Editorial

Desigualdade e violência de gênero

Annabelle BONNET *
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Francia
Victor Neves de SOUZA **
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

Desigualdade e violência de gênero

Argumentum, vol. 13, núm. 3, pp. 5-6, 2021

Universidade Federal do Espírito Santo

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Desigualdade e violência de gênero

É com um tema indispensável para a compreensão das dinâmicas sociais vigentes e de suas possibilidades de superação que a revista Argumentum encerra mais um ano de atuação no campo das ciências sociais aplicadas.

Fiel a seu posicionamento crítico e a seu compromisso com a emancipação humana, a seção temática Desigualdade e violência de gênero não apenas convida seu leitor a pensar sobre o tema abarcado sob o conceito de gênero, mas também traz modos de empregar essa categoria que a inscrevem em uma tradição antiessencialista e antinaturalista.

Com esse posicionamento, o dossiê se afasta de análises apriorísticas sobre o gênero, estáticas e rígidas, para proporcionar ao leitor estudos de caso em que a opressão de gênero é apresentada como resultante de relações sociais histórico-concretas de exploração e de dominação, sendo perquiridas suas especificidades na dinâmica da exploração capitalista.

Nessa perspectiva, tanto a desigualdade como a violência não são apresentadas como desvio moral, nem como doença ou problema meramente individual, mas como parte integrante de um modo de vida. O capitalismo não criou a desigualdade social nem a violência contra as mulheres, mas, como sistema totalizante, colocou como necessidade seu remodelamento. Essas relações foram inscritas em um quadro social historicamente específico, determinadas pelo imperativo da valorização do valor, a tal ponto que conceitos como o de gênero (assim como outros que não estão no centro do presente número de Argumentum, como os conceitos de raça e de orientação sexual) se tornaram marcadores sociais efetivamente operantes no sentido de estabelecer e reforçar modos particulares de manifestação de relações de dominação.

O tema da violência de gênero retoma uma questão perene no campo da reflexão sobre a sociedade: a questão da especificidade de certas formas de violência. Estudamos aqui aquelas que, estatisticamente, se dirigem mais ao feminino, ocorrendo em diversos espaços de sociabilidade – tanto na rua quanto na esfera doméstica, tanto no espaço considerado privado como no público, tanto em espaços de cuidado (como o hospital) quanto em espaços de educação, informação e exposição (como as escolas e os meios de comunicação de massa).

Ao examinar exemplos de violência nos espaços tidos como público e privado, o dossiê ajuda a problematizar uma separação entre as assim chamadas esfera pública e esfera privada, que não supera o plano da aparência. Essa problematização pode abrir caminho para interrogarmos até mesmo os saberes científicos tais como constituídos na forma social presente. Por exemplo, a violência no processo obstétrico é parte da aprendizagem de uma medicina moderna que, sob o modo de vida capitalista, se enraíza na violência contra os corpos dos subalternos. O conceito de gênero, portanto, nos fornece elementos para problematizar uma medicina na qual o próprio cuidado se torna meio de submissão e desumanização.

Na seção Debate, a revista Argumentum dá voz a autoras vinculadas a diferentes perspectivas na área do gênero – todas elas críticas. Busca-se, com isso, proporcionar um espaço de diálogo entre três das vertentes atualmente mais visíveis nesse segmento teórico, informando e ao mesmo tempo estimulando a reflexão através da polêmica construtiva. Mirla Cisne e Verônica Ferreira criticam, no texto central da seção, o que compreendem como “feminismo idealista”, apresentando o assim chamado “feminismo materialista francês” como alternativa. Andrea Moraes Alves dialoga com a análise dessas autoras, problematizando-a a partir da perspectiva da “consubstancialidade das relações sociais”. Arelys Esquenazi Borrego e Emilly Marques Tenorio criticam o que consideram insuficiências no assim chamado “feminismo materialista francês”, apresentando a “teoria da reprodução social” como repositório heurístico onde se podem encontrar categorias capazes de contribuir para a superação de tais limites.

A interessante discussão entre as autoras poderia ser prolongada se considerarmos que o assim chamado “feminismo materialista francês” não se constituiu exatamente como uma escola, tampouco um bloco teórico homogêneo. A diversidade entre as autoras agrupadas sob tal denominação se manifesta, por exemplo, em relação aos objetos privilegiados em seus estudos, aos conceitos centrais adotados, mas também a diferentes avaliações sobre o lugar, a importância e as pretendidas insuficiências do marxismo como teoria social global no interior da qual poderia (ou não) se desenvolver o feminismo.

Isso nos conduz ao último ponto no qual gostaríamos de tocar neste editorial.

É que, para além das diferenças entre as três vertentes representadas nos textos da seção Debate, a controvérsia entre as autoras aponta para a grande relevância do pensamento marxista na história da constituição de posições feministas efetivamente críticas das relações sobre as quais se apoiam a desigualdade e a violência de gênero. Categorias como exploração, capital, fetichismo e ideologia, assim como o tratamento marxista do lugar da família mononuclear (e das relações a ela associadas) para a produção e a reprodução do modo de vida vigente, abrem caminho à problematização consequente dos processos de silenciamento e de subalternização das mulheres, assim como da instrumentalização da teoria por projetos de poder calcados sobre a reprodução de relações de desigualdade de gênero e dominação masculina.

Boa leitura!

Notas de autor

* École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/Paris) / PPGPS-Ufes. E-mail: annabelle.bonnet7@orange.fr
** Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: victornsouza01@gmail.com.
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