Debate

DEBATE
O texto As contrarreformas na política de saúde do governo Temer, da professora Maria Inês Bravo junto com a Elaine Pelaez e Wladimir Pinheiro (2018), elenca aspectos e informações importantes para a análise do papel do Estado na dinâmica atual do Capitalismo. Em especial, ao seu desenvolvimento histórico-concreto ao apontar as disputas entre os projetos antagônicos de saúde, os grupos de interesses e as possíveis estratégias de mobilização e de resistências à essas contrarreformas.
O artigo apresenta historicamente a origem e a natureza dos projetos distintos e contraditórios na sociedade brasileira desde antes da Constituição Brasileira de 1988 (BRASIL, 1988), e como as correlações de forças entre esses grupos se acirraram a partir da década de 1990, com a implementação do projeto neoliberal no Brasil, e com a cultura da política da crise. Neste sentido, os autores nos levam a refletir sobre a verdadeira natureza do Estado capitalista na contemporaneidade e suas implicações às ações no campo da saúde.
Em nível de abstração, acreditamos que a natureza do Estado[1] capitalista no exercício do seu poder de controlar, gerir, dirigir e comandar em suas diversas dimensões (econômica, política, jurídica, ideológica e policial/militar) “[...] busca incessante pela produção e pela apropriação diferenciada da riqueza real excedente” (NAKATANI; GOMES, 2014, p. 72). Ou seja, a sua ação concreta está voltada para solucionar as crises inerentes ao capital, criando novas estratégias e fontes para a sua acumulação. Para alcançar tal intento, a ação estatal interferirá no conjunto da sociedade, para reorganizar tanto as condições necessárias à produção e relações de exploração quanto para a própria reprodução da força de trabalho. Logo, a mesma ação do Estado pode apresentar duas funções: o da acumulação e da legitimação. A “[...] função/acumulação é determinada fundamentalmente pelas restrições à acumulação, enquanto a função/legitimação o é pela reprodução social” (NAKATANI, 1987, p. 56).
No âmbito do desenvolvimento histórico da ação estatal ou da interferência governamental na área da saúde, percebe-se duas tendências: uma sob perspectiva da seguridade social e a outra visando a racionalização dos serviços com o objetivo de elevar a sua produtividade. A primeira é compreendida a partir do princípio da universalidade, da participação estatal na organização e provisão dos serviços de saúde. Ou seja, do significado de direito à saúde a ser incorporado pelo Estado como sua responsabilidade social, como expressão dos interesses coletivos na concepção de bem-estar social. Essa abordagem apresenta sua base explicativa e histórica no desenvolvimento do conceito de cidadania, de direitos sociais concebidos numa perspectiva histórica de igualdade social, pautada no “[...] equilíbrio entre justiça social e a liberdade de mercado no sistema capitalista” (DONNANGELO, 1973, p. 4). Já a racionalização é entendida como tarefas técnicas de planejamento e de coordenação dos serviços de saúde, apresentando “[...] a necessidade de uma ação centralizada que corrija as distorções no setor, principalmente as que resultam da multiplicidade e sobreposição de recursos” (DONNANGELO, 1973, p. 2). Cabe ressaltar que essas tendências apresentam características particulares e internas a cada país, ou melhor, a cada Estado Nacional.
No Brasil, ao analisar essas particularidades e as funções de acumulação e de legitimação intrínsecos ao papel do Estado, observou-se que a complexidade frente às resoluções das crises do capital aumenta tanto a contradição entre a função acumulação e de legitimação, quanto a intervenção estatal à reprodução da força de trabalho, de maneira a limitá-la cada vez mais. Isto é resultante das novas estratégias de expansão do capital fictício, e, que no campo da assistência à saúde, expande suas ações de maneira a privilegiar o setor privado e filantrópico (SODRÉ; BAHIA; BUSSINGER, 2018).
Mesmo com a aprovação da nova Constituição do Brasil em outubro de 1988 – estabelecendo a saúde como parte da seguridade social (art.194), direito de todos e dever do Estado (art. 196) – não foi suficiente para diminuir a contradição entre a função de acumulação e legitimação do Estado, uma vez que as ações governamentais continuaram a limitar cada vez mais os direitos à reprodução social da força do trabalho, como nesse caso específico à saúde. A própria análise do processo constituinte apresenta os distintos projetos em disputa e antagônicos: os defensores da estatização dos serviços de saúde e os patronos da iniciativa privada. Nessa disputa, foram os partidos que se opuseram à Reforma Sanitária, que “[...] por ironia da história, passaram a ser responsáveis pela implantação do SUS [...]” (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012.), no governo Collor (1990-1992).
O Brasil ao privilegiar o desenvolvimento do projeto neoliberal desde a década de 1990, tem a sua radicalidade no mandato de Michel Temer. A intervenção estatal direciona-se para a maior liberdade ao movimento de capitais, inserindo o país na lógica da financeirização. Ou seja, no desenvolvimento exacerbado das formas do capital fictício, especulação nas bolsas de valores e nos mercados de títulos público (CARCANHOLO; NAKATANI, 1999). A consequência disso é o crescimento e a concentração da riqueza de um lado, enquanto do outro há o aumento da miséria, do desemprego, dos ajustes fiscais, e a diminuição com os gastos sociais - o que acentua as contradições entre a função de acumulação e legitimação do Estado. Assim, cada vez mais é necessário limitar a interferência estatal na reprodução social da força de trabalho para solucionar as crises de acumulação do capital.
E, nessa conjuntura, a implementação e a efetivação do Sistema Único de Saúde contraria a lógica da acumulação financeira, assim como outras políticas voltadas aos trabalhadores. Sob a orientação do Banco Mundial (BM), os governos capitalistas devem orientar a política de saúde à perspectiva de sua racionalização. Ou seja, implementação de medidas contencionistas por meio de ajustes econômicos e estruturais, privilegiando o setor privado e filantrópico. Mesmo que isso contraponha a sua Constituição Máxima, que no caso brasileiro institui a garantia da universalidade ao acesso à saúde e da responsabilização do Estado, tanto em sua organização e execução, por meio de administração direta (VIANA; MACHADO, 2008).
As ações do governo Temer direcionam-se no sentido de obedecer às orientações do Banco Mundial, ou seja, para a racionalização dos serviços de saúde. Em vista disso, introduz cada vez mais mecanismos de reordenamento institucional, como por exemplo a Emenda Constitucional 95/2016 (BRASIL, 2016a), que congela os gastos com a saúde, acarretando a redução do quadro de pessoal, de equipamentos e criando novos empecilhos para o financiamento do SUS durante 20 anos. Isso porque, a “[...] crise de financiamento, a partir desse ambiente de dominância financeira, foi explicitada pela adoção de uma política macroeconômica restritiva, resultando em tentativas de diminuição dos gastos na saúde” (MENDES; MARQUES, 2009, p. 844). Outro exemplo, e a Portaria nº 1.482, de 04 de agosto de 2016 (BRASIL, 2016b), a qual institui um grupo de trabalho composto essencialmente por representantes do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSEG), com o objetivo se construir uma nova modalidade de plano de saúde, denominada como acessível ou popular. Não há no Grupo de Trabalho prevista a participação de usuários, dentre outros atores.
O governo se apoia na cultura da política de crise para justificar suas ações de saúde suplementar, ou seja, a contratação do setor privado: medicina de grupo, cooperativa médica, autogestão, seguradora, hospitais filantrópicos e outras. Parte das empresas privadas de saúde (planos e seguros) expandiram e diversificaram suas atividades, vinculando-se a grandes instituições bancárias, outras abriram suas ações nas bolsas de valores, inserindo-se à lógica da acumulação financeira. Como exemplo, pode-se citar a Qualicorp, empresa de planos de saúde, cujo lucro líquido no quarto trimestre de 2017 foi de R$ 90,4 milhões, representando um aumento de 15,3% em seus rendimentos quando comparado ao mesmo período do ano de 2016 (SELMI, 2018). Outro exemplo é do maior acionista da Rede de Hospitais D’OR, que segundo a lista da Revista Forbes (2018), acumulou até o dia 8 de abril de 2018, uma fortuna de US$ 2,5 bilhões de dólares, cuja fonte dessa riqueza restringe-se a sua rede de hospitais (FORBES, 2018). Assim, a lógica de acumulação financeira criou a tendência à concentração no setor de saúde e mudanças na configuração do mercado de planos e seguros.
A necessidade de maior expansão do setor privado de saúde e a sua preservação caracteriza-se também pela disputa dos recursos do SUS por meio do regime de complementaridade, através das Organizações Sociais de Saúde. Atualmente, há 51 Organizações Sociais de Saúde no Brasil, as 10 maiores situam-se nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, totalizando desde 1998, cerca de 226 contratos de gestão e 978 contratos aditivos (BAHIA et al., 2017).
Assim, tanto as empresas privadas quanto as filantrópicas criam as suas próprias estratégias para sua concorrência no setor da saúde. Trata-se do processo de terceirização e de privatização, os quais permitem a transferência de valor, para o setor privado (TRISTÃO, 2017).
Conclui-se que o governo de Temer não demonstra disposição em aumentar sua participação no gasto com a rede própria de saúde, “[...] nem em definir fontes exclusivas para seus custeios e tampouco em firmar o compromisso com o as políticas sociais universais, investindo em saúde” (MENDES; MARQUES, 2009, p. 849). Como também não pretende que as condições necessárias à acumulação financeira no Brasil preservem uma política econômica que subordine a saúde no país. “A adoção de políticas macroeconômicas restritivas, isto é, de cumprimento às metas de inflação e de ajuste das contas externas, exige sempre superávits primários fiscais altos e tentativas de redução dos gastos públicos sociais” (MENDES; MARQUES, 2009, p. 842).
Assim, na defesa da racionalização dos serviços, com vistas a elevação da sua produtividade, o atual governo, por meio do seu Ministro da Saúde, utiliza como estratégia estatal a transferência de valor ao setor privado e filantrópico e não a garantia da implementação do SUS. Por mais que nossa mobilização, resistência e luta seja na direção da defesa e da ampliação do direito à saúde, necessita-se ter em mente que essa luta terá que ser, principalmente, contra as políticas macroeconômicas, que operacionalizam a política monetária e a política trabalhista, com o objetivo de garantir às leis gerais da acumulação do capital.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal, 1988.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.482, de 4 de agosto de 2016. Institui Grupo de Trabalho para discutir projeto de Plano de Saúde Acessível. Brasília (DF), 2016. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt1482_04_08_2016.html>. Acesso em: 9 abr. 2018.
BRASIL. Presidência da República. Emenda Constitucional 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília (DF), 2016a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm>. Acesso em: 9 abr. 2018.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.482, de 4 de agosto de 2016. Institui Grupo de Trabalho para discutir projeto de Plano de Saúde Acessível. Brasília (DF), 2016b. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt1482_04_08_2016.html>. Acesso em: 9 abr. 2018.
BAHIA, L. et al. Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), inovação e dinâmica capitalista: desafios estruturais para a construção do sistema universal no Brasil. Projeto CNPq. Rio de Janeiro: IESC; UFRJ, 2017.
CARCANHOLO, R. A.; NAKATANI, P. O capital especulativo parasitário: uma precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 264-304, jun. 1999.
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ESCOREL, S.; TEIXEIRA, L. A. História das Políticas de Saúde no Brasil de 1822 a 1963: Do império ao desenvolvimentismo populista. In: GIOVANELLA, L. et al. (Orgs.). Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2012, pp. 279-321.
FORBES. Lista de Bilionários do mundo. Ranking 2018. [S. l.], 2018. Disponível em: <https://www.forbes.com/billionaires/list/#version:realtime_search:Jorge%20Mol>. Acesso em: 9 abr. 2018.
MENDES, A.; MARQUES, R. O financiamento do SUS sob os “ventos” da financeirização. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 841-850, jun. 2009.
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VIANA, A. L. d’A; MACHADO, C. V. Proteção social em saúde: um balanço dos 20 anos do SUS. Physis, Rio de Janeiro, n. 18, p. 645-684, 2008.
Adriana Ilha da SILVA
Assistente Social. Doutora em Pol ítica Social (UFES). Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social, Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Coordenadora do Labic, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Integrante do grupo de Estudos do Desenvolvimento sob a linha de pesquisa O Estado na dinâmica atual do Capitalismo e do grupo de Estudos em Trabalho e Saúde (GEMTES/PPGSC).
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