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A Reinvenção do Rural no Rio de Janeiro: A Experiência do Café na Roça no Bairro Campo Grande

Rural's Reinvention in Rio de Janeiro: Café na Roça Experience in Campo Grande Neighborhood

MARIA AMALIA SILVA ALVES DE OLIVEIRA
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
INGRID ALMEIDA DE BARROS PENA
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

A Reinvenção do Rural no Rio de Janeiro: A Experiência do Café na Roça no Bairro Campo Grande

Rosa dos Ventos, vol. 13, núm. 2, pp. 389-408, 2021

Universidade de Caxias do Sul

Recepción: 21 Junio 2020

Aprobación: 28 Enero 2021

Resumo: O processo de integração socioeconômico, político e cultural da região denominada como Zona Oeste, na cidade do Rio de Janeiro [Brasil], foi construído em torno da concepção de vocação agrícola. O recorte espacial do trabalho é o Rio da Prata, um subbairro de Campo Grande, na referida Zona. A orientação metodológica se dá pelo referencial teórico da Memória Social, tendo sido empregados métodos de gabinete e de campo. É apresentada uma contextualização da região em perspectiva histórica, buscando-se dialogar de forma interdisciplinar com questões inerentes às representações acerca do urbano-rural sob uma ótica reorientada para o viés ambiental, e também sobre as noções de ‘turismo’ e ‘lazer’. Tem-se como hipótese que o aumento de visitação em áreas naturais, aliado à tendência de turistificação do modo de vida de comunidades rurais têm transformado o fluxo de pessoas do bairro e produzido bens simbólicos. O trabalho discorre sobre as nuances apresentadas no processo de turistificação e destaca que é a memória do que ficou na representação social como rural. que compõe a atratividade local.

Palavras-chave: Turismo Rural, Urbano-Rural, Turistificação, Rio da Prata de Campo Grande, Rio de Janeiro, Brasil.

Abstract: The socioeconomic, political and cultural integration process of the region known as Zona Oeste [West Zone], in the city of Rio de Janeiro [Brazil], was built on ​​agricultural vocation conceiving. The spatial analysis of this work is Rio da Prata, a neighborhood of Campo Grande, in the West Zone. Using desk and field methods, the methodological orientation is given by the theoretical framework of Social Memory. A contextualization of the region is presented in a historical perspective, seeking to dialogue in an interdisciplinary way with issues inherent to representations about the urban-rural from a perspective reoriented towards to the environmental bias, and also about the notions of 'tourism' and 'leisure'. It is hypothesized that the increase of visitation in natural areas, allied to the tendency of turistification of rural communities’ life style changed the people flow in the neighborhood and produced symbolic goods. This work discusses the nuances presented in the turistification process and highlights that it is the memory of what remained in the social representation as rural that draws up the local attractiveness.

Keywords: Rural Tourism, Urban-Rural, Touristification, Rio da Prata, Campo Grande, Rio de Janeiro, Brazil.

INTRODUÇÃO

No dia 17 de setembro de 2018 foi publicada na página da rede social do Sítio Farol da Prata, localizado na região denominada Rio da Prata, em Campo Grande, Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro [Brasil], uma mensagem de desculpas e esclarecimento para os visitantes que se sentiram incomodados com o excesso de pessoas no último final de semana. O local, nos últimos anos, tem recebido um crescente número de visitantes, atraídos para o café da manhã, conhecido como ‘Café na Roça’, que tem cumprido a expectativa de uma típica experiência rural. A mensagem reflete a expressiva visitação que está sendo encarada pelo proprietário do empreendimento e pelos habitantes da localidade como um fluxo incomum de pessoas. O que é interpretado como o ‘turismo’ no local, objeto de investigação do presente trabalho, está atrelado à processos anteriores relacionados às transformações socioespaciais e culturais ocorridas na denominada Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

‘Zona Oeste’ não é uma denominação utilizada oficialmente pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, por não haver divisão da cidade por zonas de habitação, mas sim, por Áreas de Planejamento [AP]. ‘Zona Oeste’ é, então, a antiga denominação - utilizada até os dias de hoje -para definir o espaço geográfico ocupado pelos bairros que, de acordo com a Prefeitura, ocupam a AP-4 e AP-5. A AP-4 é composta pelas Regiões Administrativas que englobam os bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, e a AP-5 composta por cinco Regiões Administrativas: de Bangu, formada pelos bairros de Bangu, Gericinó, Padre Miguel e Senador Camará; de Realengo, formada pelos bairros de Campos dos Afonsos, Deodoro, Jardim Sulacap, Magalhães Bastos, Realengo, Vila Militar; de Campo Grande: Campo Grande, Cosmos, Inhoaíba, Santíssimo, Senador Vasconcelos; de Guaratiba, com os bairros de Barra de Guaratiba, Guaratiba, Pedra de Guaratiba; e de Santa Cruz, tendo os bairros de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba como integrantes.

Para Oliveira (2016; 2017) e Mota e Peixoto (2006), a AP-5 situa-se entre o rural e o urbano, pois seu processo de integração econômico, social, político, cultural e ambiental foi construído em torno da concepção de natureza e de uma ‘vocação agrícola’, embora a referida Área de Planejamento, de acordo com ordenamento jurídico da Cidade do Rio de Janeiro, esteja situada em espaço urbano desde a década de 1950. No confronto entre os remanescentes de uma cultura rural, traços de urbanização se insinuaram e nesse embate entre o ‘tradicional’ e ‘novo’ foi criado em 1974 o Parque Estadual da Pedra Branca [PEPB], uma Unidade de Conservação [UC] de proteção integral [mais restritivas, sendo permitido somente o uso indireto dos recursos naturais] abrangendo todo o maciço da Pedra Branca acima da cota 100, compreendendo vários bairros da AP-4 e da AP-5.

No contexto socioespacial em análise, o sub-bairro do Rio da Prata, parte das famílias tem a dinâmica de suas vidas associadas aos recursos naturais, estando grande parte das produções agrícolas situadas no interior do parque. Desta situação, decorreu um processo de requalificação e ‘conversão social’ (Leal, 2010) dessas comunidades, ao longo de ciclos de produção, para que pudessem permanecer habitando e produzindo nos mesmos locais. O aumento de visitação em áreas naturais, aliado à tendência de turistificação do modo de vida de comunidades rurais, têm também transformado o fluxo de pessoas no bairro e produzido bens simbólicos, que atraem visitantes para locais próximos e dentro do parque. É também incorporada a questão ambiental na reorientação do olhar para o meio rural e, neste cenário, observa-se a produção de elementos revalorizados e ressignificados, tendo os recursos naturais e as práticas ‘tradicionais’ a eles associados. Nesta lógica de relação com a natureza, a noção de patrimônio colabora com a reflexão acerca do que ocorreu na região ora estudada.

Segundo a sua acepção clássica, o conceito <patrimônio> refere ao legado herdados do passado e transmitido às gerações futuras. Assim, os recursos naturais, antes percebidos como infinitos e talvez por este motivo banalizado no processo mundial de industrialização, assumem a condição de patrimônio. Gonçalves (1995) argumenta que a noção de ‘perda’, associada ao debate sobre patrimônio, carrega consigo o conceito de alegoria, para dar conta da comunidade imaginada, ainda que na forma de narrativa. Tal discurso, quando acompanhado de processos de patrimonialização despertam e favorece um tipo particular de consumo deste bem: o turismo. E é esta denominação que foi atribuída ao fluxo de visitação que tem ganhado força e destaque no Rio de Prata de Campo Grande, ao associar como produto, o modo de vida dos agricultores locais, o apelo ao ‘natural’ e ao patrimônio. Tal conjunto de transformações, que reconfigura sociabilidades, é sobre o que o presente trabalho se debruça, objetivando investigar o processo que culminou com a turistificação do Rio da Prata de Campo Grande.

Considerando, então, que o estudo do fenômeno turístico é um potente elemento para a explicação da realidade social, este trabalho está organizado da seguinte forma: a seguir, é apresentado um debate conceitual acerca das noções de <turismo>, <lazer> e <turismo rural>, seguido pelas orientações metodológicas da pesquisa. É feita, então, uma contextualização da Zona Oeste em perspectiva histórica, discorrendo-se sobre o seu passado agrícola, o processo de industrialização nas décadas de 1960 e 1970 e sobre o Parque Estadual da Pedra Branca, com ênfase na vertente do Rio da Prata e a emergência social dos agricultores orgânicos. Ao promover essa contextualização, busca-se dialogar com as questões inerentes aos debates sobre as representações sociais acerca do urbano e do rural, e mais recentemente, sob uma ótica reorientada para o viés ambiental, e as implicações sociopolíticas no âmbito do debate sobre conservação da natureza. Na seguinte seção são apresentadas reflexões sobre o caso em tela. Para tal, tem-se como hipótese que o aumento de visitação em áreas naturais, aliado à tendência de turistificação do modo de vida de comunidades rurais, têm também transformado o fluxo de pessoas do bairro e produzido bens simbólicos, que atraem visitantes para locais próximos e dentro do Parque.

MARCO TEÓRICO

Ao mencionarmos fluxos de visitação, a discussão recai sobre os fenômenos sociais <turismo> e <lazer>. Trabalhos como os Taschner (2000), Ysayama, Araújo e Silva (2008) e Taveira e Gonçalves (2012) já demonstraram que tais conceitos, que, interpretados enquanto bens de consumo e possibilidades de vivência cotidiana são, muitas vezes, tidos como sinônimos. A trajetória do conceito de lazer remonta a definição apresentada por Dumazedier (1973), na qual este pode ser compreendido como:

Conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se ou entreter-se ou ainda para desenvolver sua formação desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das ocupações profissionais, familiares e sociais (p. 34).

Ancorada na tradição inaugurada por Dumazedier, Gomes (2004) esclarece que o lazer pode ser vivenciado de diversas formas, sendo o turismo uma de suas possibilidades. A autora acrescenta que o lazer inclui a fruição de diversas manifestações culturais como o jogo, a brincadeira, a festa, o passeio, a viagem, o esporte e também formas de arte [pintura, escultura, literatura, dança, etc.], dentre várias outras possibilidades. Além de incluir o ócio, uma vez que esta e outras manifestações culturais podem constituir, em nosso meio social, notáveis experiências de lazer. Autores como Marcelino (1983), Camargo (1989) e Gomes (2004) também partilham de tal noção acerca de lazer, ponto que conduz ao entendimento de certo consenso entre os teóricos do lazer (Oliveira & Mancebo, 2014).

Considerando que o lazer pode compreender uma manifestação de turismo, Araújo e Isayama (2009) defendem que lazer e turismo apresentam particularidades próprias, embora possuam também um “núcleo comum” como “campos abertos de interseções, seja em seus aspectos culturais, sociais ou históricos” (p. 145). Sobre a interface turismo-lazer, Santos e Gomes (2016) corroboram que o turismo é entendido com frequência como uma das experiências do lazer, observado a partir das manifestações desfrutadas pelos sujeitos em deslocamento. Pelo exposto, depreende-se que o entendimento teórico acerca do que vem a ser lazer não considera um aspecto imprescindível quando se elege uma parte do fenômeno aqui analisado, ou seja, o local de residência e produção da comunidade onde se realiza as atividades. O lazer, seja ele de cunho turístico ou não, pode se manifestar em espaços físicos naturais ou culturais; tais espaços geralmente não são vazios de pessoas que lá estejam na condição de residentes ou em outras formas de ocupação. Esses grupos, estabelecem e mantêm relações com esses espaços e com as pessoas que chegam, estabelecendo-se no território uma teia de relações sociais e constante transformação.

Assim, no presente trabalho descartou-se na análise a interpretação do fenômeno que lá se desenvolve pela perspectiva do lazer, justamente pelo fato de parcela do fenômeno que está sob estudo repousar não no visitante, mas também nos visitados. Assume-se então, que está sendo feita uma investigação sobre um fenômeno turístico. O entendimento é corroborado pela incorporação da perspectiva do poder público, representado pelo Pepb, no incentivo ao turismo. As ações investigadas, promovidas pelo parque, são orientadas claramente pela expectativa de mobilizar moradores locais e criar condições para a recepção de turistas e visitantes. Em virtude da peculiaridade do local em análise, convém recuperar o debate que envolve a categoria turismo e a categoria rural quando reunidas em uma expressão.

A inserção do Turismo na pauta do Plano Nacional de Turismo [2006-2010] reflete uma série de questões que já estavam sendo debatidas em outros campos teóricos com vistas a construção de novos entendimentos acerca de mudanças sociais em andamento na sociedade brasileira. Pesquisas como a de Graziano da Silva, Del Grossi e Campanhola (2002) davam conta de que o número de trabalhadores rurais e famílias dedicadas exclusivamente às atividades agrícolas haviam decaído nos anos anteriores aos da divulgação dos dados de pesquisa por eles apresentados. Esta redução foi explicada pelo êxodo rural, mas também pelo crescimento do número de trabalhadores e famílias rurais que passaram a se dedicar a atividades não-agrícolas, na propriedade (Graziano da Silva, Del Grossi, & Campanhola 2002).

A crescente diversificação de atividades agrícolas e não-agrícolas desmistificou velhos mitos sobre o universo rural brasileiro e revelou o surgimento de uma nova conformação do meio. Sob a denominação de pluriatividades ou de multiatividades, tais estudos evidenciaram novas formas de produção no mundo rural onde a possibilidade de obtenção de renda através de atividades não-agrícolas impedia o decréscimo da população rural, ao menos no ritmo como vinha se apresentando nas décadas anteriores a tais estudos. Essa nova configuração incorporou a agroindústria e a oferta de serviços, dentre os quais, o turismo. Durante a década de 1990 até 2010 uma série de políticas públicas evidenciaram que a associação entre o turismo e a agricultura familiar despertou interesse e promoveu implementação de projetos em propriedades familiares, como: cafés coloniais, pousadas, estabelecimentos do tipo pesque-pague e colha-pague, restaurantes de comida regional, entre outros.

No campo da pesquisa em Turismo, a categoria <rural> não passou despercebida e data do período de implementação das mencionadas políticas públicas, mais precisamente do final da década de 1990 e início dos anos 2000, uma série de publicações resultantes de pesquisas sobre turismo rural. Uma breve análise sobre tais produções revela um otimismo para com o tema, sendo tratado como estratégia promissora para o desenvolvimento local, novas oportunidades de trabalho e renda. Paralelamente, observa-se nestes trabalhos grande preocupação com a delimitação do segmento e conceituação de turismo rural, pois a proliferação de estudos voltados para a incidência em espaços entendidos como rurais, deu margem a distintas concepções que foram manifestadas em torno das definições de agroturismo, ecoturismo, turismo de interior, turismo no espaço rural, turismo alternativo, turismo endógeno, turismo verde, turismo campestre, agroecoturismo e ecoagroturismo.

A despeito da grande variação conceitual, de forma geral é possível, apoiado em Zimmermann (1998), afirmar que turismo rural e turismo no espaço rural tem a mesma definição, pois incluem “todas as atividades turísticas endógenas desenvolvidas no meio ambiente natural e humano” (p. 128); já o Ministério do Turismo (2010) considera o Turismo Rural como um recorte geográfico do Turismo no Espaço Rural e assim define turismo rural como “o conjunto de atividades turísticas desenvolvidas no meio rural, comprometido com a produção agropecuária, agregando valor a produtos e serviços, resgatando e promovendo o patrimônio cultural e natural da comunidade” (s.p.).

ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA

O presente artigo insere-se em um projeto de pesquisa iniciado em 2017 sobre a Zona Oeste, que atualmente destina-se a estudar o sub-bairro do Rio da Prata. A orientação metodológica se dá pelo referencial teórico da Memória Social, que incide sobre a percepção de que memória e história guardam elementos comuns se entrecruzando, tais como o contexto e a continuidade, dado que se caracteriza por compreender um processo em andamento que se particulariza por remontar a um período recuado no tempo, mas cujo presente esclarece o passado justamente pelo fato de que os desdobramentos ressignificam-se e reconfiguram-se no presente. A memória trabalha com o experienciado, com o que persiste na dinâmica do grupo analisado e, nesta linha de raciocínio, ao optar por esse referencial teórico para nortear a pesquisa utilizou-se técnicas de pesquisa de gabinete[i] [levantamento bibliográfico e pesquisa documental) e de campo [observação participantes e entrevistas].

A revisão bibliográfica foi orientada para reunir informações históricas, sociais no intuito de que os eventos estruturantes fossem iluminados na narrativa da trajetória social do grupo em interação com espaço físico. Tal opção orientou a redação do marco teórico descrito no item anterior e ao qual foi acrescentado o cruzamento com a pesquisa documental. Os documentos selecionados foram analisados a partir da perspectiva qualitativa objetivando perceber os significados de algumas categorias-chave na configuração do campo ambiental, pois a esse está atrelada a categoria <rural> que, com frequência, é acionada no âmbito do grupo estudado. No que tange à pesquisa de campo, os dados aqui expostos foram coletados a partir de observação participante em eventos como a Festa do Caqui e o Tira-Caqui; a frequência nas atividades de iniciativa empreendedora local denominada ‘Café na Roça’; realização de entrevistas e conversas informais com representantes do poder público, empreendedores locais, condutores, visitantes, representantes de associação de produtores agrícolas e agricultores.

A observação participante no ‘Café na Roça’ produziu etnografias e estas, confrontadas com a pesquisa bibliográfica e documental resultou na observação acerca da dificuldade de classificação do tipo de fluxo de visitação que está ocorrendo naquele espaço, assim como seu enquadramento em definições pré-estabelecidas. As etnografias sinalizam que na interação entre visitantes e visitados, estes últimos utilizam-se do processo de interação para fortalecer uma identidade de grupo associada aos valores percebidos e interpretados como rural, ecológico, saudável e detentor de uma memória particular ao grupo. Do ponto de vista do planejamento turístico que defende uma segmentação com intuito de melhor promover produtos turísticos, há uma carência de despadronização (Taschner, 2000). Com base neste percurso metodológico, impõe-se a necessidade de discussão conceitual considerando a realidade apresentada.

CONTEXTUALIZANDO HISTORICAMENTE A REGIÃO

O Passado Agrícola - Com a fundação da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a produção de açúcar amplamente estabelecida na Capitania de São Vicente foi estimulada através da doação de sesmarias feitas pelo Governador àqueles que desejassem instalar lavoura da cana de açúcar nas Capitanias. Com terrenos que melhor se prestam a referida cultura, as ‘terras do Campo Grande’ designavam no século XVII, as terras que atualmente compõem os bairros de Deodoro, Realengo, Padre Miguel, Bangu, Senador Camará, Campo Grande, Santíssimo, Inhoaíba e Cosmos. Datam do referido século a formação de fazendas e engenhos que conduziram a instituição da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, em 1757.

A produção canavieira contribuiu para o aumento populacional e este se configurava estritamente como rural, onde os aglomerados humanos formados durante quase três séculos ficaram restritos às proximidades das fazendas e dos engenhos, e das pequenas vilas de pescadores, ao longo da costa. Nesta dinâmica, de acordo com Fróes e Gelabert (2004), a Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande alcançou o número de 14 engenhos de açúcar, e no final do século XVIII, prosperava. O desvio de contingentes de escravizados para as minas de ouro e, posteriormente, a abolição da escravatura, aliados a outros fatores, culminaram no declínio da produção açucareira e na condução da produção agrícola local para o café, dando início a um novo ciclo agrícola na região. O cultivo do café nas terras do Campo Grande trouxe um breve período de opulência para região que veio posteriormente perder sua supremacia para os atuais municípios de Vassouras e Resende. A partir da segunda metade do século XIX, a área começou a se adensar com a implantação, em 1878, de uma estação da Estrada de Ferro D. Pedro II. Com as crises da cultura do café, a região voltou-se a citricultura. Desde os primeiros anos do século XX até os anos de 1940, os bairros de Campo Grande, Realengo, Guaratiba e Santa Cruz, estiveram entre os maiores produtores de laranjas do país.

Deste conjunto de bairros, Campo Grande destacava-se entre os demais e assim, recebeu a alcunha de Citrolândia (Silva & Gamarski, 2010). O sucesso econômico advindo da agricultura repercutiu favoravelmente na imagem da região que, cada vez mais, foi associada no período da República Velha [1889-1930] à ideia de ‘celeiro’ do então Distrito Federal. Essa representação foi fortalecida pelo próprio poder público que estabeleceu a criação no bairro de Guaratiba da Colônia Agrícola e da Granja de Criação da Prefeitura, instâncias que reunidas deram origem a Fazenda Modelo, onde se desenvolveram atividades para melhoria da qualidade da produção agrícola do Estado. Além de tais medidas, de acordo com foram criadas várias escolas rurais na região que até o ano de 1948 totalizavam 26 escolas espalhadas pelos bairros que compõem a AP-5 (Mota, 2007). A criação da Fazenda Modelo, de um Matadouro Modelo e o estabelecimento da educação rural, demonstra as intenções governamentais de institucionalizar a região como área rural da cidade do Rio de Janeiro (Idem).

O Ciclo da Laranja na Zona Oeste entrou em período de extrema decadência com o advento da Segunda Guerra Mundial, em virtude da dificuldade de escoamento da produção. Os laranjais foram infectados por uma praga e a opção dos agricultores em utilizar inseticidas para resolver o problema acabou por destruir o elemento natural que protegia as laranjas da fumagina, dizimando as plantações. As terras dos laranjais, desvalorizadas e estigmatizadas pelo fracasso, foram postas à venda por preços irrisórios durante a década de 1950, e a Zona Oeste deixava de ser famosa por sua importância fruticultora. Na década de 1960, a especulação imobiliária avançou sobre a região e, a partir dos anos 1970, os produtores agrícolas que ainda resistiam em suas práticas produtivas, perderam ainda mais espaço para o parque industrial que se instalou nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz e em seu entorno.

Antes de dar continuidade a descrição do processo de urbanização, crê-se oportuno retomar ao início do século XX, quando em decorrência da Proclamação da República, a política local foi enfraquecida. Além do destaque no campo econômico decorrente da produção agrícola que se manifestou nos três ciclos produtivos mencionados, a atual Zona Oeste alcançou ainda prestígio social e político em muito conferido pela Família Real que adotou o atual bairro de Santa Cruz como instância de lazer e repouso. O fato do Brasil tratar-se de um país essencialmente agrícola naquela ocasião, fez prosperar na Zona Oeste um grupo que exerceu grande poder na política do Rio de Janeiro, então capital do Império. Com o fim do Império e a implantação de novo regime de governo, o grupo político perdeu força e, consequentemente, o poder rural foi abalado.

Mota e Peixoto (2006) destacam que no processo de desconstrução do poder político da zona rural, o Decreto nº 1.185 de cinco de janeiro de 1918 teve papel preponderante ao dividir a cidade do Rio de Janeiro em três zonas: urbana, suburbana e rural. Os autores destacam que a instituição do decreto anteriormente citado transformou aproximadamente 70% da área correspondente à zona rural do que era o Distrito Federal em área suburbana. Neste contexto, projetou uma nova cidade quanto ao seu traçado urbanístico ideal, determinando os usos da terra, a reserva de áreas verdes, buscando o controle da expansão e do adensamento urbano.

Concordando com Mota e Peixoto (2006), entende-se que este processo não objetivava acabar com o rural, mas sim, reduzir sua posição na hierarquia da cidade. Considerando que a ruralidade teve um papel primordial até o início do século XX, buscava-se neste momento enquadrá-la em papel secundário, em que não era tratada dentro dos parâmetros de desenvolvimento dispensada aos demais espaços da cidade, mas sim, como um setor complementar ao urbano, encarregada da função de abastecer a cidade carioca. Em decorrência da transformação da maior parte da antiga zona rural em zona suburbana, houve o aumento do imposto predial e o Estado duplicou sua arrecadação pela mudança de condição da área, permitindo mais edificações, principalmente para fins residenciais, o que favoreceu o setor imobiliário (Mota & Peixoto, 2006).

A Industrialização da Zona Oeste e a Persistência do Rural - Com criação do Estado da Guanabara no ano de 1960 assume Carlos Lacerda prometendo melhorias nos serviços públicos, o fim da cultura clientelista e a reversão em âmbito municipal da estagnação da economia. O governo ficou marcado pela política de remoções de favelas e construção de conjuntos habitacionais destinados aos moradores destes espaços. Nesse período foi construído um conjunto habitacional em Bangu, no terreno onde funcionava a Fábrica de Tecidos Bangu. Tal ocorrência colocava a Zona Oeste na rota de interesse do setor da construção civil, importante para a economia carioca e promotor da especulação imobiliária que ganhava força com a remoção das favelas de áreas nobres e valorizadas da Zona Sul da cidade.

Nas últimas décadas, Campo Grande consolidou-se como uma importante centralidade na Zona Oeste, interpretada como parte da periferia incorporada à dinâmica do núcleo metropolitano do Rio de Janeiro. Áreas que anteriormente eram destinadas à produção agrícola, se tornaram áreas de loteamento e construção de habitações de trabalhadores das áreas urbanas, vinculados aos setores industriais, de comércio e serviços. Na análise de Santos e Ribeiro (2007) são evidenciados os acirrados conflitos entre os pequenos lavradores, remanescentes de uma cultura baseada na produção agrícola, e os interesses da especulação imobiliária. Para os autores, a disseminação da pequena lavoura resultou de uma estratégia promovida pelos grandes proprietários de fazendas na região com o objetivo de ganhos econômicos e simbólicos.

Acerca dos valores e lógica cultural de grupos que baseiam suas relações de produção a partir do cultivo da terra, Santos e Ribeiro (2007) esclarecem que há relação indissociável com o que concebem, classificam e denominam como família. Nestes casos, o território é também compreendido por eles como espaço de reprodução social do parentesco e assim sendo, é comum o entendimento destes lavradores que tanto a terra quanto os produtos e esforços/trabalho empreendidos na terra em que cultivam, serem percebidos como propriedade, não sendo necessária a formalização jurídica, legal e burocrática para legitimar tal posse. Nesta lógica, a expansão e especulação imobiliária representava uma ameaça à família, aos laços de parentesco e a garantia aos direitos sobre a terra em que assentaram sua cultura. Não por acaso, no período que compreende o início da República Velha até o golpe militar de 1964, é possível observar uma série de reivindicações e movimentos de reafirmação dos valores da cultura agrícola.

Neste contexto surgiu o pequeno agricultor enquanto ator político e disposto a resistir criando agendas de deslocamentos até à Cidade, efetuando protestos em locais públicos e visibilizados da Capital, dirigindo-se a imprensa, organizando-se em associações políticas e criando uma pauta de reivindicações voltadas para o enfrentamento das consequências da expansão imobiliária e urbanização (Santos & Ribeiro, 2007). Embora as reivindicações tenham ocorrido com alguns sucessos, de forma mais ampla, a inserção da Zona Oeste no processo de urbanização da cidade se deu de forma subalterna em relação aos seus valores referenciais, como a produção agrícola de destaque, um passado histórico pontuado pelo status conferido à região no período do Império e a cultura rural. Oliveira (2017) demonstra que, atualmente, os referenciais valorizados pela população local apoiam-se nas representações positivas sobre o rural [como um local ‘protegido’ dos males da cidade] e as negativas, nas representações sociais sobre o urbano. Desta forma, a memória local revela que a subalternidade da Zona Oeste, enquanto conceito é uma das questões presentes na memória coletiva da Cidade do Rio de Janeiro.

A CRIAÇAO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA BRANCA E A COMUNIDADE DO RIO DA PRATA DE CAMPO GRANDE

O Maciço da Pedra Branca foi sendo, ao longo do tempo, reconhecido por seu potencial hídrico e, posteriormente, por sua relevância ambiental. O reconhecimento de ambos aspectos teriam sido os motivadores do estabelecimento de estratégias de conservação. Assim, criado em 1974, Pepb compreende todas as encostas do maciço homônimo, localizadas acima da cota de 100 metros. Com seus 12.393,84 hectares, ocupando cerca de 10% do território municipal, o Pepb é considerado uma das maiores florestas urbanas do mundo.

A sobreposição entre UC - especialmente de proteção integral - e áreas historicamente utilizadas por comunidades agrícolas e/ou tradicionais gera conflitos que fazem parte da realidade de diversas UC no Brasil. Fernandez (2009), a partir da análise do histórico de ocupação do Maciço da Pedra Branca e da trajetória dos produtores agrícolas que lá habitam, critica as políticas conservacionistas e a forma autoritária como as UC são muitas vezes implementadas, e revela o desejo desse grupo social de subverter as representações estigmatizantes de invasores e depredadores ambientais, fazendo um pacto ambiental partindo do reconhecimento de seu papel na conservação das suas fronteiras. Embora esse conflito no contexto socioespacial estudado não seja o foco deste trabalho, é indispensável mencionar que a criação do parque fez com que produtores agrícolas passassem a estar submetidos a uma legislação específica, que define as formas de acesso, ocupação e uso da terra e dos recursos naturais.

Desta situação decorreu um processo de requalificação e reenquadramento social dessas comunidades, ao longo de ciclos de produção, para que pudessem permanecer habitando e produzindo nos mesmos locais. Tal processo, descrito por Leal (2010), implica no que o autor entende como ‘conversão’ dos pequenos agricultores da região do Rio da Prata em agricultores orgânicos. Com isso, os agricultores se tornaram aptos a se integrar a um mercado especializado de comercialização de produtos agrícolas, considerado mais rentável (Leal, 2010). A implantação deste novo modelo sustenta-se no discurso da qualidade do produto, devido ao uso de tecnologias que não causam danos à saúde do agricultor, do consumidor e do meio ambiente.

A inserção dos agricultores no Circuito das Feiras Orgânicas da Cidade do Rio de Janeiro é um desdobramento desse processo, sendo a Associação de Agricultores Orgânicos da Pedra Branca [AgroPrata] a associação de produtores orgânicos mais antiga do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que a conversão foi viabilizada através de agentes externos, desde a concepção da ideia até a assistência técnica. Como encadeamento dessa readequação social, e estando na pauta de debates acerca da presença de comunidades dentro e no entorno de áreas protegidas, o modo de vida de tais agricultores passou a ser nos últimos anos designado como o de ‘tradicional’, ou seja, próprio de grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Brasil, 2007).

Inicialmente, considerados tradicionais em virtude da forma de produção agrícola e modo de vida associado à vida rural, em 2017 a categoria <quilombola> também foi incorporada pela comunidade do Rio da Prata, a partir da certificação do Quilombo Dona Bilina, pela Fundação Cultural Palmares. O reconhecimento institucional garante ainda mais legitimidade aos moradores e agricultores no que tange aos seus direitos territoriais. Neste contexto, Penna-Firme e Brondízio (2017) tratam como um fenômeno eminente e crescente no país, em que comunidades tradicionais [em especial as que ocupam territórios de UC] comprometam-se com objetivos de conservação em troca de seus direitos territoriais assegurados, fomentando a criação de novos sujeitos ambientais, e ao mesmo tempo, sendo estimulado por esse mesmo processo.

Tratando ainda da particularidade da comunidade em análise, sua configuração geográfica, que lhe propiciou relativo isolamento, passa atualmente por um processo de valorização pelo mercado mobiliário, associado ao imaginário de um lugar bucólico e tranquilo. Condomínios destinados a grupos com poder aquisitivo diferenciado contrastam com moradias simples de antigos moradores. A concentração de sítios ofertados para a realização de festas e o aumento do número de bares e restaurantes, conferindo ao local o reconhecimento de polo gastronômico, também compõem a atual conformação socioespacial.

Subindo a encosta, próxima às trilhas que dão acesso ao parque, localiza-se o Sítio Farol da Prata, mencionado no começo deste artigo. Nesta propriedade privada, onde aos domingos é oferecido o Café na Roça, também acontece a feira orgânica dos produtores locais [que foi o primeiro ‘atrativo’ do local, mas que tem perdido visibilidade diante da diversidade de elementos ofertados atualmente], um minimercado com produtos naturais, e mais recentemente, uma feira de artesanatos. De modo geral, as ofertas integram o universo em ascensão de um mercado de consumo mais natural. O cenário é complementado por animais ‘típicos da roça’ [galinhas, patos, cabras, etc.] soltos entre os clientes ou presos por cordas. Atribui-se à atratividade do local à uma visão idílica e romanceada da vida rural, e é justamente onde efetivamente verifica-se de forma acentuada o aumento do fluxo de visitação e onde se concentra o início das atividades daqueles que visitam o PEPB.

Em relação ao Parque, Fernandez (2016) chama a atenção para o fato de que a dimensão lúdica dos parques não está desvinculada da possibilidade de conservação da natureza. A autora argumenta que no conjunto de representações sobre os parques são identificados três elementos que sustentam o imaginário cultural sobre os mesmos: (i) os ideais românticos de integração humana com o ambiente através da contemplação da natureza; (ii) os valores iluministas relacionados ao interesse pelo mundo selvagem; e (iii) os ideais de uso público desses espaços verdes, que poderiam sofrer intervenções paisagísticas para melhor receber seus visitantes.

Neste sentido, atividades de uso público nos parques estaduais do Rio de Janeiro receberam atenção nos últimos anos, em especial a partir do decreto nº 42.483 de 27 de maio de 2010, que estabelece diretrizes para o uso público nos parques estaduais administrados pelo Instituto Estadual do Ambiente [Inea]. A partir desse documento, foram desenvolvidos projetos de fortalecimento e consolidação do uso público nos Parques Estaduais do Rio de Janeiro, incluindo o PEPB. Os projetos envolveram investimento na estrutura dos parques, ações de incremento à visitação, implementação e manejo de uma rede de trilhas, eventos, entre outros. Na vertente do Rio da Prata, duas ações merecem destaque: a implementação de um curso de condutores locais de e o incentivo à implementação e divulgação da Trilha Transcarioca, uma trilha de longo curso que passa pelo PEPB e atrai milhares de caminhantes. Apesar de terem sido iniciativas que não contaram com plena adesão da comunidade, devido em grande parte à um histórico conflituoso entre a comunidade e a gestão do parque, tais iniciativas compõem o quadro em tela, e contribuem para a incorporação da questão ambiental na reorientação do olhar para o meio rural.

Carneiro (2008) descreve o processo na França, em que o país deixou de ser uma sociedade camponesa, resultando em novas formas de ocupação do espaço e uma nova imagem do rural identificada com a ruptura entre a terra produtora e a terra como paisagem e reserva patrimonial. Esse movimento, iniciado nos anos 1960, está relacionado com a criação dos parques nacionais, diminuição contínua do número de agricultores e soma ao desgaste ambiental, estes últimos promovidos pelo padrão produtivista da exploração agrícola. Complementando o processo, a crescente reivindicação por uma alimentação mais saudável e as campanhas ecológicas pela recuperação do meio ambiente e pela produção em pequena escala resultam na elaboração de novas imagens sobre o meio rural que passam a povoar o imaginário coletivo e os esquemas interpretativos dos pesquisadores (p. 24). A autora destaca ainda que a partir de análises desse tipo de processo na sociedade contemporânea, observa-se a necessidade da incorporação do não-material na esfera da produção [como os saberes e práticas tradicionais]. Elementos são revalorizados e ressignificados - sendo a natureza principal aglutinador de signos e a base sobre a qual a nova noção de rural se constrói - e passam a alimentar uma outra dinâmica socioeconômica, muitas vezes relacionadas às atividades turísticas e de lazer. Assim, a particularidade socioespacial do Rio da Prata, fornece o apelo necessário para que fluxos de visitação se instalem.

Em decorrência da atratividade que uma UC desperta, a visitação no PEPB já ocorria, porém de forma tímida. Posteriormente, com o sucesso das feiras orgânicas, o público visitante se diversificou dada a demanda de pessoas que passaram a frequentar o local no intuito de aquisição de produtos orgânicos. Uma iniciativa de cunho empreendedor e de esfera individual, se destacou: o ‘Café na Roça’, com a proposta de promover aos visitantes uma experiência gastronômica que rememora a ruralidade. Reportagens em meios de comunicação reafirmam o sucesso de público alcançado pelo empreendimento e, em entrevista concedida aos pesquisadores durante o trabalho de campo, o proprietário do local esclareceu:

Eu nunca pensei em fazer o Café da Roça, tenho 86 mil metros quadrados. A princípio, eu queria fazer uma grande horta orgânica e trazer a experiência da colheita aos visitantes. Mas aí com a ideia da feira orgânica veio muita gente a procura dos produtos e com esse potencial de crescimento em três anos, tive a ideia de fazer o café da roça. A vinda da Transcarioca [refere-se a trilha de longo curso] trouxe diversas oportunidades para os produtores, já que pelo fato de existir a trilha dentro da área do Rio de Prata aumentou o fluxo de visitantes dentro da região [...].

E continua:

[...] recebo cerca de 400 a 450 pessoas para o café da manhã nos finais de semana e pode-se dizer que 10% dessas pessoas são as que fazem caminhada, mas que não conhece o modo de viver dos agricultores do Rio da Prata, muito menos sua cultura [...]

Retomando o debate conceitual sobre turismo, nota-se que nenhuma das conceituações e/ou definições teóricas explica integralmente o fenômeno em estudo, pois quando o mesmo é analisado pelo viés do turismo rural em sua concepção clássica, esbarra-se na delimitação legal que institui que a Zona Oeste está localizada em área urbana e assim, consequentemente, a comunidade dos pequenos agricultores e a vertente do Rio da Prata do Pepb. Desta forma, recorre-se a teoria dos sítios simbólicos de pertencimento no intuito de buscar entendimento acerca do que consiste no processo de turistificação ali existente.

Zaoual (2008) esclarece que teoria dos sítios simbólicos de pertencimento atribui o fenômeno de mudança da demanda turística à perda de referências em um mundo uniformizado, à necessidade de pertencimento e desejo de um diálogo de sentidos entre os visitantes e visitados. De acordo com o referido autor, os visitantes buscam nestes processos as particularidades culturais que foram historicamente ignoradas ou o redescobrimento de suas raízes, motivações essas que emergem em forma de emoção ou de assombro. Paralelamente, os visitados orientam tal processo a partir da emergência de identidades sociais múltiplas acionadas através da valorização de uma memória. Oliveira (2018) pontua que em seu aspecto social, memória pode ser definida como processos sociais e históricos manifestados através de narrativas acerca de acontecimentos e experiências vividas e nos quais estão abrigados valores do grupo que seleciona o que deve ou não ser guardado enquanto memórias coletivas. Tais narrativas estabelecem, reforçam, legitimam e reproduzem a identidade cultural do grupo.

O processo de reprodução social dos pequenos agricultores do Rio da Prata de Campo Grande enquanto produtores e fornecedores de produtos agrícolas foi ao longo do tempo atravessado pelas relações com o mercado que interferiram na reordenação das relações sociais e das práticas produtivas dos agricultores. Tal circunstância somada ao processo de urbanização e implantação do PEPB balizou a decisão pela permanência ou não de núcleos familiares naquele espaço. As famílias que optaram por permanecer o fizeram considerando a experiência com este tipo de trabalho e pela identificação com o local. Neste processo, a resistência contrária as forças estruturais de expulsão do território foram mitigadas pela ligação deles com a terra e a agricultura.

O ‘Café na Roça’ expressa essa permanência fruto da resistência ancorada na relação com a terra e a agricultura. A expressão ‘na roça’ sintetiza naquele contexto o ‘passado no presente’ e, como o passado está localizado no âmbito do que é lembrado, pode-se afirmar que o valor agregado ao serviço de alimentação é o da memória do grupo local que se entrelaça com a memória afetiva dos visitantes no que tange a percepção comum de que o tipo de comida ali servido não está mais no cotidiano. Assim sendo, o fluxo de visitação que está em andamento no Rio da Prata de Campo Grande só pode ser entendido quando se considera a memória construída a partir da ressignificação dos valores relativos ao meio rural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste trabalhou girou em torno da discussão e entendimento do processo de turistificação que está ocorrendo no Rio da Prata. A análise da iniciativa ‘Café na Roça’ foi então utilizada para dar conta desta questão. Através de levantamento bibliográfico e documental foi possível apresentar um delineamento histórico sobre o passado agrícola da denominada Zona Oeste e a inserção desta região no processo de urbanização da cidade. Neste contexto, ainda no confronto entre os remanescentes de uma cultura rural, uma UC foi implementada, resultando em processos de reenquadramento social por parte dos agricultores. Os desdobramentos se direcionam ainda para a reorientação do olhar rural para o ambiental e no recente incentivo às atividades turísticas no contexto do planejamento do uso público do parque. Neste cenário, observa-se a produção de elementos revalorizados e ressignificados, tendo os recursos naturais e as práticas ‘tradicionais’ a eles associados.

Da teoria dos sítios simbólicos de pertencimento, facultou a conclusão de que é a memória ali acionada que impulsiona o fluxo de visitação atual do local. Considerando que o trabalho não teve a intenção de responder ou definir que tipo de turismo ali ocorre e sim, demonstrar as nuances que se apresentam nos atuais processos de turistificação quer seja esse induzido ou espontâneo; destaca-se que qualquer que seja a denominação ou rótulo de segmentação turística que venha ser empregada em futuros planejamentos turísticos para o local, deve-se considerar que é a memória do que ficou na representação social como rural que compõe a atratividade local. Desta forma, a reinvenção do rural que no nomeia o presente trabalho nada mais é do que a elaboração de uma memória voltada para a divulgação de uma identidade que se reconstrói no presente pelo e para o turismo que faculta experiências pautadas na diversidade social e cultural e alimenta trocas de bens culturais materiais e simbólicos.

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