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A busca pelo reconhecimento como uma vida: notas sobre um serviço de saúde

The search for recognition as a life: Notes on a Brazilian health care services

Pablo Cardozo ROCON *
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Maria Elizabeth Barros de BARROS **
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Alexsandro RODRIGUES ***
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

A busca pelo reconhecimento como uma vida: notas sobre um serviço de saúde

Argumentum, vol. 13, núm. 1, pp. 213-227, 2021

Universidade Federal do Espírito Santo

Recepción: 22/08/2020

Aprobación: 17/12/2020

Resumo: Neste artigo, a partir das propostas teóricas da filósofa Judith Butler, analisamos os sentidos de reconhecimento com os gêneros produzidos por mulheres que foram usuárias de um ambulatório do processo transexualizador do SUS. Foi realizada uma pesquisa qualitativa, a partir de entrevistas gravadas em áudio com nove mulheres transexuais que realizaram cirurgia de redesignação sexual. Problematizamos que os manuais de diagnósticos apresentam a transexualidade como condição patológica e problema individual, evidenciando o reconhecimento de si como descolado do reconhecimento dos outros. Concluímos que a busca pelos serviços transexualizadores também reflete a tentativa de produção de um reconhecimento nos gêneros, um esforço por produzir condições para aparecer publicamente, ser reconhecida pelos outros como vidas vivíveis, dignas de proteção, em contraposição à discriminação.

Palavras-chave: Saúde, Discriminação, Reconhecimento, Transexualidade, Cirurgia de redesignação sexual.

Abstract: This article, based on the theoretical proposals of the philosopher Judith Butler, analyzes the meanings of recognition of genders produced by women users of a SUS outpatient gender transitioning clinic. Qualitative research was conducted through recorded interviews with nine transsexual women who had undergone gender reassignment surgery. We question that the diagnostic manuals present transsexuality as a pathological condition and a single issue, evidencing the recognition of oneself as being distinct from the recognition of others. We conclude that searches for gender transitioning services reflects attempts to produce a recognition of genders, an effort to produce conditions to permit individuals to appear publicly, to be recognized by others as having livable lives, worthy of protection, and in opposition to discrimination.

Keywords: Health, Discrimination, Recognition, Transgender people, Gender reassignment surgery.

Introdução

O Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS) - criado em 2008 e ampliado no ano 2013 pela Portaria GM/MS 2803/2013 - é efeito da luta da população trans (transexual e travesti) brasileira por acesso à saúde. Atualmente, é a principal resposta estatal às demandas específicas em saúde desta população; ofertando acompanhamento social, psicológico, psiquiátrico, endocrinológico para hormonioterapia e cirurgias de redesignação sexual (mudança de sexo) e outras.

As dificuldades de acesso a tal programa tem deixado a população trans refém dos possíveis adoecimentos e sofrimentos decorrentes da busca pela transformação dos corpos sem o amparo do Estado, pelo uso de hormônios sem acompanhamento médico, aplicações de silicone industrial, etc (ROCON et al., 2016). Neste sentido, tais demandas não devem ser compreendidas por perspectivas de responsabilização individual, por uma moralidade neoliberal segundo a qual

[...] cada um de nós é responsável apenas por si mesmo, e não pelos outros, e essa responsabilidade é principalmente e acima de tudo uma responsabilidade por nos tornarmos economicamente autossuficientes em condições em que a autossuficiência está estruturalmente comprometida. Aqueles que não têm condições de pagar por assistência médica constituem apenas uma versão de uma população considerada descartável (BUTLER, 2018, p. 32).

É preciso que haja uma compreensão das consequências que possam emergir das tentativas de transformação do corpo sem o amparo de Estado; uma responsabilidade coletiva, em que todas e todos estão implicados na defesa, ou não, de todas as vidas. Na mesma direção, também se torna importante compreender que tais consequências são reverberações de escolhas político-estatais sobre como serão geridos os recursos públicos e, consequentemente, em quais políticas e programas eles serão aplicados. As políticas sociais passam pela descaracterização de seu significado de direito social, sendo atravessadas por discursos e práticas institucionais que pensam sobre as políticas sociais como “[...] paternalistas, geradoras de desequilíbrio, custo excessivo do trabalho, e devem ser acessadas via mercado” (BEHRING, 2008, p. 64).

Neste artigo pretende-se analisar uma dimensão do processo transexualizador na vida de pessoas trans - o que ainda perece pouco explorada pela literatura científica –, a questão do reconhecimento. O reconhecimento tem sido pensado fora do campo das relações sociais, visto como a necessidade de produção de uma congruência entre corpo físico e autoimagem, entendendo reconhecimento como se não sofresse rebatimentos da sociabilidade nos gêneros com suas normas. Essa tem sido uma perspectiva fortalecida pelo diagnóstico sobre as identidades trans, que a afirmam sob a ótica de uma incongruência, e tem servido de dispositivo que mantêm os serviços transexualizadores seletivos, contrapondo-se ao caráter universal da política de saúde brasileira (ALMEIDA; MURTA, 2013; ROCON et al., 2019).

Em companhia de Judith Butler, este texto analisa o reconhecimento como uma produção coletiva, balizada por normas sociais. Sendo assim, sofre rebatimento por questões políticas, econômicas, culturais e sociais, que entendem determinadas populações como descartáveis, elimináveis, sem qualquer possibilidade de luto. Isso ocorre ora em nome da proteção de algumas vidas em detrimento de outras, ora sob as justificativas de incapacidade financeira de atender a todos(as), apregoando uma responsabilização individual pelas mazelas que emergem de uma sociedade produzida e sustentada nas desigualdades socioeconômicas.

A análise proposta se debruça sobre um conjunto de nove entrevistas narrativas realizadas – no 1º semestre de 2017 - com mulheres transexuais que realizaram cirurgia de redesignação sexual em um Hospital Universitário. O objetivo é problematizar – a partir das narrativas - as divergências entre as noções de reconhecimento que mulheres transexuais produzem com a sociabilidade nos gêneros, em contraponto às noções de reconhecimento, marcadas pela patologização e medicalização, expressas por manuais diagnósticos sobre as identidades trans.

A pesquisa foi conduzida por uma abordagem qualitativa; estratégia para analisar “[...] interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam” (MINAYO, 2014, p. 57). As participantes foram selecionadas a partir da metodologia bola de neve, “[...] forma de amostra não probabilística, que utiliza cadeias de referência. Torna-se útil para estudar determinados grupos difíceis de serem acessados” (VINUTO, 2014, p. 203). A primeira entrevista fora agendada a partir dos registros hospitalares, acessados mediante anuência da direção. A partir daí, cada participante fora compondo a amostra por indicações.

As narrativas foram produzidas em uma pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob número CAAE 57931916.2.0000.5060, e a participação mediada pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para garantir o sigilo, a confidencialidade dos dados e o anonimato das participantes, nomes e outras características pessoais não serão apresentadas.

A análise das narrativas foi organizada sob uma concepção genealógica crítica, em uma perspectiva foucaultiana. Assim, analisam-se as condições de produção dos discursos, os seus entrelaçamentos e atravessamentos nas teias de relações de poder; produção de verdades; dispositivos de saber; produção; controle; circulação e interdição de discursos. A análise foi organizada em duas categorias: reconhecimento de si e reconhecimento pelos outros. Nesta direção, apresentamos as análises sob dois tópicos: 1. Diagnóstico e o reconhecimento como alheio à sociabilidade; 2. Processo transexualizador: a busca pelo reconhecimento como uma vida.

Diagnóstico e o reconhecimento como alheio à sociabilidade

As normativas brasileiras sobre o processo transexualizador afirmam a necessidade da aferição de uma condição patológica como critério de acesso ao programa nas modalidades ambulatorial e hospitalar (BRASIL, 2013). A Portaria GM/MS 2803/2013 define que o programa deve se orientar pelos “[...] critérios estabelecidos na Resolução nº 1.652 de 2002 do Conselho Federal de Medicina (CFM)” (BRASIL, 2013). Na resolução citada, a população trans é compreendida como portadora “de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou auto-extermínio” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2002).

Na última década uma série de mudanças foram vistas nos manuais de diagnósticos em relação às identidades trans. O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), em sua 4ª versão, enquadrava tais identidades como Transtorno de identidade de gênero, já em sua última versão, DSM-5, passou a nomeá-la por disforia de gênero, segundo qual “Indivíduos com disforia de gênero apresentam incongruências acentuadas entre o gênero que lhes foi designado (em geral ao nascimento, conhecido como gênero de nascimento) e o gênero experimentado/expresso. Essa discrepância é o componente central do diagnóstico” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 453).

A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde em sua 10ª versão (CID-10), definia as identidades trans sob a categoria F064 – transexualismo, localizada no capítulo transtornos da identidade sexual. Na versão mais recente, CID-11, tais identidades foram realocadas em um novo capítulo – Conditions related to sexual health (Condições relacionadas à saúde sexual), sob HA60 – Gender incongruence (Incongruência de gênero). Em sua descrição, a CID-11 apresenta que “A incongruência de gênero é caracterizada por uma discordância evidente e persistente entre o gênero experimentado de um indivíduo e o sexo atribuído. O comportamento e as preferências relacionados aos gêneros não bastam para atribuir os diagnósticos neste grupo” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2018, não paginado, tradução nossa[1]).

A partir das alterações na CID, o CFM brasileiro também atualizou suas normativas pela Resolução nº 2.265/2019, segundo a qual:

Art. 1º Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero. § 1º Considera-se identidade de gênero o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero. § 2º Consideram-se homens transexuais aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem. § 3º Consideram-se mulheres transexuais aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher. § 4º Considera-se travesti a pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2019, não paginado)

As alterações devem ser observadas como fruto das lutas dos movimentos sociais de pessoas Trans e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTs), com sua pauta permanente pela despatologização e reconhecimento das vidas trans como portadoras de direitos sociais. O diagnóstico tem sido sistematicamente apresentado pela literatura como promotor de seletividade no acesso aos serviços transexualizadores, fazendo com que inúmeras pessoas não adentrem a tais serviços (BENTO, 2006, LIONÇO, 2009, BENTO; PELÚCIO, 2012, ALMEIDA; MURTA, 2013, ROCON et al., 2019, ROCON et al., 2020).

Tal seletividade se dá pelo fato dos(as) trabalhadores(as) da saúde envolvidos no diagnóstico, serem orientados por normas sociais que afirmem o binarismo dos gêneros, “[...] produz e reproduz a ideia de que o gênero reflete, espelha, o sexo, e que todas as outras esferas constitutivas dos sujeitos estão amarradas a essa determinação inicial [...]” (BENTO, 2006, p. 90), como única possibilidade de existência na sociabilidade com os gêneros. Bem como, também se orientam pela heteronormatividade, que além de considerar a heterossexualidade como padrão/referência para todas as sexualidades, classifica as sexualidades não heterossexuais como “[...] incompletas, acidentais e perversas; e, na pior, patológicas, criminosas, imorais e destruidora da civilização” (BORRILLO, 2010, p. 31). Segundo Bento e Pelúcio (2012), o diagnóstico para as identidades trans tem sido orientado por “[...] verdades estabelecidas socialmente para os gêneros [...]. Não existe um só átomo de neutralidade nesses códigos” (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 579). Ao compartilharem as experiências com o processo diagnóstico nos serviços transexualizadores do SUS, algumas participantes disseram:

Você tem que estar melhorando”. [...] A aparência eu acho que é isso [...] Eu acho que eles olham muito assim, a questão social mesmo. Se você vai ter uma aceitação. Eu acho que é isso também. [...] Eu não concordo. Porque o que realmente influencia é o que você sente. É o que está no seu coração. Entendeu? Então, se eu me sinto como uma mulher, independente assim de ter peito, de ter uma fisionomia feminina. (Participante 4)

E aqui no hospital uma pessoa que tem barba no rosto não vai operar [...]. A Psicóloga mesmo fala -“você é tão feminina. Você já pode operar”. Não é isso que faz uma pessoa operar, não é o físico, é a cabeça. Você entendeu? Então muitas meninas que estavam no plano que não eram femininas, que não tinham condições de se cuidar, a Psicóloga achava que não estavam preparadas porque não eram femininas. Entendeu? (Participante 6)

Porque, na realidade, o que eles cobram é você ter uma vivencia feminina. Eles falam que eles não operam homem. [...]Eu já estava cansada de falar as mesmas coisas. Você tinha que provar que era mulher, que você era mulher na cabeça... Na maneira de vestir, em tudo. (Participante 7)

Às vezes a gente chegava com as meninas lá e ele até corrigia. Porque se é mulher tem que ser mulher. Entendeu? Então ele relatava muito isso.” (Participante 8).

As narrativas nos mostram que apenas pessoas trans que se adequam à uma idade de transexualidade verdadeira acabam acessando os serviços transexualizadores; aquelas que melhor reproduzem, em seus comportamentos, relações afetivas e eróticas, vestimentas e estética corporal (barba, cabelo, maquiagem, etc) as normas de gênero e sexualidade, apresentando, inclusive, a cirurgia de redesignação sexual como meta terapêutica. Ainda pode-se perceber uma ideia de reconhecimento balizada pelas normas de gênero operando na definição de quais pessoas acessarão os serviços transexualizadores ou não.

Os discursos defensores do diagnóstico de transexualismo e da busca pelos transexuais verdadeiros apoiam-se na ideia da pessoa trans como incapaz de determinar a si mesmo, conhecer de fato a si, e por isso, apresentam o diagnóstico como suposta proteção frente às possíveis escolhas incertas, que culminam no suicídio por arrependimento após transição no gênero (BENTO; PELÚCIO, 2012). Contudo, Hess et al.. (2014) apontam que “[...] a taxa de suicídio em indivíduos transgêneros após uma cirurgia bem sucedida não é maior que a da população em geral” (HESS et al., 2014, p. 800, tradução dos autores).

Tais discursos parecem se configurar em dispositivos que vislumbram manter invioláveis as normas que definem a compreensão de humano e não humano, de vida e não vida, de normal e anormal a partir das normas de gênero (PRECIADO, 2018). Isso porque no entre reconhecimento de si e reconhecimento pelos outros, tais dispositivos - ao interditarem os discursos trans e produzirem tais sujeitos como incapazes de autodeterminarem a si mesmos na relação com os gêneros - parecem tentar transformar a autodeterminação em uma determinação externa. Em suma, apenas as experiências e vivências próximas às normas de gênero têm sido reconhecidas como capazes de autodeterminação. Assim, recebem um reconhecimento externo, como por exemplo, a não cobrança por laudos patologizadores de experiências com os gêneros para mulheres cisgênero (que não apresentam divergência com o gênero atribuído no nascimento), que vislumbram intervir esteticamente em seus corpos. Todavia, aquelas que em suas vivências com os gêneros experimentam dissidências, terão o direito à autodeterminação interditada, sendo produzidas como anormalidades passíveis de uma correção externa e, assim, serão submetidas às práticas com os serviços de saúde balizadas pelo reconhecimento de si por um outro, segundo as normas de gênero. Logo, se uma mulher cisgênero não enfrenta a patologização de sua identidade para aumentar ou reduzir seios pela cirurgia plástica, as mulheres trans sofrerão com a necessidade da aferição de uma condição patológica para tal procedimento ser realizado, caso não possam arcar com os custos na medicina privada.

Não há um consenso, entre pesquisadores (as) brasileiros (as) e o próprio movimento social, de que as alterações no DSM, na CID e na resolução do CFM impactem no potencial despatologizador, bem como na redução das limitações de acesso ao processo transexualizador. Bento e Pelúcio (2012), ao analisarem as alterações no DSM e seus possíveis impactos nos serviços de saúde brasileiros, apontaram que

Se, para o Estado, os/as normais de gênero são aqueles/as que têm uma correspondência entre genitália, performance e práticas eróticas e se essa definição gera um modus operandi que exclui sujeitos que estão nos seus marcos, estamos diante de uma contradição com sua própria definição universalizante. A resposta para resolver essa contradição nos limites do DSM é a inclusão excludente. O silêncio diante de uma produção e reprodução de uma cidadania precária e deficitária, intencionalmente implementada pelo Estado, nos retira da posição de vítimas para a de cúmplices. Concordar que o gênero continue sendo diagnosticado, em vez de questionado, é permitir que os seres construídos como abjetos devessem continuar habitando as margens do Estado (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 577).

Ao observarmos as recentes alterações na CID, poderíamos dizer que a análise das autoras permanece atual, uma vez que os argumentos pela não supressão das identidades trans na CID 11 residiu em uma preocupação por garantir a manutenção do custeio estatal pelos serviços transexualizadores. Contudo, tal estratégia política - a de uma concessão estratégica, nas palavras de Bento e Pelúcio (2012), em função da manutenção da patologização para garantia do acesso - desconsidera o caráter público e universal da política de saúde brasileira. Para Rocon et al. (2016), a Constituição Federal do Brasil de 1988 “[...] não condiciona o acesso à saúde no SUS pela existência de uma patologia prévia, e esse foco na saúde pela negação da doença tem impedido pessoas trans de acessarem serviços públicos de saúde” (ROCON et al., 2016, p. 2524).

Aqui apontamos que as alterações nos manuais diagnósticos expressam tentativas de esvaziamento das críticas necessárias às normas binárias e heteronormativas - que regulam as relações de gênero -, na medida em que buscam centrar nos indivíduos e na relação que estabelece consigo mesmo um problema de dimensão social, cultural, política e econômica, portanto, um problema coletivo. Tentativas de manter inabaláveis as bases epistemológicas que pregam a verdade sobre o sexo, buscando por “[...] medidas desesperadas (e violentas) para reforçar uma epistemologia abalada” (PRECIADO, 2018, p. 113).

Na CID 11 as identidades trans não são mais apresentadas sob o signo do transtorno. Tal fato, para parte dos(as) acadêmicos(as), pesquisadores(as), trabalhadores(as) da saúde e o próprio movimento social, soa como uma espécie de suavização em relação ao signo do transtorno. Contudo, é importante ter em evidência que a ideia de incongruência também carrega em si uma dimensão de anormalidade, tendo em vista que traz a ideia da existência de uma suposta congruência universal entre gênero e sexo, sob a qual todos e todas estariam inevitavelmente submetidos(as). Nesta direção, podemos afirmar que, apesar do jogo linguístico, da mudança de palavras, as vivências e dissidências no gênero permanecem sob o status da anormalidade, e assim, da patologização e medicalização.

Outro elemento que precisa ser analisado é a individualização, a responsabilização individual por questões de dimensões coletivas. Ao centrar a problemática da dissidência nos gêneros nas estruturas biológicas e psíquicas dos indivíduos, insiste-se na busca por esvaziar e barrar possibilidades críticas às normas que aí estão regulando as vidas nos gêneros. Na medida em que a noção de reconhecimento é reduzida à uma relação do indivíduo consigo mesmo - excluindo o outro e a dimensão coletiva da produção do reconhecimento público - vê-se, a partir de marcos civilizatórios, tentativas de controlar insurgências que anunciam possibilidades de produção de novas formas de viver com os gêneros e as sexualidades.

Assim, ao tratar o problema das normas de gênero excludentes, que produzem sofrimento, morte e marginalização social frente aos direitos sociais como uma incongruência entre gênero vivido e estruturas corporais, perde-se a possibilidade de alimentar e forjar resistências, de produzir e aventar marcos civilizatórios que afirmem o direito à diferença e à justiça social, possibilitando existir e viver para além do previsto pelas normas binárias e heteronormativas para os gêneros.

Não que o reconhecimento de si não seja um elemento importante na vida humana, contudo, ele não acontece alheio às relações sociais que produzem normas, como tentam afirmar os dispositivos de diagnósticos com sua individualização de problemáticas de ordem social via medicalização. Dispositivos que pela patologização das identidades trans, ainda cumprem um papel de apresentar a cisgeneridade e a heterossexualidade como naturais, padrões universais e biológicos, como referência para os processos terapêuticos da população trans, não os considerando como fruto de processos sociais, que supõe o reconhecimento de si e pelos outros.

Processo transexualizador: a busca pelo reconhecimento como uma vida

Michel Foucault (2010), em seus estudos, analisa que a arte de governar do Estado Moderno se organiza pelo que nomeou por poder disciplinar e biopoder. Para o autor, as disciplinas se constituíram em uma arte de governar os indivíduos, a fim de otimizar suas forças em termos de produção econômica, reduzindo-as quanto as possibilidades de resistência e organização política. O biopoder emerge no momento em que a população com seus amotinamentos se constitui em problema político, assim, os processos da vida – nascimento, morte, saúde, higiene pública, etc – passam a ser geridos pelo Estado (FOUCAULT, 2010).

Para Foucault (2010), a sociedade das disciplinas e do biopoder confluem na produção de uma sociedade de normalização, um poder público que vislumbra gerir e regular os comportamentos (FOUCAULT, 2008). Essa nova arte de governar se organiza por um poder que faz viver e deixa morrer, um poder que acessa o corpo em nome da proteção, preservação e aumento da expectativa da vida a partir de um conjunto de biopolíticas (FOUCAULT, 2013). Mas, nem todos serão protegidos por um fazer viver. Segundo Foucault (2010), o Estado Moderno opera o velho poder soberano de espada, e faz morrer segundo Racismo de Estado. Por esse racismo o Estado realiza uma separação dentro da própria população entre aqueles que serão protegidos e os que serão produzidos anormais, ameaça a ser eliminada com a morte ou abandono. Segundo Butler (2018), “De fato, estamos no meio de uma situação biopolítica na qual diversas populações estão cada vez mais sujeitas ao que chamamos de precarização” (BUTLER, 2018, p. 21).

A autora (2016) afirma que certas vidas não são consideradas vidas, e certos enquadramentos epistemológicos diferenciam, dentre os próprios humanos, os que serão reconhecidos como tal. Logo, determinados grupos populacionais poderão ser abandonados ou mortos sem qualquer lamento mediante a perda de um status de humanidade. Para a autora, “A distribuição diferencial da condição de ser passível de luto entre as populações tem implicações sobre por que e quando sentimos disposições afetivas politicamente significativas, tais como horror, culpa, sadismo justificado, perda e indiferença” (BUTLER, 2016, p. 45).

Butler (2016; 2018; 2019) analisa uma condição de precariedade na existência, a qual todos e todas estão expostos. Segundo ela, “[...] cada um de nós pode se ver sujeito à privação, dano, doença, debilitação ou morte em decorrência de eventos ou processos fora do nosso controle” (BUTLER, 2018, p. 27). Não se trata de uma simples verdade existencial, mas uma verdade geral vivida diferencialmente pelas populações, “[...] uma vez que a exposição a acidentes de trabalho ou os serviços sociais ineficientes claramente afetam os trabalhadores e os desempregados muito mais do que as outras pessoas” (BUTLER, 2018, p. 27).

Há uma desigualdade de exposição e de distribuição da precariedade nas possibilidades de viver e existir; tal diferenciação é organizada a partir das normas sociais, que muito se aproximam das discussões foulcaultianas que abrem esse tópico. Normas que balizam o reconhecimento de determinados sujeitos como humanos/vidas vivíveis. Assim, determinadas populações ao serem vistas como elimináveis, descartáveis e perigosas, não vislumbrarão esforços estatais para minimizar as condições de precariedade de suas vidas. Em certos casos, terão tal precariedade aumentada pelas ações do próprio Estado. Segundo Butler (2019, p. 52):

Vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é distribuída ao redor do mundo. Certas vidas serão altamente protegidas, e a anulação de suas reinvindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como ‘passíveis de serem enlutadas’ (BUTLER, 2019, p. 52).

Essas normas que balizam a produção e distribuição desigual da precariedade, para Butler (2018), estão diretamente ligadas às condições de reconhecimento como uma vida vivível, digna de ser protegida e de ter aparecimento público, uma vez que “Nem todos podem aparecer em uma forma corpórea [...]” (BUTLER, 2018, p. 14). Aparecer em tal forma supõe que o corpo em sua materialidade e performatividade, esteja normativamente enquadrado como humano, normal, vida, enfim, seja reconhecido! Em tais normas, “[...] o gênero é induzido por normas obrigatórias que exigem que nos tornemos um gênero ou outro (geralmente dentro de um enquadramento estritamente binário)” (BUTLER, 2018, p. 39).

Para Butler (2018), tais normas apresentam um alto custo a todos. Aos que delas se desviam, o custo reside no aumento da precariedade e ausência de proteção, aos que a ela se adequam bem demais, estão expostos a “[...] custos psíquicos e somáticos muito altos” (BUTLER, 2018, p. 40). Fato é, as normas de gênero definem as condições para ser reconhecido como uma vida vivível, passível de luto e, que mobiliza esforços coletivos e estatais em função de sua proteção, manutenção e minimização da precariedade. Segundo a autora,

[...] uma vez que sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis estão expostas a um risco elevado de assédio, patologização e violência. As normas de gênero têm tudo a ver com como e de que modo podemos aparecer no espaço público, como e de que modo o público e o privado se distinguem, e como essa distinção é instrumentalizada a serviço da política sexual (BUTLER, 2018, p. 41).

Assim, ficaram expostas à violência, ao abandono e ao risco de morte aqueles e aquelas que não apresentarem determinadas conformidades entre gênero e sexo (e demais estruturas corporais). Segundo Butler (2018), “[...] reconhecer um gênero muitas vezes envolve reconhecer uma determinada conformidade corporal com uma norma” (BUTLER, 2018, p. 46). Assim, uma vez que as normas de gênero e sexualidade definem humanos e não-humanos (abjetos), vidas cujas perdas são lamentadas ou não, tais normas também determinarão as condições de acesso às políticas públicas de saúde.

Quando observamos as narrativas das nove participantes desta pesquisa, percebemos que o reconhecimento que elas buscam está muito além e aquém de uma relação ensimesmada, de forma que o reconhecimento de si está diretamente ligado ao reconhecimento pelos outros em sua forma corpórea, de forma que em certos casos, o primeiro é aferido a partir do segundo.

Ela [cirurgia] me fez ir pro mundo. Tanto que eu fiz a cirurgia e 8 meses depois eu estava em Portugal. Ela me jogou pro mundo, com garra, com força. Disse: -“Vai, vai à luta”. Na luta do trabalho. E depois que mudei o nome me empoderou mais ainda. [...] Hoje com 18 anos que já vai fazer a cirurgia, eu virei uma pessoa guerreira, eu aprendi a lutar mais, o preconceito pra mim não existe. [...] Eu tinha vergonha do meu sexo. Foi por isso que a minha cirurgia me completou. Por isso. Hoje, imagina agora, eu fui ali tirar os pontos imagina se eu tivesse um pinto. Seria ridículo pra mim. (Participante 3).

Eu me sinto mais mulher depois da cirurgia. Eu me sinto mais confiante, eu me sinto mais livre, eu me sinto mais confortável. Antes eu não ficava pelada na frente de ninguém, hoje eu já fico. (Participante 6).

Só que eu até fiquei com outras pessoas, e passei direto. Entende? Fiquei num vi diferença nenhuma, e eles também não perceberam. Só que tem homens que são espertos. É isso que eu queria saber, porque eu pergunto pro meu marido: Tem diferença? E ele fala que não. Só que eu sou muito curiosa. Entende? Ele fala que não tem diferença nenhuma. Só que assim, na minha cabeça, na hora da penetração, eu acho que vai ter algo diferente. Ele relata que não. Só que assim eu tenho essas dúvidas. (Participante 8)

Tão bom ter seu passaporte de mulher [demais documentações]. Essas coisas todas. Eu me sinto realizada. [...] Eu me sinto uma mulher. Uma jovem senhora plastificada. Toda pirocada, com várias perucas, toda esticada, e ganho bem. (Participante 9).

As participantes nos mostram que a compreensão sobre a busca pela cirurgia de redesignação sexual não pode ser limitada a uma tentativa de solução de incongruência entre os gêneros vividos e às estruturas corporais. Não se trata de uma busca por reconhecer-se em si, no próprio corpo, descolada da relação com os outros. Há uma busca pelas possibilidades de trabalhar, relacionar-se afetivamente, aparecer publicamente com o corpo e a alteração dos documentos.

Trechos como: “me fez ir pro mundo”, “Antes eu não ficava pelada na frente de ninguém”, “Passei direto... eles também não perceberam”, “Tão bom ter seu passaporte de mulher”, nos mostram um itinerário de busca pelo que Butler (2018; 2019) analisa como possibilidades de aparecimento com o próprio corpo na relação com os outros. As narrativas nos apresentam sentidos sobre a busca pela cirurgia de redesignação sexual, que passam pela busca por ser reconhecida pelos outros como corpo e gênero em conformidade. Itinerários de busca por escapar de uma vulnerabilidade à discriminação, desrespeito, violência física, a fim da produção de disposição afetiva em relação à própria vida pelos outros, e assim, poder acessar a vida no mundo dos gêneros normalizados. Enfim, tornar-se uma vida cuja perda poderá ser enlutada porque é reconhecida. Segundo Butler (2019, p. 55), “[...] a questão não é simples, pois, se uma vida não é digna de luto, ela não é bem uma vida; ela não se qualifica como uma vida [...]”.

Pressupostos afirmam a existência de um desejo universal por intervir cirurgicamente nas genitálias, a fim da produção de uma consonância entre expectativas pessoais, experiências no gênero e nas genitálias. Contudo, ao contrário do que afirmam esses patologizadores das identidades trans, a cirurgia não é uma certeza de meta terapêutica universal. Dentre os relatos, encontramos uma participante que discorre sobre a cirurgia de redesignação sexual em sua vida como acontecimento, um arriscar sem muitas certezas em relação ao resultado.

Antes eu não queria operar. Eu tinha medo da cirurgia. [...]. Eu, assim, eu pensava em fazer a cirurgia, mas ao mesmo tempo, eu nunca tinha tido uma perereca. Eu sabia que faltava alguma coisa, mas, eu não podia ter certeza de que era uma perereca. Eu não sabia, não sabia o que era ter. Então, se eu operasse e esse vazio não fosse de uma perereca fosse de outra coisa. Então, eu sempre tive essa dúvida na cabeça. [...] Mas eu cheguei a um ponto que eu falei assim: - Ou eu vivo a minha vida inteira com essa dúvida ou eu arrisco, opero, e vejo no que vai dá. [...] E foi isso. Eu resolvi arriscar e era isso. (Participante 6).

A participante relata ter se submetido à cirurgia de redesignação sexual sem a certeza se era o que de fato vislumbrava. Tal relato se desencontra com muitas das descrições e classificações apresentadas pelos manuais de diagnósticos para a transexualidade ao longo das últimas décadas. Descrições e nomenclaturas que, ao classificarem a população trans como portadoras de transtorno, disforia, transexualismo e incongruência de gênero, sempre apresentaram uma ideia de transexualidade verdadeira fixa e universal, que dentre os critérios para sua classificação, residem a ojeriza às genitálias e uma certeza sobre a busca por realizar uma cirurgia de redesignação sexual.

Contudo, a aparente incerteza que por alguns é compreendida como algo a ser evitado sob o signo de um potencial e perigoso arrependimento, apresentando a população trans como potencial suicida (BENTO; PELÚCIO, 2012); não impediu a participante de dizer sentir-se mais mulher hoje com a cirurgia. Tal realização, como vimos anteriormente, é avaliada pelas possibilidades de experimentar a nudez de seu corpo, por sentir-se livre para um aparecimento público. Assim, percebe-se que não há um reconhecimento ensimesmado. O sentir-se mais mulher está relacionado ao reconhecimento pelo outro como mulher e, assim, com a possibilidade do aparecimento público com o próprio corpo, que foi mediado pela redesignação sexual.

Nesta direção, percebemos uma complexidade na análise sobre diagnóstico e acompanhamento no processo transexualizador, que muitas vezes tem sido negligenciada. Tal complexidade supõe perceber que a autoconstrução com os gêneros é mediada por uma “[...] totalidade histórica, em que indivíduos e grupos têm grande parte suas vidas condicionadas por determinantes de diversas naturezas: econômica, política, cultural e subjetiva” (ALMEIDA; MURTA, 2013, p. 396).

Neste sentido, importa ampliar as discussões em torno da patologização das identidades trans em contraposição às moralidades neoliberais que a atravessam, de modo a problematizar que as experiências no gênero vão muito além das normas binárias e heteronormativas reafirmadas pelos dispositivos diagnósticos. Isso nos lança a analisar que a questão dos serviços transexualizador não pode se limitar às análises sobre ter ou não uma vagina, nos fazendo perceber como tal questão é atravessada pelas políticas de reconhecimento, que apresentam um reconhecimento de si inseparável de um reconhecimento pelos outros. Ademais, importa perceber como tal reconhecimento, mediado pela cirurgia de redesignação, pode forjar uma possibilidade de aparecimento público sob o risco minimizado de exposição à violência física e demais manifestações da transfobia.

Considerações Finais

Connell e Pearse (2015, p. 217) afirmam: “[...] não há nada bonito na mudança de gênero; são medidas drásticas com resultados severos”. As autoras narram uma série de fatores inerentes à transição no gênero e que se deslocam do campo da intervenção médica sobre os corpos às relações sociais no gênero, compreendendo família, amigos, relacionamentos afetivos, mercado de trabalho e documentação legal.

As vidas trans não cabem nos manuais diagnósticos, não se limitam a uma identidade de transexualidade verdadeira. Ademais, elas anunciam possibilidades de viver e existir nos gêneros para além das normas de um binarismo heteronormativo, as quais nos confinam. A patologização da transexualidade deve ser compreendida como tentativas de manter invioláveis verdades produzidas que pregam a linearidade entre as genitálias e os gêneros. Verdades que afirmam pressupostos, com base em discursos biológicos, que pregam as diferenças entre homens e mulheres e discursam em prol das desigualdades de gênero, nas relações com a família, com a casa, o trabalho, etc (CONELL; PEARSE, 2015).

A patologização da transexualidade produz a ideia de uma busca por um reconhecimento ensimesmado, apresentando a cirurgia de redesignação sexual como meta terapêutica universal, enquanto a experiência trans – amparada por uma moral neoliberal - é considerada como condição nosológica, como um problema do indivíduo, que deve ser resolvido de maneira individual, com as transformações corporais; uma compreensão sobre reconhecimento que não encontra materialidade na realidade. Ao conversar com as participantes desta pesquisa, percebemos que há, a todo tempo, uma busca por reconhecer a si mesmo na relação a partir do reconhecimento dos outros; uma tentativa de construção de um corpo que possibilite uma vida livre de discriminação e violência, que permita acesso ao trabalho, às relações afetivas, ao aparecimento público, etc.

Assim, a busca por transformar os corpos está diretamente ligada à produção de uma vida que tenha, a partir do reconhecimento dos outros, uma disposição afetiva. . Tornar-se reconhecida como humana, e assim, cidadã, cujos direitos sociais devem ser resguardados e garantidos. É certo que tal reconhecimento também será balizado por intersecções com raça, geração, classe social, etc, que produzirá outras desigualdades na condição de precariedade dentre as mulheres desta pesquisa. Contudo, é notório que a busca pela transição no gênero está, inegavelmente, relacionada à busca em minimizar as condições de precariedade que estão expostas.

Nesta direção, torna-se importante pensar a despatologização das identidades trans e o acesso à saúde dessa população de maneira universal, como partícipe de uma constelação de lutas, na qual a precariedade pode se constituir em uma identidade na luta. Segundo Butler (2018),

A precariedade é a rubrica que une as mulheres, os queer, as pessoas transgêneras, os pobres, aqueles com habilidades diferenciadas, os apátridas, mas também as minorias raciais e religiosas: é uma condição social e econômica, mas não uma identidade (na verdade, ela atravessa essas categorias e produz alianças potenciais entre aqueles que não reconhecem que pertencem uns aos outros) (BUTLER, 2018, p. 65).

Pensar uma luta pelas e com as vidas trans, pela despatologização, com a garantia de seu acesso aos serviços de saúde, faz-se inseparável da luta contra a desigualdade de gênero, contra o racismo, a homofobia, contra a exploração do trabalho, a produção da pobreza, e, no caso do Sistema Único de Saúde brasileiro, pela efetivação dos princípios ético-políticos da Reforma Sanitária brasileira – justiça social, universalidade e integralidade.

Referências

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Notas

[1] “Gender incongruence is characterized by a marked and persistent incongruence between an individual’s experienced gender and the assigned sex. Gender variant behaviour and preferences alone are not a basis for assigning the diagnoses in this group” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, s/p, 2018 ).

Notas de autor

* Assistente Social. Doutor em Educação. Professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal de Mato Grosso. (ISC/UFMT, Cuiabá, Brasil). Avenida Fernando Corrêa, nº 2367, Bloco CCBSIII, 2º piso, Boa Esperança, Cuiabá (MT), CEP.: 78060-900.

Responsável pela concepção, produção, análise e discussão dos dados, redação da primeira versão do texto e revisão final. Aprovou a versão final.

Assistente Social. Mestre em Saúde Coletiva e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor Adjunto DE do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

** Psicóloga. Pós-doutora em Saúde Pública e em Psicologia. Professora do Departamento de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. (UFES, Vitória, Brasil). Av. Fernando Ferrari, nº514,Goiabeiras,Vitória (ES), CEP: 29.075-910.

Participou da análise dos dados e revisão final. Aprovou a versão final.

Psicóloga. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Professora Titular DE do Departamento de Psicologia. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.

*** Pedagogo. Pós-doutor em Psicologia. Professor do Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. (UFES, Vitória, Brasil). Av. Fernando Ferrari, nº 514,Goiabeiras,Vitória (ES), CEP: 29.075-910.

Participou da análise dos dados e revisão final. Aprovou a versão final.

Pedagogo. Doutor em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Pós-doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Associado DE do Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.

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