Resumo: Desde março de 2020, o tema da COVID-19 é tratado em diversos aspectos. Todavia o que chama a atenção é a pouca visibilidade dada ao sistema prisional brasileiro e à situação de homens e mulheres presos/as. O presente artigo tem como propósito a publicização dessa situação. Elaborado com base nos dados do Levantamento Nacional de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro e do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, foi possível aferir que a crise sanitária mundial provocada pela COVID-19 aprofunda-se com problemas estruturais do cárcere, o que tem viabilizado o aumento no número de casos e óbitos em todo o país.
Palavras-chave: Estado de direito, Pandemia, Sistema prisional, Saúde, Punição.
Abstract: Since March of this year the Covid-19 theme has been addressed from various angles. However, what draws our attention is the low visibility given to the Brazilian prison system, and the situation faced by male and female inmates. This article aims to raise awareness of this issue. Based on data from the National Survey of Statistical Information of the Brazilian Penitentiary System and from the Prison System Monitoring and Inspection Group, the analysis shows that the global health crisis caused by Covid-19 has been deepened by structural problems in prisons, which has increased the number of cases and deaths across the country.
Keywords: Rule of law, Pandemic, Prison system, Health, Punishment.
Artigos Temáticos
COVID-19 e Sistema Prisional no Brasil: crônica de uma pandemia anunciada
COVID-19 and the Brazilian Prison System: chronicle of a declared pandemic

Recepción: 25/10/2020
Aprobación: 07/02/2021
“Nunca houve morte mais anunciada. Depois que a irmã lhes revelou o nome, os gêmeos Vicário passaram pelo depósito do chiqueiro, ondem guardavam os instrumentos de sacrifício, e escolheram as duas facas melhores [...] por último fizeram as facas cantar na pedra, e Pablo pôs a sua junto a uma lâmpada para que o aço brilhasse. – vamos matar Santigo Nasar – disse” (Crônica de uma Morte Anunciada, Gabriel García Márquez).
A presente epígrafe foi extraída da obra de Gabriel Garcia Márquez, Crônica de una Morte Anunciada[1]. Nesse romance, toda a comunidade sabe da morte – anunciada – de Santigo Nasar, pelos irmãos Pedro e Pablo Vicário. E, por ser anunciada, perdeu-se a centralidade em contê-la, para então assisti-la. A morte que poderia ser evitada passa a ser naturalizada antes mesmo da execução, na medida em que se comenta sobre a mesma. Porém, ao tratá-la como se fosse uma obra do destino, e insubordinada à ação humana, não há feito senão o da própria sorte.
Mas a maioria dos que puderam fazer alguma coisa para impedir o crime e, apesar de tudo, não o fizeram, consolou-se com o invocar do preconceito de que as questões de honra são lugares sagrados aos quais só os donos do drama têm acesso (MÁRQUEZ, 2020, p. 128).
A estória de Santigo Nasar parece convergir com a realidade das pessoas privadas de liberdade, quando uma pandemia e seus efeitos são postos como obra da natureza, servindo à Sociedade, ao Estado e à comunidade em geral como argumento desresponsabilizatório diante da situação prisional do país. Essa adoção não é sem critérios. Se para uma camada da sociedade há uma preocupação quanto ao anúncio dessa morte e, portanto, ações são tomadas com o objetivo de contê-la, para outras, ela parece coadunar com uma realidade precedente, em que estar vivo é sempre uma alusão ao risco de morte.
Se a questão prisional sempre foi tratada como controle social punitivo pelo poder público, não há de se estranhar que, no contexto da pandemia, seja ela tão particularizada ao ponto que “[...] só os donos do drama têm acesso” (MARQUEZ, 2020, p. 128). Nessa esteira, a análise de Eugenio Raúl Zaffaroni sobre o inimigo penal parece-nos imprescindível. Nela, o autor e jurista argentino explica que os Estados de direito estão dialeticamente vinculados ao poder punitivo, pois não são nada além da contenção dos Estados de polícia. No entanto, é o mesmo autor que explica com cautela que a contenção é resultante de uma “[...] experiência penosa de lutas acumuladas ao longo dos anos contra o poder absoluto” (ZAFFARONI, 2016, p. 169).
Dito isso, o presente artigo foi elaborado com base nos dados do Levantamento Nacional de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro (Infopen) coletados entre junho e dezembro de 2019 e publicados no ano de 2020. Também são apresentados os dados do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medida Socioeducativa (GMFs)[2], publicados quinzenalmente. Esse monitoramento cumpre a Recomendação nº 62, lançada em 17 de março de 2020, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata das medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. O cumprimento da recomendação tem possibilitado um compilado de informações sobre a pandemia no sistema prisional brasileiro, a partir do envio de dados de cada estado. Com isso, é possível aferir que a crise sanitária mundial provocada pela COVID-19 se soma a problemas estruturais do cárcere, o que tem gerado o aumento no número de casos e óbitos de pessoas presas e servidores/as em todo o país.
O conceito mesmo de inimigo introduz de contrabando a dinâmica da guerra no Estado de direito, como uma exceção à sua regra ou princípio, sabendo ou não sabendo (a intenção pertence ao campo ético) que isso leva necessariamente ao Estado absoluto (ZAFFARONI, 2016, p. 25).
Desde março de 2020, o tema da COVID-19 é tratado em diversos aspectos. Está presente no âmbito da violência de gênero, nas precariedades encontradas no Sistema Único de Saúde (SUS), em virtude da política de desfinanciamento[3], bem como nas espacialidades das cidades e zonas rurais. A preocupação em situar os danos da pandemia partiu de muitos setores da sociedade. Com isso, contraditoriamente, avanços em denúncias históricas sobre esses temas, a citar, como exemplo, a condição sanitária e urbana das favelas no Brasil, foram visibilizados. As limitações impostas pelo modo de produção capitalista ficaram ainda mais latentes ao mostrar a dura realidade dos mais pobres e publicizar a profunda desigualdade social e econômica desse país. Embora o vírus não tenha classe, raça e gênero, esses indicadores acabam por evidenciar o perfil de mortos/as e infectados/as pelo coronavírus.
Todavia o que chama a atenção é a pouca visibilidade dada ao sistema prisional brasileiro e à situação de homens e mulheres presos/as, sem que parta da sociedade o questionamento das condições de enfretamento à pandemia no cárcere, bem como do Estado no que se refere à garantia do direto à saúde e à vida da pessoa presa. Podemos, nesse sentido, retomar a contribuição arguta de Walter Benjamin (2009), em seu texto intitulado: Para una Crítica de La Violencia. Nele, o autor não só mostra os limites das correntes filosóficas naturalistas e positivistas, mas sobretudo evidencia que, em última instância – no caso de defesa jurídica da violência – estão intimamente relacionadas.
Se para os defensores naturalistas a violência é um produto natural como qualquer outra matéria-prima cujo risco está no uso para fins injustos, para os positivistas, a violência é produto histórico. Contudo realizam julgamento sobre o direito existente mediante a crítica dos seus meios. A crítica aos fundamentos filosóficos e jurídicos feita por Walter Benjamin (2009), na construção de sua tese, desnuda também o sentido discursivo empregado na frase: os fins justificam os meios, da obra Heroides, do poeta romano Públio Ovídio Naso.
Constantemente associada ao filósofo Nicolau Maquiavel (2019), a frase guarda relação com sua obra O Príncipe. Nela, é possível apreendermos os eixos troncais de recuperação dos valores e modelos da Antiguidade greco-romana ou do próprio direito romano na construção do Estado. Para Maquiavel, a política é resultado de uma disputa e manutenção do poder, sem que seja regida por valores e princípios éticos. Nessa linha, podemos pensar que a tomada de poder promove a declaração imediata de quem é o inimigo público (hostis judicatus). Esse que agora ocupa o lugar de vencido – como bem nos mostra Walter Benjamin (2014), em sua tese sobre a história. Para Zafforini (2016, p. 26), “[...] o hostis nunca desapareceu da realidade operativa do poder punitivo nem da teoria jurídico-penal [...]”, apenas se adequa aos processos históricos e sociais de cada tempo.
Judith Butler (2017), em Caminhos Divergentes: judaicidade e crítica do sionismo, ao retomar o texto de Walter Benjamin (2009) situa-o como uma crítica da violência do direito. Segundo a autora, a violência legal ocorre por meio da estrutura jurídica, que assegura a força de lei e institui a base legal de determinado Estado. Ainda sob orientação das formulações benjaminianas, Butler assinala que:
[...] quando falamos de violência legal, nos referimos à violência que mantém a legitimidade e a obrigatoriedade das leis, o sistema de punição que se põe na espreita quando as leis são transgredidas, a força policial e militar respalda um sistema de leis, e as formas de responsabilização legal e moral que, à força, obrigam os indivíduos a agir de acordo com a lei, ou melhor, a obter sua definição cívica em virtude de sua relação com a lei (BUTLER, 2017, p. 89).
Essa interpretação de Butler (2017) é muito oportuna para pensarmos o sujeito transgressor da lei, ou seja, o que em síntese torna a força de lei e a violência legal partes constituidoras do Estado policial. Zaffaroni (2016) em O inimigo no direito penal afirma que o espectro do inimigo é antes de tudo a negação da condição de pessoa. Explica-nos que, ao tratá-la como perigosa e estrangeira, sua desqualificação não ocorre apenas no campo individual, mas também na introdução da dinâmica da guerra no Estado de direito, ou seja, a guerra contra o inimigo. É ele também quem nos esclarece que esse tratamento remonta ao direito romano, pois para esses, “[...] todos os estrangeiros eram barbari, palavra tomando do grego que indicava o não-grego” (ZAFFARONI, 2016. p. 23). Não-grego, nesse caso, pode ser análogo, no tempo presente, ao não sujeito de direitos e não pertencente à uma sociedade – marcadamente segregacionista. Esses elementos parecem-nos indispensáveis para pensarmos tanto a construção social do inimigo na sociedade contemporânea quanto à ideia naturalizadora de que esses sujeitos são passíveis de tratamento do poder punitivo, que opera ora em nome da segurança, ora em nome do genocídio.
Assim, homens e mulheres, em grande parte jovens, negras/os, com baixa escolarização e residentes em espacialidades periféricas passam a ocupar esse lugar ilícito e informal. O ilícito é a garantia jurídica de controle do capital sobre eles, e independe de uma conduta infracional concreta. É o que Zaffaroni (2016) denomina como “[...] subjetividade arbitrária do individualizador do inimigo [...]” (ZAFFARONI, 2016, p. 25), ou seja, a estruturação jurídica e penal só ocorre na medida em que sujeitos e lugares coadunem a proposta de segregação e criminalização do Estado Penal. Já o informal permite que esse disciplinamento jurídico e penal se manifeste, é o que possibilita o ciclo estável da acumulação, explicado por Marx (2013), em O Capital Livro I, Seção I Mercadoria e Dinheiro, na fórmula D-M-D’. Isso porque o processo de repressão e criminalização dos grupos expropriados completa-se.
Uma vez normalizado e disciplinado o processo de expropriação, o direito deixa de prescrever expressamente violência e desigualdade e adquire a estrutura da forma jurídica, isto é, a forma da igualdade e liberdade abstratas, que se encontra vinculada ao fetichismo da mercadoria para ocultar a apropriação do tempo de trabalho que não foi pago. Em Os Despossuídos Marx (2017) aborda de forma arguta a abstratividade do que se caracteriza por pena e direito, porque segundo ele, a realidade do crime exige uma medida da pena, essa que é determinada pelo Estado, o mesmo que assegura à propriedade privada. Criou-se, assim, o direito privado.
Tudo isso, no entanto, é precedido pela violência jurídica e pela jurisdição da desigualdade, conduzidas pela expropriação capitalista do tempo e espaço. Dessa forma, os determinantes de classe, raça/etnia, gênero e espacialidade são utilizados pelo capital como forma de criar e ampliar espaços de trabalho com níveis de desigualdades para além das já impostas entre patrão e empregado. Não por acaso, a criminalização dos sujeitos repercute diretamente no lugar em que vivem. É na territorialidade que o aparato bélico do Estado, a representação do/a inimigo/a, o controle penal e vertebração neoliberal expressam-se conjuntamente. Sobre esse tema Milton Santos (2013) em Pobreza urbana faz a seguinte afirmação:
O modelo de crescimento capitalista adotado pela maioria dos países subdesenvolvidos, somando à explosão demográfica, resultaram numa explosão urbana e concentração de riqueza e pobreza nas cidades. Pensava-se antigamente que a industrialização capitalista podia trazer uma solução à crise social que gerou. Quando se tornou claro que isso não ocorria, o problema foi atacado por outros meios indiretos, como habitação, educação etc. (SANTOS, 2013, p. 57).
Todavia, na realidade brasileira, em plena era de desindustrialização e destituição dos direitos sociais, a questão torna-se mais complexa na medida em que esses sujeitos sequer terão a possibilidade de ingressarem no mercado de trabalho formal. É preciso, nesse sentido, apreender a partir da crítica marxiana os fundamentos da sociedade burguesa e como ela, no decorrer do século, aperfeiçoou sua forma de exploração e desumanização dos sujeitos/as. Em se tratando de países periféricos e dependentes ao capital internacional, representado por organizações como Banco de Compensações Internacionais (BIS), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC), Ruy Mauro Marini em Subdesenvolvimento e Revolução (2017) esclarece que a forma dominante de produzir riqueza se dá via mecanismos de exploração comercial para com os países em desenvolvimento.
Logo, a possibilidade de criar e gerar empregos deflagra-se, pois, em primeira instância, o que se assegura diante de contextos de crise estrutural do capital, como bem assinala István Mészáros (2009), é a soberania dos Estados centrais. Recai não só o desemprego interno sobre a economia brasileira, mas todo o ônus dessa perda global. Para fins de exemplo, citemos a retirada de empresas estrangeiras, e com ela a massa de desempregados/as, a pressão no barateamento de matéria-prima para exportação, o aumento no preço das importações e a crise generalizada nas pequenas empresas nacionais que, diante do cenário global, tornam-se inaptas à competividade. Dito isso, a construção da criminalização da pobreza exige uma geografia do capital, em que o mesmo, além da sua soberania entre países centrais e periféricos, crie nesses últimos socioespacialidades e sujeitos/as criminalizáveis.
Santiago Nasar saiu. As pessoas se tinham colocado na praça como nos dias de desfile. Todos o viram sair e todos compreenderam que já sabia que o matariam (MÁRQUEZ, 2020, p. 150).
Conforme o último Levantamento Nacional de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro (Infopen) realizado entre julho a dezembro de 2019 e publicado em 2020, há uma discrepância entre número de presos e presas comparados/as ao número de profissionais e equipamentos de saúde dentro do sistema prisional. Consta nesse relatório que, do total de 748.009 pessoas em unidades prisionais no país, 362.547 estão em regime fechado; 133.408 no regime semiaberto; 25.137 em regime aberto; 222.558 em medida provisória; 250 em tratamento ambulatorial; e 4.109 em medida de segurança (BRASIL, 2020c).
No que se refere ao acesso à saúde, em território nacional, para atender a essa população existem apenas 1.022 consultórios médicos; 752 consultórios odontológicos; 845 salas de curativos, suturas, vacinas e postos de enfermagem; 264 salas de esterilização; 13 laboratórios de diagnósticos; e 509 salas de procedimentos. Quanto aos recursos humanos e estrutura física, em todo o país, o sistema prisional conta com apenas 05 equipes próprias de ginecologia; 06 de nutricionistas; 13 creches (com capacidade para 154 crianças); 55 berçários ou centros de referência materno-infantil; e 07 equipes próprias de pediatria. Do total de 1.395 enfermeiros/as, apenas 796 são do quadro permanente, os/as demais 626 profissionais são contratos temporários, terceirizados e comissionados. Situação que se repete com o número de clínicos gerais, visto que, dos 804 profissionais contratados, apenas 311 são do quadro permanente, enquanto que 493 seguem a mesma relação dos profissionais de enfermagem. Em relação aos técnicos de enfermagem, apenas 1.534 dos 2.473 são efetivos. Todos esses profissionais atendem aos 755.274 estabelecimentos prisionais no país (BRASIL, 2020c).
Esses números mostram o quadro limitado de profissionais e as condições de trabalho para atender a população prisional atual. Cenário que, ao longo dos anos, não apresenta melhoria, do ponto de vista do acesso ao direito à saúde. Porém mostra-se ainda mais deflagrado em tempos de pandemia. Antes mesmo do primeiro registro de óbito por COVID-19 no sistema prisional, entre julho e dezembro de 2019, segundo o mesmo relatório, foram realizados 3.984.605 atendimentos nas unidades masculinas, mistas e femininas. Com base nesses atendimentos, 31.742 pessoas presas obtiveram diagnósticos de hepatite; HIV (vírus da imunodeficiência humana); sífilis; tuberculose; e outros (BRASIL, 2020c).
Quando relacionadas ao sexo/gênero das pessoas presas, o Infopen (2020c) aponta que essas doenças mostram variações. A população masculina representa 95,06% total de pessoas presas (711.080), e 29.060 delas passaram pelo atendimento entre julho e dezembro de 2019. Desse atendimento, 2.833 (9,75%) foram diagnosticadas com hepatite; 8.975 (30,88%) com tuberculose; 6.005 (20,66%) com sífilis; 7.438 (25,6%) com HIV; e 3.809 (13,11%) categorizadas como outros. Das 36.926 mulheres presas, 2.682 passaram pelo atendimento, e desse total 1.085 (40,45%) foram diagnosticadas com HIV; 197 (7,35) com hepatite; 138 (5,15%) com tuberculose; 915 (34,12%) com sífilis; e 347 (12,94%) classificadas como outras doenças.
Se observarmos o quadro clínico das pessoas presas, teremos como relação o baixo investimento em médicos especialistas. Isso mostra que o maior índice de doenças diagnosticadas está vinculado ao procedimento de teste, e não uma área mais especializada de investigação. No entanto, como se verá mais adiante, no caso de testes para COVID-19, os dados mostram um número muito aquém do necessário. Do total de pessoas presas e avaliadas clinicamente, no período de julho a dezembro de 2019, 4.156 delas não tiveram um diagnóstico preciso. O número de óbitos (homens e mulheres) foi de 1.091 e, desse total, 738 foram classificados como mortes naturais ou em decorrência de problemas de saúde; 80 por suicídio; 68 por causa desconhecida; 17 por acidente; 188 classificados como criminais. Esses três últimos indicadores constam apenas no sistema masculino (BRASIL, 2020c).
Em Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX, os autores Dario Melossi e Massimo Pavarini (2006) mostram que a política econômica do sistema prisional, diferente do que o senso comum pensa como falta de recursos, é ela própria pensada e gestada dessa maneira. Afirmam que esse processo corresponde a uma deterioração sistêmica, marcada por uma redução nos custos de gestão cuja finalidade é propiciar à população carcerária “[...] o nível mínimo de subsistência” (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 200). O que se apreende a partir da contribuição desses autores é que a ideia de punição é apresentada sobre os corpos não apenas na veste do castigo físico, mas também nos controles e formas de castigo estendidos a negação do lugar de pessoa e/ou de sujeito de direito. E, por destituído ser, não há como reivindicá-lo. Assim, a política de segurança do poder soberano transmuta-se em política genocida, dando lugar e visibilidade ao que Zaffaroni denomina de Estado policial. E complementa:
A extrema seletividade do poder punitivo é uma característica estrutural, ou seja, ela pode ser atenuada, mas não suprimida. Por isso, a questão penal é o campo preferido das pulsões do Estado de polícia, pois é o muro mais frágil de todo Estado de direito (ZAFFARONI, 2016, p. 170).
Esse breve panorama foi dado com a intenção de mostrar o quadro crítico em que já se encontrava o sistema prisional brasileiro antes da pandemia. Entendendo o cenário que se anunciava, o Conselho Nacional de Justiça, em 17 de março de 2020, lançou a Recomendação nº 62, que trata das medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. Dessa recomendação foi criado o Monitoramento do Conselho Nacional de Justiça (MCNJ). Com base nas informações do MCNJ, o primeiro caso confirmado de COVID-19, no sistema prisional, em território nacional, foi em 08 de abril e o primeiro óbito uma semana depois. Desde então, algumas tratativas, via sistema de justiça, foram feitas com o intuito de diminuir o número de contaminações e aglomerações já históricas, mas que diante do quadro de superlotação nas unidades prisionais, e o surto epidêmico, tiveram maior visibilidade.
Segundo o último boletim[4] (07 de outubro de 2020) lançado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medida Socioeducativa (GMFs), o número de infectados pelo novo coronavírus em unidades do sistema prisional brasileiro era de 39.595, sendo 29.600 de pessoas presas e 9.995 servidores. Quanto ao número de óbitos, o total foi de 199, 115 presos e 84 servidores. Número cuja taxa é crescente desde o início do monitoramento. Para se ter uma ideia, em 15 de junho de 2020, quando o GMFs lançou o primeiro boletim, o número de óbitos registrado foi de 95, e de casos confirmados 5.754, sendo 2.605 de pessoas presas e 3.149 de servidores. Vejamos que, nesse primeiro documento, o número de servidores é maior do que o de presos contaminados. No entanto, em número de mortos, há uma inversão, 41 servidores para 54 pessoas presas (BRASIL, 2020a).
Quatro meses após o primeiro boletim, o número de casos de contaminação por COVID-19 no sistema prisional aumentou em 33.841, e o de óbitos em 9.900. Se considerarmos o cenário extramuros de subnotificação dos casos e o baixo investimento do Governo Federal na política de testes em massa, o número de infectados/as e de possíveis mortos no sistema prisional também pode sofrer alterações. Cabe ressaltar que já existe no Infopen (2020c) um indicador tipificado como mortes naturais ou em decorrência de problemas de saúde. A questão que parece necessária agora é acompanhar o quadro de evolução, ou não, desse número no próximo levantamento anual.
Sobre a política de testes, o GMFs informou que, até 05 de outubro de 2020, foram realizados 70.519 exames de teste para a COVID-19 em pessoas presas. Isso representa apenas 9,42% da população (748.009) carcerária no país. Em relação aos/às servidores/as, o número de testes foi de 42.873, mas ao comparar o percentual de testagem com o número de servidores/as, esse dado representa 33,07% (127.33) do total em atividade nos estabelecimentos penais. No entanto o monitoramento aponta que o Ceará e o Distrito Federal, não forneceram a distinção entre servidores/as e pessoas presas na aplicação de testes, o que equivale ao total de 18.267 pessoas. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), divulgados no dia 20 de agosto de 2020, 13,3 milhões de pessoas em situação de liberdade já realizaram testes para diagnóstico da COVID-19, até o mês de junho de 2020. Ainda segundo a fonte, esse número de pessoas testadas representa 6,3% da população total do país. Desse pequeno percentual, 47,2 milhões de pessoas tinham alguma comorbidade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020). Em dados oficiais compilados pela University of Oxford, no Reino Unido, no mês de abril de 2020, intitulado Coronavirus Research o Brasil estava na 60ª posição, no ranking de 76 países. É uma das nações no globo que menos realiza testes de COVID-19 e que, portanto, também está entre as maiores em subnotificação (UNIVERSITY OF OXFORD, [2020]).
O GMFs publicou o envio de informações dos 26 estados e do Distrito Federal referentes aos recursos disponíveis para o enfrentamento à COVID-19, nos estabelecimentos prisionais, tais como equipamentos de proteção individual (EPIs), alimentação, fornecimento de água e material de higiene e limpeza, além de medicamentos e equipes de saúde. Com base nesses dados disponíveis no relatório do CNJ, é possível ver que as limitações históricas que se desdobram ao sistema prisional reaparecem sob o falso manto de uma crise imposta pela propagação do vírus. A ausência desses recursos não é uma novidade dentro das prisões no país, assim como a escassez de informações, que se repete até mesmo no contexto da pandemia, a citar os estados do Amazonas (AM); Goiás (GO); Mato Grosso do Sul (MS); e Pará (PA), que não enviaram os dados sobre condições materiais para o monitoramento (BRASIL, 2020a).
Sobre as ações no combate à pandemia no sistema prisional, a Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, orienta aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, conforme previsto no Art. 01. Parágrafo único.
I – a proteção da vida e da saúde das pessoas privadas de liberdade, dos magistrados, e de todos os servidores e agentes públicos que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo, sobretudo daqueles que integram o grupo de risco, tais como idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções (BRASIL, 2020b, p. 4).
Conforme previsto na Recomendação, o direito à vida e sua preservação devem ser assegurados pelo sistema de justiça penal. Considera-se o já agravado quadro de saúde da população prisional, em território nacional, como elemento suficiente para a propagação do vírus. Há que se destacar o descumprimento persistente do que já está previsto no Art. 05 XLIX, da Constituição Federal do Brasil de 1988 –, que assegura aos/às presos/as o respeito à integridade física e moral, bem como à Lei de Execução Penal (LEP), de 1984, no Art. 14, que assegura assistência à saúde médica, farmacêutica e odontológica (BRASIL, 1984). Cabe, todavia, destacar que essa lei é anterior à CF de 1988 (BRASIL, 1988), o que evidencia uma limitação referente à concepção contemporânea de direitos humanos, bem como no reconhecimento da pessoa presa como sujeito/a de direitos e cidadania. Essa lei também retira a possibilidade de pensar a responsabilização penal face à lógica punitiva e penalizatória que ainda impera no sistema prisional brasileiro.
Esses elementos respaldam a ideia de que pessoas presas não detêm o direito de acesso à saúde, porque não são reconhecidas como sujeitos/as de direitos, mas sim como inimigos/as. Somado a isto está a questão étnico/racial e espacial, que dá cor e lugar aos corpos dentro do sistema prisional. Entre julho e dezembro de 2019, dos estabelecimentos prisionais que enviaram informações relativas a esse indicador, obteve-se um total de 87,94% (657.844). Desse número, 212.444 são brancas, 328.108 pardas; 5.291 amarelas; e 110.611 pretas. Ao consideramos que negros também compõem a junção entre pessoas pardas e pretas, isso significa 58,65% (438.719) de pessoas não brancas dentro do sistema prisional. Importa destacar que não foram obtidos os dados sobre raça/etnia de 90.195 pessoas presas.
A negação de acesso ao Estado de direito antecede o sistema prisional, na medida em que ainda imperam, dentro e fora das prisões, a marginalização e a discriminação interseccionais. Marcadores de classe, raça/etnia, gênero e geração aprofundam-se e se radicalizam nas violações de direitos, ao legitimar institucionalmente o cárcere como espaço de destituição da cidadania e humanidade de intergrupos. Sobre o necessário recurso interseccional, Kimberlé Crenshaw (2002) em Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero assinala que não se reduz a uma mera descrição mais precisa sobre as experiências sociais dos sujeitos, mas sim como instrumento capaz de dar maior abrangência a esses marcadores referentes às desigualdades econômicas, sociais e culturais de cada nação. Na mesma esteira Loïc Wacquant (2011) em seu texto intitulado The Wedding of Workfare and Prisonfare Revisited propõe a substituição de encarceramento em massa por hiperencarceramento. Para ao autor a primeira é insuficiente por não mostra que a seletividade extrema da penalização ocorre de acordo com a condição de classe, raça/etnia e espacialidade dos sujeitos/as, cujo objetivo é a gestão punitiva da pobreza por parte do Estado penal (WACQUANT, 2011).
Contraditoriamente, a pandemia incide mudanças ainda que focalizadas, visto que não se trata apenas do risco de morte das pessoas presas, mas também dos/as servidores/as. Se compararmos o número de pessoas mortas, entre julho e dezembro de 2019, com os dados do MGFs, veremos que de abril até agosto, das 28.804 pessoas presas que fizeram o teste, 59,21% (17.057) testaram positivo. Desse total que testou positivo, 18,95% vieram a óbito. Se consideramos que, das 748.009 pessoas presas, 464.621 corresponde à faixa etária dos 18 aos 34 anos, isso representa 62,11% do total da população no sistema prisional. Estamos falando de uma população jovem. Outra questão que merece destaque é a superpopulação, pois das 442.349 vagas disponíveis no sistema em território nacional, o déficit atual para ambos os sexos é de 283.338 vagas (BRASIL, 2020a).
Podemos depreender que o indicador de mortalidade do vírus para pessoas jovens sofre significativa alteração quando relacionado ao sistema prisional, às condições de acesso e permanência à política de saúde, ao tratamento contra doenças dentro do sistema e ao acompanhamento clínico geral e especializado. A ausência de condições estruturais e de recursos humanos, aglomerações, falta de ventilação, equipamento de segurança, alimentação com qualidade, água, medicação e materiais de higiene e limpeza também mostram que o aumento da propagação do vírus dentro das prisões e sua letalidade são maiores em virtude desses indicadores. É, portanto, mais agravada não pelo vírus em si, mas pelo conjunto de fatores estruturais que o antecede.
Não obstante, a situação da pandemia no sistema prisional é utilizada como subterfúgio para mistificar as violações e negligências do Estado no que se refere à garantia e exigibilidade dos direitos humanos no contexto prisional. Se, por um lado, a quarentena resguarda a vida de uma parcela da sociedade, no cárcere, o risco de contágio pelo coronavírus é exacerbado, tanto pela superlotação, quanto pelo insuficiente acesso à política de saúde.
Por fim, importa destacar esses elementos, diante de um possível aumento do número de mortos de pessoas presas e servidores/as, em virtude da COVID-19, como expressão da violação de direitos, permanente e estrutural, que constitui historicamente o sistema prisional brasileiro. Trata-se de uma pandemia anunciada justamente pelo desvendamento público que ela incide sobre a sociedade e o Estado na perpetração dessas violações de direitos.
Tudo o que ocorreu a partir de então foi de domínio público (MÁRQUEZ, 2020, p. 142).
No presente artigo, buscamos apresentar um breve panorama da situação prisional do país, no contexto da pandemia, utilizando a base de dados nacionais do Infopen e CNJ. Atentou-se também para os dados que a antecede, com o objetivo de mostrar que o aumento no número de caso e de óbitos dentro das prisões, em território nacional, guarda relação com as violações de direitos humanos pelo poder público. Essa divulgação faz-se necessária como estratégia a publicizar que as mortes em decorrência do vírus deflagram a precariedade do acesso à saúde dentro do cárcere. Como visto, o número de profissionais e a precariedade em torno dos contratos de trabalho mostram a inviabilidade de toda pessoa presa de acessar o atendimento médico hoje no sistema prisional. Além disso, essas equipes e as condições estruturais, ainda que defasadas, estão em grande parte nas unidades localizadas nos centros urbanos das capitais. Esses elementos resultam na inviabilidade concreta do acesso – ainda que muito restrito – às pessoas presas à política de saúde, em unidades do interior ou de pequeno porte. Outro dado que nos chama atenção é o número de óbitos por causas naturais e por doenças cujo risco de contágio soma-se à insalubridade espacial, tais como tuberculose e sífilis. Doenças que tiveram grande impacto sobre a sociedade, durante todo o século XIX, mostram que a prisão além de ser o depósito da miséria é também o da morte anunciada. A COVID-19 lança com suas contradições uma atuação distinta do poder público sobre o cárcere. Em virtude do controle epidemiológico que ela exige e dos riscos que estão além do segregado confinamento entre pessoas presas, a magistratura e os servidores que operam a política penal não estão nem livre do contágio, tampouco seguros em seus espaços de trabalho. Parece-nos que, nesse caso, a ideia de intervenção guarda relação com a proposta de segurança dos que operam o sistema. Para tal, faz-se necessário um levantamento de dados e informações que possam justificar a parada e a flexibilização dos atendimentos, das audiências entre outros. Por outro lado, destinados à sorte estão os que acessam essa política. Sem água encanada, sem alimentação adequada, em celas superlotadas, com doenças preexistentes, sem atendimento clínico para todos/as, sem testes em massa e possibilidade de isolamento dos/as infectados/as. Tudo isso mostra as contradições do Estado de direito que, como bem nos disse Zaffaroni (2016), sempre carrega um tanto de Estado policial.
Esses dados precisam, portanto, ganhar centralidade para além da leitura pragmática das precárias condições do sistema prisional, que já sabemos que atuam, nestes casos, como espécie de veste da punição e da coerção estatal. Esses dados precisam ser públicos no sentido mais amplo e ético da palavra. Se todas essas mortes são anunciadas porque há condições materiais e concretas para que ocorram, é preciso entender que as estratégias de segurança em relação à COVID-19 partem delas, mas não pôr elas. Dito isso, cabe-nos o uso político da pandemia, no qual destacamos a assertiva de que a política de hiperencarceramento é o enredo da pandemia anunciada, que antecede a COVID-19, mas que a partir dela incide sobre o Estado de direito táticas de contenção do Estado policial.