Debate
O pós-pandemia no lado de cá
The post-pandemic on our side
O pós-pandemia no lado de cá
Argumentum, vol. 13, núm. 1, pp. 27-39, 2021
Universidade Federal do Espírito Santo

1 Introdução
O artigo de Rosa Maria Marques e Solange Emilene Berwig (2021) se inscreve na difícil tarefa – mas indispensável para aqueles que querem transformar a realidade social – de capturar as determinações da dinâmica do capitalismo contemporâneo e suas tendências para, com base nelas, projetar seu desenvolvimento futuro, isto é, seu vir a ser. A análise tem como premissa tanto as transformações nos processos de trabalho, com a emergência da indústria 4.0, quanto as formas predominantes de apropriação de valor pela classe dominante, centrada na esfera financeira com a expansão das massas de capital fictício. Tais determinações jogam luz sobre a crise econômica no contexto da pandemia, entendida, por sua abrangência e impacto global, como indissociável do desenvolvimento do próprio do processo de acumulação em âmbito mundial. A tese central é a de que a pandemia, fenômeno que tenderia a se repetir, opera como catalisador das tendências já existentes, ressignificando a saúde pública, repondo em pauta o debate em torno da implementação de programas de renda básica, e acelerando a tendência de desaparecimento de políticas sociais embasadas no trabalho assalariado, como o direito à aposentadoria.
Como se vê, no quadro desenhado aparecem teses particulares coerentemente articuladas que conformam o argumento central das autoras a respeito do porvir. Neste ensaio, problematizaremos algumas de suas premissas e teses, no sentido de apontar para outras possibilidades quanto à conclusão geral, não da análise em si, mas do próprio processo histórico. É que, em nossa avaliação, o leque de alternativas concretas pode ser antecipadamente fechado quando se elide as contratendências contidas na tendência geral. No caso em tela, isso diz respeito tanto às formas de resistências e, por que não, contra-ofensivas postas em marcha pelos trabalhadores quanto pelas características próprias do movimento do capital enquanto processo de acumulação.
Considerando o exposto, as teses das autoras serão debatidas, aqui, sob duas perspectivas. Em primeiro lugar, a respeito de sua validade mesma quanto à captação das principais tendências do capitalismo pós-pandemia, de algumas de suas implicações para a classe trabalhadora e, especialmente, das transformações que tendem a ser imprimidas pelos Estados nacionais nas políticas sociais. Em segundo lugar, à luz deste debate, trataremos da relação destas tendências captadas com as possibilidades de ações dos sujeitos históricos que podem revertê-las ou alterá-las. Dito de outra forma, em um primeiro momento será estabelecido um diálogo sobre as considerações e premissas contidas no artigo; em um segundo, este diálogo migrará para temas que não foram desenvolvidos diretamente naquele texto, mas que se apresentam como seu desdobramento.
2 Notas sobre o capitalismo atual
A premissa das autoras, anunciada na introdução, é a caracterização do estágio atual modo de produção capitalista como aquele marcado pela dominância cada vez maior do capital portador de juros, particularmente na sua forma fictícia, que, combinada com sua expressão política e ideológica - o neoliberalismo -, resultaria na permanência de elevado nível de desemprego e pauperização dos trabalhadores. Tal situação seria agravada pela emergência da indústria 4.0 e da pandemia, impactando a forma necessária da política social dos diferentes Estados. Por conta disso, o capitalismo atual seria cada vez mais incapaz de oferecer emprego e renda para os trabalhadores, o que exigiria uma nova formatação das políticas sociais capaz de manter a coesão social.
Creio que estas premissas merecem ser detalhadas e debatidas. Não apenas por residir aí a base da análise sobre as tendências de desenvolvimento histórico futuro, senão também por ser esta uma tese representativa e, diria até, predominante no âmbito das organizações e movimentos da esquerda brasileira. É comum que pessoas que partilham dessa visão entendam que, se imprimida uma outra política econômica que pressionasse a migração do capital portador de juros para a forma de capital funcionante, o desenvolvimento econômico seria impulsionado, diminuindo o nível do desemprego e servindo de meio para frear o crescimento das desigualdades sociais e da pauperização absoluta. Para apresentar uma visão alternativa, parece-me inevitável explicitar sinteticamente meu ponto de vista a respeito da relação entre capital portador de juros, capital funcionante e desemprego.
2.1 Formas Funcionais do Capital e Trabalho Assalariado
Para tratar desse assunto, retomemos, de partida, o processo de reprodução do capital. Conforme representação abaixo, o ciclo do capital tem seu início e fim na esfera da circulação, apresentando três momentos sucessivos que estão em permanente transformação (MARX, 1984b). Os momentos D-M e M' – D' referem-se à circulação de mercadorias e correspondem, respectivamente, às formas funcionais do capital monetário (ou capital dinheiro) e do capital mercadoria. O capital produtivo é o momento da produção, representado por ...P..., quando o valor se reproduzirá a partir da interação entre força de trabalho e meios de produção. Apesar das diferenças de cada fase, o sentido é o mesmo, qual seja, a manutenção do processo de valorização do valor. Daí seu caráter cíclico.

O desenvolvimento da divisão do trabalho conduz à autonomização das diferentes formas funcionais, de modo que cada momento do ciclo passa a ser executado por capitais particulares e diferenciados, mas entrelaçados (SABADINI, 2013). O resultado disso é que o capital monetário assume a forma de capital portador de juros, em que as empresas tomam para si a função de prestamista de dinheiro (valor). O capital produtivo, por sua vez, executa a produção de mercadorias. O capital mercadoria, finalmente, autonomiza-se em duas partes: o capital de comércio de mercadorias e o capital de comércio de dinheiro. Tal divisão e autonomização relativa das funções reduz o tempo de trabalho e de rotação do capital, permitindo o crescimento da mais-valia gerada no sistema.
É a partir dessa autonomização que se desenvolve o capital fictício, apoiado no sistema de crédito e no capital portador de juros, podendo atuar como contratendência à queda da taxa de lucro. Sinteticamente, os capitais fictícios correspondem a representações do valor sem correspondência na produção real, de natureza fundamentalmente especulativa quanto ao próprio processo de valorização do valor. A expansão do capital fictício é um resultado da perspectiva reduzida de remuneração do capital funcionante, decorrente da queda tendencial da taxa de lucros. Este movimento é sancionado pelas políticas neoliberais, as quais expressam seus interesses (CARCANHOLO, 2008). Desse modo, o desenvolvimento do capital fictício, realizado pelos meios mais diversos (como ações, títulos públicos etc.) "[...] dissimula ainda mais as conexões com o processo real de valorização do capital, consolidando a imagem de que ele se valoriza por si mesmo, nas transações de compra e venda especulativas" (SABADINI, 2013, p. 602). Não obstante, serve de punção para os processos de concentração e centralização de capitais.
Dessa maneira, a hipótese de uma tentativa de substituição desta fase em que a especulação ganha absoluta relevância, por uma nova, em que se reconstrua a predominância do capital funcionante, só se tornaria realizável se combinada com níveis ainda maiores de exploração. Por essa razão, não está no horizonte o retorno a um capitalismo menos violento do que aquele que sofremos hoje (CARCANHOLO, 2008).
O processo continuado de concentração e centralização, no entanto, autonomiza a própria forma valor em estado puro como condição para punção capitalista. Dito de outra forma, a marcha do capital em seu processo de autovalorização autonomiza o capital monetário e por meio disso cria diversos mecanismos através dos quais a classe dominante pode se apropriar da mais-valia produzida pelo proletariado. Daí que Fontes (2010) explique a relação capital não apenas pela propriedade privada dos meios de produção – que continua, sem dúvida, desempenhando papel importante –, mas fundamentalmente pela separação e controle, pela classe dominante, dos recursos sociais de produção. "O capital monetário expressa e resulta da expansão do capital industrial ou funcionante e a impulsiona numa escala muito superior" (FONTES, 2010, p. 34). Dessa forma, se o capital monetário pode distanciar-se da propriedade direta dos meios de produção, é precisamente porque concentra e expressa a pura propriedade das condições e recursos sociais de produção.
O desenvolvimento saudável do capital permite que isso possa ser feito através da concentração de uma massa de trabalho morto indistinta sob a forma dinheiro, ou qualquer outra. Esta forma autônoma do capital monetário precisa juntar-se ao capital funcionante - isto é, aquele que controla diretamente os meios de trabalho de produção e a força de trabalho - para que, em momento posterior, possa se apropriar de sua renda na forma de juros ou dividendos. O importante a se destacar é que estas formas de renda do capital são uma parte alíquota da mais-valia produzida pelo trabalho. Portanto, a autonomização do capital monetário e seu aparente processo de valorização em sua forma mais abstrata, dinheiro que gera dinheiro (D – D'), é dependente da exploração do trabalho gerador de mais-valia. A diferença reside em que, agora, em função do crescimento exponencial da acumulação, o processo que autonomiza o capital monetário a partir de diferentes atividades de produção e valorização do capital, permite que este se constitua enquanto condição primeira para a direção e o impulsionamento do conjunto da atividade de extração de mais-valia. Isso pode ocorrer tanto através dos bancos – como espaço em que são reunidas imensas massas de trabalho morto, cujos proprietários não são apenas os banqueiros – ou de outras formas de reunião e controle dessas massas de valor, como a formação de fundos de investimento, sociedades de ações etc. (FONTES, 2010).
Este movimento social converte o capital em uma força anônima, simultaneamente difundida por todo o tecido social e, por outro lado, concentrada. O capital monetário autonomizado impulsiona a produção de mais-valor e por isso precisa expandir as relações sociais de produção capitalistas, assumindo uma configuração diretamente social, e isso por diversas razões. Em primeiro lugar, não se trata mais de um proprietário dos meios de produção controlando a sua produção, mas de um conjunto de proprietários unidos pela propriedade de trabalho morto sob a forma de capital monetário que precisam transformar seu dinheiro em mais dinheiro ou, em outras palavras, o valor em mais-valia. A concentração de valor, que prescinde da concentração espacial de seus proprietários, realiza-se mediada pela atividade de profissionais de intermediação, que manipulam a condensação de recursos sociais com a finalidade única de valorização, injetando massas de trabalho morto às somas de capitais em funcionamento. O capitalista funcionante não precisa nem mesmo ser o proprietário efetivo dos meios de produção. Converte-se, assim, o dinheiro em capital com o objetivo de alcançar elevadas taxas de retorno, sob a forma de juros, dividendos ou qualquer outra. Os empreendimentos capitalistas neste patamar não são mais controlados e supervisionados pelo dono da empresa, uma vez que o montante de seus capitais extrapola a sua própria capacidade de realizar essa atividade. Na verdade, é o capital que controla seus controladores (FONTES, 2010).
A autonomização do capital monetário a nível internacional permite o aprofundamento de sua atuação como agente impulsionador de diversas atividades funcionantes, impondo a extração de mais-valia sob diversificadas formas jurídicas para o assalariamento (FONTES, 2010). Este fenômeno cria as condições para a existência de uma multiplicidade de formas de exploração do trabalho, através de capitais funcionantes de tamanhos variados. O capital monetário (portador de juros e fictício), porque controla o funcionamento e a lógica da economia mundial, pode apropriar-se mediatamente do fruto dessa exploração, por meio de vínculos bem diversificados de financiamentos. Essa extrema diversificação perpassa todo o tecido social, renovando expropriações, impondo novas formas de subordinação do trabalho ao capital (FONTES, 2010; CARCANHOLO, 2008).
O que nos interessa reter aqui é que a expansão da forma financeira e fictícia do capital não ocorre em detrimento das relações de produção especificamente capitalistas, isto é, do capital funcionante, mas como parte do processo geral de centralização e concentração de capitais. A disputa intraburguesa pela parte alíquota de valor a ser apropriada pelos grupos ligados às suas diferentes formas funcionais não elimina o fato de o capital subordinar a si massas cada vez maiores de trabalhadores, precisamente porque a natureza do vínculo contratual com essas massas tornou mais heterogênea, volátil, e não raro servindo de invólucro ideológico para as relações de produção efetivamente postas em prática. Por outro lado, a despeito de tais disputas, há em comum entre elas a necessidade imanente de drenar massas cada vez maiores de valor para o processo de acumulação de capitais, o que implica tanto a precarização das condições de trabalho e de vida quanto das políticas sociais, sem que isso ocasione, necessariamente, um decréscimo estrutural dos níveis de emprego (em sentido amplo, contemplando sua atual heterogeneidade jurídica).
Tudo isso nos leva a crer que a necessidade de reformatação das políticas sociais - incluindo a emergência dos programas de renda básica e a precarização da seguridade social – não é decorrente da diminuição do trabalho assalariado e do aumento do desemprego. Antes, parece-nos que é a diversificação das formas de assalariamento, de um lado, decorrente do espraiamento do capital pelo tecido social de diferentes formas e, de outro, a drenagem de massas de valor outrora destinadas ao financiamento dessas políticas, que estão na base da necessidade dessas transformações. Assim, concordamos com a projeção tendencial identificada pelas autoras, embora com interpretação diferente de sua dinâmica causal. Se tal debate pode não incidir decisivamente o prognóstico a respeito das necessidades da classe dominante, certamente pode influenciar a detecção do leque de alternativas concretas apresentadas a esta massa trabalhadora em termos de projeto social.
2.2 Desemprego, Trabalho Assalariado e Trabalho Informal
Como viemos de comentar, por mais ofensivas aos trabalhadores que sejam, as transformações contemporâneas do capitalismo não se desdobram em uma elevação do patamar de desemprego de modo estrutural. Antes, atuam sobre o processo de pauperização e elevação das taxas de exploração. Vale, aqui, apresentar alguns fundamentos deste ponto de vista sobre a questão, a qual se entrelaça com as possíveis mediações organizativas para as disputas políticas em torno das tendências históricas captadas pelas autoras.
É ampla e corretamente difundida a tese marxiana de que o movimento de concentração e centralização do capital produz inexoravelmente "[...] uma população trabalhadora adicional relativamente supérflua ou subsidiária […]" (MARX, 1984a, p. 199), que se constitui em um exército de população sobrante em relação às necessidades de consumo de força de trabalho por parte do capital . Ao contrário do que se apregoa pelos ideólogos do desenvolvimento, segundo os quais, quanto maior o crescimento econômico, maior a criação de empregos, Marx demonstra que o processo de reprodução ampliada do capital, de que decorre a elevação de seu grau de concentração e centralização, implica a elevação da composição orgânica do capital e, portanto, em uma parcela relativamente cada vez menor de capital variável. Os autores marxistas que argumentam pela existência de um desemprego estrutural apoiam-se exatamente nesta tendência concretamente existente e presente na obra do autor.
Contudo, não é incomum que pouca atenção se dê a outro aspecto da realidade presente na teoria marxiana. Segundo Marx (1984a), esta mesma tendência é contrarrestada pelo aparecimento de novos ramos produtivos, pela complexificação da divisão do trabalho, que podem absorver o conjunto de força de trabalho agora disponível ou mesmo pelo crescimento extensivo de ramos de produção particulares, de forma que a magnitude da população trabalhadora supérflua ora sofre uma variação periódica global, ora o movimento é diverso a depender da esfera ou ramo de produção. A diminuição relativa da representatividade do capital variável na composição orgânica do capital pode ser combinada com a elevação, em números absolutos, do número de forças de trabalho compradas pelo capital. Isso é possível quando o capital variável e constante crescem simultaneamente em proporções diferentes e quando o valor da força de trabalho decai (mais-valia relativa). "Com a acumulação do capital produzida por ela mesma, a população trabalhadora produz, portanto, em volume crescente, os meios de sua própria redundância relativa" (MARX, 1984a, p. 200).
É esta população disponível, que precisa vender sua força de trabalho para sobreviver, isto é, os desempregados, que fica à disposição das necessidades contingenciais do processo de acumulação de capital. Em todos os casos, para as necessidades de cada esfera particular da produção social, diz Marx (1984a, p. 201), "[...] grandes massas humanas precisam estar disponíveis para serem subitamente lançadas nos pontos decisivos, sem quebra da escala da produção em outras esferas". O ciclo de reprodução do capital – a época de Marx, decenal; hoje, menor que isso – só interrompido por oscilações menores, perpassa momentos de vitalidade média, de produção a todo o vapor, de crise e de estagnação. Cada momento também determina a parcela da população disponível que é consumida produtivamente pelo capital. "Toda a forma de movimento da indústria moderna decorre, portanto, da constante transformação de parte da população trabalhadora em braços desempregados ou semi-empregados" (MARX, 1984a, p. 201).
A emergência da política neoliberal como resposta à crise do keynesianismo-fordismo e, hoje, o aparecimento da chamada indústria 4.0 não têm eliminado o caráter cíclico dos níveis de emprego. De forma a ilustrar este fato, demonstramos a evolução das taxas de desemprego dos principais centros econômicos do capitalismo contemporâneo desde a década de setenta.
Note-se que, na principal economia capitalista do período, não há uma tendência de elevação estrutural das taxas desemprego, variando, ao longo das últimas cinco décadas, entre 3% e 11%. Observa-se, ainda, que os períodos de maior crescimento são aqueles que sucedem a explosão das crises capitalistas. Chama a atenção, além disso, a rápida ascensão e queda da taxa de desemprego em razão da pandemia. Observa-se, finalmente, o sincronismo deste movimento com as taxas de outros países.
Salta aos olhos o sincronismo das ondas de desemprego quando comparadas duas das principais economias capitalistas contemporâneas, como os cumes e as bases coincidindo cronologicamente. É evidente, no entanto, a existência de evoluções com nuances particulares a depender do país que se analisa, mas que se tornam cada vez mais interdependentes com o passar dos anos. Isso fica claro ao nos determos às taxas japonesas para o mesmo período.
No caso japonês, a amplitude do desemprego é menor, variando entre 1% e 5,5%. Contudo, há coincidência cronológica quanto aos períodos em que predominam tendências de crescimento e diminuição das taxas de desemprego, com exceção do início dos anos 2000.
Por fim, se compararmos as taxas anuais de um país populoso como a Índia com as taxas mensais do conjunto da União Europeia, medidos a partir dos anos 2000, observaremos, não casualmente, a mesma forma gráfica, em que pese a diferença de amplitude. Ressalta-se, ainda, a coincidência no período com os dados já analisados.


Nota-se que as tendências e contratendências analisadas por Marx se confirmam no capitalismo contemporâneo, evidenciando o caráter cíclico dos movimentos do capital de forma cada vez mais interdependente. Estas informações não indicam que estamos tratando, a partir da década de setenta, de um desemprego estruturalmente crescente, mas do movimento cíclico do próprio capital, sempre influenciado pelas lutas políticas em curso. Tais aspectos são importantes para caracterizar as possibilidades de enfrentamento às políticas contidas na agenda econômica do capital e para a efetivação de outras alternativas, pois significa as massas de trabalhadores tendem se manter subordinadas à produção social capitalista.
Feitas estas ponderações a respeito da análise das autoras, vejamos nossas perspectivas históricas a respeito do cenário futuro projetado.
3 Notas sobre as alternativas históricas
Da análise realizada, é desenhado um cenário em que, em âmbito mundial: crescerá o desemprego e diminuirá a renda dos trabalhadores; será acentuada a desigualdade social e a pobreza absoluta; novas pandemias globais ocorrerão, tornando a saúde pública estratégica para as classes dominantes, que a colocará sob sua guarda; em função da crise do emprego, os programas de renda básica tenderão a substituir o seguro-desemprego em governos de todas as orientações políticas; as políticas sociais tenderão a desparecer, de acordo com o grau de resistência dos trabalhadores; e, finalmente, os sistemas públicos de aposentadoria perderão sua razão de existir, pois passaram a ser disfuncionais para o capitalismo. Ou seja, a continuar capitalismo, esta seria a tendência global, cujo caminho seria percorrido em ritmos diversificados, a depender dos governos e das possíveis resistências imprimidas a este processo. A conclusão é que seria, por tudo isso, necessária uma outra forma de organização social e produtiva, que dependeria de os indivíduos se constituírem sujeitos do novo porvir.
Com exceção das ponderações feitas nos tópicos anteriores, o prognóstico parece-nos correto, mas apenas em um cenário de correlação de forças permaneça favorável para as classes dominantes, o qual, lamentavelmente, apresenta-se como o mais provável. E caracterizar concretamente o cenário mais provável que devemos passar a enfrentar, assim como as intencionalidades e necessidades das classes dominantes para o futuro próximo em escala mundial, é fundamental. A argumentação que se segue, nesse sentido, não pretende estabelecer uma relação de direta oposição com a ideia central apresentada, senão problematizar outros possíveis desdobramentos históricos. Referimo-nos ao cenário em que, embora menos provável no curto prazo, os indivíduos comecem a se constituir sujeitos do novo porvir.
Isso porque a constituição dos indivíduos (trabalhadores) em sujeitos é uma possibilidade histórica que não comparece com relevância na análise, senão na forma de uma possível negação ou atraso da agenda do capital. Sabe-se, no entanto, que a massa dos trabalhadores não luta por um novo porvir em abstrato, de modo que se possa opor o quadro desenhado ao de uma nova forma social realizada imediatamente. Há, entre a necessidade de um novo porvir e as tendências captadas, um processo histórico de constituição de sujeitos em torno de lutas concretas que certamente impactariam o cenário desenhado. Sendo um novo porvir necessário, não podemos imaginá-lo realizando-se imediatamente e, portanto, não podemos descartar a possibilidade da entrada em cena da classe trabalhadora a partir da sua reconstituição enquanto sujeito sob nova forma, impactando aquele quadro inicialmente pintado a partir das necessidades das classes dominantes.
É que a constituição da classe trabalhadora como sujeito depende de uma mediação programática, que seja capaz de sintetizar diversas demandas particulares, e organizativa, capaz de enfrentar o poder constituído das classes dominantes. E isso não se dá do dia para a noite. Tal processo de constituição precisa, adicionalmente, de intelectuais que, vinculados organicamente a esta massa e comprometidos com este projeto social, formulem (a partir da análise teórica), propaguem e organizem as lutas concretas particulares que darão forma a constituição destes sujeitos históricos através dos instrumentos políticos criados pelos trabalhadores.
É na luta por reformas que os trabalhadores se movem. As lutas pelas reformas não são antagônicas às lutas pelo novo porvir. Aliás, é fundamental para a mudança na correlação de forças a criação dos instrumentos políticos através dos quais se possa transformar a realidade com autonomia e independência de classe. Como fenômeno social de transformação histórica, a criação dos instrumentos políticos é tanto ou mais relevante que a efetivação das reformas em si. Esta relação parece-nos bem resolvida por Rosa Luxemburgo:
[...] a luta cotidiana pelas reformas, pela melhoria da situação do povo trabalhador no próprio quadro do regime existente, pelas instituições democráticas, constitui, mesmo para a socialdemocracia, o único meio de travar a luta da classe operária no sentido de sua finalidade, isto é, a luta pela conquista do poder político e supressão do assalariado. Existe para a socialdemocracia um laço indissolúvel entre as reformas sociais e a revolução, sendo as lutas pelas reformas o meio, mas a revolução o fim (LUXEMBURGO, 1999, p. 17).
Notem que não são as reformas em si os meios para a revolução, mas "as lutas pelas reformas", justamente porque é por meio dessas lutas que a organização da classe trabalhadora pode se fortalecer e a consciência de classe contingente se elevar à consciência de classe necessária para a supressão do capitalismo[7]. Por isso, Tumolo (2002) sustenta que a superação desta forma social por meio de um processo revolucionário é indispensável justamente porque este modo de produção é impermeável por reformas profundas, uma vez que não pode eliminar suas contradições internas. Caso fosse possível uma adaptação do capitalismo capaz de promover as condições necessárias de "[...] produção e reprodução da vida humana, ou seja, que fosse se reformando, o que quer dizer em última instância que teria de eliminar suas próprias contradições internas, então a revolução seria desnecessária, porque o socialismo seria desnecessário" (TUMOLO, 2002, p. 241-242). A revolução é, portanto, resultado não do acúmulo de reformas, mas do acúmulo das dificuldades e impossibilidades de realizá-las frente às lutas da classe trabalhadora.
Em certas circunstâncias, as aparentes impossibilidades introjetadas pelos indivíduos se tornam impossíveis de se manter, de modo que a resposta é a práxis coletiva que rompe o campo prático-inerte e abre um novo leque de possibilidades históricas (IASI, 2006). Para que esta práxis se efetive no sentido de uma profunda transformação social, contribui de forma decisiva a detecção, pela teoria, das tendências objetivas e seus pontos-chave de transformação, conformando um conjunto de lutas concretas que se vinculam a um programa político posto contra as classes dominantes. Tal necessidade de mediação orgânica entre teoria e prática torna a questão organizativa ainda mais relevante se considerarmos o atual quadro de mudança qualitativa da forma de organização dos trabalhadores pelo capital, sobre o qual tratamos anteriormente. Isto é, a heterogeneidade das formas de subordinação dos trabalhadores ao capital, a complexidade e velocidade das respostas da organização capitalista e suas tecnologias organizacionais e produtivas, o contexto da pandemia, tudo isso tem representado desafios programáticos e organizativos até aqui não superados pelos movimentos dos trabalhadores que pretendem confrontá-los em algum grau.
Nestas circunstâncias, por quais reformas se devem lutar? Uma boa pista metodológica pode ser encontrada em Marx (2010), que, ao formular uma estratégia para a revolução democrática na Alemanha, sustentava que os trabalhadores deveriam estar sempre um passo a frente dos democratas pequeno-burgueses, orientando suas posições sempre pelas concessões e propostas dos democratas.
Por exemplo, quando os pequeno-burgueses propuserem adquirir as ferrovias e as fábricas, os trabalhadores devem exigir que essas ferrovias e fábricas, sendo propriedade de reacionários, sejam simplesmente confiscadas sem qualquer indenização. Quando os democratas propuserem o imposto proporcional, os trabalhadores exigirão o imposto progressivo; quando os próprios democratas requererem imposto progressivo moderado, os trabalhadores num imposto cujas taxas se elevam tão rapidamente que ele acabará destruindo o grande capital; quando os democratas reivindicarem a regulamentação da dívida Estatal, os trabalhadores exigirão a bancarrota do Estado (MARX, 2010, p. 74).
Tal forma de operar poderia produzir no proletariado a consciência dos limites da aliança política com os setores burgueses e preservaria seu "[...] posicionamento partidário autônomo, não se deixando demover em nenhum momento da organização independente do partido do proletariado pelo fraseado hipócrita dos pequeno-burgueses democráticos" (MARX, 2010, p. 75).
Contemporaneamente, parece-nos que este programa precisa tensionar os limites aparentes do presente representados pela esquerda social-liberal. Neste ensaio, não podemos desenvolvê-lo; resta-nos apenas a possibilidade de indicar a necessidade deste debate e de realizarmos alguns apontamentos preliminares desdobrados da própria análise das autoras, com referência, é claro, na realidade brasileira.
A luta pela redução da jornada de trabalho melhores salários e níveis de renda; a desmercantilização do acesso à saúde; o redirecionamento do chamado fundo público para combater as desigualdades sociais; o controle pelos trabalhadores sobre os recursos de produção vitais para o país, incluindo, aí, aqueles necessários para o combate às pandemias globais; a reforma urbana; a reforma da segurança pública; a reforma tributária; a reforma agrária; entre outras – são exemplos de bandeiras possíveis de serem empunhadas que, mediante a constituição dos sujeitos, alterariam substantivamente aquele cenário projetado.
Além do debate em torno destas pautas, creio que cabe aos intelectuais mediar as necessárias reflexões com níveis mais elevados de abstração com cada demanda particular na situação concreta vivida pelos trabalhadores, pautando alternativas positivas e particulares que influenciem no quadro geral. Sem esta mediação entre teoria e prática, a produção de conhecimento tende a perder sua força política. Sob a luz de uma estratégia teoricamente bem fundamentada, os sujeitos de um novo porvir poderão encontrar uma rota de viagem para alcançá-lo.
Referências
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IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.INVESTING.COM. EUA: Taxa de Desemprego. [S.l.], 2021. Disponível em: https://br.investing.com/economic-calendar/unemployment-rate-300. Acesso em: 16 fev. 2021.
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TUMOLO, Paulo Sérgio. Da Contestação à Conformação. Campinas: Editora Unicamp, 2002.
Notas
Notas de autor
Professor Adjunto da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ. Possui doutorado em Serviço Social pela UFRJ e mestrado em Administração pela UFSC. Atualmente, pesquisa as transformações na divisão do trabalho e sua relação com os movimentos sociais e as políticas sociais.