têm duplo significado: dão força à existência do ritual e geram status à debutante, status entendido aqui como diferenciação e destaque ao grupo em que pertence. Embora com significados que hora se distinguem, hora convergem num mesmo sentido, o elo entre as entrevistas está também nos elementos rituais, que se configuram como categorias de distinção deste evento com outros tipos de festa de aniversário, a saber: a valsa, o vestido [e a troca de vestido], a joia, entre outros. Se elementos rituais como troca de sapato e boneca estão em desuso, outros são ressignificados, incorporando novos sentidos e revelando sua força ao ritual, como o caso do vestido. O vestido é citado por todas as debutantes entrevistadas. A ele é dado grande importância, depositando recursos financeiros e de tempo. Algumas debutantes trocam de vestido – e muitas, mais de uma vez – e essa troca tem um significado simbólico específico deste tipo de evento, pois nesses casos as debutantes iniciam a festa com um vestido mais recatado, comprido, que remete ao universo infantil [a ideia de princesa está aqui] e posteriormente, após a valsa, trocam por um vestido mais adulto, representando a ideia da passagem da menina à moça. A entrega da joia, quando acontece, tem o mesmo sentido: uma figura familiar, geralmente masculina, entrega uma joia representando a passagem.
Por outro lado, a festa de 15 anos é importante como reafirmação de laços familiares, já que é evidente a importância da relação materna. As mães são figuras relevantes neste cenário, confirmando a festa ou não, em uma relação clara com sua própria trajetória [muitas mães fizeram questão da festa da filha, pois não tiveram a mesma oportunidade]. Além da mãe, a avó também aparece nas entrevistas: “muitas vezes a expectativa é a mãe que tá se realizando na filha, é a vó que se realizou na mãe ou que não pode proporcionar aquilo pra mãe, mas hoje consegue proporcionar pra neta, então não é uma realização única, não é só a debutante que sonha, o sonho muitas vezes vem da mãe”. Deste modo a festa de 15 anos parece ser uma herança cultural da linha materna. Interessante notar a relevância da mãe nos preparativos para a festa, inclusive na existência da festa em si, entretanto, a mãe perde protagonismo durante a festa, quando o pai – e figuras masculinas – ganham evidência. Afinal é o pai quem dança a valsa, entrega a joia, troca o sapato e participa, ativamente, de todo o protocolo da festa, ao contrário da mãe. Por outro lado, ao contrário do passado, a presença do ‘príncipe’ não foi destacada nas entrevistas, sendo esta dança – que tradicionalmente procede à dança com o pai - substituída por performances artísticas individuais ou com amigas.
Importante ressaltar, das entrevistas realizadas com as adolescentes que puderam optar por outra forma de comemoração dos 15 anos, as meninas entrevistadas citaram que suas amigas, ao menos parte delas, também não quiseram a festa. Contudo, é relevante concluir que, mesmo sem a presença da festa, as meninas tiveram a possibilidade de escolher um presente significativo confirmando a importância desta data, os 15 anos, para as figuras femininas em nossa sociedade[xvi]. Todas as entrevistadas optaram por realizar viagens internacionais e, mesmo que não seja a festa, a viagem também representa um rito. Este fato mereceria novas investigações.
Embora a hipótese inicial da pesquisa tenha proposto uma mudança no significado da festa de 15 anos, de rito de passagem para rito de consumo, a pesquisa de campo e posterior estudo dos dados permitiu que refutássemos essa premissa. Essa conclusão foi possível após análise das entrevistas e das observações participantes das festas. A festa de 15 anos possui, em geral, dois públicos: a família e familiares e também os adolescentes e amigos da debutante. O rito de passagem está fortemente associado à família da debutante, que possui uma relação íntima com a menina, a viu crescer e percebe a festa como uma mudança social da menina à moça. Por outro lado, os amigos da debutante têm uma relação com a festa como um rito de consumo, de geração de status e sociabilidade.
Neste sentido é possível concluir que os dois sentidos estão presentes neste tipo de festa, o ritual de consumo e o ritual de passagem. Assim observamos que os 15 anos são importantes elementos de geração de status para a debutante, seja como consumo, através de elementos que geram sociabilidade para a garota, e por outro lado, a mudança de posição social, da menina à moça, como reafirmado pelas entrevistas realizadas. Os dois tipos de rituais não são excludentes, como imaginado ao início da pesquisa, ao contrário, coexistem dando um sentido especial a este tipo de evento.
Os eventos, como ritos, são ricas fontes para o conhecimento da nossa cultura e sociedade. Deste modo, pensando em futuras pesquisa e seguindo a abordagem deste artigo, outros eventos podem ser estudados, tais como: casamentos, festas de formaturas, aniversários infantis, entre outros. Buscar compreender como esses rituais funcionam e compreender sua importância para nossa cultura auxilia a dar suporte aos conhecimentos técnicos necessários a se atuar nesta área.
REFERÊNCIAS
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Notas