Debate

1 Introdução
As funções precípuas de uma revista acadêmica são promover a circulação e fomentar o debate de ideias. Em tempos de negacionismo, é salutar termos espaços como este que a revista Argumentum acolhe. Foi, portanto, com grande alegria que me dediquei à leitura do artigo Feminismo e desigualdade: uma análise materialista das relações de opressão-exploração das mulheres, de autoria de Mirla Cisne e Verônica Ferreira (2021).
As autoras apontam para a relevância da perspectiva das relações sociais de sexo para a análise da questão da opressão das mulheres e sublinham a conexão existente entre esta perspectiva de análise e o método materialista histórico. Uma conexão que responde pelo caráter comprometido com a transformação social, que seria base necessária do feminismo como uma teoria e um movimento político radicais.
Como recurso argumentativo, o artigo começa por um exercício de afastamento entre a análise advogada pelas autoras e outras três perspectivas, classificadas como idealistas, nomeadamente: “[...] 1) aquelas tributárias do estruturalismo, prevalentes nos anos 1960-1970; 2) as perspectivas culturalistas e pós-modernas que ganharam força no âmbito dos chamados estudos de gênero, nos anos 1990 até os dias de hoje; 3) e, ainda, o pensamento abstrato-formal-tecnicista disseminado pelas instituições multilaterais e organismos internacionais, vinculado à hegemonia neoliberal” (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 9) Após a crítica a estas vertentes idealistas, as autoras partem para a explanação da natureza eminentemente materialista das relações sociais de sexo e concluem com a referência à atualidade das condições de trabalho das mulheres.
A primeira questão que me parece pertinente apontar diz respeito ao sentido da classificação idealismo endereçada a três perspectivas que são distintas do ponto de vista teórico-metodológico, político, assim como historicamente diversas. Classificações tão amplas podem servir para simplificar a exposição do argumento, mas ao custo da perda do rigor do pensamento, tão importante para o debate de ideias. O diagnóstico de deslize idealista como um traço persistente, mesmo naquelas produções que se ancoram no materialismo, também, creio, ajuda pouco na medida em que funciona menos como um convite ao pensar e mais como uma demarcação de fronteiras.
As teorias feministas são plurais e bebem de fontes muito díspares. Os estudos feministas compreendem uma gama heterogênea de abordagens que estão presentes em campos disciplinares que incluem das ciências humanas e sociais, passando pelas artes até as áreas das ciências da natureza, como atestam as discussões sobre feminismo e ciência (SCHIEBINGER, 2001). Se quisermos levar a sério a interdisciplinaridade que nos marca como um campo político e intelectual, temos que nos dirigir às variações teóricas e metodológicas necessariamente existentes entre nós de uma maneira mais dialógica[1]. Da mesma forma que é reducionista classificar o materialismo como determinista ou economicista, também o é nomear como idealistas perspectivas que operam com arcabouços conceituais que remetem ao simbólico, às subjetividades, à linguagem e à construção social dos significados da ação coletiva. No entanto, não creio ser esta a parte mais importante do artigo Feminismo e desigualdade e não é sobre este aspecto que eu gostaria de escrever.
Uma característica que a epistemologia feminista sustenta é a do conhecimento situado, conhecemos a partir da nossa posição no mundo, das nossas práticas. Assim, o artigo de Mirla Cisne e de Valéria Ferreira apresenta um objetivo central explícito e interessante sobre o qual vale a pena nos debruçarmos mais detidamente: a necessária articulação entre o marxismo e as relações sociais de sexo. A parte mais relevante da discussão das autoras está no momento em que elas se voltam para especificar o que é a concepção materialista das relações sociais de sexo. É sobre este assunto que pretendo esmiuçar o debate.
O Feliz casamento entre o marxismo e a consubstancialidade
Começo com esta referência ao texto clássico de Heidi Hartmann – O Infeliz casamento entre o marxismo e o feminismo – publicado no início dos anos 1980 (e também citado por Cisne e Ferreira) em um livro intitulado Women and Revolution (SARGENT, 1981). Naquele momento, ainda sob o efeito da segunda onda feminista[2] e das experiências com os movimentos por direitos civis nos EUA, o debate girava em torno das seguintes perguntas: Como explicar a relação entre capitalismo e patriarcado? Em que medida marxismo e feminismo criam pontos de conexão e diálogo em direção a um refinamento de ambos? O diagnóstico feito no livro Women and Revolution atestava que uma aproximação entre a análise marxista e o feminismo era crucial, já que desta união dependia, em grande parte, o futuro da articulação dos movimentos de esquerda e a participação das mulheres nestes movimentos. Lembremos também que o quadro geral da controvérsia desenrolava-se em um momento de recrudescimento da Guerra Fria e ascensão eleitoral da Direita Liberal nos EUA, com a eleição de Ronald Reagan, e no Reino Unido, com a chegada de Margaret Thatcher ao posto de Primeira Ministra pelo Partido Conservador. Dez anos depois, com a queda do Muro de Berlim, o cenário de consolidação do Neoliberalismo iria tensionar ainda mais as relações entre o feminismo e a esquerda.
A urgência em estabelecer uma aliança mais profunda entre o campo feminista e a tradição marxista esbarrava em um aspecto central: a compreensão do patriarcado e o seu lugar no movimento da História. As formulações de Engels (2019) sobre as relações entre a instituição do casamento monogâmico burguês, a instauração da propriedade privada, a divisão do trabalho na sociedade industrial, a emergência do Estado Liberal e a dissolução da família feudal/camponesa construíram os alicerces, no campo marxista, para a reflexão sobre o futuro do patriarcado e da opressão das mulheres. Nesta reflexão inicial, a conexão entre fim da propriedade privada, fim do Estado e construção de um mundo sem classes trazia em seu bojo a derrocada da subordinação feminina. Este horizonte não se perde, mas o caminho em direção a este horizonte, no século XX, iluminou elementos que tornaram a conexão mais complexa. Estes elementos aos quais me refiro são caros ao feminismo, sobretudo aquele que se forjou na esteira da segunda onda, eles são três: o lugar do casamento, a família como instituição no capitalismo moderno, o trabalho reprodutivo das mulheres. A grande questão passa a ser como combinar estes temas com o arcabouço teórico anterior[3].
O caminho de Heidi Hartmann (1981), apresentado e debatido no livro Women and Revolution, aborda estes elementos, costurando-os a partir de uma referência materialista. O esforço da autora caminha no sentido de mostrar que uma perspectiva materialista sobre o patriarcado resolveria o casamento infeliz entre marxismo e feminismo no século XX. Primeiro, a autora define a base material do patriarcado como o exercício de duas formas de controle dos homens sobre as mulheres, controles que beneficiam os homens em detrimento das mulheres, forjando entre os homens um conjunto de relações de solidariedade e de interdependência. Os homens formam um grupo social, uma classe, que subordina as mulheres para seu benefício enquanto homens. Uma forma da subordinação é o controle dos homens sobre a força de trabalho das mulheres, excluindo-as do acesso a recursos produtivos como o trabalho assalariado, por exemplo; a segunda forma é o controle que se exerce sobre a sexualidade das mulheres. Hartmann se dedica menos no artigo ao tema da sexualidade e concentra a argumentação sobre o controle da força de trabalho das mulheres[4].
Quem se beneficia do trabalho das mulheres? Certamente os capitalistas, mas também os homens, que como maridos e pais recebem serviços pessoais em casa. O conteúdo e extensão destes serviços podem variar por classe social ou por grupos étnico-raciais, mas o fato permanece. Homens têm um padrão de vida mais alto do que o das mulheres em termos de consumo, tempo livre e serviços pessoais. Uma abordagem materialista não deve ignorar este ponto crucial. Disto segue que os homens possuem um interesse material na opressão contínua das mulheres (HARTMANN, 1981, p. 9, tradução da autora).
Seguindo neste raciocínio, Hartmann vai mais longe ao apontar para o advento do salário família, característico do modelo de Estado de Bem Estar, como o último movimento, nos marcos da sociedade capitalista, de reclusão das mulheres ao espaço doméstico.
O salário família fortaleceu a parceria entre patriarcado e capital. Apesar do aumento da participação da força de trabalho das mulheres, particularmente acelerada desde a Segunda Guerra, o salário família é, ainda, o pilar da presente divisão sexual do trabalho, na qual mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e homens pelo trabalho assalariado. Os salários mais baixos das mulheres no mercado de trabalho (combinado com a necessidade das crianças terem que ser cuidadas por alguém) asseguram a existência permanente da família como uma unidade de repartição de rendimentos. A família, suposta pelo salário família, permite o controle do trabalho das mulheres pelos homens tanto dentro como fora da família (HARTMANN, 1981, p. 25, tradução da autora).
Este argumento é relembrado em formulações contemporâneas, como a de Nancy Fraser (2009). Fraser reconhece que críticas como a de Hartmann foram relevantes, mas que no contexto de emergência e fortalecimento do neoliberalismo, como aquele dos anos 1980/1990, o argumento acabou ricocheteando. A crítica ao sexismo foi capturada pela valorização da entrada da mulher no mercado de trabalho assalariado, mesmo que este mercado seja precário, criando uma exigência sobre as mulheres para que compatibilizassem ter uma carreira com as demandas do lar, ou que se esforçassem muito mais do que os homens para competir no mercado de trabalho.
A teoria da consubstancialidade também nasce nos anos 1980 e começa exatamente de onde pára a crítica de Hartmann. A teoria de origem francesa encampou as discussões sobre o trabalho doméstico/reprodutivo das mulheres e sua relação com a família e com o Capital, sobre as formas subordinadas de uso da força de trabalho feminina no contexto da produção capitalista, assim como a relação dialética entre uma esfera e outra do trabalho. Recorro à Danièle Kergoat para mapear o percurso da sociologia das relações sociais de sexo ou da consubstancialidade como uma sociologia feminista materialista:
[...] eu distinguirei dois momentos das pesquisas. O primeiro remete à teorização das relações sociais de sexo como relações de produção em si mesmas e irredutíveis ao capitalismo. São os estudos de Delphy e de Guillaumin sobre o trabalho doméstico como trabalho explorado e sobre o conceito de apropriação. O segundo é o momento da divisão sexual do trabalho, de sua transversalidade e da imbricação das diferentes relações de exploração. A partir daí, o conceito de trabalho designa todas as atividades humanas de produção do viver em sociedade, como teorizam Helena Hirata e Philippe Zarifian em 2000 no Dicionário Crítico do Feminismo. Todo este corpus teórico é crítico em virtude da centralidade que confere às relações sociais. Ele não se contenta em descrever a realidade, mas permite que se compreendam melhor os mecanismos, a base material, a produção – pelas relações sociais – dos mecanismos da dominação (KERGOAT, 2018, p. 182).
A teoria da consubstancialidade assenta-se em bases materialistas e traz inúmeras contribuições valiosas tanto para o movimento feminista quanto para o desenvolvimento do campo do marxismo, sobretudo aquele ligado à sociologia do trabalho, espaço disciplinar onde a teoria da consubstancialidade floresceu tanto na França quanto no Brasil. Embora haja um diagnóstico de apagamento da importância desta contribuição, creio que no caso brasileiro a presença da abordagem das relações sociais de sexo é constante desde os anos 1980, observando no contexto atual uma retomada com as pesquisas sobre o trabalho de cuidados (HIRATA; GUIMARÃES, 2012). Uma das primeiras referências importantes que inauguraram os estudos sobre a divisão sexual do trabalho no interior das relações capitalistas, dentro da então consolidada sociologia do trabalho, foi o clássico A Classe operária tem dois sexos, de Elisabeth Souza-Lobo (1991). O intercâmbio entre as sociólogas brasileiras e as francesas manteve-se ao longo do tempo. São exemplos disso: a consolidação de grupos de pesquisa sobre trabalho feminino na Unicamp, na UFRJ e na UERJ, por exemplo, e em organizações da sociedade civil, como o grupo SOS Corpo. Portanto, creio que o caso brasileiro não tem semelhança com o que aconteceu com os EUA em relação a este tema. Nos EUA, a tradição feminista materialista francesa, de fato, encontrou baixa ressonância (VARIKAS, 2016).
São três pontos fundamentais que caracterizam as relações sociais de sexo: 1) pensar estas relações como relações contraditórias, portanto, históricas de exploração/apropriação; 2) pensar estas relações como imbricadas – sexo, classe e, mais recentemente, raça e 3) pensá-las para entender e operar as relações de força que permeiam os fluxos entre dominação e emancipação. O primeiro ponto é tributário da influência materialista marxista; o terceiro ponto é uma marca do pensamento feminista crítico que vimos prosperar desde a segunda onda, como ilustram as discussões do supracitado livro, Women and Revolution. O segundo ponto é o aspecto original da teoria e o que a distingue. Afinal, qual é a natureza da imbricação entre sexo, classe e raça?
O primeiro passo para responder à pergunta é retornar ao item 1: são relações contraditórias de exploração/apropriação que constituem-se mutuamente, de modo que seu resultado final é um complexo onde raça/classe/sexo, indistintamente[5], produzem grupos sociais antagônicos e marcados, em última instância, pela opressão (dominação e exploração) de um sobre o outro. É uma análise dinâmica das relações sociais. Sexo, classe e raça não são variáveis, não são categorias ad hoc, são grupos sociais historicamente constituídos. Estes processos históricos de construção de grupos sociais antagônicos têm seu motor fundamental nas relações de produção, no âmbito da divisão do trabalho. Por isso, as autoras da teoria da consubstancialidade insistem no materialismo e não se confundem com outras perspectivas que, embora também sejam emancipacionistas e levem em conta a associação entre classe, sexo e raça não o fazem tomando, necessária e obrigatoriamente, a divisão do trabalho como unidade básica de análise. O fato de tomar a divisão do trabalho como nodal retira das preocupações da análise consubstancial questões como idade/geração e sexualidade/orientação sexual já que estas não teriam o caráter estrutural de exploração e apropriação que configuram sexo, classe e raça[6]. Aquelas dimensões seriam melhor compreendidas por perspectivas que contemplam a questão das estratificações sociais, das hierarquias de status e prestígio entre os grupos sociais e como estes elementos afetam o entendimento e o tratamento das diferenças entre estes grupos.
Para além do casamento feliz: uma consideração sobre gênero
Cisne e Ferreira referem-se no artigo à corrupção de sentido sofrida pelo conceito de gênero. Corrupção esta que teria retirado seu potencial crítico. Dizem as autoras:
Exemplar desse processo é a transmutação operada com o conceito de ‘gênero’. Em sua elaboração original, a exemplo de Rubin (1993), que parte de um diálogo crítico com Marx, o conceito remete à construção social do sexo tomando as formas de organização social, e, nessa acepção, é incorporado inclusive por autoras de tradição marxista e materialista, como Saffiotti, que, no entanto, não abandona categorias como patriarcado e relações sociais. No contexto de emergência das perspectivas pós-modernas, com sua crítica às ‘metanarrativas’ e a quaisquer perspectivas ‘universalizantes’, o conceito passa a ser utilizado com forte referência à dimensão simbólica e da linguagem como construtores do ‘sexo social’. Elimina-se, assim, a referência às relações sociais e materiais que produzem os grupos sociais sexuados e a relação de subordinação entre eles. São privilegiados os discursos e as normas que produzem as ‘diferentes formas de ser homem e ser mulher’ na sociedade, como tornou-se de uso corrente, nas relações interpessoais cotidianas (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 10).
Entre as autoras da teoria da consubstancialidade, os termos sexo e gênero guardam sentidos diversos. Diz Kergoat (2018): “Uso relações sociais de sexo para tudo aquilo que é da ordem da dinâmica, na sociedade em seu processo de se fazer ou se desfazer. Por outro lado, ‘gênero’ eu utilizo mais no sentido de ‘regime de gênero’, por exemplo, em termos de mesossociologia, num sentido descritivo intermediário” (KERGOAT, 2018, p. 184).
A emergência da discussão sobre o sistema sexo-gênero, ou a maneira como o sexo biológico é socialmente transformado em convenção, implicou em uma mudança do debate feminista a partir dos anos 1970. Uma das questões fundamentais desta mudança reside na consideração sobre o tema da reprodução e do parentesco. A esfera da organização social da reprodução foi demarcada como o espaço a partir do qual gênero seria construído. O construcionismo social emergiu na cena em oposição ao essencialismo biológico. De lá pra cá, inúmeras variações do construcionismo surgiram. Essas variações respondem, em parte, por diferenças na compreensão do termo gênero e nas formas como essa palavra vem a ser empregada. Segundo Kergoat, guarda-se a expressão gênero para descrever as normas sociais relativas às expectativas sobre o masculino e o feminino. Neste caso, gênero perde seu caráter heurístico e separa-se de relações sociais de sexo. Diferente desta leitura, Heleieth Saffioti (2004) propõe que gênero não precisa ser deixado de lado, embora insista que o uso exclusivo da categoria, sem o reconhecimento da relevância do conceito de patriarcado, seja improdutivo. Por isso, ela fala em “ordem patriarcal de gênero”. A alternativa de Saffioti faz mais jus à complexidade da questão. Vejamos: Saffioti entende gênero como uma categoria ontológica, impossível de ser separada de sexo.
Ao longo do desenvolvimento do ser social, as mediações culturais foram crescendo e se diferenciando, portanto deixando cada vez mais remota e menos importante a diferença sexual. Como, porém, o ser social não poderia existir sem as outras duas esferas ontológicas [inorgânica e orgânica], não se pode ignorá-las. Mais do que isto, o ser humano consiste na unidade destas três esferas [inorgânico, orgânico e social], donde não se pode separar natureza de cultura, corpo de mente, razão de emoção. É por isso que gênero, embora construído socialmente, caminha junto com sexo. Isso não significa atentar somente para o contrato heterossexual. O exercício da sexualidade é muito variado; isto, contudo, não impede que continuem existindo imagens diferenciadas do feminino e do masculino (SAFFIOTI, 2004, p. 136).
Com esta interpretação, Saffioti (2004) aponta para aquilo que gênero tem de mais rico: a problematização das fronteiras entre natural e social. Esta problematização ganha em Saffioti (2004) uma inflexão materialista: a ordem patriarcal de genêro refere-se à uma fase histórica onde se estabelecem relações hierárquicas, marcadas pelo controle e pelo medo [dominação], entre seres desiguais [exploração], onde “[...] o gênero, informado pelas desigualdades sociais, pela hierarquização entre as duas categorias de sexo e pela lógica da complementaridade traz a violência em seu cerne” (SAFFIOTI, 2004, p. 137).
No Brasil, a incorporação do conceito de gênero pela sociologia foi muito marcada pela leitura de Joan Scott (1995)[7]. Para ela, gênero estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica da vida social, constituindo-se como forma primária das relações de poder. A recepção deste artigo forçou uma revisão da pertinência do conceito de patriarcado e marcou a distância entre o conceito de gênero de Scott e outras teorias. O artigo começa, inclusive, com uma revisão crítica dos sentidos dados à categoria gênero em diversas análises. Este uso do termo como ligado à noção de poder foi, simultaneamente, sua riqueza e seu fardo. Riqueza pois permitiu qualificar gênero como estruturante das relações sociais e não como algo restrito ao campo dos estudos sobre mulheres. Fardo pois, em certa medida, possibilitou um uso mais segmentado e multidirecional da categoria. Neste sentido, é como argumenta Saffioti, ganha-se em extensão e abstração e perde-se em precisão. Esta definição de Scott não aparece na concepção materialista das relações sociais de sexo, como atesta o depoimento de Kergoat acima, nem na definição inaugural do sistema sexo-gênero. Um pouco mais tarde, chegaria ao público brasileiro a tradução de Problemas de Gênero, de Judith Butler (2003), e com ela um novo capítulo nas relações já tensas entre o conceito de gênero e a tradição materialista.
A disputa em torno das categorias sexo e gênero é reveladora de uma dimensão importante do debate feminista: como criamos e canonizamos palavras para existirmos no mundo intelectual e político (HARAWAY, 2004). Estas disputas não são um mero nominalismo, são lutas de poder, inclusive no interior das práticas editoriais. No atual contexto, este conflito ganha nova expressão. Gênero tem sido uma categoria atacada por agentes políticos externos ao feminismo. Neste sentido, acho muito relevante atentarmos para este fato e cuidarmos de tomá-lo em conta quando debatemos a pertinência ou não da categoria em questão. Lembremos que patriarcado é outro termo que tem uma longa história, com altos e baixos. De conceito chave explicativo a termo controverso, hoje passa por uma redescoberta e valorização no campo das teorias feministas. Atualmente, o desafio está adensado pela atenção à dimensão das relações raciais. Ainda precisamos trabalhar com mais profundidade o que significa articular sexo, raça e classe de um ponto de vista materialista, levando em conta a realidade brasileira. Esta tarefa encontra-se em aberto.
Referências
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HIRATA, H.; GUIMARÃES, N. Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012
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SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-99, 1995.
SOUZA-LOBO, E. A Classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1991.
VARIKAS, E. Pensar o sexo e o gênero. Campinas: Unicamp, 2016.
Andrea Moraes ALVES
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1991). Mestra em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (1994). Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Atualmente é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, velhice, sexualidade, gerações e antropologia.
Notas
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