Artigos
Casas de Fado de Lisboa: Entre Autenticidade e Turistificação
Fado Houses of Lisbon: Between Authenticity and Touristification
Casas de Fado de Lisboa: Entre Autenticidade e Turistificação
Rosa dos Ventos, vol. 13, núm. 2, pp. 460-488, 2021
Universidade de Caxias do Sul
Recepción: 28 Abril 2020
Aprobación: 22 Diciembre 2020
Resumo: A gastronomia tem vindo a ser reconhecida enquanto património intangível determinante na valorização dos destinos turísticos. Experienciada em compósito com outros patrimónios, como o Fado, nomeadamente nas Casas de Fado de Lisboa, pode contribuir para a potenciação da autenticidade da oferta turística da cidade. Assim sendo, estabelece-se uma conexão entre dois patrimónios intangíveis, um deles [Fado], classificado como Património da Humanidade pela Unesco, a qual pode ser potenciadora de um aprofundamento do conhecimento da cultura da cidade e do país. Neste contexto, o presente artigo visa averiguar, de forma exploratória, a perspetiva dos proprietários/gestores das Casas de Fado lisboetas, relativamente às características da sua oferta turístico cultural [e gastronómica], bem como os principais elementos transformadores dessa oferta ao longo do tempo. Apoia-se numa metodologia de estudo de caso, colocando em destaque uma reflexão sobre a importância dos valores identitários do Fado e da gastronomia na construção de experiências cultural-gastronómicas, para seguidamente apresentar uma análise de conteúdo das ementas oferecidas pelas casas de Fado com vista a determinar a valorização atribuída à gastronomia tradicional. Adicionalmente, apresentam-se também os resultados de um inquérito por entrevista aplicado aos proprietários/gestores de Casas de Fado, que põem em evidência elementos transformadores na oferta das Casas de Fado que apelam a novas preocupações na sua gestão, tais como a nível da defesa da qualidade do Fado, da tipicidade da gastronomia oferecida, da adequação da decoração do estabelecimento, atmosfera e memorabilia fadista bem como relação intersectorial.
Palavras-chave: Turismo, Gastronomia, Autenticidade, Casas de Fado, Lisboa, Portugal.
Abstract: Gastronomy has been valued as an intangible heritage that contributes to the valorization of tourist destinations. Experiencing gastronomy with other intangible heritages, such as Fado [World Heritage of Unesco], namely in Fado Houses of Lisbon, could enhance the authenticity of the city’s tourist experience. In this context, this chapter aims to analyse the House of Fado managers’ perspective regarding the characteristics of the cultural touristic supply, as well as the main transforming elements of that supply over time. In accordance, it is based on a case study methodology, highlighting the importance of the identity values of Fado and Gastronomy in the construction of cultural-gastronomic experiences.
Keywords: Tourism, Gastronomy, Authenticity, Fado Houses, Lisbon, Portugal.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa averiguar as características da oferta turístico-cultural e gastronómica das casas de Fado lisboetas bem como os principais elementos da sua transformação no passado recente, na perspetiva dos proprietários/gestores das mesmas. Inicia-se com uma reflexão sobre a relevância do património intangível e da sua crescente relação com o turismo, tal como atesta a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Intangível (2003), a qual reconhece a importância deste património ‘vivo’ e sua salvaguarda na valorização da diversidade cultural e como “garantia de desenvolvimento sustentável” (Unesco, 2003). Também a Convenção da Unesco para a Proteção e Promoção da Diversididade das Expressões Culturais (2005), e o sequente Relatório Global de 2018, estabelece um conjunto de quatro metas em concordância com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, no qual a cultura se assume como driver e enabler de desenvolvimento, com foco na escala local e nas Indústrias Culturais e Criativas (Unesco, 2018).
A interconexão entre cultura e turismo está igualmente expressa no âmbito das Conferências Mundiais da Unwto/Unesco, cuja terceira edição associada à Declaração de Istambul 2018 – Declaration on Tourism and Culture: For the Benefit of All – preconiza quatro grandes linhas onde consta a preocupação em: “Reforçar o papel do turismo responsável como um aliado na salvaguarda do património cultural imaterial” (Unwto, Republic Turkey Ministry Culture and Tourism, Unesco, 2018). A Declaração de Quioto – Preserving Cultural Identities for the Future of Tourism (Unwto/Unesco, 2019) reafirma a valorização do turismo através da transmissão de culturas e compreensão mútua, com a sensibilização dos stakeholders para a diversificação de produtos, o desenvolvimento socioeconómico e o crescimento sustentável, a celebração da diversidade cultural, a criação de iniciativas comunitárias, entre outras. Neste contexto, conceitos como autenticidade versus mercantilização/turistificação ganham proeminência e são alvo de discussão. Segue-se a apresentação da metodologia qualitativa apoiada na análise de conteúdo dos sites e ementas de doze Casas de Fado constantes no Roteiro do Fado, bem como das entrevistas aplicadas aos seus proprietários/gestores. Por fim, apresentam-se os principais resultados e conclusões.
PATRIMÓNIO INTANGÍVEL E TURISMO: AUTENTICIDADE VERSUS TURISTIFICAÇÃO
A interconexão turismo-cultura tende a ser reconhecida como simbiótica. No entanto, assiste-se não raras vezes à priorização do turismo em detrimento de preocupações de sustentabilidade (Santa Cruz & López-Guzmán, 2017) conducente a situações em que o crescimento económico, emprego, rendimento, compatíveis com um desejável desenvolvimento sustentável, se transformam em processos identificados como de turistificação [tourismification] (Urry, 1990) ou mercantilização. Estes processos tendem a associar-se por sua vez à degradação dos valores culturais, ao denegrir dos costumes, à alienação dos residentes, à perda de autenticidade na “reconstrução” da identidade dos lugares e criação da homogeneidade desses mesmos lugares, bem como à falsificação de histórias interpretativas, entre muitos outros aspetos (Ato & Mesah, 2006).
Embora o turismo cultural tenda a implicar a transformação das culturas locais e estilos de vida em mercadorias, para vender a visitantes ou audiências estrangeiras no sentido de satisfazer as suas necessidades (Santa Cruz & López-Guzmán, 2017), cabe reconhecer a importância positiva de uma gestão sustentável dos destinos para prevenir que afete negativamente a cultura local e sua proteção (Abuamoud, Libbin, Green & Alrousan, 2014), a experiência autêntica do visitante e a genuinidade dos lugares (Timothy & Boyd, 2006). Contudo, a mercantilização [commodification] do turismo (Cohen, 2004) deve ser entendida como “um dos aspetos do processo global de mercantilização” (Meethan, 2001, p. 5) e não apenas exclusiva ao produto [e sua homogeneidade] ou sistema turístico. Neste contexto, caberá considerar o conceito de autenticidade, embora a sua operacionalização e quantificação se revista de múltiplas dificuldades. A procura por autenticidade, para muitos inalcançável (Bruner, 1994), associa-se à procura de um “atributo” que descreva um produto, serviço ou experiência como “genuíno”, “real” ou “verdadeiro” face ao original (Abarca, 2004; Brown, 2001; Taylor, 1991 apud Le, Arcodia, Novais & Kralj, 2019, p. 258), mas também à procura por produtos, experiências de lazer, ou ainda do verdadeiro ‘eu’ [true self], associada a ‘qualidade’ ou forma de mitigação da homogeneidade da produção em massa (Le, et al., 2019).
Devido à complexidade e fragmentação na sua conceptualização, a autenticidade é perspetivada em termos das abordagens fenomenológicas, que associadas ao modernismo, posmodernismo e transmodernismo[i] remetem respetivamente para realidades designadas por construtiva, desconstrutiva e reconstrutiva [construct, deconstruct e reconstruct reality] conduzindo por seu turno a diferentes tipos de autenticidade, nomeadamente objetiva, construtiva [constructive] e existencial (Ivanovic, 2011). Associado ao turismo, o conceito de ‘autenticidade’ emerge a partir dos anos 1970, assente na teoria da ‘autenticidade encenada’, de MacCannell (1973), compatível com a emergência de um novo tipo de lugares turísticos - não autênticos - associados ao turismo de massas, onde o turista é cercado por espaços encenados [não autênticos ou autenticidade encenada] criados deliberadamente pela indústria do turismo e dos quais “não há saída” (p. 593). A busca por autenticidade na experiência turística está, então, ‘condenada à inautenticidade’, uma vez que foi transformada em ‘mercadoria’, em “pequena mentira” (p. 591), em “espetáculo” (p. 593) encapsulado de “veracidade forçada” (p. 591).
Mais recentemente, o autor esclarece que a ‘autenticidade encenada’ não sugere que exista autenticidade ‘real’ ou ‘atual’ na vida social. Sugere apenas que existem ações intencionais [por exemplo, a nível da arquitetura e decoração para turistas] que potenciam que o turista experiencie, pelo menos de relance, o ‘real’ ou a “verdade - atual” (MacCannell, 2011, p. 18). E acrescenta que, apesar da crítica continuada ao seu conceito de “autenticidade encenada”, o facto é que, à medida que o domínio do visível cresce no mundo pós-moderno, “a direção da evolução sociocultural” (p. 34) passa pela encenação da autenticidade, concluindo que a sociedade pós-moderna prospera com a autenticidade encenada, que está em toda a parte e que até constitui parte integrante da personalidade individual pós-moderna. A autenticidade encenada “envolve a suposta remoção de barreiras à percepção entre as regiões “frontal” e “traseira ou de retaguarda”, ou entre o “presente” e o “passado”” (MacCannell, 2011, p. 18).
De notar que, segundo a corrente pós-modernista, a inautenticidade não deverá constituir um problema para o turismo na sociedade pós-moderna. Eco (1986), na sua tese de hiperrealidade apoiada na desconstrução da autenticidade, antevê os limites difusos entre cópia versus original ou ficção versus realidade. O pressuposto é de que a fronteira entre real e irreal é tão obscura que a discussão sobre o que é autêntico ou inautêntico se torna teoricamente inútil (Le et al., 2019). Controverso, captou um conjunto de críticas, entre elas a de ser prematuro, excessivamente simplificado ou ainda impreciso (Mkono, 2012 apud Le et al., 2019). A falta de consenso na conceptualização de autenticidade está manifesta em vários aspetos. Por um lado, vários autores consideram que a autenticidade se perde quando associada a fins comerciais (Le et al., 2019), enquanto outros defendem a importância do seu valor comercial/económico de uso e troca, sob a assumpção de que é importante ela ser oferecida por agentes e operadores de viagens (Apostolakis, 2003; Yeoman, 2007 apud Le et al. , 2019) ou quando a cultura tradicional é abandonada pela modernização e os objetivos comerciais podem contribuir para “justificar” a manutenção da cultura e costumes tradicionais (Cohen, 1988 apud Hu, Feng & Zhang, 2015); ou ainda defendendo que o fortalecimento da autenticidade da cultura local é bom para a reconstrução da cultura tradicional e da identidade nacional (Van der Borg et al., 1996 apud Hu, Feng & Zhang, 2015).
Como Wang (1999) sublinha, a autenticidade associada ao património cultural assenta numa dupla dimensão: autenticidade “das experiências do turista [ou autenticidade da experiência] e a dos objectos do tour [toured objects]” (p. 351). Assim sendo, a autenticidade é simultaneamente perspetivada como “um recurso semiótico, uma performancee uma ideologia no turismo” (Noy, 2009, p. 222). O que os turistas experienciam só poderá derivar da ‘história’ que foi selecionada para lhes ser apresentada, levantando a questão sobre qual a ‘história’ selecionada [entre a multiplicidade de realidades históricas], de modo a que fosse tida pela representação autêntica do sítio ou atração associada ao património cultural. Ser autêntica ou inautêntica é em certa medida indiferente; o que conta é como o produto turístico é percecionado pelos turistas (Reisinger, 2009).
O conceito de autenticidade na sua relação com o património da humanidade, apoiava-se originalmente na noção de Valor Universal Excecional [VUE], o qual, em si, estabelece as condições que “autenticam esse valor” (Lawless & Silva, 2017, p. 149). Em concordância, os critérios para atribuição do VUE reportavam-se às dimensões físicas [design, materialidade, artesanato, cenário] da propriedade em questão, entendidos como universalmente aplicáveis (Icomos, 2014). Essa representação materialista da autenticidade levou a perceber os locais do património como originais, estáticos e atemporais (Jones, 2010). Sequentes debates, apoiados em pressupostos relativistas e construtivistas, chamaram a atenção para o facto de a autenticidade ter contexto variável, ser dependente do observador, o que põe em causa a sua universilidade, apelando a novos desafios com implicações normativas, os quais visam integrar novas perspetivas sobre a cultura bem como o crescente reconhecimento do papel das comunidades residentes em definir o valor do património.
Na sequência das primeiras referências à autenticidade, incluídas no Operational Guidelines for the Implementation of the World Convention em 1977, os Documentos Nara sobre a autenticidade e o Nara+20 (Icomos, 2014) põem em destaque a necessidade de contemplar um conjunto de parâmetros ou fontes de informação referentes a contextos tradionais. O pressuposto é de que o conceito autenticidade deve estar assente na verificação da credibilidade e veracidade das fontes de informação ou qualidades que definem significação de um recurso. As fontes assentam em três grupos distintos, nomeadamente as fontes ‘comunitárias’, dos ‘recursos’ e de ‘contexto’ (Icomos, 2014, p. 29). As fontes ‘comunitárias’ relativas às tradições, seu uso e função, que respondem às necessidades da comunidade. As de ‘recurso’ nascidas no contexto tradicional para dar forma ao recurso; em que a forma é sustentada pela substância. E por fim, as de ‘contexto’ em que se destaca que uma obra de arte, assim como um território, podem ser interpretados como um texto, no sentido de seu significado poder ser lido e compreendido como “parte da continuidade do seu contexto económico, cultural, social e ambiental” (Icomos, 2018, p. 29).
Assim, como perspetiva Bortolotto (2017), no futuro irá assistir-se à transformação do regime de patrimonialização tradicional, para um novo, apoiado em diferentes formas de articular passado, presente e futuro no projeto patrimonial. “Essa perspectiva dinâmica provoca uma transformação profunda nos modos de pensar o património, não somente considerado como vivo, mas também imaginado como um agente de mudança política, económica e social numa perspectiva de desenvolvimento valorizado como sustentável” (p. 34), em que se denota “a sustentabilidade de um património em processo, cuja transmissão envolve a transformação, incluindo-o, por vezes, em uma função económica” (p. 34). Por outras palavras, “dessencializa-se” a cultura, mas “essencializam-se” as relações entre os seus detentores (p. 35).
AS CASAS DE FADO: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL
O Decreto Regulamentar nº 4/99, de 1 de Abril, no seu Artigo 32º ‘Restaurantes típicos’ refere:
1 - Os estabelecimentos de restauração e de bebidas podem ser qualificados como típicos quando, pelas características das refeições e bebidas neles servidas e ainda pelo mobiliário, decoração, traje do pessoal ou espectáculo neles realizado, reconstituam a gastronomia e a tradição de uma região portuguesa; 2 - Os estabelecimentos de restauração e de bebidas típicas em que haja espectáculo de fado podem utilizar a designação «casas de fado»; 3 - Aplica-se, com as devidas adaptações, aos estabelecimentos de restauração e de bebidas típicos o disposto nos artigos 20° a 24° do Decreto-Lei n° 168/97, de 4 de Julho.
Neste enquadramento legal [e sequentes atualizações][ii], as Casas de Fado constituem-se como restaurantes de gastronomia portuguesa onde se realizam espetáculos de natureza artística, nomeadamente, onde se canta e toca o Fado. Assim, dois patrimónios intangíveis são alvo de oferta: o Fado e a gastronomia. De notar que em Portugal, gastronomia é reconhecida enquanto Património Cultural de Portugal (Resolução do Conselho de Ministros nº 96/2000). Independentemente das origens do Fado, no âmbito da sua génese evolutiva, ele é reconhecido como canção popular de Lisboa, “género performativo que integra música e poesia” (Henriques, 2016, p. 380), constituído por música, letra, cinesia e participantes (IC, 2014), ao mesmo tempo em que enfatiza uma dimensão espacial e imaginária da cidade – Fadoscape, envolta numa “sonoridade urbana” [urban soundscape] configuradora de um “perfil sonoro” [sonic profile] e “sentido de lugar” (Elliott, 2010 apud Henriques, 2016, p. 381).
Em 2011, o Fado obtém a classificação de Património Imaterial da Humanidade, com a sua inscrição na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Agrupa-se no domínio ‘Tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do património cultural imaterial’; ‘Expressões artísticas’; e ‘Práticas sociais, rituais e atos festivos’, campos determinados pelo Artigo 2.2 da Convenção de 2003. Tendo o Fado a sua etapa de implementação nas décadas de 1830/40 até final dos anos 60, e estando esta centrada em espaços de sociabilidade popular tradicional, como as tabernas, os bordéis, os retiros, as hortas ou as esperas de touros (Sardinha, 2010), seria de esperar que estes espaços tivessem a sua origem ligada a um “meio popular, em parte proletário e em parte declaradamente marginal, instalado nas tabernas e nos bordéis e associado ao quotidiano de uma população em que prostitutas e marginais se entrecruzam com marinheiros e estivadores, operários fabris e artesãos, trabalhadores braçais e vendedores ambulantes, embarcadiços, retornados do Brasil, negros e mulatos” (Nery, 2012, p. 74). Neste contexto, a designação Casas de Fado remete-nos para as décadas iniciais do século XIX [quando em 1830 surgem os primeiros testemunhos escritos da referência a estes espaços lisboetas de boémia e prostituição, pelo nome de ‘Casas de Fado’].
Pinto de Carvalho ([1903] 2016), na sua História do Fado de 1903, sublinha que o Fado “se popularizou, primeiro, e se aristocratizou, depois, subindo das viellas e das tabernas às salas alcatifadas” (p. 27). Refere igualmente que a “aparição do Fado engendra um novo factor do viver lisboeta – o fadista […] e dar um novo cliché cinematográfico da vida de Lisboa” (p. 31) estando muitas vezes associado “a atmosfera microbiana dos bairros infectos […] tascas onde o álcool flameja e a embriaguez estrebucha” (p. 35). Espaços associados a horas tardias de fecho[iii] (Camilo Castelo Branco apud Pinto de Carvalho, 2016, p. 35) e a “orchestra de guitarras e uma iluminação de cigarros”[iv] (Eça de Queiróz, 1867 apud Pinto de carvalho, 2016, p. 35).
Contudo, e fundamentalmente a partir de 1940, o “Fado das Tabernas e dos Bordéis” (dos bairros populares de Lisboa) vai não só ‘negociar com outros grupos sociais’ – passando do reduto tradicional da rede de tabernas populares para novos espaços, tais como teatros, salões aristocráticos, casinos, salas de espetáculo – como também propagar-se a outros centros urbanos, “quer através de um circuito marginal que é o das próprias redes de tabernas e bordéis, quer sobretudo no quadro de uma boémia juvenil que tem o seu eixo de difusão no meio estudantil de Coimbra” (Nery, 2012, p. 64).
Com o virar do século, nas décadas de 1910, 1920 e 1930, o Fado tem lugar sobretudo nas ‘tabernas e casas de pasto’ bem como retiros e hortas, mas também nas “sedes das inúmeras coletividades [sociedades culturais e de carater sindical, mutualista]” (Nery, 2012, p. 219). O Fado atravessa todo o leque de manifestações culturais tradicionais que têm lugar nos bairros pobres de Lisboa, “estando frequentemente presente em todos os espaços e momentos de lazer e de festa do quotidiano bairrista” (p. 151). Assim, assiste-se à sua “gradual expansão às comédias, revistas e espetáculos musicais nos teatros, bem como ao circuito da edição musical para uso nos espaços domésticos da classe média e mesmo nos salões de elite” (p. 171). Este alargamento conduz ao “aparecimento gradual de uma rede de cafés e cervejarias que, não sendo na sua maioria estabelecimentos luxuosos, oferecem já, no entanto, as condições de conforto e de seleção de clientela que atraem uma frequência de classe média impossível de congregar nas tabernas e casas de pasto dos bairros populares” (p.171). Entre eles contam-se o Café dos Anjos, Café Luzo, Cervejaria Boémia, Cervejaria Portugal, Cervejaria Rosa Branca, Salão Jasen, e ainda o restaurante João das Velhas. Em todos estes espaços passam a apresentar-se regularmente, em algumas noites por semana, os mais célebres guitarristas e cantadores de Fado da época.
Porém, “em todos estes espaços a característica mais relevante e transversal da prática do Fado é a persistência do seu estatuto amador, uma vez que os fadistas e guitarristas envolvidos não são profissionais contratados para se apresentarem a um público anónimo” (Nery, 2012, p. 216). A sequente profissionalização do Fado e a relativa ‘refundação’ delimitada no âmbito da política cultural do Estado Novo (1926-1974), a par dos novos desenvolvimentos tecnológicos da época [melhoria do registo fonográfico, gramofones, disco], têm impactos transformadores nas Casas de Fado, que agora estão sujeitas a medidas de controlo sobre os ambientes de apresentação pública [por exemplo: exigência de carteira profissional para os executantes do Fado e o registo e a censura prévia dos poemas, o que resultou numa maior fixação do repertório].
Assim, à medida que o circuito profissional se vai estabelcendo, primeiro com base nos cafés e cervejarias, depois – muito em particular – assente já nos novos espaços das Casas de Fado, “mobilizará indiscutivelmente nos elencos estáveis destes recintos os melhores fadistas das décadas de 1930 e 40, e ao fazê-lo acelerá a plena aplicação prática ao meio do Fado das normas da legislação de 1927” (Nery, 2012, p. 257). Legislação esta que institucionaliza as Casas de Fado, enquanto espaço perfeito para a apresentação profissional do Fado em condições ideais, ao obrigar ao licenciamento de recintos e a emissão de carteiras profissionais para os fadistas. Abrem: Solar da Alegria (1928), Salão Artístico de Fados, Retiro da Severa (1933, 1936), Adega Mesquita (1938) Adega Machado (1939), Café Luso (1940). Nas décadas de 1950 e 1960 as Casas de Fado estão no auge verificando-se o aumento do seu número, ao que não é alheia a iniciativa de algumas figuras de intérpretes de relevo decidirem abrir o seu próprio espaço[v].
Entre as características das Casas de Fado [embora existam variações de estabelecimento para estabelecimento e ao longo do tempo[vi]], destacam-se: a cozinha típica e/ou familiar; a decoração associada à tradição fadista e/ou tauromática [azuleijos, mobiliário rústico]; memorabilia fadista [xailes fadistas, guitarras fotografias de fadistas, chocalhos, bandarilhas, capotes de matador, cartazes das touradas]; existência de códigos de conduta de artistas e público[vii]; padronização dos lugares de apresentação; imagem solene, hierática, ritual, reinvindicando uma função de corporização nuclear da própria identidade nacional[viii]; repertório com alguma fixação; manutenção dos modelos performáticos[ix]; elencos cada vez mais estáveis; preços cada vez mais elevados [atendendo ao agravamento dos custos, compatível com impactos no afastamento da clientela popular].
Quanto ao público/clientela é cada vez mais alargado, verificando-se não só o afluxo crescente de clientes nacionais mas também o surgimento, a partir de meados anos 1950, de turismo estrangeiro. Este facto conduzirá ao reforço da expressão ‘casa típica’ ou ‘restaurante típico’ para estes espaços. Em consequência, muitos deles reforçaram mais vincadamente a sua ‘distintividade’ através de decoração com memorabilia fadista e/ou tauromática, elementos arquitetónicos e de mobiliário de estilo supostamente conventual ou palaciano, ou de simples tipicidade [arcadas, cadeirões de couro pregueado, grades de ferro forjado, motivos heráldicos, etc.], entre outros aspetos. O sistema fechado dos redutos das ‘casas típicas’ começa a apresentar algum desgaste e a defesa da tipicidade e da tradição tende a conduzir a rotinas repetitivas no plano das escolhas de repertório e da própria interpretação. Assim sendo, e devido ao Fado ter uma imagem associada ao Estado Novo, decaiu no pós 25 de Abril [1974]. Contudo, passada a sequente ‘crise de identidade’ da década de 1980, foi-se gradualmente revitalizando, através de múltiplas iniciativas, e a partir de 1990, como atesta Halpern (2004), ascende o ‘Novo Fado’, que vários fadistas abraçam.
Mais recentemente, e classificado como Património da Humanidade, o Fado ganha novo protagonismo, tanto mais se pensarmos que o próprio plano de salvaguarda, promove a valorização dos acervos fonográficos e iconográficos, as ações de divulgação, educativas e de promoção e as rotas de Fado (Egeac, 2019). No entanto, e à medida que aumenta o debate sobre a sua autenticidade num contexto de mercantilização crescente associada às forças da homogeneização da produção em massa (Dilling Nielsen, 2018), é também colocada a atenção sobre os perigos da standardização do pseudo individualismo na música popular.
Quanto à autenticidade associada à performance musical, Grossberg (2008 apud Dilling Nielsen, 2018), destaca três versões do que designa por ‘ideologia da autenticidade’, nomeadamente o ritmo, a criatividade e a competência do artista. Adicionalmente, Weisethaunet e Lindberg (2010 apud Dilling Nieisen, 2018) evidenciam categorias tais como: autenticidade do corpo [ligado ao impacto da presença física do intérprete], ritmo da música, autenticidade folclórica [significado musical num contexto cultural e social e a música como expressão dos valores culturais das comunidades que representa], autenticidade como negação [arte rebelde, artista rebelde, imagem do artista como rebelde], autenticidade como transcendência do dia a dia [transcendência da música face ao quotidiano], experience authenticity [as performances artísticas só são percebidas como autênticas se coletivamente partilhadas]. Esta(s) autenticidade(s) resulta(m) da necessidade de realização individual [self realisation] e de pertença. Weisethaunet e Lindeberg (2010 apud Dilling Nieisen, 2018) reportam-se ainda à categoria de ‘autêntica inautenticidade’, na trilha da autenticidade que Grossberg (2008 apud Dilling Nieisen, 2018) assinalava se estar crescentemente a transformar numa parodia consciente [self conscious parodt] da ideologia da autenticidade, nomeadamente através de processos da construção de artificialização entendidos menos como um problema estético e mais como um problema de imagem–marketing.
Também a autenticidade da gastronomia enquanto património intangível, muitas vezes associada à tipicidade de restaurantes [perspetivado do lado da oferta - proprietários/gestores dos restaurantes], pode ser melhor compreendida se, na ótica de Le et al. (2019) atendermos a: - conceitos relacionados com a comida [e.g. comida local e/ou étnica]; comportamento do consumidor [e.g. intenções comportamentais, valor percebido, …]; conceitos relacionados com servicescape [e.g. atmosfera, atributos dos empregados]; estratégias de marketing [e.g. estratégias de marketing dos restaurantes, branding, estratégias organizacionais, atributos da organização, gestão de recursos humanos].
Neste enquadramento sobressai a autenticidade percecionada sob uma multiplicidade de labels, nomeadamente a autenticidade genérica [general authenticity], autenticidade da comida, autenticidade da atmosfera, autenticidade existencial, autenticidade nos empregados, autenticidade encenada, autenticidade no menu oferecido, etnicidade percecionada e autenticidade cultural. A autenticidade pode igualmente ser analisada em termos de interação com outros conceitos, tais como nível de cosmopolitismo e nível de familiaridade (Wang & Matilla, 2005 apud Le et al., 2019), associados por sua vez à multidimensionalidade da experiência gastronómica, nomeadamente em termos sociais, temporais, espaciais, gastronómicos de comida e de serviço (Andersson & Mossberg, 2004; Bjork & Kauppinen-Räisänen, 2016; Kauppinen-Räisänen, Gummerus & Lehtola, 2013 apud Le et al., 2019). É preciso ter presente que a comida como uma componente cultural da sociedade, aquando da sua associação ao turismo, potencializa o usufruto da cultura local do destino permitindo compreender melhor a identidade dos lugares. A identidade gastronómica potencia a aproximação do turista à ‘autenticidade cultural’ através de experiências interculturais (Hall et al., 2003).
METODOLOGIA
O objetivo do presente estudo consiste em determinar as características turístico-culturais presentes nas Casas de Fado lisboetas - assente no Fado e gastronomia, bem como os principais elementos transformadores advindos da sua relação com o turismo, sob a perspetiva da oferta turística, nomeadamente dos proprietários e/ou gestores das Casas de Fado integrantes do Roteiro do Fado (Egeac, 2019), nomeadamente: Adega Machado, Café Luso, A Severa, Casa de Linhares, Clube de Fado, Duetos da Sé, Maria da Mouraria, Mascote da Atalaia, Parreirinha de Alfama, Povo de Lisboa, Taverna del Rey, Timpanas. Chama-se a atenção de que a Adega Machado, o Café Luso, o Clube de Fado, e o Timpanas integram o grupo denominado Fado & Food Group, o qual constitui a primeira organização empresarial com dimensão neste ramo específico de atividade (Timpanas, 2020).
Após a discussão sobre um conjunto de indicadores de procura e oferta turísticas de Lisboa, procede-se à análise de ementas efectuada através de consulta aos respectivos sites da Internet de doze Casas de Fado. No respeitante à análise da informação disponível online, contemplaram-se as seguintes categorias analíticas: Classificação, Localização [Bairro], Trip Advisor, Preços médios, Site/Ementa [nº línguas]. Adicionalmente, as ementas foram alvo de interpretação através dos contributos advindos da elaboração da nuvem de palavras e do mapa conceitual por meio do uso de recursos tecnológicos [tais como o Wordle] (Prais & Flor da Rosa, 2017). As categorias analíticas consideradas foram as seguintes: ‘couvert, entradas e sopas’, ‘pratos de carne’, ‘pratos de peixe’, ‘sobremesa’. O objetivo é determinar quais os principais elementos gastronómicos oferecidos e se estes estão associados à tradição gastronómica portuguesa.
Seguidamente, procede-se à aplicação de um inquérito por entrevista aos proprietários/ gestores das Casas de Fado referidas. Ele foi aplicado no decurso do primeiro semestre de 2019, obtendo-se 50% de respostas. O guião de entrevistas apoiou-se em seis questões semi estruturadas e abertas distribuídas por três grandes domínios, nomeadamente: (1) Grau de importância atribuída aos patrimónios Fado e gastronomia tradicional e sua relação simbiótica nas Casas de Fado; (2) Clientela, Parcerias, Redes, Relações com entidades públicas e privadas; (3) Determinação de impactos quer da classificação do Fado como Património Imaterial da Humanidade quer da ascensão do turismo na cidade de Lisboa, no negócio das Casas de Fado.
O tratamento dos resultados remete para uma metodologia qualitativa, apoiada na análise de conteúdo categorial (Bardin, 2015), procedendo-se à sua categorização com vista a refletir sobre os resultados obtidos. No relativo ao primeiro domínio contemplam-se categorias de análise que destacam os elementos alvo de valorização nas Casas de Fado por parte dos proprietários/gestores, com vista a averiguar o grau de importância atribuída ao Fado e à Gastronomia, bem como a identificação dos respetivos pontos e fortes, fracos, oportunidades e ameaças. O segundo domínio põe em evidência categorias de análise que distinguem as características atuais da clientela das Casas de Fado [perfil do cliente] bem como identifiquem as principais parcerias, redes e relações destes espaços com o setor públicos e outras atividades privadas. O terceiro põe a tónica em categorias de análise que revelem os principais elementos transformadores na oferta do serviço prestado nas Casas de Fado. Por fim, apresentaram-se as conclusões.
ESTUDO DE CASO: AS CASAS DE FADO DE LISBOA E SUA OFERTA CULTURAL
Lisboa Cidade Turística - A importância turística das cidades tem vindo a ser reconhecida de forma crescente (Wttc, 2018)[x]. Lisboa, capital de Portugal, inscreve-se nessa tendência, revelando elevada dinâmica turístico-cultural, patente na sua ‘vibração cultural’, ‘economia criativa’ e ‘enabling environment’ (Montalto, Tacao Moura, Panella, Alberti, Becker & Saisana, 2019). Tal como realçam os autores, Lisboa ocupa a primeira posição no ranking em ‘vibração cultural’ entre as 40 cidades europeias com população no intervalo entre 500 000 a 1 milhão de habitantes. Em 2017, Lisboa ocupava o 45º [em 72º] lugar no ranking relativo à contribuição direta das Viagens & Turismo [T&T direct GDP] e constava no ranking Top Global City Destinations 2017, no 20º lugar em termos de peso no total de Portugal [Share of Country: City tourism GDP % of country tourism GDP] com 5.7% de representatividade no PIB [% of city] face a 31.8% [% of country], com um crescimento médio, entre 2007 e 2017, de 3,4%, com previsão de aumento para 2027 (Wttc, 2018, pp. 7, 18, 20). No Top 100 City Destinations 2018, Lisboa ocupa a 62º posição (Euromonitor International, 2018), e segundo o Bloom Counsulting (2018), Lisboa surge como a cidade portuguesa top em termos de ‘visitar’.
O inquérito motivacional à cidade de Lisboa 2018 (Turismo de Lisboa-Observatório de Lisboa, 2018) evidencia distintividade do perfil dos turistas em função da nacionalidade. Para os turistas estrangeiros a motivação primeira foi “férias, lazer ou recreio” (90,4%) (Turismo de Lisboa- Observatório de Lisboa, 2018, p. 4) e por segmentação por produtos. Apurou-se que 84,5% estava a realizar um “city & short break” e 5,1% viajava em “negócios”. Quanto aos turistas nacionais, a maioria foi motivada por questões profissionais (60,4%) e apenas 25,7% por “férias, lazer ou recreio” (Turismo de Lisboa-Observatório de Lisboa, 2018, p. 6). Em termos de segmentos, os negócios particulares destacam-se como motivação primeira (33,9%) (vide Tabela 1).
| Produto | Estrang.(%) | Nac.(%) | Objetivos da visita | Estrang.(%) | Nac.(%) |
| City & Short Break | 84,5 | 24,59 | Visitar monumentos e museus | 88,8 | 12,0 |
| Negócios particulares | 5,1 | 33,88 | Saborear a gastronomia e vinhos | 87,3 | 3,3 |
| Meetings & Incentives | 3,85 | 14,48 | Conhecer a moderna Lisboa | 77,1 | 4,4 |
| Circuito em Portugal | 3,26 | (*) | Conhecer a cultura portuguesa | 71,2 | 0,3 |
| Sol e Mar | 2,55 | (*) | Apreciar a atmosfera ou paisagem | 67,7 | 23,8 |
| Estudos/Formação | 0,22 | 12,02 | Divertir-me com amigos | 47,1 | 11,7 |
| Conhecer hábitos diferentes | 46,7 | 0,3 | |||
| Descansar, relaxar | 21,7 | 15,8 | |||
| Diversão noturna | 17,5 | 4,4 | |||
| Estar com a família | 11,6 | 10,7 | |||
| Assistir a eventos culturais | 10,1 | 6,6 | |||
| Usufruir de um clima ameno | 8,45 | 0,5 | |||
| Contactar com a natureza | 8,1 | 14,8 | |||
| Contactar com a população local | 8,0 | --- | |||
| Tratar de assuntos profissionais | 6,7 | 13,7 | |||
| Frequentar restaurantes recomend. | 4,5 | 1,9 | |||
| Alojar-se num bom hotel | 1,4 | 0,5 | |||
| Praticar desporto | 1,3 | 2,7 | |||
| Assistir a eventos desportivos | 1,1 | 2,2 | |||
| Razões de saúde | 0,1 | 5,5 | |||
Considerando os ‘objetivos da visita’, a distintividade no perfil de turistas estrangeiros e nacionais mantém-se. Os turistas estrangeiros com objetivos de visita associados maioritariamente a “visitar monumentos e museus” (88,8%), “saborear a gastronomia e vinhos” (87,3%), “conhecer a faceta moderna de Lisboa” (77,1%) e “conhecer a cultura portuguesa” (67,7%). Os turistas nacionais com os objetivos associados prioritariamente a “apreciar a atmosfera ou paisagem” (23,8%), “descansar e relaxar” (15,8%), “contactar com a natureza” (14,8%), “tratar de assuntos profissionais” (13,7%), “visitar monumentos e museus” (12,0%) (Ibidem: 24). Quanto ao item “frequentar restaurantes recomendados” ele é também assinalado quer por turistas estrangeiros (84,5%) quer nacionais (1,9%) (Tabela 1). No domínio cultural, Lisboa apresenta, internacionalmente, um número significativo de património - tangível e intangível - classificado pela Unesco. Destaca-se igualmente por iniciativas tais como Cidade Europeia da Cultura (1994), Expo 98 e Euro 2004, bem como os eventos Lisbon Architecture Triennale, Lisbon Fashion Week, Lisbon & Estoril Film Festival, European Creative Hubs Forum; Festivals for Europe, entre outros festivais de marca [labelled festivals].
CASAS DE FADO E A OFERTA TURÍSTICO-CULTURAL: FADO E GASTRONOMIA
Análise de Ementas - No roteiro do Fado (Egeac, 2019) consta um conjunto de doze Casas de Fado, as quais se localizam nos bairros históricos de Lisboa. A análise dos respetivos sites contempla elementos como “localização”, “classificação no Trip Advisor”, “preço”, “nº de línguas da ementa/menu” evidenciando a sua localização nos bairros históricos da cidade, uma classificação no Trip Advisor maioritariamente de 4 e mais, preços elevados e ementas/menus disponibilizados maioritariamente em mais de três línguas (Tabela 2).
| Inq.(nº) | Casa de Fado | Localização (Bairro) | TRIP AdvisorClassificação | Preços medios | Site /Ementa(nº línguas) |
| 1 | Adega Machado (ª) | Bairro Alto | 3,5 | €€ - €€€ | 3 |
| 2 | Café Luso (ª) | Bairro Alto | 3,5 | €€ - €€€ | 3 |
| 3 | A Severa | Bairro Alto | 3,5 | €€€€ | 6 |
| 4 | Casa de Linhares | Sé | 4,0 | €€€€ | 1 |
| 5 | Clube de Fado (ª) | Alfama | 3,5 | €€€€ | 10[xi] |
| 6 | Duetos da Sé | Alfama | 4,5 | €€ - €€€ | 9 |
| 7 | Maria da Mouraria | Mouraria | 4,0 | €€ - €€€ | 2 |
| 8 | Mascote da Atalaia | Bairro Alto | 4,5 | €€ - €€€ | 2 |
| 9 | Parreirinha de Alfama | Alfama | 4,0 | €€ - €€€ | 3 |
| 10 | Povo de Lisboa | Cais do Sodré | 4,0 | €€ - €€€ | 2 |
| 11 | Taverna del Ruy | Alfama | 1,5 | €€ - €€€ | 3 |
| 12 | Timpanas (ª) | Alcântara | 3,5 | €€ - €€€ | 3 |
Legenda: Inq: Inquirido nº (de 1 a 12); €-€€€€: Custo por pessoa com a seguinte escala: € – fast food, self service; €€ - casual, sit-down servisse; €€€ - jantar mais formal (more formal dining); €€€€ - dispendioso e ocasião especial (most expensive, special occasion); (ª): Integram o “Fado & Food Group”
Elaboração própria com base nos sites das respetivas Casas de FadoCom vista a determinar a oferta gastronómica das Casas de Fado, enquanto restaurantes associados à comida portuguesa tradicional, foi feita uma análise de ementas/menus, assente numa análise categorial, em que as categorias são: ‘couvert, entradas e sopas’, ‘peixe e marisco’, ‘carnes’ e ‘sobremesas’ [Tabelas 3, 4, 5 e 6]. Paralelamente é apresentada a respetiva nuvem de palavras.
| Couvert, entradas (a) e sopas | ||||||||||||
| Inquirido (nº) | ||||||||||||
| 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | |
| Manteigas, Patês (azeitona, sardinha, atum), Azeitonas, Azeite | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ |
| Pão | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ |
| Sardinhas, Peixe de escabeche, Peixinhos da horta, Muxama de atum, Chicharro dos Açores fumado, Saladinha atum | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||||
| Pastéis de Bacalhau, Croquetes de marisco, Croquetes de Xara, Rissol tomate, Polvo, Pataniscas de Bacalhau, Croqute bochecha de porco, Camarão | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||||
| Enchidos | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | |
| Alheira Gratinada/Farinheira | √ | √ | √ | |||||||||
| Gaspacho (Gaspacho à Algarvia) | √ | √ | ||||||||||
| Sopa de Caldo Verde | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||
| Creme Aveludado de Tomate Assado e Chouriço | √ | |||||||||||
| Sopa de Marisco /Creme de Marisco | √ | √ | ||||||||||
| Creme Aveludado de Sapateira | √ | |||||||||||
| Sopa de Legumes (Creme de Espargos, Creme de Abóbora com Cenoura, Sopa de Feijão e Hortaliças e Pinhões, Coentros, Cenouras | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||||
| Açorda Alentejana com Ovo | √ | |||||||||||
| Queijos | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||
| Outros | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||
Legenda: (a) o marisco pode ser considerado como entrada, mas foi integrado na tabela relativa a “peixes e marisco”
Elaboração própria com base na análise das ementas

Pão, manteigas, patês, azeitonas, queijos, enchidos e sopa de caldo verde têm relevo. No respeitante aos queijos, cabe destacar a referência à sua origem nacional e regional: a Tábua de Queijos Portugueses DOP, Queijo da Serra da Estrela, Queijo de Azeitão, Queijo de Niza, Queijo Canhota Braseado com Uvas, Queijo de Mourão no Forno com Ervas Finas e Redução de Moscatel, Seleção de Queijos Nacionais, Tábua Mista de Queijos e Enchidos Regionais Seco c/Doce, Queijo da Iha S. Jorge, Terrincho. Quanto aos enchidos destacam-se: Chouriço das Beiras Assado no Forno, Cachaço de Porco Fumado com Ameixa, Presuntos [Pata Negra de Chaves, com Melão, com Cogumelos], Chouriço, Torresmos, Linguiça, Dueto de Morcela & Maçã, entre outros[xii].
| Peixe e Marisco | ||||||||||||
| Inquirido (nº) | ||||||||||||
| 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | |
| Bacalhau | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ |
| Marisco | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | |
| Peixe do Dia | √ | √ | √ | |||||||||
| Atum | √ | √ | ||||||||||
| Polvo | √ | √ | √ | √ | √ | |||||||
| Tamboril | √ | √ | √ | |||||||||
| Marisco | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||||||
| Outros | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | |||

O bacalhau e o marisco detêm grande importância na oferta das Casas de Fado. Contudo, cabe igualmente sublinhar o polvo, atum, bem como o peixe do dia (grelhado). O bacalhau constitui-se como o prato de peixe disponibilizado em todas as Casas de Fado, confecionado de múltiplas formas: Lascas de Bacalhau Confitado, Lombinhos de Bacalhau Seco Braseado, Lombinhos de Bacalhau Gratinado com Batatas Assadas, Bacalhau Assado com Batata a Murro, Bacalhau à Severa, Bacalhau de Cebolada, Pataniscas de Bacalhau c/ Arroz de Feijão, Bacalhau à Clube de Fado, Bacalhau Suado à Lisboa Antiga, Bacalhau à Chefe Sousa, Bacalhau com Broa, Bacalhau à Capelão, Pastéis de Bacalhau com arroz de tomate, Bacalhau à Parreirinha, Tiborna de Bacalhau Assado com Batata a Murro, Coentros e Alho, Bacalhau à Brás, Pataniscas de Bacalhau com Arroz de Feijão, Bacalhau à Fadista, Bacalhau à Lagareiro, entre outros.
No relativo ao marisco, cabe referir que frequentemente se associa a arroz, açorda, caldeirada, cataplanas. Por exemplo: Caldeirada de Camarão, Arroz de Camarão, Arroz de Marisco, Açorda de Marisco, Cataplana de Marisco. O camarão e gambas são alvo de oferta relevante: Camarão e Gengibre, Camarão Frito, Gambas cozidas ou Fritas, Camarão e Vieira de Coentrada, ao alhhinho, Camarões Tigre Grelhados, Camarão ao Alho. Amêijoas [por exemplo: Amêijoa ao Natural ou Bulhão Pato, Amêijoas Suadas em Vinho Verde, Feijoada de Lulas] e Lagosta, são igualmente assinaladas. O atum [Atum com Molho de Natas, Bife de Atum na Grelha, …], polvo [Arroz de Polvo, Polvo à Lagareiro, Polvo à Vimioso, Salteado de Polvo e Gambas em Molho Corisco com Batinhas Cozidas], tamboril [Arroz de Tamboril c/ Gambas]. Entre os ‘outros’ pratos de peixe verifica-se Pescada c/ Molho de Camarão, Linguado Grelhado, Dourada Grelhada, Robalo Assado à Portuguesa, Posta de Cherne Grelhada, Lombo de Garoupa c/ Molho de Ervas, Bife de Espadarte, Peixe Assado, Choco Frito à Setubalense, Feijoada de Lulas.
| Carne | ||||||||||||
| Inquirido (nº) | ||||||||||||
| 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | |
| Vaca e vitela | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ |
| Porco | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | |||
| Frango | √ | √ | √ | √ | √ | |||||||
| Borrego | √ | √ | ||||||||||
| Cabrito | √ | √ | √ | |||||||||
| Outros | √ | √ | √ | |||||||||
Vaca e vitela [Pastel de Massa Tenra de Vitela com Arroz de Grelos, Bife de Vaca dos Açores com Molho de Queijo da Serra da Estrela, Carne de Vitela Estufada, Bife à Severa, Posta de Vitela à Mirandesa, Escalopes de Vitela c/Molho de Cogumelos, Medalhão de Novilho à Moda da Casa de Linhares, Bife Clube de Fado, Bife do Lombo c/ Pimenta, Especial Clube de Fado, Medalhão do Lombo à Portuguesa, Mimos de Vitela Clube de Fado, Bife de Alcatra à Duetos, em Molho Farinheira, acompanhado com Esparregado ou Batatas à Padeiro, Bife Lisboeta, Bife de Vaca com queijo da Ilha Maranhos Fritos com Salada, Alcatra à Moda da Terceira, Bife do Lombo Frito com Ovo a Cavalo, Batata Frita e Molho da Augusta, Lombo de Vitela à Primavera, Tornedó à D’El Rey, Bife à Portuguesa, Medalhão de Vitela com Cogumelos, Espetada de Novilho com Gambas, Carne à Jardindeira] estão disponibilizadas em todas as ementas.

O porco também surge na grande parte dos menus [Lombinho de Porco Preto com Crosta de Broa e Ervas, Pernil de Porco e Xerém, Bifinhos de Porco Grelhados, Bochechas de Porco, Lombinhos de Porco c/ Gambas na Cataplana ou Amêijoas], Carne de Porco à Alentejana, Assado de Porco à Fadistinha, Carne de Porco à Alentejana, Iscas à Portuguesa, Entrecôte Grelhado, Plumas de Porco Preto] e seguidamente o frango [Medalhão de Frango, Frango no Forno à Travessa da Queimada, Peito de Frango Clube de Fado, Bifinhos de Frango com Mostarda Dijon, Frango à el Rey], o borrego [Costeletas de Borrego] e o cabrito [Cabrito Assado à Hermínia, Cabrito no Forno à Padeiro, Cabrito Assado com Batatinhas e Grelos salteados].

| Sobremesas | ||||||||||||
| Inquirido (nº) | ||||||||||||
| 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | |
| Laranja, Limão (Torta de Laranja, Creme Limão Lisboa) | √ | √ | ||||||||||
| Arroz doce | √ | √ | √ | |||||||||
| Leite Creme | √ | √ | ||||||||||
| Pudins | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | |||||
| Mousse de Chocolate, Cremoso de Chocolate Quente, Bolo de Chocolate, Salame de Chocolate, Bolo de Moka e Chocolate | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | |
| Pêra Bêbada | √ | √ | √ | √ | ||||||||
| Gelado | √ | √ | √ | √ | √ | |||||||
| Fruta da Época /Salada de Frutas | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | ||
| Outros | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ | √ |
O chocolate distingue-se na oferta de sobremesas bem como a fruta. Pudins [Pudim à Catedral, Pudim Flan, Pudim Abade de Priscos, Pudim de Ginja, Pudim de Ovos à Antiga], Gelados, Pera Bêbada, Arroz Doce, são igualmente integrantes de menus, entre outros [por exemplo: Mil Folhas de Sericaia, Encharcada do Convento de S. Clara, Pastel de Nata, Pão-de-Ló, Guitarrada].
Entrevistas aos proprietários e/ou gestores - As entrevistas levadas a cabo a 6 proprietários/gestores das Casas de Fado, tendo em conta os três domínios explicitados na metodologia, evidenciam que existe o reconhecimento da importância do papel das Casas de Fado na valorização da cultura portuguesa, com destaque para o Fado [fadistas, músicos, performances de qualidade] e gastronomia [típica, tradicional, portuguesa, qualidade], patente em algumas distinções obtidas [em jornais, Trip Advisor, Guia Michelin, concursos gastronómicos, etc.]. Entre as entrevistas destacam-se as perspetivas dos seis entrevistados no respeitante ao que valorizam na sua respetiva Casa de Fado:
“O conjunto de fadistas, profissionalismo e boa comida. […] reconhecida a relevância da Casa de Fado em artigos em jornais, elogios dos clientes, a Comenda.”
“Vários prémios.”
“É a única Casa de Fado recomendada pelo guia Michelin, tem um conjunto de fadistas composto por grandes nomes do Fado, com destaque para Jorge Fernando. O edifício é um palacete renascentista do século XVI. Quanto a cozinha, os cozinheiros receberam diversos prémios e servimos o melhor da cozinha portuguesa tradicional. Recomendação no Guia Michelin, segundo lugar no Concurso Chefe Cozinheiro do Ano 2014.”
“Os bons concertos e a excelente gastronomia que oferecemos. No restaurante primamos sempre por tentar proporcionar um bom serviço, acompanhado de comida de qualidade e concertos únicos com músicos talentosos. Recomendação no Trip Advisor. Elogios em jornais”.
“Valorização da gastronomia tradicional portuguesa, … da cultura portuguesa.”
“Valorização da cultura portuguesa.”
Em conformidade, em termos de pontos fortes das Casas de Fado destacam-se a qualidade das performances dos fadistas, bons concertos, classificação do Fado como património imaterial da humanidade, valorização da cultura portuguesa, excelência da comida oferecida [tradicional], qualidade da comida, boa seleção dos ingredientes gastronómicos, indicação no Guia Michelin, ambiente/atmosfera do espaço [decoração, ambiente acolhedor] e continuidade do investimento nestes aspetos. Pontos fracos não foram mencionados. Quanto às oportunidades, o turismo é assinalado por todos os entrevistados e, em termos de ameaças ganham proeminência três: o aumento do número de Casas de Fado e locais onde se canta o Fado sem qualidade e a preços baixos, resultado da pressão turística; o nível elevado de impostos; as reclamações injustas na internet. Quanto a aspetos enfatizados destacados por cada um dos seis entrevistados, temos:
“Pontos Fortes: a qualidade. Sou um otimista preocupado, os investimentos são para melhorar a qualidade, mas os impostos preocupam […]. Ameaça principal é o IVA. [A classificação de Património Imaterial da Humanidade] é como uma moeda, tem dois lados. É agradável, alertou as pessoas para uma música que existe num país pequenino, e as pessoas vêm […], ficaram curiosas [...] Agora, criou uma massificação que é péssima! Tem gente aí a cantar e a tocar que é péssima, mas têm trabalho todos os dias e ganham muito dinheiro.”
“Com a classificação aumentou significativamente o reconhecimento internacional e o turismo [...] mais de 30% de aumento […].”
“Pontos Fortes, a indicação Michelin, a qualidade do Fado e da cozinha, o ambiente/atmosfera da Casa, […] não vejo pontos fracos. […] As oportunidades estão ligadas ao aumento do número de turistas em Lisboa, e as ameaças é o aumento de Casas de Fado sem qualidade a preços baixos. […] O principal investimento foi na reforma da Casa preservando a arquitetura bem como em pessoal. […] Acho que a classificação do Fado como Património da Humanidade aumentou a procura, mas também aumentou o número de Casas de Fado, algumas sem qualidade.”
“Pontos fortes: os bons concertos e a excelente gastronomia; fracos: o espaço pequeno; oportunidades: o aumento do número de turistas; ameaças: clientes que reclamam sem razão na internet que é uma ferramenta fácil em que as pessoas são livres de escrever mentiras. […] Investimento em um espaço inovador, dinâmico e multifuncional. Aqui a gastronomia encontra-se com as artes, num dueto perfeito. […] O restaurante bar e café é acima de tudo um espaço cultural, no mesmo encontram-se permanentemente exposições de arte de emergentes artistas, concertos ao vivo todas as noites dos mais diversos géneros musicais.”
“Aposta na tipicidade da gastronomia tradicional portuguesa. A preocupação é com a cultura portuguesa. […] Há muitos impostos. [… ] Com a classificação houve um grande aumento de turismo. Passou-se de uma situação de crise para boom …. Os turistas quando visitam Lisboa, há sempre os top, como comer pastel de nata de Belém, e … ouvir o Fado…!.”
“Ponto forte é o Fado e a gastronomia portuguesa: são duas apostas no contexto da valorização da cultura portuguesa. Ameaça são os impostos muito elevados, tal como o imposto que se tem que dar à Sociedade Portuguesa de Autores. […] A classificação do Fado como património da Humanidade foi em geral positiva, nomeadamente em termos de divulgação. Contudo, as Casas de Fado já existiam antes da classificação e já tinham um papel na valorização da cultura portuguesa.”
A clientela é maioritariamente composta por turistas estrangeiros [pode variar entre 99,9% e 60%] que vem fundamentalmente através de dois grandes tipos de empresas intermediárias: agências de turismo e hotéis. É também referido um número significativo de clientes que chega até à Casa de Fado de forma privada, frequentemente através da Internet, redes sociais, indicação do Guia Michelin, e divulgação oficial do Visit Lisbon. A faixa etária é variada, embora exista um peso maior de pessoas mais velhas. No respeitante às características da clientela e como é chegam até às Casas de Fado, os entrevistados assinalaram:
“Cerca de 60% são turistas estrangeiros. Faixa etária é muito variada. Sim temos contacto com com as agências de viagens, hotéis […] fazemos grupos pequenos de 30 a 40 pessoas com menu já estabelecido. Os hotéis costumam ser importantes mediadores. Temos capacidade para 120 pessoas.”
“São sobretudo estrangeiros, casais mais velhos, vêm mais pelo Fado do que pela comida, chegam através das redes sociais e da indicação do Guia Michelin.”
“Estrangeiros e pessoas mais velhas, casais; há poucos portugueses. […] chegam através de agências de turismo, e da divulgação feita.”
“O restaurante é membro do The Fork, chegam pelos sites, agências de turismo, Visit Lisbon.”
“Pelo menos 80% são turistas estrangeiros. Idades variadas. Recebemos grupos pequenos. […] sim … com hotéis. Os hotéis fazem marcações para os seus clientes. Muitos clientes chegam também por via da net e por isso via individual.”
“São sobretudo turistas estrangeiros (99,9%), reformados e em grupo. Principais nacionalidades: japoneses, brasileiros, nórdicos, alemães, […]. Sim, com as agências de viagens fundamentalmente, e também com hotéis …”
Quanto à relação das Casas de Fado com o setor público, ela é tida por pouco expressiva. Em termos de relação com o setor privado, ela é mais relevante, sendo assinaladas fundamentalmente empresas turísticas, tais como agências turísticas e hotéis, os últimos fazendo marcações para os seus clientes. Os principais aspetos de transformação das Casas de Fado estão estreitamente associados à ascensão do turismo na cidade de Lisboa e respetivo interesse em visitar estes espaços, como lugares onde se canta e toca o Fado. Os aspetos de transformação referenciados são fundamentalmente a nível de horários de abertura e performance dos fadistas, as características da clientela, os canais de captação de clientela, a atmosfera do lugar e a oferta de menus standard.
Os horários têm vindo a alterar-se, verificando-se que as Casas de Fado fecham cada vez mais cedo, e as performances são oferecidas também cada vez mais cedo. O facto prende-se com outro elemento em mudança associado às características ou perfil da clientela, nomeadamente o facto de serem maioritariamente turistas de nacionalidade estrangeira, idosos e que têm um conhecimento reduzido do que é o Fado. Acresce a situação desta clientela, oriunda de outros países, não conhecendo a cidade mas querendo experienciar o Fado, enquanto top da cidade, recorre a agências de turismo ou aos hotéis para fazer as marcações. Anteriormente, quando a clientela era maioritariamente portuguesa poderia haver situações de improviso da parte dos clientes que também cantavam ou se juntavam a cantar com os fadistas contribuindo para uma atmosfera/ambiente mais vivo deste património. Como conheciam as letras dos fados e são conhecedores da língua em que o Fado é cantado, tornava-se mais intuitiva a interação. Os estrangeiros, com desconhecimento da língua e das letras das canções, tenderão a não poder usufruir da plenitude do que é o Fado nem do “sentimento” do Fado.
Em termos de gastronomia existe a preocupação em oferecer a tipicidade da comida portuguesa, embora exista uma standardização em formato menu, resultante das exigências de um mercado cada vez mais globalizado nos seus gostos. Por exemplo, em horas mais tardias podia ser frequente o petisco e cear; no presente a norma é a disponibilização crescente de menus standard, muitas vezes pré-pagos integrados num package adquirido à agência turistica. Entre as entrevistas efetuadas apresentam-se extratos de três delas:
“[…] algumas mudanças … o nosso horário é das 21 às 2 da manhã, com um formato em que o fadista canta cerca de 20 minutos, depois há uma paragem de cerca ½ hora e segue-se outro fadista e assim sucessivamente.”
“Há algumas alterações. Por exemplo, nos horários das performances que ocorrem cada vez mais cedo. O nosso horário era das 20 horas às 24 horas. Recentemente passou para dois turnos: um das 19-21 horas e o segundo das 21 às 23 horas. Quanto ao ambiente, a entrega dos fadistas é que conta … o envolvimento do público é muitas vezes um mito.”
“[…] há grandes mudanças na experiências e vivências nas Casas de Fado. Há 40 anos, o hábito era após o cinema, teatro, revistas as pessoas irem para as Casas de Fado e podiam lá ficar até às 4 ou 5 da manhã. Os clientes pagavam aos artistas, gratificavam, ceavam [….]. Agora, com a maioria de grupos estrangeiros, eles chegam cedo (cerca das 20 horas) e por volta das 22 já decorreu o espetáculo, e o(s) grupo(s) vão-se embora. […] Acredito que se não houvesse turismo não havia Casas de Fado na atualidade.”
CONCLUSÃO
As Casas de Fado inscrevem-se historicamente na cultura portuguesa e lisboeta, associando-se a dois patrimónios intangíveis: o Fado e a gastronomia. Na sua relação com o turismo, este tipo de estabelecimento enquadra-se no âmbito da política do Estado Novo e respetiva legislação que institui uma padronização nos locais onde se canta e ouve o Fado, na profissionalização dos fadistas, na duração das canções, na delimitação do repertório, entre outros aspetos. Procurando investigar os principais elementos transformadores na oferta das Casas de Fado, tendo em conta o contexto de aumento do turismo na cidade de Lisboa e da patrimonialização do Fado, declarado Património Imaterial da Humanidade, verificaram-se preocupações fundamentais na sua gestão, nomeadamente: Qualidade do Fado enquanto género performativo que integra música e poesia [música, ritmo, letra, cinesia, modelo performativo, competência fadistas, comportamento da plateia/clientela, códigos de conduta…]; Qualidade, tradicionalidade, tipicidade da gastronomia oferecida [menus, preços, familiaridade da cozinha, recomendações, prémios, reconhecimento nos media…]; Adequação da decoração do estabelecimento, atmosfera e memorabilia fadista; e Relação intersectorial - relação com o turismo e seu tecido produtivo - e estratégias de marketing.
Devido à multidimensionalidade dos elementos a considerar, o estudo assumiu-se como exploratório tendo, no entanto, através de uma análise dos sites das Casas de Fado, de ementas e de entrevistas percecionado que o turismo tem vindo a ter impactos na oferta nas Casas de Fado. Os entrevistados evidenciaram alterações no modelo performativo, cada vez de formato mais rígido, standardizado, tornando tendencialmente menos intuitiva e partilhada a relação entre fadista e “cliente”. Paralelamente, face ao número crescente e maioritário de clientela constituída por turistas estrangeiros [que no dia seguinte prosseguirão uma visita aos “top” da cidade], detentores de um nível de conhecimento genericamente baixo do Fado, ficou patente a tendência para a oferta se adaptar ao perfil da sua clientela, nomeadamente através de preocupações de adequação da performance em termos de duração [mais curta e de maior rotatividade] e horários de abertura/encerramento [encerramento mais cedo], levando a situações ora de rotatividade de fadistas, ora de delimitação de turnos de performances.
Uma vez que a clientela de nacionalidade estrangeira terá, tendencialmente, maior desconhecimento do que é o Fado, será mais fácil a asensão de espaços onde se canta e toca o Fado de qualidade menor [qualidade de fadistas, músicos, rigor de códigos de conduta do Fado, entre outros aspetos]. Esta proliferação de espaços de Fado pode conduzir à pressão para a sua menor qualidade, pois a concorrência fica mais dependente dos preços [quando a qualidade não é percebida como elemento distintivo, da parte da audiência/clientela], tornando-se o Fado uma mercadoria sujeita às leis da procura e oferta. Presentemente, os preços praticados são na generalidade elevados para o poder de compra mediano dos portugueses, mas é suposto que o preço tem que refletir não só a refeição, mas também a qualidade do espetáculo oferecido.
Quanto à gestão associada à qualidade, tradicionalidade, tipicidade da gastronomia oferecida pelas Casas de Fado, a análise dos sites das ditas Casas evidencia a oferta assente muitas vezes em menus pré-estabelecidos, de preços genericamente elevados, e traduzidos em várias línguas, manifestando o reconhecimento da importância da clientela estrangeira e suas distintas nacionalidades. A análise de ementas evidencia que estão presentes muitos pratos e recursos da gastronomia tradicional portuguesa percecionados como valores a ser oferecidos aos turistas. Na categoria “couvert, entradas e sopas”, pão, manteigas, patês, azeitonas, queijos, enchidos e sopa “caldo verde” têm destaque. Na categoria “peixe e marisco”, o bacalhau e o marisco integram os menus, sem exceção. Nas carnes a vaca/vitela e porco tomam a dianteira e nas sobremesas são detetados doces tradicionais nacionais. Esta análise compatibiliza-se com o reconhecimento dos pontos fortes das Casas de Fado associados à oferta de valores tradicionais gastronómicos.
A nível das principais transformações, as entrevistas deixam transparecer que por vezes a ceia era frequente e por isso compatível com os petiscos e não só com o formato menu standard. A ascensão de preocupações com a certificação e comunicação da qualidade está igualmente presente na sua associação com o turismo, nomeadamente através de recomendações do Trip advisor, Fork, prémios, reconhecimento nos media, entre outros. A adequação da decoração do estabelecimento, atmosfera e memorabilia fadista são referidas como atributos integrantes das Casas de Fado, os quais continuam a captar investimentos por parte dos seus proprietários / gestores. A atmosfera terá mudado em virtude da nacionalidade maioritariamente estrangeira da cientela, menos participativa e menos integrada na cultura nacional.
Em termos de relação intersectorial, o turismo destaca-se. Empresas de produção turística como os hotéis, empresas de intermediação como agências turísticas e elementos on line de apoio à divulgação, como Trip Advisor, Guia Michelin, Visit Lisbon ganham relevância crescente na sua relação com as Casas de Fado, criando um sistema fechado propício à transformação do património numa “autenticidade encenada” sob a égide da atividade económica turismo.
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Notas