Debate
O necessário retorno à noção de totalidade através de uma ontologia integrativa: notas para um debate
The need to return to the notion of totality through an integrative ontology: notes for a debate
O necessário retorno à noção de totalidade através de uma ontologia integrativa: notas para um debate
Argumentum, vol. 13, núm. 3, pp. 30-40, 2021
Universidade Federal do Espírito Santo

1 Introdução
Iniciamos este texto agradecendo ao corpo editorial da Revista Argumentum pelo convite para contribuir na seção debate do presente número Desigualdade e violência de gênero. Para nós, egressas do Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da UFES. Este convite além de muito simbólico no plano acadêmico-profissional, também se apresenta como uma excelente oportunidade para abrir diálogos com outras/os autoras/es e leitoras/es.
Igualmente, agradecer pelo privilégio de estarmos entre as primeiras leitoras do artigo: Feminismo e desigualdade: uma análise materialista das relações de opressão-exploração das mulheres, de autoria de Mirla Cisne e Verônica Ferreira (2021). Para nós é uma honra poder dialogar a partir das reflexões de ambas autoras, duas grandes referências dentro da área de Serviço Social e do feminismo no Brasil.
Em nosso texto, inicialmente, apresentamos as ideias principais das autoras e enfatizamos a relevância e qualidade das sínteses e reflexões propostas por elas. No segundo momento, trazemos algumas contribuições críticas para o debate que segue em curso para o avanço do feminismo e marxismo, principalmente em questões polêmicas, que não pretendemos esgotar, mas na preocupação comum de nos mantermos fiéis à essência do método do materialismo histórico dialético, à noção de totalidade e os desafios que tal empreitada traz a todas nós como feministas marxistas.
Desigualdades, opressões e exploração contra as mulheres: reflexões a partir das autoras
Trata-se de um texto instigante do início até o fim. O artigo entrelaça um conjunto de questões e reflexões relevantes tanto para o debate teórico quanto para a militância político-social, tomando como base as contribuições das epistemologias marxistas e feministas, e mais especificamente do denominado feminismo materialista francófono (FMF). Nesse sentido, segundo as autoras, o texto busca “[...] analisar a desigualdade social entre os sexos e algumas de suas expressões no mundo do trabalho [...]” (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 9), identificando, desse modo, o trabalho como categoria central para compreendermos as particularidades da exploração e opressão das mulheres.
Só a partir do enunciado anterior, as/os leitoras/es poderiam ter a impressão que trata-se de um texto, como tantos outros, que destaca algumas das manifestações da desigualdades entre homens e mulheres, e logo após oferece um conjunto de dados a modo de produzir evidência empírica. No entanto, o percurso que fazem as autoras é bem mais complexo do que isso. Elas sintetizam e analisam algumas das expressões mais recorrentes do idealismo no campo dos estudos sobre as mulheres, para posteriormente argumentar sobre a necessidade de desenvolver uma concepção materialista das relações sociais de sexo. Em ambos itens identificam-se contribuições relevantes para o debate.
Exemplo disso é a excelente crítica que as autoras desenvolvem em relação às posturas idealistas/culturalistas, especialmente aquelas que explicam a desigualdade social enfrentada pelas mulheres unicamente através de condicionantes associados à cultura, à ideologia, etc., sem uma perspectiva da totalidade social que compreenda esses elementos imbricados com outros determinantes da estrutura econômica; ou seja, que deem conta de analisar relação dialética entre ambos planos de análise, tomando em consideração as múltiplas mediações, determinações e interconexões complexas entre estas esferas.
Por sua vez, as autoras conseguem de forma muito didática e sintética apresentar necessárias críticas às concepções idealistas que, na opinião delas, têm primado na realização dos estudos sobre as mulheres nas últimas décadas. Para isso, propõem um interessante agrupamento em três vertentes, diga-se: i) corrente estruturalista e reformista dentro da esquerda e do marxismo predominantes nas análises dos anos 1960-1970, segundo as quais a opressão das mulheres diz respeito à superestrutura, analisando as relações patriarcais simplesmente como resultado de uma questão ideológica ou de atraso cultural/educativo; ii) as perspectivas culturalistas e pós-modernas, com foco exclusivo em uma perspectiva individualista das identidades sociais, que só outorgam relevância as análises com base nas relações microssociais e nos fatores ideoculturais ou simbólicos (linguagem, discursos, representações) da opressão das mulheres; afastando-se de uma análise materialista a partir das determinações essenciais/gerais do fenômeno; iii) e, finalmente, o discurso abstrato-formal-tecnicista, com base no pensamento e projeto neoliberal que tem sido disseminado pelas instituições multilaterais e organismos internacionais, e através do qual se produz uma transmutação/transformismo da categoria gênero, ao mesmo tempo que se potencia um discurso e uma agenda (capitalista) de gênero, que visibiliza só algumas das desigualdades entre homens e mulheres, foca no empoderamento individual[1] e que não tem por objetivo nem questionar nem transformar aspectos estruturais associados às relações de dominação, opressão e exploração.
Também no texto examina-se algumas das principais transformações associadas ao processo de mundialização e de hegemonia do projeto e processo neoliberal, colocando maior ênfase nas mudanças no mundo do trabalho e nos desdobramentos em termos de desigualdade contra as mulheres. A partir dessa abordagem, as autoras propõem, muito acertadamente, analisar ditas mudanças não só desde o ponto de vista quantitativo mas também qualitativo.
Nesse sentido, questionam-se as verdadeiras implicações da denominada feminização do mercado de força de trabalho, destacando como a dita tendência tem implicado não só em uma maior participação laboral das mulheres, mas sim uma crescente precariedade das relações e condições de trabalho; condição que tem impactado toda a classe trabalhadora mas que a tem atingido diferenciadamente em função do sexo/gênero, raça/etnia, nacionalidade, etc. A modo de corolário, as autoras enunciam que: “[...] as formas contemporâneas de exploração do trabalho evidenciam características historicamente associadas ao trabalho das mulheres” (CISNE e FERREIRA, 2021, p. 15).
Identificado como um aspecto central também analisam-se os (des)ajustes e crises que se produzem com o avanço da hegemonia neoliberal no plano da reprodução social como totalidade, em outras palavras, no nível do sociometabolismo do capital. Para isso, as autoras examinam brevemente algumas das rearticulações que se produzem no âmbito da produção e da reprodução entre: trabalho produtivo e improdutivo, trabalho remunerado e não remunerado. Identificam-se tendências, agora transversais nas diversas realidades do mundo do trabalho, tais como: ruptura de fronteiras entre tempo de trabalho e não-trabalho, ampliação do tempo de trabalho não pago, lógica do trabalho simultâneo e a disponibilidade permanente, dentro outras (CISNE; FERREIRA, 2021). Desse modo, as autoras argumentam a noção de que “[...] as formas contemporâneas de exploração se aproximam das modalidades de apropriação do tempo estabelecidas nas relações sociais de sexo” (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 15).
Ainda neste mesmo item são abordadas questões específicas à realidade da formação socioeconômica no Brasil. Defende-se como traços estruturantes do desenvolvimento capitalista dependente brasileiro sua inserção subordinada na divisão internacional do trabalho e a dinâmica da superexploração do trabalho (CISNE; FERREIRA, 2021). Também são apresentados dados de pesquisas recentes que corroboram a desigualdade e precarização que enfrentam as mulheres. Situação ainda mais exacerbada no contexto da pandemia por COVID-19.
Os dados e análises mobilizados exemplificam como grande parte do ônus da crise econômica, social, política e ambiental existente, que se reforça com a atual crise sanitária, é transferido fundamentalmente às mulheres. Desse modo, se assiste a um aprofundamento de fenômenos como: desemprego, desalento, informalidade, perda das principais fontes de renda, desigualdade salarial, população em situação de pobreza e extrema pobreza, sobrecarga ainda mais forte de trabalho remunerado e não remunerado, dentre outros. Em resumo, assiste-se a uma escalada negativa nas condições de vida e de trabalho das mulheres devido aos processos de precarização e a desvalorização da sua força de trabalho.
Finalmente, gostaríamos de destacar alguns outros elementos teórico-metodológicos que são transversais neste artigo da Mirla Cisne e da Verônica Ferreira. Elementos que as/os leitoras/es não devem passar por alto na sua avaliação individual da pertinência e (elevada) qualidade científica do artigo. Exemplo disso são aspectos como:
i. a mobilização e síntese das bases teóricas e aportes fundamentais do FMF através de algumas das principais representantes desta vertente feminista, inclusive citando textos menos conhecidos/divulgados dessas autoras;
ii. desenvolvimento de uma análise com base no marxismo crítico, que busca resgatar categorias centrais dentro do método e da teoria marxista;
iii. defesa da necessidade de diálogo e retroalimentação entre as vertentes críticas e antissistêmicas do feminismo e do marxismo, destacando em diferentes momentos do texto aproximações, pontos de contato e de maior polêmica entre ambas epistemologias;
iv. identificação das contribuições de ambas epistemologias como fundamentos teórico-metodológico da práxis não só do movimento feminista, mas sim de toda a esquerda;
As autoras abordam em sua conclusão que tanto marxistas como feministas não são naturalmente imunes aos prejuízos do idealismo, do empirismo, das análises supérfluas/fenomênicas e da ausência de autocrítica. Transcender a simplificação e mistificação da realidade é um dever permanente para aquelas/es que estão comprometidas/os com a transformação revolucionária da sociedade. Ao mesmo tempo, e mesmo com esse desafio muito presente tanto na academia quanta na militância, nos motiva ver o crescimento do debate sobre marxismo e feminismo no mundo e no Brasil, contribuindo para “[....] construção dos caminhos para emancipação humana [...]” (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 18), fortalecendo a luta incessante das mulheres das cidades, dos campos e das florestas contra a lógica classista, racista, patriarcal, cis-heteronormativa do sistema capitalista, num contexto de agravamento neoliberal e conservador contra nossas vidas.
Em meio a uma pandemia, a população, composta majoritariamente por mulheres, luta contra o vírus, mas também contra a fome e a bala, sendo alvo de múltiplas violências, inclusive institucionais, ao deixar de prover as necessidades concretas mais basilares do povo. Frente à barbárie e ao projeto de morte em curso agravado pelo negacionismo científico do chefe de Estado brasileiro, vemos a persistência e resistências feministas[2], inclusive ganhando terreno dentro da academia e também na disputa política das ruas.
Destarte, muitas são as categorias em diálogo, sendo necessária a constante observação da preservação da essência do método marxista. Os debates dentro do campo crítico são muitos, como ocorre entre as feministas marxistas que se apropriam do debate de relações sociais de sexo ou das relações patriarcais de gênero[3]. Consideramos essa interface profícua e que seguimos amadurecendo e ganhando espaço dentro da esquerda revolucionária.
Categorias analíticas e método: algumas contribuições para o debate a partir da Teoria da Reprodução Social
Com vistas a contribuir com as reflexões das autoras, trazemos alguns elementos apontados no decorrer do avanço dos nossos estudos tanto das relações sociais de sexo quanto da teoria da reprodução social, pois consideramos pertinentes algumas observações críticas para construirmos coletivamente, como afirmado pelas mesmas: “É preciso também dirigir a nós mesmos/as a permanente crítica e o permanente desafio que trilhar o método materialista dialético implica” (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 17). Dessa forma, a título de contribuições e diálogo respeitoso, como sempre deveria ser nos espaços diversos de construções de saberes, apontamos alguns elementos, principalmente a partir das reflexões de feministas marxistas da Teoria da Reprodução Social (TRS)[4], que assim como as relações sociais de sexo, abordam a perspectiva de análise das relações sociais, porém desde outra chave categorial-metodológica.
Um dos elementos centrais dentro da teoria do FMF é a defesa do conceito classe social de sexo/classe de sexo, ou seja, se argumenta a existência de uma classe social de mulheres e classe social de homens. Segundo o FMF, a relação entre estas classes está baseada na oposição de interesses, hierarquia e, inclusive, antagonismos (CURIEL; FALQUET, 2014; CISNE, 2014; 2018) - mas sem desconsiderar ou negar os antagonismos entre classes sociais (DEVREUX, 2005). Devido à centralidade que a categoria classe social possui tanto para a tradição marxista, sentimos a necessidade de posicionarmos a fim de polemizar sobre o termo classe social de sexo, dado que dito conceito é base da linha argumentativa do FMF e das autoras com as quais dialogamos.
Concordamos com as críticas que a TRS coloca em relação às tentativas de diversas correntes feministas de fazer do sexo/gênero uma classe, ou vice-versa (ARRUZZA, 2019; MORAES, 2021b). Consideramos que o conceito classe social de sexo pode ocasionar não só confusão teórica a respeito da categoria classe social, como também fortalecer uma leitura reducionista desta. Segmentar um conceito que tem validez explicativa da realidade mais do que enriquecer teoricamente a proposta inicial, acaba por reforçar análises fragmentadas e dicotômicas (ESQUENAZI BORREGO; PEREIRA, 2019).
As relações de poder de cada uma dessas categorias teriam caráter de modo de produção, ou seja, além da classe social, haveria classe de sexo e classe de raça (FALQUET, 2019). Todas juntas constituíriam uma totalidade. Contudo, é preciso lembrar que, na perspectiva teórica do marxismo, o todo não é a simples soma das partes (MORAES, 2021a, p. 17).
Pensamos que para as epistemologias feministas seria muito mais estratégico enriquecer o debate/utilização da categoria classe social, legada do marxismo crítico, do que complementá-la/substituí-la com outros conceitos de menor capacidade analítica-transformativa da totalidade social capitalista. Nunca é demais reiterar, de forma enfática, que a classe trabalhadora como classe social, não implica homogeneidade ou uniformidade (ESQUENAZI BORREGO; PEREIRA, 2019). Neste sentido, é relevante não considerar a classe como uma ubiquação estática em uma estrutura de estratificação, senão como uma relação social, e por tanto identificar os sujeitos da transformação revolucionária não apenas como indivíduos e sim como sujeitos coletivos, que se constituem como tal (incorporando suas múltiplas determinações de exploração e opressão) na luta contra seu inimigo histórico (KOHAN, 2017).
Por sua vez, coincidimos com as feministas da TRS sobre a importância de analisar a categoria classe trabalhadora não só como classe operária, mas sim no seu sentido amplo/diverso (BHATTACHARYA, 2015, 2018), a partir das múltiplas determinações de gênero, raça/etnia, sexualidade, dentre outras. Ou seja, deve-se analisar a classe social de forma integradora, “[...] como unidade do diverso, síntese de múltiplas determinações, sem colocar como polos opositores a identidade e a diferença” (MORAES, 2021a, p. 6).
Destacamos também a necessidade de problematizar a noção de antagonismos de sexo (assim como de raça) defendida pelo FMF. Falar em antagonismo, desde a perspectiva marxista, implica que existe uma oposição irreconciliável, dado que as contradições que dão base ao dito antagonismo não podem ser solucionadas/superadas – não dentro da ordem sociometabólica vigente. Consideramos que este último destaque pode ser pertinente para a melhor compreensão das/os leitoras/es. Importante explicitar que tanto o processo de racialização como o sexismo são construções histórico-sociais-políticas, podendo, portanto ser superadas em outra sociedade livre de exploração e opressão. No entanto, a diversidade humana, composta por sexo, sexualidade, raça, seguirá existindo como inerentes ao ser social, porém não como pressupostos para desigualdade e opressão.
Finalmente, destacamos algumas reflexões sobre a categoria patriarcado, a qual - tanto para as autoras do texto como para as exponentes do FMF – deve ser entendida a partir de seu caráter histórico, suas bases materiais e desde uma perspectiva de sistema. Dita categoria é compreendida como “[...] sistema de estruturas e práticas pelos quais os homens dominam, oprimem e exploram as mulheres” (CISNE; FERREIRA, 2021, p. 11). Desde a visão do FMF, patriarcado, racismo e capitalismo, assim como, as relações sociais de sexo, raça e classe derivadas destes diversos sistemas estão imbricados dialeticamente (CISNE; FERREIRA, 2021), análise que por sua vez tem por base o conceito de consubstancialidade.
As autoras abordam o patriarcado como sistema e, ao mesmo tempo argumentam a existência de “[...] totalidade capitalista [...]” ou um “[...] sistema patriarcal-racista-capitalista [...]”, que se configura como “[...] uma unidade indivisível, ao mesmo tempo contraditória, conformando uma totalidade” (CISNE; FERREIRA, 2021, p.?). Sobre esta última parte concordamos plenamente com as autoras, nossa problematização vai dirigida com a teoria dualista que embasa a argumentação do sistema patriarcal isoladamente, como sistema em si mesmo.
Consideramos interessante dialogar/incorporar algumas das críticas que as pesquisadoras e feministas da Teoria da Reprodução Social (TRS) vêm fazendo aos sistemas duplos e triplos, destacando as implicações teóricas e práticas da leitura do patriarcado/racismo como um sistema (ARRUZA, 2015, 2017, 2019). Partindo disso, a TRS propõe uma outra chave teórica e metodológica: a teoria unitária e a defesa de uma ontologia integrativa (FERGUSON, 2017).
Defende-se a ideia de que as relações sociais de produção capitalista e as relações patriarcais não constituem sistemas independentes, autônomos; e sim relações internamente integradas (ARRUZZA, 2015, 2017, 2019). Isto não significa que não continuem existindo relações patriarcais, mas sim que que estas não constituem um sistema com regras de perpetuação próprias.[5] De fato, as relações patriarcais continuam permeando todas as relações a nível micro e macrossocial, mas assumindo uma específica configuração nos marcos do sistema capitalista (ESQUENAZI BORREGO, 2020).
A tese fundamental da teoria unitária é de que a opressão de gênero e a opressão racial são partes constitutivas, estruturantes e integradas às relações que determinam a essência do sistema capitalista, tendo por alicerce a divisão sócio-sexo-racial de trabalho (MORAES; ESQUENAZI BORREGO, 2020). “A própria categoria patriarcado é questionada por ser apresentada como um sistema trans-histórico e/ou autônomo ao sistema capitalista” (MORAES; ESQUENAZI, 2020, p. 91). Em resumo, argumenta-se a relação integrada entre capitalismo e relações patriarcais de gênero e, por tanto, a fusão das relações de exploração e opressão, analisando estas como ontologicamente inseparáveis, como diferentes momentos de uma mesma totalidade social (RUAS, 2021; MORAES, 2021a).
Ao estabelecer análises dialéticas, com base na lógica relacional, entre o todo (metabolismo social do capital) e as partes (classe, raça e gênero), abandona-se o pensamento da lógica formal – que analisa a sociedade de forma fragmentada através da somatória das partes: patriarcado, racismo e capitalismo – e se privilegia a perspectiva da totalidade (ESQUENAZI BORREGO, 2020). Desde esta chave analítica, mesmo que as partes – diga-se as relações de classe, raça/etnia, sexo/gênero, sexualidade, etc. – possuam propriedades específicas, elas não constituem momentos ontologicamente separados/autônomos (ESQUENAZI BORREGO, 2020). Isso permite argumentar a “[...] experiência diferenciada-mas-unificada das múltiplas opressões” (FERGUSON, 2017, p. 15). Desse modo, o sistema capitalista passa a ser entendido desde uma perspectiva mais ampla: como uma totalidade integrada e contraditória de relações de exploração e opressão (ESQUENAZI BORREGO, 2020).
Em resumo, consideramos que a proposta de uma ontologia integrativa da TRS possui avanços na argumentação da relação estrutural entre exploração e opressão dentro da lógica do capital, na perspectiva da totalidade, e também na referência de que a própria essência do sistema capitalista é completamente antagônica a qualquer aspiração de igualdade substantiva e emancipação para o ser humano e, especificamente, para as mulheres.
Destacamos que algumas das questões abordadas nessa resenha estão em debate crescente dentro do feminismo marxista. Esperamos que as polêmicas aqui explicitadas possam trazer contribuições nesse processo constante de reflexão de todas/os nós. Por fim, afirmamos os diversos pontos que a nível da essência do feminismo marxista nos unem as autoras, conforme apontado nos destaques no primeiro item desta resenha, diga-se: a defesa de que o marxismo nos fornece o método necessário para análise da opressão e exploração das mulheres; a relevância do diálogo, crítica e autocrítica entre as epistemologias feministas e marxistas; e, a subscrição, teórica e militante, de uma utopia revolucionária que defende a necessidade e possibilidade de construir uma sociedade alternativa, por oposição, ruptura e superação com a lógica do capital.
Referências
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Arelys ESQUENAZI BORREGO Trabalho na redação do artigo e na revisão crítica.
Graduada em Economia pela Faculdade de Economia, Universidade da Havana (2012). Mestra em Economia pela Faculdade de Economia, Universidade da Havana (2016). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-graduação de Política Social na Universidade Federal de Espírito Santo (UFES). Bolsista CAPES. Participa do Grupo de Pesquisa Trabalho e Práxis e do Grupo de Estudos sobre Dinheiro Mundial e Financeirização, ambos registrados em CNPq.
Emily Marques TENORIO Trabalho na redação do artigo e na revisão crítica.
Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) (2005-2009). Mestra em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) (2015-2017). Especialista em Gênero e Sexualidade (EGES/CLAM/IMS) (2013-2014) e em Serviço Social e Saúde (2010-2011), ambas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Assistente Social no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), desde 2012.
Notas
Notas de autor