Artigos Temáticos

Recepción: 30 Diciembre 2017
Aprobación: 13 Febrero 2018
DOI: https://doi.org/:argumentum.v10i1.18660
Resumo: O artigo analisa o acesso à saúde de vítimas e testemunhas de crimes e apresenta os cortes orçamentários no programa de proteção na atual crise. As fontes dos dados foram relatórios técnicos, atas de reuniões e outros documentos do arquivo confidencial do Programa, acessado mediante autorização da sua coordenação executiva e após submissão do projeto a um Comitê de Ética em Pesquisa, que o aprovou. Também foi feita consulta ao órgão responsável, com base na Lei de Acesso à Informação. A saúde é abordada a partir do conceito de necessidades humanas, cujo não atendimento pode levar os indivíduos a uma condição sub-humana de vida. Identificamos que os protegidos sofrem com a dificuldade no acesso à saúde pública, o que é agravado pelas contrarreformas em curso, com redução de recursos do Programa e desresponsabilização do Estado na condução da política de proteção.
Palavras-chave: Proteção a vítimas e testemunhas, Saúde, Necessidades humanas, Crise política.
Abstract: The article analyses the access to health for victims and witnesses of crimes and sets out the budgetary cuts on the protection programme during the current crisis. Data was collected from technical reports, minutes of meetings and other documents of the Programme’s confidential archives, to which, after the research proposal was submitted and approved by the Research Ethics Committee, we have been granted access by its executive coordinators. The accountable body has also been consulted under the Access to Information Act. We approach health from the concept of human needs, the negligence of which can lead to individuals having to live in sub-human conditions. We have identified that access to public health for the protected individuals is difficult, further aggravated by the ongoing counter-reforms, with a consequent reduction in the Programme’s funds and the erosion of the State’s resopnsibility in the carrying out of protection policies.
Keywords: Protection to victims and witnesses, Health, Human needs, Political crisis.
INTRODUÇÃO
A crise política e econômica contemporânea, aprofundada no Brasil após o processo de impeachment presidencial em 2016, tem provocado a comunidade acadêmica de pesquisadores em Serviço Social a realizar importantes análises críticas em eventos e periódicos científicos. As discussões teóricas com base em evidências de pesquisa revelam como as políticas da seguridade social estão sob ameaça em razão dos cortes orçamentários, de contrarreformas destinadas à extinção de direitos sociais constitucionais e do socorro ao sistema capitalista financeiro no enfrentamento de suas crises crônicas (FONTES, 2017; PRATES, 2016; RAICHELIS; SANT’ANA, 2017; SALVADOR, 2017). Nesse cenário, os processos de trabalho de assistentes sociais estão duplamente prejudicados, tanto pelas condições do emprego com direitos trabalhistas reduzidos quanto por recursos insuficientes para o atendimento das classes subalternas
O direito à saúde por meio de um sistema universal pode deixar de existir caso as contrarreformas propostas pelo Executivo federal sejam bem-sucedidas. Entre os principais fatores que podem ser apontados como evidências de ameaça ao sistema de saúde universal brasileiro estão a redução do financiamento da saúde, sugerida em Proposta de Emenda à Constituição aprovada pelo Congresso que limita os gastos da seguridade social nas próximas duas décadas; a renúncia fiscal adotada pelo governo federal, mesmo antes do processo de impeachment, que incentiva os ricos e a classe média a buscar redes privadas de saúde e planos de saúde cujos gastos são descontados do imposto de renda anualmente; e a mercantilização promovida pelo Ministério da Saúde com o incentivo ao surgimento de planos de saúde privados supostamente acessíveis a parcelas maiores da população, sobretudo os mais pobres, o que retiraria do Estado a responsabilidade pelo atendimento universal em saúde (BAHIA et al., 2016; MENDES; WEILLER, 2015; VIEIRA; BENEVIDES, 2016; SÁ, 2018).
Este artigo analisa o acesso à saúde de vítimas e testemunhas de crimes e apresenta os cortes orçamentários no programa de proteção na atual crise. Trata-se de um tema ainda pouco abordado pela literatura sobre as repercussões da crise política e econômica no campo da saúde. Pesquisas com brasileiros inseridos em programas de proteção a vítimas e testemunhas são raras, devido principalmente à dificuldade de ter acesso aos dados, que são confidenciais.
A pesquisa que subsidiou a redação deste artigo teve como fonte de dados o arquivo confidencial do Programa Federal de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, consultado em 2013 com autorização de sua coordenação executiva. As informações foram extraídas dos relatórios técnicos, das atas de reunião do Conselho Deliberativo do Programa (Condef) e de outros documentos, referentes a 25 casos ou processos, totalizando 124 volumes com uma média de 200 páginas cada. Ao todo, foram pesquisados os dados de 89 pessoas, entre vítimas e testemunhas ameaçadas de morte e seus respectivos familiares, protegidos pelo programa em 2011. O projeto foi submetido e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa e atendeu a todas as exigências da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (GALDINO, 2013).
Outra fonte de dados foi uma consulta à Coordenação-Geral de Proteção a Testemunhas (CGPT), do Ministério dos Direitos Humanos (MDH), em 27 de outubro de 2017, por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão[1], com base na Lei nº 12.527/2011 (BRASIL, 1991), que regula o direito constitucional de acesso às informações públicas. O pedido de informações gerou um processo protocolado sob nº 00083.000349/2017-25. As respostas foram encaminhadas dentro do prazo, por meio do Memorando nº 4/2017/SEI/CGPT/DPDDH/SNC/MDH, de 1º de novembro de 2017 (BRASIL, 2017a), e do Ofício nº 35/2017/SEI/GAB.SNC/MDH, de 1º de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017b).
O presente artigo está dividido em duas seções. Na primeira, é descrito brevemente o surgimento do programa federal de proteção às vítimas e testemunhas, o público-alvo e os principais desafios para assegurar direitos. Na segunda, são abordadas as necessidades humanas no campo da saúde apresentadas por participantes do programa e as dificuldades para assegurar o atendimento, tendo em vista o requisito de preservar a identidade das pessoas e os cortes orçamentários feitos nos últimos anos pelo governo federal.
1 HISTÓRICO DO PROGRAMA DE PROTEÇÃO BRASILEIRO E RETRATO DOS PROTEGIDOS
A discussão sobre proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas de morte é nova no âmbito dos estudos em Política Social. Este tema está inserido numa pauta internacional mais ampla de enfrentamento à violência praticada pelo crime organizado e, inclusive, institucionalizado, quando ocorre a influência de agentes públicos e o uso dos aparelhos do próprio Estado para a prática de delitos. Num contexto de aumento global dos índices de violência e criminalidade, os efeitos deletérios dessa faceta da questão social desafiavam o Estado democrático de direito a priorizar esta pauta na agenda pública. O tema ganhou visibilidade internacional no 8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime, em 1990, e na Conferência das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem, em 1993 (SANTA, 2006; VALADÃO, 2005).
No continente sul-americano, o debate em torno do assunto foi ampliado e problematizado também a partir da década de 1990, no calor do processo de redemocratização em vários países da região, aumentando as pressões internas e externas pelo enfrentamento da violência e pela garantia de proteção às vítimas e testemunhas (ADORNO, 2002; ARAVENA, 2006; SANTA, 2006; VALADÃO, 2005). No Brasil, o Estado foi cobrado a intervir nessa questão especialmente a partir dos crimes coletivos com repercussão internacional ocorridos em 1993: as chacinas da Candelária e da favela do Vigário Geral e o massacre dos índios Yanomami (VALADÃO, 2005). O Mapa da Violência 2012 apresenta dados que revelam a dimensão do cenário de violência crônica, onde, de 1980 a 2010,
[…] o país já ultrapassou a casa de um milhão de vítimas de homicídio. […] Nos 12 maiores conflitos, que representam 81,4% do total de mortes diretas, nos 4 anos [2004 a 2007] foram vitimadas 169.574 pessoas. Nesses mesmos 4 anos, no total dos 62 conflitos, morrem 208.349 pessoas. No Brasil, país sem disputas territoriais, movimentos emancipatórios, guerras civis, enfrentamentos religiosos, raciais ou étnicos, morreram mais pessoas (192.804) vítimas de homicídio, que nos 12 maiores conflitos armados no mundo (WAISELFISZ, 2011, p. 19-20).
Em resposta às pressões da sociedade organizada e dos organismos internacionais, o governo brasileiro criou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-1), de 1996, já prevendo a criação de programas de proteção nos estados como proposta de enfrentamento à impunidade (BRASIL, 1996; SILVEIRA, 2006). Buscando inspiração para seu modelo de proteção, o governo consultou os programas italiano, norte-americano, canadense e inglês. Contudo, estes se apresentaram muito onerosos e estatizados, indo na contramão da tendência neoliberal que se fortalecia no país de redução das responsabilidades do Estado e dos gastos públicos, sobretudo na execução das políticas de cunho social (MIGUEL; PEQUENO, 2000).
Na mesma ocasião, em 1995, desenvolvia-se em Pernambuco uma experiência pioneira no Brasil de proteção a pessoas ameaçadas, operacionalizada por uma organização não governamental (ONG), o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP). Sua atuação se baseava em esconder e ajudar pessoas que denunciavam “[...] homicídios cometidos (ou tentados) por grupos de extermínio, agentes do crime organizado e de violência policial [...]” (GABINETE DE ASSESSORIA JURÍDICA ÀS ORGANIZAÇÕES POPULARES, 1996, p. 2), por meio de uma rede solidária de proteção. Esse modelo pareceu interessante tanto à sociedade civil militante no tema quanto ao Estado, sob a justificativa de que a burocracia estatal poderia engessar uma política dessa natureza, que demandava ação rápida (GABINETE DE ASSESSORIA JURÍDICA ÀS ORGANIZAÇÕES POPULARES, 1997)[2].
No âmbito do governo federal, a temática de proteção a vítimas e testemunhas foi inserida na estrutura organizacional da pasta política de Direitos Humanos. Compõe, com mais dois Programas de Proteção – para defensores de direitos humanos (PPDDH), instituído pelo Decreto Presidencial nº 6.044/2007, e para crianças e adolescentes ameaçados de morte (PPCAAM), criado pelo Decreto nº 6.231/2007) –, o Sistema Nacional de Proteção a Pessoas Ameaçadas (BRASIL, 2007a, 2007b). Integra, assim, a estrutura do atual Ministério de Direitos Humanos, que passou por sucessivas mudanças desde sua criação: de secretaria do Ministério da Justiça, em 1997, ao status ministerial, como Secretaria Especial da Presidência da República, em 2003 (GALDINO, 2013).
Mais recentemente, em 2015, a Secretaria de Direitos Humanos foi dissolvida para formar um só ministério com as Secretarias das Mulheres e da Igualdade Racial. Mas foi no cenário pós-impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, que sofreu as mais profundas transformações, retornando à estrutura do Ministério da Justiça. E assim, como analisam Garcia e Calderaro (2017), as “[...] estruturas, programas e ações de Direitos Humanos foram considerados ‘menores’” (GARCIA; CALDERARO, 2017, p. 216). Ainda em 2016, ocorreu outra mudança, tornando-se a grande pasta do Ministério dos Direitos Humanos, “[...] com a extinção de unidades temáticas, retirada de temas de atuação, enxugamento do quadro de recursos humanos e criação de novas áreas sem indicação de orçamento para execução das ações e programas” (GARCIA; CALDERARO, 2017, p. 211).
Foi nesse grande guarda-chuva dos direitos humanos, alvo de avanços, instabilidades e muitos retrocessos, que os governos federal e estaduais estabeleceram parcerias público-privadas com entidades não governamentais militantes no campo dos direitos humanos, repassando recursos públicos para a execução de programas de proteção, cujo modelo expandiu-se no país. Dados recentes do governo federal obtidos com respaldo na Lei de Acesso à Informação indicam o funcionamento de 14 programas estaduais (AC, AM, BA, CE, ES, MA, MG, PA, PE, PR, RJ, RS, SC e SP), conhecidos como Provita. O Rio Grande do Sul possui um modelo estatal, denominado Protege. As unidades federativas que não têm programa são atendidas pela União, por meio do Programa Federal de Proteção (AL, AP, DF, GO, MS, MT, PB, PI, RR, RN, RO, SE e TO). De acordo com a coordenação executiva federal dos programas de proteção, atualmente há 140 pessoas protegidas no Programa Federal e, em 2016, havia 458 pessoas sob proteção no país.
Em 1999, surgiu a primeira legislação nacional sobre o tema, a Lei nº 9.807 (BRASIL, 1999), que criou o Programa Federal de Proteção, com a missão de proteger vítimas e testemunhas que ingressam sozinhas ou acompanhadas por seus familiares, que estejam sob coação e/ou grave ameaça em razão de prestarem testemunho em inquérito ou processo criminal, e cuja procedência seja de estados onde não exista o programa. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.518/2000 (BRASIL, 2000), constituindo as principais bases legais para a proteção a vítimas e testemunhas no país, por estabelecerem as regras de acesso, permanência e desligamento do programa, bem como os deveres e direitos dos protegidos. Há ainda normas complementares estabelecidas pelas instâncias colegiadas de gestão dos programas de proteção (Conselhos Deliberativos, Colégio Nacional de Presidentes de Conselhos Deliberativos dos Programas de Proteção a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, Câmara Técnica do Monitoramento e Fórum Permanente do Sistema de Proteção a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas).
De acordo com Galdino (2013), todas as vítimas e testemunhas em proteção em 2011 eram brasileiras; a maioria procedia de Mato Grosso (31%), Rondônia e Paraíba (17% cada), Goiás e Amapá (10% cada). Das vítimas e testemunhas ameaçadas, 72% ingressaram com seus familiares, totalizando 89 pessoas; 50,6% eram do sexo masculino, e 49,4%, do sexo feminino; a maioria era solteira, mas 28% viviam em união estável; 86% eram negros (pardos e pretos); a maior parte (36%) tinha apenas o ensino fundamental incompleto e 62% permaneciam no mesmo nível escolar de quando ingressaram no programa; a maioria (55,1%) estava inserida no mercado de trabalho informal, 17,2% possuíam emprego (em regime celetista ou no serviço público) e 17,1% estavam sem trabalho.
Quanto à idade, de um modo geral, os protegidos podem ser classificados em dois grupos: um grupo prevalente de jovens e adultos (61%) e outro de crianças e adolescentes (38%). Não havia idosos a partir de 60 anos no período. Entre as vítimas e testemunhas, 79% tinham entre 18 e 39 anos (GALDINO, 2013). Os crimes atualmente mais denunciados por esses sobreviventes da violência são homicídio (qualificado e simples), tráfico de drogas e formação de quadrilha, conforme dados fornecidos pelo MDH em novembro de 2017. Ainda de acordo com Galdino (2013), havia uma grande incidência da atuação de agentes públicos em 76% dos processos investigados, relacionados aos indivíduos amparados pelo Programa Federal de Proteção em 2011. Entre esses agentes, figuravam principalmente policiais militares e civis, políticos e juízes, conforme dados da CGPT (BRASIL, 2013).
A proteção oferecida pelo Estado para essas pessoas compreende um conjunto de medidas que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, conforme o Decreto nº 3.518/2000 (artigo 1º, Parágrafo Único): assistência financeira para manutenção da família no novo local, no que tange às suas necessidades humanas; apoio e assistência social, médica e psicológica; acompanhamento e orientações jurídicas; formação de uma rede solidária de apoio às famílias protegidas; e prioridade no andamento dos inquéritos ou processos criminais em que o usuário do programa figure como testemunha (BRASIL, 2000). Também se assegura a manutenção dos vencimentos e das vantagens para os servidores públicos e militares, que ficam afastados de suas funções durante sua permanência no Programa. Há ainda a previsão legal para mudança de nome, em casos excepcionais, a depender das características e da gravidade da coação ou ameaça – o que na prática, segundo Silveira (2006), não é uma medida efetiva.
Essas pessoas ficam protegidas 1.347 dias, em média, o que pode ser considerado um significativo tempo de permanência no Programa. Nesse período, o Estado tem sob sua tutela a vida de pessoas cujas carências extrapolam a demanda por proteção física e assistência jurídica. De acordo com os relatórios técnicos de acompanhamento dos protegidos, suas necessidades socioeconômicas estão vinculadas aos campos de habitação, educação, segurança socioeconômica e convívio socioafetivo. Especialmente, há necessidades relacionadas ao trabalho e à profissionalização (46%), seguidas de saúde e assistência social, com 18% cada (GALDINO, 2013).
Esses dados revelam que as necessidades dos protegidos não diferem, na essência, das necessidades de qualquer ser humano, dentro ou fora de um programa de proteção, confirmando a teoria de Doyal e Gough (1991). Elas são objetivas e universais, e sua negligência pode trazer sérios prejuízos à saúde e à autonomia dessas pessoas, impondo-lhes uma condição sub-humana de vida. Não desconsideramos, contudo, que algumas de suas necessidades são maximizadas pela condição de vítima ou testemunha da violência, o que demanda formas de atendimento diferenciadas.
É nesse sentido que a próxima seção analisa necessidades de saúde das vítimas e testemunhas ameaçadas de morte, participantes do programa em um contexto de crise política e econômica no Brasil. Além disso, aponta os desafios para o seu atendimento num cenário peculiar de grande restrição da mobilidade, da liberdade e da autonomia, de exposição de dados pessoais e de baixo investimento público em recursos que garantam o sigilo das informações e o acesso seguro dessas pessoas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Tal análise é feita com foco no atual quadro de crise e contrarreformas regressivas no campo das políticas sociais, que afetam substancialmente a proteção de pessoas ameaçadas de morte no país, tendo em vista, principalmente, a diminuição do financiamento público em razão da agenda de ajustes fiscais vigente no Brasil.
2 A SAÚDE DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS PROTEGIDAS E AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE ATUAL
A assistência aos protegidos foi indexada na legislação do Programa como um direito de todas as pessoas que cumpram os requisitos legais de ingresso e não possuam renda suficiente para a própria manutenção. Portanto, compete ao Estado não apenas assegurar medidas de segurança contra a ameaça física aos protegidos, mas também garantir um conjunto de direitos que viabilizem a segurança social dessas pessoas – e aqui entram as medidas de assistência social, médica e psicológica.
Para além da noção de persecução penal, combate à impunidade e segurança pública, o Estado reconhecia (em resposta à pressão da sociedade civil) não ser possível proteger pessoas sem garantir também a proteção social, com recursos orçamentários originários do fundo público e com acesso não contributivo – sobretudo em decorrência da situação de contingência e excepcionalidade a que essas pessoas ficam submetidas, ao se verem obrigadas a deixar para trás a vida que construíram e criar novos vínculos sociais em lugares distantes do contexto físico e social que lhes era familiar. Um dos grandes desafios nesse cenário de mudanças é a restrição ou mesmo impossibilidade de acessar serviços básicos utilizando uma nova identidade determinada pelo ingresso no programa.
Entre as principais necessidades das pessoas protegidas, é possível destacar os desafios para assegurar o acesso à saúde e o modo como o Estado tem buscado garantir esse direito constitucional em um cenário extraordinário de privação de plena liberdade. Adotamos a teoria das necessidades humanas, de Doyal e Gough (1991). Segundo eles, essas necessidades precisam de precondições para conduzir o ser humano à máxima participação nas formas de vida e cultura a que pertencem – o que os autores chamam de satisfiers, isto é, “satisfadores” universais ou necessidades intermediárias. Eles listam onze necessidades intermediárias, entre elas a de cuidados de saúde apropriados – o que, nos termos dessa teoria, não se limita à atenção primária ou preventiva.
A medicina curativa e todos os seus recursos e tecnologias avançadas devem estar à disposição de toda a população, principalmente dos pobres (PEREIRA, 2008). Mas, quando se trata de vítimas e testemunhas protegidas, o atendimento dessa necessidade é uma via-crúcis. Isso se torna dramático num contexto duplamente adoecedor: não raro, essas pessoas já ingressam no Programa com a saúde física e psicológica comprometida, em decorrência das ameaças ou mesmo torturas sofridas; mas também adoecem no próprio processo da proteção, quando são obrigadas a conviver com regras altamente limitadoras. Como destaca uma das profissionais do Programa,
[...] coloca-se como ponto central para a Psicologia […] pensar na saúde mental no contexto possível do PROVITA, colaborando para que o sujeito consiga enfrentar a nova realidade de vida no Programa de acordo com os limites e restrições que estão postos. Significa afirmar que, necessariamente, os usuários, quando ingressam na proteção, passam por alguma crise […] (ROSATO, 2005, p. 647).
A pesquisa nos possibilitou acesso a relatos de participantes do programa que reivindicavam atendimento em saúde, o que permitiu conhecer algumas das dificuldades cotidianas enfrentadas por pessoas com necessidade de assistência. Em um caso encontrado nos registros do Programa Federal de Proteção, a genitora de uma família monoparental demandava cuidados de saúde desde sua avaliação de ingresso, o que levou o Conselho Deliberativo a decidir “[...] que seja garantido ao núcleo familiar ao ingressar no Programa de Proteção a assistência na área de saúde integral (psicológico, odontológico, clínico, e outros) […]” (Caso 6, ata do Condef nº 74/2010). Essa situação se agravou no contexto da proteção. Após dois anos no Programa, os registros apontavam uma piora no quadro da genitora: “[...] considerando a situação psicológica da Sra. X […] Delibera-se: […] Consultar o promotor de justiça […] para avaliação da validade do testemunho da Sra. X, tendo em vista o quadro psiquiátrico em que ela se encontra” (Caso 6, ata do Condef nº 88/2012).
No mês seguinte, o caso voltou à pauta da reunião do Conselho, que, considerando “[...] o atual estado de sofrimento mental da Sra. X; a situação de risco da família, em decorrência da exposição do núcleo; a total dependência socioeconômica da usuária à Política de Proteção” (Caso 6, ata do Condef nº 89/2012), decidiu pela “[...] manutenção do núcleo familiar no Programa de Proteção, mediante transferência (de localidade)” (Caso 6, ata do Condef nº 89/2012). O sofrimento mental desta senhora a impedia de cuidar de seus filhos, cumprir as regras do Programa ou desenvolver qualquer autonomia econômica.
Como desfecho, o caso chegou a um nível de complexidade que revela os próprios limites do Programa em garantir a proteção de pessoas nessa condição de saúde, como podemos verificar no relato subsequente, em que se constatou “[…] agravamento do estado de saúde da usuária, devido a recente tentativa de suicídio” (Caso 6, ata do Condef nº 90/2012). Essa condição de saúde levou a usuária a quebrar uma série de regras de segurança; colocar sua vida, a dos filhos e a dos técnicos do Programa em risco; e culminou na tentativa de tirar a própria vida. Tal situação inviabilizou a sua proteção dentro dos moldes do Programa, resultando no esgotamento das possibilidades do Estado de lhe proteger e levando o Conselho a deliberar, unanimemente, “[...] iniciar o processo de desligamento da usuária, condicionado à inclusão da mesma em programas sociais que atendam suas necessidades atuais e manter o acompanhamento da situação das crianças até o desligamento definitivo do núcleo” (Caso 6, ata do Condef nº 90/2012).
O Programa viu como única alternativa transferir a responsabilidade pela proteção dessa família para outras políticas públicas, apesar de estas não terem sido desenhadas para cuidar de casos envolvendo vítimas e testemunhas ameaçadas de morte. Assim, essa família permaneceu ainda mais vulnerabilizada – agora em risco não apenas pelo adoecimento mental e suas consequências, mas também pelas ameaças por parte dos algozes. Percebe-se uma dupla violência, visto que o Estado culpabiliza as famílias pela ausência de assistência em saúde que deveria ser fornecida por uma estrutura pública suficiente, o que reforça a ideia de uma “[...] abordagem familiar e comunitária [e que o governo federal e suas instituições] tem assumido diante das contradições da contrarreforma e da disputa hegemônica na política de saúde” (RAICHELIS; SANT’ANA, 2017, p. 406).
Esta é apenas uma das facetas da necessidade de saúde envolvendo esse público. De acordo com Galdino (2013), as necessidades dos protegidos nessa área, no período de 2011 a 2012, foram: cirurgia (29%), odontologia e acesso ao SUS (ambos com 24%), oftalmologia e saúde mental (ambos com 10%) e insumos para a saúde (5%). Nos registros do Programa, foram encontradas diversas descrições sobre dificuldades no atendimento dessa necessidade em decorrência da morosidade do SUS e da questão da segurança das informações nos bancos de dados públicos:
A equipe acolhedora acionou o PRO-SUS (Promotoria de Justiça que trata de encaminhamentos ao SUS) para agilizar a cirurgia de catarata da Sra. X. A Promotoria informou que a Secretaria de Saúde será acionada para disponibilizar uma rede hospitalar particular para realização da cirurgia. Ainda não há data prevista (Caso 19, Relatório 82).
Considerando: […] b) as demandas de saúde dos usuários e a necessidade de acesso às políticas públicas de saúde; […] Delibera-se por unanimidade: b) pela não utilização do SUS até apreciação da questão pelo CONDEF […]. Considerando: a) Demandas de saúde dos usuários e necessidade de acesso às políticas públicas de saúde; […] Delibera-se: por unanimidade: a) que a Autoridade demandante (da proteção dessa família) faça a avaliação de risco para a utilização ou não da rede pública de saúde; […] (Caso 21, Atas do Condef nº 85/2011 e 86/2012, grifos no original).
De acordo com Sá (2018), são recorrentes as dificuldades de acesso à saúde pública no país. Não obstante ser o SUS recorrido por mais de 70% da população, apenas uma pequena parcela dos serviços e equipamentos mais complexos estão disponíveis na rede pública, como apoio diagnóstico e terapêutico, assistência hospitalar e assistência especializada, o que é agravado pela falta de leitos, insuficiência e má distribuição territorial dos médicos. E, apesar de estarem sob a tutela total do Estado, o que em tese agilizaria o acesso ao atendimento de suas necessidades, as vítimas e testemunhas protegidas enfrentam as mesmas e até maiores dificuldades no acesso, neste caso, à assistência de saúde pública, como podemos perceber pelos relatos dos arquivos do programa de proteção.
Ainda conforme Sá (2018), em nota técnica feita para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a assistência à saúde no Brasil é financiada pelas três esferas de governo com tributos diretos e indiretos, sendo estes mais expressivos, o que lhe atribui um caráter bastante regressivo. O especialista adverte que, sem a manutenção do orçamento da saúde, não há como prover assistência de qualidade, sobretudo com a Emenda Constitucional nº 95/2016 (EC nº 95) (BRASIL, 2016). Esta, ao propor congelar o orçamento por 20 anos, desconsidera fatores como o crescimento e envelhecimento populacional, a inflação setorial, a judicialização da saúde e a pressão pela incorporação de novas tecnologias (SÁ, 2018).
Para pôr a proteção em prática, incluindo a satisfação das necessidades humanas dos protegidos, a União repassa recursos para o Programa Federal, e este, para a ONG executora. O recurso destina-se à operacionalização da proteção, de forma genérica, bem como às atividades de permuta de usuários entre os estados e ao monitoramento e fortalecimento das instâncias da Rede Nacional de Proteção. De acordo com o Plano de Trabalho da ONG Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), referente ao Convênio nº 19/2011 (BRASIL, 2011a), com período de vigência entre 31 de outubro de 2011 e 30 de setembro de 2012, do montante de R$ 2.445.102,31, as despesas com o atendimento das necessidades humanas básicas dos protegidos federais (em local provisório ou definitivo) foram de R$ 438.869,96. Ou seja, 17,94% do total de recursos do Programa Federal.
O orçamento diz muito sobre a prioridade e importância de uma política ou um programa para o Estado. O orçamento público se constitui numa verdadeira arena de disputa de setores da sociedade que buscam inserir seus interesses no sistema político (SALVADOR, 2010, 2017). Oliveira (2009) alerta que o orçamento público é o espaço onde são tomadas importantes decisões que afetarão, para melhor ou pior, a vida dos cidadãos. Podemos visualizar na tabela a seguir os recursos públicos dos últimos seis anos destinados à proteção das vítimas e testemunhas ameaçadas de morte no país:

A Tabela 1 deixa evidente que, de 2012 a 2016, os recursos para os Programas de Proteção praticamente não sofreram cortes, oscilando na casa dos R$ 14 milhões, com exceção de 2015, quando sofreu uma pequena redução. Até então, o orçamento público para este fim era mantido fora das suspensões e contingenciamentos para o superávit primário. Em um decreto presidencial (nº 7.592, de 28 de outubro de 2011) emitido por Dilma Rousseff, que determinava a suspensão de transferências de recursos a entidades privadas sem fins lucrativos pelo prazo de 30 dias, para avaliar a regularidade da execução de convênios, os Programas de Proteção entraram no grupo de exceção devido à prioridade no atendimento, onde também se encontrava a política de saúde. Vejamos:
[…] § 2º A suspensão prevista no § 1º não se aplica às seguintes situações:
I – para a realização de programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer sua segurança; […]
III – às transferências do Ministério da Saúde destinadas a serviços de saúde integrantes do Sistema Único de Saúde – SUS. (artigo 1º do Decreto nº 7.592/2011, grifos nossos) (BRASIL, 2011b).
Contudo, o Gráfico 1 deixa evidente o corte orçamentário neste último ano:

Em 2017, ocorreu uma redução de quase 3 milhões de reais no orçamento dos programas em comparação ao ano anterior, revelando que nem mesmo um programa dessa natureza escapou às medidas de contrarreformas regressivas do atual cenário político-econômico nacional. No caso do Programa Federal, este corte se torna dramático, justamente porque incorporou, em 2016, os estados de Alagoas e Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal, cujos programas de proteção foram fechados. Com isto, não apenas se ampliou o número de pessoas a serem atendidas, mas também se absorveram demandas reprimidas desses programas estaduais falidos e uma gama de necessidades humanas a serem satisfeitas em caráter de urgência, tendo-se ainda que lidar com uma série de desafios no acesso às políticas públicas.
Como base nesses dados orçamentários, percebe-se que os recursos são insuficientes diante da complexidade de proteger vítimas e testemunhas ameaçadas no país. As medidas de proteção são onerosas, haja vista que todos os casos federais são retirados de seu estado e a manutenção de 89% dessas famílias é garantida, em alguma medida, com recursos do Programa, por meio de transferência de renda. Quase a metade dessas famílias (48%) depende exclusivamente desse recurso (GALDINO, 2013).
Muitas das demandas de saúde dos protegidos ficam aguardando autorização para atendimento. De acordo com as deliberações do Condef, em 2011 e 2012, verificou-se que, das demandas de saúde apreciadas nas reuniões, apenas pouco mais da metade (57%) foi autorizada e, dessas, apenas 57% foram atendidas (GALDINO, 2013). Para além de encarar a já conhecida morosidade e precariedade da rede pública de saúde, as pessoas protegidas têm o agravante de não poderem ter seus dados pessoais incluídos nas bases de dados do SUS, o que atualmente é um imperativo para todos os procedimentos nesse sistema. É o que podemos constatar nos registros a seguir:
Considerando: a) a atual situação do braço do Sr. X, com o indicativo de cirurgia; a alerta sobre a indisponibilidade dos insumos cirúrgicos necessários pelo SUS; o custo dos insumos (em torno de R$ 38.000,00); a articulação da equipe acolhedora para viabilizar da melhor forma possível a cirurgia; […] Delibera-se: a) que a equipe acolhedora encaminhe com urgência, para apreciação deste Conselho, informações sobre a articulação com a Secretaria de Saúde e os outros hospitais especializados, com 3 orçamentos do procedimento pela rede privada para análise do Conselho; […] (Caso 11, ata do Condef nº 79/2011, grifos no original).
Considerando: a) a morosidade para a realização da cirurgia de catarata da Sra. X, pelo SUS; e diante das limitações que esta situação tem imposto a ela e a sua família; […] Deliberou-se: por unanimidade, a) pela autorização da realização da cirurgia de catarata da Sra. X pela rede privada, custeada pelo Programa de Proteção, a partir do levantamento de três orçamentos para serem apresentados ao Conselho Deliberativo Federal, salvo se o SUS apresentar pronunciamento positivo para realização da cirurgia até o final de agosto de 2011 (Caso 19, ata do Condef nº 83/2011, grifos no original).
Como podemos perceber nas deliberações do Condef acima citadas, a rede privada de saúde tem sido beneficiada quando o programa de proteção se vê obrigado a pagar pelo serviço, dada a urgência de alguns casos e a falta de uma estratégia de segurança eficaz, somadas à dificuldade de acesso ao SUS já discutida. Essa tendência tem ganhado força na atual conjuntura. Pari passu ao congelamento dos recursos da saúde por duas décadas, o governo segue com sua agenda privatizante, buscando alternativas que ameaçam a universalização e a equidade da assistência pública à saúde no país. É o caso do projeto Plano de Saúde Acessível, que pretende criar “[...] três modalidades de plano de saúde: i) Plano Simplificado; ii) Plano Ambulatorial + hospitalar; e iii) Plano em Regime Misto de Pagamento” (SÁ, 2018, p. 3). A proposta, publicada oficialmente por meio da Portaria no 1.482, de 4 de agosto de 2016, tem a intenção de ampliar o protagonismo do mercado de saúde complementar, o que, em outras palavras, significa atender aos interesses do capital (SÁ, 2018). O especialista conclui que tal proposta, “[...] além de segmentar ainda mais o sistema de saúde e exacerbar os problemas de equidade existentes, tem pouca probabilidade de atingir os objetivos declarados de ajudar a controlar gastos em saúde e melhorar o acesso no SUS [...]” (SÁ, 2018, p. 13).
Em consulta à CGPT, com base na Lei de Acesso à Informação, constatou-se que, no que tange aos gastos do programa de proteção com despesas de saúde, “[...] se trabalha a articulação em rede […], alterando-se uma lógica de se investir os recursos do Programa em demanda que poderia ser absorvida pela rede pública de saúde, tratando-se como regra e não exceção, o atendimento público” (BRASIL, 2017a). Além disso, iniciou-se uma parceria entre o Ministério dos Direitos Humanos e o Ministério da Saúde que resultou, em 2013, na assinatura de um Protocolo de Intenções, visando ao acesso de pessoas protegidas ao SUS por meio de estratégias seguras, utilizando-se o cartão nacional de saúde.
Ainda segundo a CGPT, o Conselho Deliberativo delegou às equipes técnicas (integrantes das ONGs executoras da proteção) a administração das demandas de saúde dos protegidos. Tal encaminhamento, ao mesmo tempo que dá mais autonomia aos técnicos, que em tese não precisarão esperar por uma decisão vinda do alto, nem sempre rápida e condizente com a necessidade, também as sobrecarrega na resolução de problemas que ultrapassam o nível de intermediação local (municipal ou estadual), principalmente no que se refere à segurança das informações e ao atendimento de casos mais complexos de saúde.
Esse repasse das responsabilidades do Estado para a sociedade civil fica mais complexo num contexto de redução do investimento federal na proteção. Comprovando tal desafio enfrentado pelos técnicos e sofrido pelos protegidos, foram encontrados nos arquivos do Programa relatos de problemas envolvendo a estratégia citada pelo órgão gestor, no qual a equipe técnica informa a “[...] devolução dos cartões SUS […] pela impossibilidade dos usuários utilizarem sem exposição da condição de protegidos, tendo que utilizar serviços de saúde com dados verídicos” (Caso 02, ata do Condef nº 94/2012).
Não bastassem esses limites inerentes ao Programa, a unidade temática da proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas de morte está no meio da instabilidade institucional que envolve atualmente a pasta dos Direitos Humanos. Esta, como vimos, é alvo de profundos retrocessos, mudanças estruturais, redução dos recursos humanos e cortes orçamentários e de áreas temáticas (GARCIA; CALDERARO, 2017). Como apontam Garcia e Calderaro,
[...] a desconstituição das estruturas federais de Direitos Humanos, […] a despeito da criação de um ministério com esse nome, tornou-se uma característica marcante da ruptura político-institucional iniciada com o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e que tende a gerar significativa fragilização nas políticas e programas de Direitos Humanos […] (GARCIA; CALDERATO, 2017, p. 228)
O cenário para as políticas sociais é dramático. De acordo com Salvador, a seguridade social encontra-se ameaçada em seu formato constitucional, tornando-se “letra morta”, pois “o atual governo brasileiro volta com carga a ortodoxia neoliberal com brutal corte de direitos sociais, sobretudo do financiamento público” (2017, p. 429-430). Marca disto é o Novo Regime Fiscal (NRF), aprovado pela EC nº 95, que “[...] inviabiliza a vinculação dos recursos para as políticas sociais nos moldes desenhados na CF de 1988” (SALVADOR, 2017, p. 429).
As medidas de ajuste fiscal tomadas há um quarto de século no país, especialmente a partir do ano 2000, com a incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU) nas receitas públicas, com destaque ao Orçamento da Seguridade Social, onde se encontram os recursos da saúde, têm “[...] implicado de forma permanente o (des) financiamento da seguridade social […]” (SALVADOR, 2017, p. 430). O autor conclui que “[...] a seguridade social vivencia um desmonte no seu financiamento [...]” (SALVADOR, 2017, p. 442), com a EC nº 95 “[…] sepultando as vinculações orçamentárias das políticas sociais construídas na CF de 1988” (SALVADOR, 2017, p. 442).
Diante dessa conjuntura, agravada pelo corte no orçamento de 2017 dos programas de proteção, é possível inferir que o Estado tem se desresponsabilizado pela proteção dessas vítimas e testemunhas, entregando-as à própria sorte ou responsabilizando suas famílias, que também se encontram sob proteção e, portanto, em privação de plena liberdade. E suas necessidades humanas, especificamente as de saúde, no atual contexto sócio-político-econômico de contrarreformas regressivas, têm sido atendidas de forma precária, quando atendidas, o que representa um significativo prejuízo na acepção da teoria das necessidades humanas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa discutida neste artigo revela um dos grandes desafios do programa brasileiro de proteção a vítimas e testemunhas: a garantia do acesso de pessoas protegidas às políticas públicas, em especial a de saúde. O direito integral à seguridade social pode ser considerado um dos maiores limites do programa de proteção. A maioria dos participantes fica excluída do sistema de proteção das políticas sociais brasileiras, apesar de serem estes os mais importantes mecanismos de acesso a direitos no Estado capitalista. Consequentemente, aprofundam-se as desigualdades sociais e reiteram-se as violências sofridas por esse público. Contraditoriamente, o Estado tem diminuído recursos destinados ao financiamento do programa de proteção a vítimas e testemunhas nos últimos anos, com ênfase no período pós-impeachment, e adotado políticas de austeridade fiscal, onde se observam os maiores cortes orçamentários.
Além das peculiaridades do Programa, que dificultam a sobrevivência com acesso a direitos dos participantes, o cenário atual de contrarreformas regressivas traz obstáculos como a destruição de garantias constitucionais; o desmantelamento dos sistemas públicos protetivos; a transferência de responsabilidades do Estado para o terceiro setor; a redução drástica do investimento público nas necessidades humanas; e o congelamento dos gastos sociais. Essas medidas aprofundam a alienação social, cultural, política e econômica em que já se encontram essas pessoas, limitando as possibilidades de satisfação das suas necessidades humanas na direção da liberdade e da autonomia. Portanto, é possível afirmar que as vidas de vítimas e testemunhas participantes dos programas de proteção permanecem sob ameaça tão grande quanto a situação de violência vivenciada anteriormente, ou ainda maior.
O programa de proteção a vítimas e testemunhas é um tema ainda pouco discutido, por isso sugerimos novos estudos que poderiam explorar como tem ocorrido o acesso à saúde por meio de entrevistas com esses participantes. Um dos desafios desta pesquisa foi o uso de fonte de dados secundários, sem contato direto com os emissores da informação. Entretanto, consideramos a discussão aqui apresentada uma provocação inicial para um tema ainda invisível na literatura nacional, que poderia ter mais destaque na agenda de pesquisadores de Política Social, tendo em vista o perfil de classe e raça da maior parte das pessoas participantes dos programas de proteção a vítimas e testemunhas no Brasil contemporâneo.
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Cristiano GUEDES. Trabalhou na análise e interpretação dos dados e participou da redação do artigo.
Assistente social. Doutor em Ciências da Saúde. Docente da UnB.
Notas
Notas de autor