Resumo: Este texto analisa as implicações nefastas da pandemia da COVID-19 para a política social como direito de cidadania. Demarca, para tanto, o atual sistema do capital global, com sua crise estrutural interminável, como o elemento fundante dessas implicações. Incorpora temas e enfoques emergentes ou pouco visitados, como mudança climática, para ampliar o escopo analítico convencional e adensá-lo com novos aportes factuais e teóricos. Nesse contexto de dupla crise letal contra a humanidade a política social pautada pelo compromisso com a satisfação das necessidades humanas sofre violenta reversão: reduz-se a satisfazer as necessidades de lucro do capital tornando-se avessa à sociabilidade democrática.
Palavras-chave: Capitalismo, Crise estrutural, Cobiça, Pandemia, Necessidades humanas, Política social.
Abstract: This text analyzes the harmful implications of the COVID-19 pandemic for social policy as a right of citizenship. Therefore, it demarcates the current global capital system, with its endless structural crisis, as the founding element of these implications. It incorporates emerging or under-visited themes and approaches, such as climate change, to broaden the conventional analytical scope and add to it with new factual and theoretical contributions. In this context of a double lethal crisis against humanity, the social policy guided by the commitment to the satisfaction of human needs, undergoes a violent reversal: it reduces itself to satisfying the needs for profit of capital, becoming averse to democratic sociability.
Keywords: Capitalism, structural crisis, greed, pandemic, human needs, social policy.
Artigos Temáticos
Cobiça capitalista, pandemia e o futuro da política social
Capitalist greed, pandemic and the future of social policy

Recepción: 08/11/2020
Aprobación: 09/12/2020
Qualquer apreciação sobre as possibilidades e limites da política social no atual estágio de desenvolvimento do sistema global do capital, que mobiliza interesses e instituições, além de moldar as ideias dominantes, tem que extrapolar temas convencionais. Ademais, tem que estar aberta à compreensão realista de problemáticas negligenciadas e submetê-las a análises atualizadoras, valendo-se de pressupostos críticos à economia política que informa esse sistema. A questão candente da pandemia da COVID-19, associada à mudança climática com suas motivações e consequências, é uma dessas problemáticas.
O intento deste texto de analisar as implicações nefastas desta pandemia para a política social, instituída como direito no segundo pós-guerra, é uma resposta aos chamados da realidade para que se inclua, nos estudos e ações desta política, um tema pouco explorado: o da ecologia crítica, que compõe o campo do eco-capitalismo integrante de uma economia política eco-social (EPES), de caráter multi e interdisciplinar. Um aporte, portanto, de filiação marxiana que se pauta por conhecimentos produzidos por cientistas sociais progressistas, notadamente da área da economia do meio ambiente, da sociologia, da ciência política e da política social (GOUGH, 2017). O apelo à multi e à interdisciplinaridade da EPES tem como objetivos: ampliar o escopo de contribuições disciplinares concernentes aos efeitos da pandemia da COVID-19 sobre o bem-estar humano; elevar as dimensões sociais e políticas desta problemática a um status equiparado ao da dimensão econômica ainda dominada pela economia neoclássica e pelo neodireitismo hegemônico desde fins dos anos 1970; inserir no debate o conceito e a lógica das necessidades humanas, trabalhados, principalmente, por teóricos da política social como contraponto à lógica da rentabilidade econômica privada que atualmente preside as saídas do capital de sua crise estrutural e sistêmica. O fato de a política social ser, conforme Alcock (1992), Dean (2006), entre outros, uma disciplina acadêmica multi e interdisciplinar, ao mesmo tempo em que é uma política de intervenção protetiva em qualquer esfera do bem-estar humano (wellbeing)[1], incumbe-lhe, também, tematizar sobre as implicações para a humanidade da incidência da pandemia do coronavírus em um cenário já castigado pela crise interminável do capital; ou em um cenário dominado por um “capitalismo pandêmico”, “virótico”, no dizer de Antunes (2020, on-line), que “[...] combina crescentes níveis de exploração e degradação humanas à destruição do meio ambiente”.
Dentre as contribuições da disciplina política social duas sobressaem diante dos reveses da política social como ação pública: contra-arrestar, ancorada em referenciais anticapitalistas, o sentido de bem viver apregoado pela chamada economia do bem-estar capitalista vigente; e problematizar a disjuntiva dialeticamente contraditória que sobrepõe aos clamores por satisfações de necessidades humanas os ditames do crescimento econômico ilimitado. Para tanto, novas evidências empíricas mundiais, impactantes e perturbadoras, deverão compor o leque de relações que se interligam no contexto da delimitação do objeto de interesse desta discussão.
A primeira evidência é a já mencionada mudança climática por ser considerada “[...] o mais abrangente e ameaçador de todos os limites planetários desta nova idade [geológica] do antropoceno [...]” (GOUGH, 2017, p.1), com a qual a pandemia da COVID-19 tem estreita ligação. Em vista disso, esses limites se colocam como “[...] um desafio sem paralelo no passado [...]” (STEFFEN, 2011, apud GOUCHON, 2017, p. 19) sob a forma de um “[...] complexo e diabólico problema político [...]” (STEFFEN, 2011, apud GOUGH, 2017, p. 19) porque o bem-estar humano depende de apoios e cuidados preventivos que incluem o respeito à natureza. Segundo Gough (2017), dadas às particularidades históricas das relações socioeconômicas pré-capitalistas entre atividades humanas e o mundo natural, este respeito foi observado na idade geológica precedente, denominada “era do holoceno”, que vigorou em torno de dez mil anos. Nela foram mantidas condições ecológicas estáveis para a emergência, formação e desenvolvimento da civilização humana que caminhou, no rastro da revolução industrial, desde fins do século XVIII, para a era do antropoceno quando esta começou a dominar o planeta; e hoje, sob o impulso incontrolável de crescimento econômico lucrativo, produz impactos globais negativos sobre o clima e seus ecossistemas.
A segunda é o exorbitante aumento da desigualdade de renda e riqueza que está por trás, não apenas da invulgar desigualdade social prevalecente, mas também do espetacular crescimento do chamado capitalismo cassino; isto é, do reinado da prática de especulação com capital financeiro, por meio de instituições bancárias, companhias de seguro e agências afins, cuja alma é o manejo desregulado do dinheiro em negócios ultralucrativos disseminados por todo o sistema econômico (NAVARRO, 2015). Dessa feita, ao contrário do que é veiculado, a desigualdade de renda e riqueza, presente em países ricos e pobres, não decorre de um alegado incremento tecnológico causador da diminuição da produtividade do trabalho e da consequente má distribuição da renda resultante desse fato. Decorre sim, da obscena concentração da renda do capital em 1% da população cujos ingressos derivam, majoritariamente, de operações financeiras. Prova disso é que, como pontua Navarro (2015), entre os 90% da população, cujos ingressos derivam dos rendimentos do trabalho, tal discrepância, de proporção explosiva, não ocorre.
A terceira é a evidência de que o sistema global do capital em curso já deu o que tinha que dar de positivo em matéria de proteção social e de garantias democráticas. Portanto, nos termos de Mészáros (2017), o capitalismo como forma dominante de realização do capital nos últimos três séculos, alcançou um ponto de desenvolvimento histórico que não mais dá chances a manobras controladoras do metabolismo destrutivo do capital em busca de lucros; não mais se importa em esconder, nesta corrida insana, a sua índole antissocial e desumana perante à previsibilidade de aniquilamento da humanidade, tanto no plano ecológico, econômico quanto militar; e não mais admite em seu seio a existência de políticas sociais públicas, de ethos solidário, visto que as necessidades a serem atendidas são as demandadas pela prédica do bem viver, típica da ética consumista/hedonista. Daí a onda atual de privatizações mercantis dessas políticas, que degrada e desvirtua os sentidos de wellbeing e de welfare conquistados e consagrados por movimentos democráticos em séculos de lutas de classes.
No centro dessas evidências reside o poder estrutural do capital movido por seu instinto mais predatório: a ganância (ou cobiça), emuladora de incessantes e conspícuos processos capitalistas de acumulação, crescimento, desigualdades e genocídios. E paralelamente a ele está, adverte Gough (2017), o sistema de dominação estatal, como avalista e fiel escudeiro. Por isso, prossegue este autor, qualquer tentativa de travar e reverter os processos expressos nessas evidências interligadas terá que começar pela cobiça capitalista e suas implicações calamitosas. O combate à ganância desenfreada e amoral é condição necessária para que se possa, minimamente, começar a falar de um futuro ético, justo e sustentável para a humanidade.
Do exposto, fica claro que a pandemia da COVID-19 não é um fato inusitado. É um acontecimento previsto nos últimos anos e, por isso, não deveria surpreender. Além disso, ela não é causa da crise estrutural do capital que, desde os anos 1970, mantém-se ativa e destrutiva. Ao contrário, é produto acumulado da exploração voraz dos recursos da natureza e do trabalho humano pela civilização industrial, ainda em expansão, que, somado à crise estrutural do capital, ganha contornos extraordinários. Por conseguinte, tudo o que está acontecendo na atual conjuntura de crise sanitária não é original e decorre, conforme Rifkin (2020), de mudanças climáticas provocadas pela predadora ação humana sobre as quais pesquisadores vêm alertando há muito tempo. “Desastres naturais - pandemias, incêndios, furacões, inundações - continuarão porque a temperatura na Terra continua subindo e porque arruinamos o solo”, frisa Rifkin (2020).
A nossa é a civilização dos combustíveis fósseis. Nos últimos 200 anos [ela] foi baseada na exploração da Terra. O solo permaneceu intacto até começarmos a cavar as fundações da terra para transformá-la em gás, petróleo e carvão. E pensávamos que a Terra permaneceria lá sempre, intacta (RIFKIN, 2020, on-line).
No que tange à pandemia do novo coronavírus, há que considerar, como assinala Rifkin, que mudanças climáticas “[...] causam movimentos da população humana e de outras espécies; e que as vidas animal e humana estão se aproximando todos os dias como consequência da emergência climática e, portanto, seus vírus viajam juntos” (RIFKIN, 2020, on-line). O aquecimento global que provoca o derretimento das geleiras, aliado às ações demolidoras dos seres humanos sobre a flora e a fauna, como as queimadas no Brasil, propiciam a disseminação de vírus sedimentados nesses ambientes. Por conseguinte, a destruição ambiental impulsionada pelo irrefreável imperativo do crescimento econômico, baseado no uso insustentável de recursos não renováveis, na destruição da biodiversidade e na emissão de gases de efeito estufa, respondem não só por descalabros ecológicos, mas também pelo aprofundamento da desigualdade social. Afinal, a mundialização do capital comprometeu, substancialmente, a sustentabilidade social como o componente mais desprestigiado da sustentabilidade global.
O crescimento econômico que daí advém se dá à custa de insatisfações dantescas de necessidades humanas e da precarização do trabalho, posto que o mecanismo que produz este crescimento visa à massificação do consumo, cujos lucros obtidos não se estendem por toda a população do planeta. Pelo contrário, concentram-se em uma pequena minoria, criando profundo fosso entre ricos e pobres caracterizado pelo seguinte fenômeno: correlativamente à aparição de uma casta social de super ricos a pobreza se expande internacionalmente. E quanto mais essa casta se robustece mais a pobreza se mundializa. O curioso dessa relação de correspondência é que ela acontece não só nos países capitalistas centrais, mas também nos periféricos. Nestes, as alianças de suas elites econômicas e políticas com agentes do capital transnacional imperial respondem por sua presença.
É neste contexto de desertificação ambiental e de barbárie social em escala planetária que a humanidade do século XXI experimenta não apenas a pandemia da COVID-19, mas uma sindemia.
Este neologismo cunhado, na década de 1990, pelo médico estadunidense Merrill Singer, designa a interação entre duas ou mais enfermidades graves, potencializada por contextos socioeconômicos e ambientais precários e que geram danos maiores do que a mera soma das consequências de cada doença em particular. Na conjuntura atual, a interação da contagiosa COVID-19 com condições pré-existentes não contagiosas, a exemplo do câncer, diabetes, obesidade, problemas cardíacos e respiratórios, hipertensão, entre outras, aliadas à pobreza e à falta de acesso a condições básicas de higiene, segurança alimentar e saúde, faz com que grupos populacionais específicos, como negros, povos originários e membros de comunidades periféricas, sejam mais vulneráveis aos impactos da pandemia sindêmica.
Destarte, seu combate eficaz não se dá mediante a administração de drogas ou vacinas, mas, obrigatoriamente, por meio de ações estatais e políticas públicas que minorem disparidades sociais e econômicas e previnam as doenças não transmissíveis. Com essas medidas a mortalidade por COVID-19 seria reduzida.
No entanto, o que se tem observado, em especial no Brasil, é o movimento contrário: o desmonte das políticas sociais pautadas pelo atendimento das necessidades humanas e o decorrente aprofundamento das desigualdades. No seu lugar, são executadas intervenções governamentais desumanas em prol, exclusivamente, da valorização do capital. Se não, veja-se:
Até setembro deste ano constava[2], no Plano de Retorno às Atividades Presenciais da Rede Pública de Ensino do Espírito Santo, elaborado pela Secretaria de Educação do Governo deste Estado, o seguinte texto:
[...] havendo óbitos de alunos ou de profissionais da escola, e se for algo desejado pela comunidade escolar, o grupo pode organizar ritos de despedida, homenagens, memoriais, formas de expressão dos sentimentos acerca da situação e em relação à pessoa que faleceu, e ainda atentar para a construção de uma rede socioafetiva para os enlutados (ESPÍRITO SANTO, 2020, p. 65).
Carolina Catini, no artigo O brutalismo vai à escola, publicado no blog da Editora Boitempo, em 13 de setembro de 2020, resumiu o impacto que esta frase causava ao/a leitor/a. Segundo a autora, “[...] choca a franqueza desumana do comunicado e nos cabe perguntar por que é possível tamanha brutalidade” (CATINI, 2020, on-line). Isso porque, diz ela, faz parte do próprio plano de retorno às aulas o aumento do contágio pelo coronavírus e a consequente possibilidade de morte de estudantes ou trabalhadores das escolas. É a introdução da morte na escola como banalidade por meio de uma política pública.
A morte, por sinal, tem sido parte integral da chamada proteção social contemporânea. E não apenas como resultado da ausência ou do sucateamento de políticas públicas de qualidade que previnam a fome, o desabrigo, a doença, o desemprego, mas, também, como resultado previsto (declaradamente intencional ou não) de ações políticas cruéis. O retorno às aulas em um país que conta centenas de mortos por dia, todos os dias, há meses, é uma dessas ações que levam à morte.
Há várias outras, diretas e explícitas, como as chacinas contra negros e pobres, ou indiretas, como as reacionárias reformas Trabalhista e da Previdência. Neste contexto brutal de pandemia o endurecimento das regras e o corte, pela metade, do auxílio emergencial[3] para a classe trabalhadora pobre quando se experimenta, ao mesmo tempo, um grande aumento de preços de alimentos básicos, como arroz, carne e leite[4], é outro exemplo. De acordo com a pesquisa “The municipios facing COVID-19 in Brazil: socioeconomic vulnerabilities, transmisssion mechanisms and public policies”, realizada pela UFRJ, em parceria com o Instituto Francês de Pesquisa e Desenvolvimento sobre a relação da expansão da COVID-19 com o resultado das votações em primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, identificou o que os pesquisadores chamaram de Efeito Bolsonaro na propagação da doença (ROUBAUD et al., 2020): esta cresceu mais e matou mais nas cidades em que Bolsonaro recebeu mais votos. Há duas linhas de explicação para esse fenômeno: a) a identificação direta com um líder negador da gravidade do vírus, que não usa máscaras e condena o isolamento social, termina por incentivar seus apoiadores a adotarem maior comportamento de risco e b) a identificação indireta com os ideais defendidos pelo atual governo, de repulsa às Universidades públicas, à ciência e ao pensamento crítico, e com fake news e teorias conspiratórias, potencialmente indutoras da negação das medidas protetivas contra o novo coronavírus.
Além disso, esse Estado que mata direta e indiretamente também é o que simplesmente deixa morrer. Esta omissão política intencional se expressa na total indiferença diante da morte de quem não é mais considerado gente, mas apenas coisa, objeto. Safatle (2020), argumenta que, quando uma pessoa morre, essa morte é marcada pela dor, pela manifestação social da perda. Mas quando quem morre é um ser na condição de “coisa” reage-se como se um objeto tivesse se degradado e fosse posto no lixo. Essa morte, diz Safatle, “não tem narrativa” (2020, on-line), vira um número, é quantificada numa lista. E prossegue exemplificando: “[...] aqueles que habitam países construídos a partir da matriz colonial sabem da normalidade de tal situação quando, ainda hoje, abrem o jornal e leem: ‘9 mortos na última intervenção policial em Paraisópolis’, ‘85 mortos na rebelião de presidiários em Belém’” (SAFATLE, 2020, on-line).
A coisificação desses seres apartados dos que são considerados pessoas, afirma o autor, e a consequente naturalização de sua morte, é um dispositivo político fundamental já que perpetua uma lógica de guerra civil não declarada na qual a classe trabalhadora, especialmente a constituída sobre as bases das relações coloniais, e que é cada vez mais explorada e condenada a condições de vida bestiais (para usar um termo de Marx), tem o seu poder de revolta minado pelo pânico do extermínio ou do desprezo estatal. E nada é mais cômodo para as classes dominantes do que ter seus subalternos paralisados pelo medo.
As mortes por COVID-19, especialmente quando se dão nas favelas, nas periferias, nos municípios isolados, são contabilizadas em grandes números que viram grandes listas e que, do ponto de vista dessa coletividade blasé, perdem seu lastro humano. É a degradação de coisas em larga escala. E não choca mais. Cientistas da mente explicam que quando a morte toma uma proporção tão grande, tão cotidiana e frequente, ela é percebida como menos assustadora e paralisante do que quando é súbita, inesperada e em parcelas. Isso explica, em parte, porque quando havia 50 casos de contaminados pela COVID 19 no Brasil o medo era muito maior do que agora que há mais de 5 milhões. No final das contas, a classe trabalhadora, em especial a negra, vê os corpos de seus amores perdidos serem diluídos em números gigantes cada dia mais tolerados por uma coletividade dopada.
Se forem contabilizadas como mortes da COVID-19 todas aquelas que são indiretamente causadas pela sindemia, mesmo que não tenham sido motivadas pelo vírus em si, o número é escandaloso. É preciso lembrar que, em um mundo tão desigual, em épocas de pandemia, não é só da doença que se morre. Só para exemplificar, a Oxfam Brasil (2020) emitiu o alerta de que até o final de 2020 entre 6 e 12 mil pessoas poderão morrer de fome diariamente em decorrência dos impactos socioeconômicos da pandemia.
No Brasil, o estudo “Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres?” conduzido pela economista Ana Amélia Camarano (2020), constatou que mais de 4 milhões de adultos e mais de 1 milhão de crianças e adolescentes até 15 anos de idade podem ficar sem nenhuma renda com a morte de seus pais e avós, únicos responsáveis pelo sustento da família inteira, seja pela aposentadoria, seja pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC). Segundo o IBGE, quase 20% dos domicílios brasileiros têm, como única fonte de renda os ganhos dos mais velhos. Conforme Camarano (2020) “[...] nunca a previdência e os benefícios sociais dos idosos foram tão importantes para evitar a pobreza das famílias” (CAMARANO, 2020 apud ROCHA, 2020, não paginado). A essa afirmação é possível acrescentar: nunca as políticas sociais, o Estado presente no campo social, interferindo na economia e regulando mercados, foi tão importante para salvar vidas.
No entanto, como salvar vidas nunca foi preocupação do capitalismo, mais Estado nem sempre é mais política social de qualidade, mais direitos ou mais cidadania. E, principalmente, mais Estado na atualidade não significa menos mercado.
Retomando o trecho do Plano de Retorno às Atividades Presenciais da Secretaria de Educação do Espírito Santo, já citado, algumas perguntas podem ser levantadas: a quem interessa que crianças e adolescentes, em especial filhos da classe trabalhadora, voltem logo às aulas? Que tipo de escola é essa que, em vez de espaço seguro, converte-se em local de risco? Que não se pauta pela ciência – seu conteúdo essencial – e por fatos, pesquisas nacionais e internacionais ao aceitar à volta às aulas no meio de uma tragédia sem precedentes na história humana recente? Que não estimula a solidariedade, o pensamento coletivo, a ética e o cuidado com o outro ao individualizar uma decisão que não tem chances de ser tomada por mães, pais ou outros responsáveis que estão privados do acesso à informação séria e de condições de sobreviver em confinamento?
Como ressalta Catini (2020), os empresários não estão só presentes na rede particular de ensino, pressionando a volta às aulas presenciais porque perdem dinheiro com a quarentena. Eles se “[...] apropriam privadamente da educação estatal [...]” (CATINI, 2020, não paginado), desesperados pelo exército industrial de reserva que sai das carteiras escolares da rede pública de ensino, ansiosos pelo reaquecimento da economia e por tornar a educação de pobres produtiva. Catini (2020) reforça a sua conclusão ao convidar o/a leitor/a a visitar o site da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo e a constatar que, entre os parceiros dessa Instituição, figuram grandes empresas como o Instituto Unibanco, o Instituto Natura, a Fundação Telefônica.
O empresariado, por sinal, não bate ponto apenas no controle da política educacional. O capital anseia pelo fim do isolamento. É urgente a retomada das atividades que podem fazer o “moinho satânico” da economia capitalista girar e triturar gente (POLANYI, 1988). A cada notícia positiva sobre o avanço nos imunizantes em testes, a bolsa de valores sobe. No entanto, a corrida pela vacina que poderá salvar a humanidade (e, mais importante para o capital, a sua própria reprodução) assemelha-se mais a uma nova Corrida Espacial, do que a uma união de cérebros de todo o mundo em busca de cura para uma peste. Não à toa, o nome da vacina russa é Sputinik, o mesmo nome do primeiro satélite a orbitar a Terra, em 1957, que abriu uma vantagem para União Soviética na Guerra Fria contra os Estados Unidos.
Essa caça à vacina expôs o que já era amplamente sabido, mas não tão explicitado: a perversa subordinação da ciência, da tecnologia e das mentes que trabalham em diversas áreas, incluindo a da saúde, aos interesses financeiros. A briga das grandes corporações farmacêuticas para produzir e vender, primeiramente, o imunizante pressupõe que não há transparência no processo de pesquisa e muito menos ação coordenada coletiva para o alcance mais rápido de sucessos. Ao contrário, a grande preocupação neste momento de tragédia global, é o resguardo da propriedade intelectual e das patentes. Para piorar, as nações no centro do capitalismo, compram grandes estoques das vacinas já disponíveis (embora ainda em teste) para garantir a imunização dos seus próprios cidadãos. Quem não tem dinheiro, terá que lutar para conseguir sair da crise sanitária. Para provar que a preocupação nunca foi com a vida, o Fundo das Nações Unidas para a Infância denuncia que, todos os anos, cerca de 1,5 milhão de crianças morrem por doenças que poderiam ser evitadas por meio de vacinas que já existem e que são tomadas por crianças de países que podem pagar por elas (UNICEF, 2019).
Em suma, quem ganhar a corrida pela vacina lucrará não somente bilhões, mas, também, influência e poder nacional e internacional. A vacinação, nesses termos, elitizada, mercadorizada, privatizada e disputada pelas elites supranacionais, é e sempre será considerada proteção social. Mesmo que só proteja quem pode pagar por ela. Mesmo que proteja primeiro o Ocidente branco e os ricos.
Disso se depreende que o conceito de proteção social sofreu distorções e cooptações. A corrente ideológica que o usurpou e o ressignificou é conhecida como nova direita, que condensa, num amálgama, duas outras correntes: o neoliberalismo e o neoconservadorismo. O neoliberalismo já tem sido objeto de estudo da política social brasileira há algumas décadas. Todavia, o neoconservadorismo passou a ser amplamente debatido há poucos anos. Segundo Wendy Brown (2006), uma das referências nesse estudo, ele é uma miscelânea profana que mistura conservadores clássicos, socialistas arrependidos, feministas de direita, políticos tecnocratas, religiosos neopentecostais, moralistas no geral, anti-intelectuais, entre outros. Em comum, todos possuem a vontade de conservar. Compartilham, também, aversões: aos comunistas, ateus, militantes feministas de esquerda, antirracistas, população LGBT, Estado Social, Direitos Humanos entre tantas outras.
Vale ressaltar que a nova direita não é uma mera aliança entre neoliberais e neoconservadores, concorrentes históricos em diversas questões. Mas sim, uma fusão do que há de mais rígido e antissocial em cada uma destas correntes, resultando numa ideologia nefasta, que tem alto potencial de radicalização. Assim, o neoliberalismo econômico e seus valores pautados no individualismo, na meritocracia, nas relações mercantis livres e desreguladas, na moeda forte e no Estado mínimo, fundiram-se ao neoconservadorismo político, social e cultural e seus valores retrógrados de ode ao patriarcado, à família tradicional, à heterossexualidade compulsória, ao patriotismo, à hierarquia, à ordem, à religião como instituição e ao governo forte no controle da moral e dos bons costumes (PEREIRA, 2019).
Ambas as correntes, em separado, já pontificavam que qualquer forma de proteção social deve ser mínima, apenas para garantir a sobrevivência dos demandantes, já que não se pode ferir o princípio da meritocracia nem gastar dinheiro público com “fracassados sociais”. Porém, quando elas se fundem, esses valores se acentuam, e a luta é, cada vez mais, por um Estado forte na imposição de valores tradicionais a indivíduos e famílias, mas fraco na interferência da economia. Sem assumir, a nova direita faz renascer, com potência, o racismo, o machismo e a misoginia, a LGBTfobia, a xenofobia e várias outras formas de violência. Também fecunda um terreno fértil para o ódio à democracia. Esta ideologia, extremada ou não, é instrumento perfeito de ampliação da hegemonia do capital e, como toda falsa consciência, encobre as reais relações entre classes, transformando tudo em mercadoria e acentuando o hiato entre ricos e pobres por meio de uma massiva concentração de renda.
A descomunal concentração de renda e riqueza como um produto acintoso do capitalismo em voga ocorre, preponderantemente, por ingerências políticas movidas direta ou indiretamente pelo poder estrutural do capital; vale dizer, pelo domínio imperial do capital como relação metabólica sobre o Estado, representado por proprietários e gestores de grandes empresas financeiras transnacionais que exigem dos governantes políticas que satisfaçam suas necessidades de lucro. Um fator político importante, exemplificativo da participação do Estado no fomento dessa desigualdade, é a implementação de políticas fiscais regressivas; isto é, de políticas que oneram os rendimentos do trabalho em favor das rendas desoneradas do capital. Logo, a expressiva acumulação de ativos financeiros, por meio desses expedientes políticos, tem estimulado práticas especulativas em detrimento de inversões em atividades produtivas, que tendem a estagnar devido à diminuição da demanda. E isto se reflete no rebaixamento dos salários causador de endividamentos das classes populares, na crise financeira do sistema, no desemprego e na deterioração da qualidade de vida da maioria da população.
Ressalte-se que, neste processo, o Estado que colabora com a preservação dos super ricos é o mesmo que se incapacita para exercer a sua função pública de zelar pelo bem comum; e é o mesmo que renuncia ao seu papel de garantidor de direitos individuais e sociais, ainda previstos em Cartas Constitucionais Magnas em vários Estados nacionais, como o Brasil. A expressiva deterioração do mercado de trabalho e a perda de direitos trabalhistas impostos pelo sistema global do capital vigente também se devem à diminuição do poder de pressão dos sindicatos trabalhistas e à queda do número de filiados em decorrência do aumento da informalidade laboral.
Esses fatos, associados à atual crise sanitária, têm produzido elevada insegurança social, principalmente entre os pobres que são os mais sujeitos à morbidade, mortalidade e violência institucional. Esta insegurança aumenta à medida que a perda de legitimidade do Estado inviabiliza o desenvolvimento da democracia; e que a excessiva proximidade deste Estado com as elites financeiras, empresariais e setores de rendas elevadas, distancia as políticas governamentais dos apelos das necessidades humanas (NAVARRO, 2015). As classes populares, afirma Navarro (2015), desejam políticas governamentais diferentes das implementadas, conforme atestam pesquisas realizadas na Europa e nos Estados Unidos, a saber: a) taxação, na mesma proporção, das rendas de ricos e pobres; b) fiscalidade progressiva, de forma a taxar os super ricos não só nominalmente, mas de acordo com o seu diferencial de renda e propriedade; c) eliminação de paraísos fiscais; d) estabelecimento de um teto máximo de riqueza e de nível de renda; e) redução das desigualdades excessivas; f) eliminação da influência do dinheiro nas campanhas eleitorais e nos partidos políticos; g) rompimento do vínculo entre instituições financeiras e o mundo político; h) impedimento, por cinco anos, de políticos trabalharem, depois do cargo, em setor que eles regulavam ou vigiavam na administração pública; i) intervenção do Estado no setor financeiro com vista a garantir créditos a segmentos sociais e empresarias de pequena ou média renda; j) estabelecimento de um salário mínimo passível de incremento, em conformidade com o aumento dos preços; e k) garantia de serviços públicos à população. Todavia, nenhum desses pleitos tem sido atendido. Como resposta, obtiveram políticas de austeridade econômica permanente, alcunhadas por Navarro de “austericídio”.
Sob o signo desta opressão “austericida”, a serviço da rentabilidade econômica privada, a trajetória da política social como política pública e direito de cidadania tem pela frente um horizonte tenebroso, vaticinador de completa extinção. Análises prospectivas disponíveis indicam a impossibilidade de retorno do padrão de proteção social inaugurado no segundo pós-guerra, o qual, mesmo não sendo revolucionário e nem propugnando a derrocada do capitalismo, só encontrou condições de funcionamento após a ocorrência da Segunda Guerra Mundial, poucos anos após o término da Primeira Grande Guerra que, por sua vez, foi precedida de turbulências sociais e políticas de monta. Isso demonstra, conforme atesta a história, que proteger socialmente o mundo do trabalho no reino do capital requer um prelúdio carregado de catástrofes e tragédias ameaçadoras do poder do capital. Por isso, muitos acreditam que depois da peste pandêmica do novo coronavírus, em curso, as políticas de proteção social de redistribuição solidária renascerão. Há, contudo, controvérsias que não cabem ser tematizadas no espaço desta reflexão. Por enquanto, abstraindo as previsões otimistas sobre os efeitos sociais desta pandemia, é razoável não perder de vista os indicadores de um cenário possível e provável divulgado por Moreno (2012), traçado antes da ocorrência da referida crise sanitária.
Possivelmente, haverá o retorno dos cinco gigantes que o sistema de seguridade social coordenado, na Grã-Bretanha, por William Beveridge, durante a Segunda Guerra Mundial, propôs-se a combater: necessidade, enfermidade, ignorância, miséria, desemprego. Para enfrentá-los não existirão políticas de seguridade social garantidas pelo Estado como direito, mas formas oitocentistas de “[...] beneficência, disciplinamento laboral e paternalismo social” (MORENO, 2012, p. 210). Tais políticas, geralmente de baixa qualidade, têm como foco apenas as classes economicamente despossuídas, visto que a classe média, com melhor poder aquisitivo, prefere comprar serviços sociais mercadorizados. Os super ricos, por sua vez, serão, ironicamente, os segmentos mais assistidos e afagados pelo Estado, invertendo-se assim o convencional sentido e o alvo privilegiado da ação assistencial do Estado capitalista. Diante desta inversão pergunta-se: seria apropriado afirmar que está em andamento um processo de assistencialização da riqueza às expensas da dessassistencialização da pobreza?
Provavelmente, haverá o retorno de provisões sociais mínimas aos chamados velhos “riscos sociais” (analfabetismo, aposentadoria, pobreza absoluta). Os “novos riscos”, entre os quais a dependência de incapazes, como crianças e pessoas idosas ou com deficiência, serão geridos, com maior protagonismo, por associações prestadoras de serviços pessoais, com ou sem fins lucrativos, paralelamente a práticas de micro solidariedades em ambientes familiares reduzidos e em ativa reestruturação. A bandeira da concepção de bem viver desfraldada pela ideologia dominante, neodireitista, como produto do mérito pessoal e da autoproteção dos indivíduos, por meio do labor remunerado pelo capital, fortalecerá ainda mais a atual passagem de uma perspectiva sociotrópica de sociedade para outra ególatra. E se assistirá, em meio à indefectível contradição intrínseca entre a lógica das necessidades humanas versus a lógica das necessidades de lucro do capital, “a substituição do compromisso participativo dos jovens pela sua acomodação em uma anomia desmobilizadora” (MORENO, 2012, p.211).
trabalhou na concepção, delineamento e redação do artigo.
Socióloga. Mestre e Doutora em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB). Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB
trabalhou na concepção, delineamento e redação do artigo.
Assistente Social e advogada. Mestre e Doutora em Sociologia. Pós-Doutora em Política Social pela University of Manchester – Inglaterra. Professora Emérita da Universidade de Brasília (UnB).