Artigos Tema Livre

Participação política nas relações interpessoais em um hospital público

Political participation in interpersonal relationships within a public hospital

Elsa Franke ROSO *
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Paulo Antonio Barros OLIVEIRA **
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Participação política nas relações interpessoais em um hospital público

Argumentum, vol. 13, núm. 3, pp. 148-157, 2021

Universidade Federal do Espírito Santo

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Recepción: 13 Octubre 2020

Aprobación: 13 Noviembre 2021

Resumo: : O objetivo deste estudo foi buscar a compreensão dos fatores que influenciam a participação política de servidores de um hospital público estadual especializado do Rio Grande do Sul, que se notabilizaram pela capacidade de mobilização contra a retirada de direitos empreendida pelo governo do estado do Rio Grande do Sul. Por meio de pesquisa qualitativa exploratória, foram entrevistados catorze servidores estáveis e um dirigente sindical. Conclui-se que a participação política dos trabalhadores do hospital, mediada tanto pelos sindicatos quanto pelo coletivo formado dentro da instituição, foi um fator importante para a superação do isolamento e da invisibilidade no ambiente de trabalho, pois engendrou relações interpessoais pautadas na solidariedade e no reconhecimento do outro, como estratégia de resistência dos trabalhadores à precarização do trabalho no serviço público.

Palavras-chave: Participação política, Coletivo de Regra, Saúde pública.

Abstract: : This study aims to understand the contributing factors that influenced the political participation of government employees of a specialised state public hospital in Rio Grande do Sul, who distinguished themselves through their capacity to mobilise against a reduction of labour rights imposed by the state government. Using a qualitative exploratory research approach, fourteen civil servants and a union leader were interviewed. It concludes that the hospital workers’ political participation, mediated by both the union and institution collectiveness, was a crucial factor in overcoming the poor visibility of the issue and isolation within the work environment; they engineered interpersonal relationships, guided by notions of solidarity and mutual recognition, as a strategy of resistance in relation to labour insecurity within public service.

Keywords: Political participation, Collective rule, Public health.

1 Introdução

O presente artigo é produto da pesquisa de mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizada no período de março de 2016 a junho de 2018. Aborda o processo de participação política dos trabalhadores estáveis de um hospital público estadual localizado no município de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul (RS), bem como a repercussão dessa participação nas relações interpessoais no ambiente de trabalho.

Desde que o governo estadual do RS começou a parcelar a remuneração dos servidores estaduais, em agosto de 2015, a mobilização dos trabalhadores dessa instituição foi ganhando contornos de uma participação política organizada, com repercussão na imprensa, influência sobre a organização por local de trabalho de servidores de outros serviços estaduais e tentativas de articulação com professores, lideranças comunitárias e trabalhadores de outras categorias, o que motivou a decisão pelo tema da pesquisa.

Adotou-se, para fins de realização das entrevistas, o conceito de participação política de Nogueira (2004), para quem essa modalidade de participação é realizada “[...] tendo em vista a comunidade como um todo, a organização da vida social em seu conjunto, ou seja, o Estado” (NOGUEIRA, 2004, p. 133). A pesquisa permitiu concluir que a participação desses trabalhadores consistiu em uma participação política pelo fato de sua organização ir além das pautas corporativas da categoria e abranger pautas que afetam o conjunto da classe trabalhadora, como a defesa dos princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e a denúncia do caráter nefasto da Emenda Constitucional n. 95, a qual instituiu o Novo Regime Fiscal (BRASIL, 2016).

A redução das funções coesivas do Estado tem sido observada no cenário mundial desde o fim da década de 1960 (NETTO; BRAZ, 2021). A crise da onda longa expansiva do capitalismo marcou o fim do crescimento econômico vertiginoso da Europa Ocidental, impulsionado após a II Guerra Mundial, e gerou as condições para a ascensão da política econômica neoliberal, conformando o cenário favorável para a retirada de direitos sociais historicamente conquistados pela classe trabalhadora. Esse fenômeno, no Brasil, se expressou de forma mais contundente a partir da década de 1990 (NETTO, 2011).

A contrarreforma do Estado é um conceito cunhado por Atílio Borón para caracterizar o que vem ocorrendo na América Latina desde o fim do século XX em termos de mercantilização de direitos sociais e é chamado, eufemisticamente, de reformas orientadas para o mercado (BORÓN, 2003). No contexto da contrarreforma, o Estado nacional deixa de ser agente de desenvolvimento de setores estratégicos da economia e passa a ser um fiador para a entrada segura no país de capital internacional, concedendo benefícios fiscais e desregulamentando relações de trabalho; tudo para garantir atratividade para investimentos perante grandes grupos econômicos mundiais. Essas reformas nada mais visam do que reduzir a intervenção estatal em áreas de interesse para exploração do capital, o que fragiliza direitos sociais e gera prejuízos significativos aos trabalhadores do setor público.

O processo de desmonte dos direitos sociais atingiu em cheio a capacidade organizativa e de participação política dos trabalhadores dos setores público e privado, pois refreou a implementação das conquistas constitucionais, modificando sobremaneira a correlação de forças entre capital e trabalho.

As políticas anticrise implementadas pelos governos brasileiros após 2008 sustentaram certo equilíbrio econômico até 2013, quando se consolidou o período de recessão econômica, acompanhado de uma crise política profunda (VASCONCELOS, 2020). Em um período histórico em que os trabalhadores, no Brasil, não têm conseguido engendrar respostas político-organizativas suficientes para enfrentar o grave retrocesso imposto pelo grande capital por meio dos grupos dirigentes do país, a relevância da pesquisa que relata este artigo está na possibilidade de desvelar alguns fatores determinantes para a participação política de um coletivo de trabalhadores do serviço público estadual em defesa de seus direitos e contra o desmonte do que ainda está preservado nas políticas sociais. Para a definição do objeto da pesquisa foi fundamental a observação de reuniões, assembleias, paralisações e manifestações de rua onde ocorriam interações entre trabalhadores.

É nesse cenário que os servidores públicos estaduais, mais especificamente aqueles que identificamos como trabalhadores do SUS, construíram estratégias de resistência às manifestações mais sentidas da contrarreforma do Estado brasileiro: o desmonte do sistema público de saúde e a perda de direitos historicamente conquistados. Nesse cenário, este artigo consiste em um recorte da pesquisa que teve como objetivo compreender os fatores que influenciam a participação política dos servidores de um hospital público estadual especializado, que tiveram um papel muito significativo nas mobilizações contra o parcelamento dos salários, além de outras pautas, reconhecidas por trabalhadores e sindicalistas de diferentes categorias.

Buscou-se compreender a repercussão da participação política nas relações interpessoais entre os trabalhadores à luz do conceito de coletivo de regra oriundo da Psicodinâmica do Trabalho e, no âmbito do presente estudo, referenciado em Seligmann-Silva (2011).

Percurso metodológico

Trata-se de uma pesquisa social de abordagem qualitativa, com objetivo exploratório, do tipo pesquisa de campo. Foram entrevistados catorze servidores estáveis de um hospital público estadual com reconhecida atuação no movimento dos servidores públicos estaduais, sendo seis destes detentores de cargo que exige nível superior de escolaridade e oito deles detentores de cargo que exige nível médio de escolaridade. Também foi incluído na pesquisa, na condição de informante-chave, um servidor público estadual liberado para exercício de mandato classista. O instrumento para coleta de dados foi a entrevista semiestruturada.

A seleção dos participantes da pesquisa ocorreu por amostragem não probabilística utilizando-se a técnica denominada bola de neve, por meio da qual cada entrevistado indica o próximo baseado em, no mínimo, um dos seguintes critérios: participação em atividades sindicais, greves e paralisações; e capacidade de mobilização de colegas para essas atividades. Tais critérios foram definidos a fim de garantir que os sujeitos da pesquisa tivessem realmente uma participação orgânica no movimento dos servidores públicos estaduais.

A técnica bola de neve é um tipo de amostragem não probabilística que utiliza cadeias de referência. É eficaz quando a pesquisa está relacionada a uma “[...] população relativamente pequena de pessoas, que possivelmente estejam em constante contato umas com as outras [...]” (VINUTO, 2014, p. 207), facilitando a construção de uma seleção representativa. O encerramento da coleta de dados se dá com base no critério de ponto de saturação.

Optou-se por selecionar duas servidoras com diferentes níveis de escolaridade (médio e superior) na condição de informantes-chave com o intuito de promover a heterogeneidade da amostra (VINUTO, 2014). Essas mulheres dirigem reuniões e assembleias e, além disso, trabalham intensamente para mobilizar os colegas para as atividades relacionadas à defesa de direitos da categoria.

Foram excluídos da pesquisa os trabalhadores terceirizados, vinculados aos setores de vigilância, manutenção, higienização e cozinha, além de estagiários, residentes, voluntários e pessoas contratadas por cargo comissionado. Esse critério foi estabelecido devido às profundas diferenças existentes nas relações e condições de trabalho entre servidores estáveis e demais trabalhadores, o que incide diretamente na participação organizada.

As questões norteadoras e os objetivos da pesquisa foram elaborados com o intuito de conhecer os fatores que influenciam a participação política desses trabalhadores, conforme explicitado no Quadro 1.

Objetivos e questões norteadoras da pesquisa
Quadro 1
Objetivos e questões norteadoras da pesquisa
Elaborado pelos autores.

As questões norteadoras 1 e 2 foram elaboradas a partir de critérios preestabelecidos pelos pesquisadores com base em alguns entendimentos. Primeiramente, acredita-se que perdas e conquistas são fatores que mobilizam as pessoas para defender o que já se conquistou ou para alcançar novas conquistas. Ademais, a crença no potencial de influência do movimento organizado sobre as decisões do governo é fator determinante para a participação, pois infere-se que quem não acredita na capacidade de influência do movimento não se sente motivado a participar. A questão norteadora 3 teve o intuito de conhecer as motivações genuínas dos participantes da pesquisa para a participação política. Por fim, a questão norteadora 4 buscou conhecer a repercussão dessa participação nas relações interpessoais no trabalho. Nesse cenário, o presente artigo explora a quarta questão norteadora e o segundo objetivo específico.

As entrevistas realizadas foram gravadas e transcritas. Um dos entrevistados optou pela não utilização do gravador e respondeu às perguntas de forma escrita. Os nomes dos entrevistados foram modificados, respeitando o seu anonimato, e as suas falas foram transcritas literalmente. A análise e a interpretação dos dados seguiram o método de análise de conteúdo proposto por Bardin (2011), quais sejam: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação. A exploração do material consistiu basicamente em operações de codificação, decomposição ou enumeração do material selecionado. A questão norteadora explorada neste artigo, quais as principais vantagens e dificuldades identificadas no processo de participação política e de que forma elas repercutem no cotidiano de trabalho?, foi incluída na entrevista semiestruturada com a seguinte questão: como a participação no movimento organizado dos servidores públicos estaduais repercute na relação com colegas e no cotidiano de trabalho?. As categorias analíticas foram definidas a partir das unidades de registro com base na frequência com que palavras, termos e seus sinônimos apareceram na fala dos entrevistados e cotejados com o referencial teórico da pesquisa. São elas: ampliação da capacidade de análise, fortalecimento da identidade de classe, reconhecimento do outro e resistência coletiva. Por fim, o tratamento dos resultados obtidos e a interpretação consistiram na proposição de inferências e interpretações relacionadas aos objetivos traçados ou a descobertas não planejadas.

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n. 81679417.0.0000.5334 e seguiu os preceitos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde n. 466/2012, que orienta pesquisas com seres humanos.

Resultados e discussões

Identificou-se que a participação política repercutiu de forma positiva nas relações interpessoais no trabalho para aqueles que mantiveram um envolvimento orgânico com o movimento dos servidores públicos estaduais. O entrevistado Carlos destaca a aproximação entre servidores que participaram das mobilizações:

A gente observa que os funcionários antes, durante e após a participação em atos políticos, em movimentos, se sentem muito mais próximos. Eles se reconhecem melhor, eu acho que se tornam mais companheiros, mais confiantes do seu poder e o poder do grupo como um todo (CARLOS, informação verbal, 2018).

É possível inferir que a participação política organizada desses servidores possibilitou trocas afetivas e outros processos, como reconhecimento, solidariedade e fortalecimento da identidade de classe. Observou-se, ainda, a aproximação e o estabelecimento de relações de confiança entre esses trabalhadores, confrontando a indiferença gerada pela rigidez da hierarquia e pela pouca visibilidade do processo de trabalho de alguns deles dentro da instituição. O coletivo de trabalhadores do hospital público especializado tornou-se, além de um instrumento de luta e organização, um espaço de acolhimento e cuidado e de reconhecimento do outro como igual, o que fica evidenciado também na seguinte fala da entrevistada Célia:

Eu acho que por um lado é bom. Muitas vezes vários colegas acabam falando, pessoas muitas vezes que a gente até não tem muita intimidade no trabalho, intimidade no sentido de conversar do trabalho mesmo, mas o quanto isso... As pessoas começam a te ver de uma outra forma e a te procurar para te perguntar coisas, tirar dúvidas em relação a essas coisas mesmo, do direito, do trabalho, do quanto a união é importante, do quanto a gente consegue conversar do que a gente passa como trabalhador neste lugar e neste estado [...], o quanto essas conversas ajudam até, assim, como uma forma de desabafo. Muitas vezes a gente não vai resolver o problema que está acontecendo ali, mas poder conversar sobre isso é importante (CÉLIA, informação verbal, 2018).

Seligmann-Silva (2011) denomina Coletivos de Regra, no campo da Psicodinâmica do Trabalho, as instâncias coletivas organizadas pelos trabalhadores como estratégia ao enfrentamento da dominação. O Coletivo de Regra impulsiona transformações em que a subjetividade dos participantes ressurge, criativa, caminhando para uma interatividade em que o coletivo procura, solidariamente, enfrentar a dominação ao mesmo tempo em que mantém regras próprias para preservação de seus valores mais caros (SELIGMANN-SILVA, 2011).

A autora também argumenta que para a constituição do Coletivo de Regra é importante o convívio no ambiente de trabalho de forma que esse convívio crie as condições para o reconhecimento e a confiança entre os trabalhadores. Contudo, para fins de compreender os resultados desta pesquisa, uma das diferenças entre a instância criada pelos servidores do hospital público especializado e o Coletivo de Regra abordado por Seligmann-Silva está no fato de que enquanto o exemplo utilizado pela autora trata da resistência à dominação nos processos de trabalho, a resistência organizada pelos participantes desta pesquisa refere-se à dominação e à opressão em um nível macropolítico, especialmente à resistência à dominação de um governo (SELIGMANN-SILVA, 2011).

Tal governo demonstrou, no período abrangido pela pesquisa, que o projeto societário que norteia a sua gestão não prevê a valorização do Estado como provedor de políticas sociais e, consequentemente, que não há espaço para o trabalhador do serviço público nesse projeto societário.

A identidade de trabalhador fica evidenciada em falas dos entrevistados, como, por exemplo: “[...] acho que às vezes a gente consegue abrir os olhos dos colegas, fazer com que eles tenham um entendimento melhor da sua condição de trabalhador” (CÂNDIDA, informação verbal, 2018). Assumir a condição de trabalhador demonstra a capacidade desses servidores públicos de se enxergarem no interior das relações de classe, superando a imediaticidade da consciência corporativa decorrente da sua identidade de servidor público (ALVES; PALMELA, 2011).

A entrevistada Olga estabelece uma relação entre a organização política dos trabalhadores, a evolução na consciência do trabalhador, a situação em que o trabalhador começa a perceber a importância do seu trabalho. Infere-se que o “avanço de consciência”, citado pela entrevistada, diz respeito à compreensão crítica da condição de servidor público estadual que a participação no movimento dos servidores possibilita. Há uma relação direta entre participação política e desenvolvimento da criticidade.

Mas uma coisa muito importante, que me deixa muito feliz, [é] que quando eu vejo a organização política dos trabalhadores a gente percebe que existe uma evolução na consciência do trabalhador e o trabalhador começa a perceber a importância do seu trabalho, que ele é importante naquele trabalho, naquela tarefa, que ele faz a diferença em tudo e que, nesse momento que ele se organiza politicamente, ele se sente valorizado. (OLGA, informação verbal, 2018).

Alves e Palmela (2011) afirmam que a identidade de trabalhador público é forjada “[...] no interior do movimento reivindicativo da categoria assalariada a qual pertence [...]” (ALVES; PALMELA, 2011, p. 45), o que representa um avanço em relação à identidade de servidor público, que sugere a condição de servir ao Estado, no caso, o Estado do capital, visto que “[...] é em torno do fetiche do Estado político que os empregados públicos elaboram a identidade de servidores da coisa pública. Nesse caso, eles tendem a se identificar como servidores públicos” (ALVES; PALMELA, 2011, p. 44).

Seligmann-Silva (2011) diz que para acessar a sua identidade, muitas vezes confundida com a atividade laboral, o trabalhador precisa manifestar autonomia, o que é extremamente difícil no que tange ao trabalho desqualificado, situação em que se encontram, segundo a autora, “[...] aqueles cujos conhecimentos e experiências profissionais passaram a ser desvalorizados e descartados em decorrência do advento de novos saberes e de novas tecnologias” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 203). Esse é o caso dos servidores do hospital público especializado que tiveram os seus cargos extintos e sofreram desvio de função para a execução de um trabalho considerado simples e repetitivo. Para esses trabalhadores, são fundamentais o acesso a espaços de participação e convivência, onde possam se reconhecer e ser reconhecidos.

É possível afirmar que muitos servidores públicos estão nessa situação de realização de um trabalho desqualificado, o que retira a potência e a confiança que têm em si mesmos e no coletivo e, ainda, gera invisibilidade. No âmbito desta pesquisa, os servidores do hospital público especializado contam com espaços de visibilidade, onde é possível a manifestação da autonomia, do reconhecimento, da importância de cada um no trabalho, da inclusão e da solidariedade, proporcionados pela participação política organizada. A fala da entrevistada Olga expressa bem esse processo:

Existe uma coisa muito bacana que quando a gente começa a perceber que todos nós lutamos pela mesma causa aumenta muito o nível de confiança, os colegas começam a se sentir mais incluídos dentro do contexto até do trabalho. Acho que isso aí é uma coisa muito boa. Começam a olhar mais um para o outro, eles começam a perceber a sua importância ali naquele trabalho diferente e eles, de alguma forma, se sentem incluídos, deixam de ser invisíveis (OLGA, informação verbal, 2018).

A entrevistada Cândida (informação verbal, 2018), chama a atenção para o fato de alguns servidores conseguirem expressar as suas opiniões em reuniões e assembleias promovidas pelo coletivo de servidores da instituição sem temer retaliações: “[...] a gente vê que as pessoas se sentem encorajadas a falar, a colocar suas posições, a dizer o que pensam, sem saber se vai ter retaliação” (CÂNDIDA, informação verbal, 2018).

Olga relata o quanto o desenvolvimento político dos servidores (e, evidentemente, as consequências desse desenvolvimento, como a ampliação da capacidade de análise) incomoda algumas chefias. Segundo ela: “[...] o que incomoda mais é saber que quando o trabalhador participa do movimento ele evolui politicamente. Isso incomoda, incomoda as chefias.” (OLGA, informação verbal, 2018).

As retaliações e hostilidades por parte de colegas de setor e chefias imediatas foram relatadas pelos entrevistados que ocupam cargos de níveis médio e fundamental. Os participantes da pesquisa apontaram que as hostilidades ocorrem no setor onde os entrevistados trabalham. Alguns deles, por exemplo, foram chamados de baderneiros e de anarquistas por colegas. Alguns foram impedidos, em determinados momentos, de sair do setor para participar de atividades sindicais e de reuniões do coletivo do hospital, suscitando neles diferentes reações. Alguns trabalhadores confrontaram as chefias e continuaram participando. Entretanto, outros se sentiram intimidados e reduziram a sua participação. Nesse sentido, foram identificados pelos entrevistados dois espaços de sociabilidade: o espaço proporcionado pelo movimento dos servidores, onde houve trocas afetivas, aprendizados, demonstrações de solidariedade e acolhimento das angústias, e o espaço do local de trabalho, onde ocorriam as hostilidades.

Por outro lado, no caso dos servidores ocupantes de cargos que exigem nível superior de escolaridade, observou-se maior liberdade para exercer a participação. Além disso, alguns desses servidores ocupavam cargos de chefia e estimulavam os trabalhadores subordinados a também participar das atividades do movimento.

A fala de Samanta expressa o quanto atitudes aparentemente simples, como dirigir-se a um colega chamando-o pelo nome, são importantes para trabalhadores que muitas vezes estão em uma condição de invisibilidade:

Para mim foi muito bom e importante [a participação no movimento dos servidores] porque eu me tornei uma pessoa bem conhecida. Muitas pessoas que eu nunca tinha visto aqui e nos outros setores que me encontravam e conheciam, até me chamavam pelo nome. Eu achei muito bom isso, muito bom mesmo. Pessoas muito bacanas, pessoas boas, que sabem respeitar, né? (SAMANTA, informação verbal, 2018).

Além da leitura mais criteriosa da realidade, a participação política facilita o fortalecimento dos laços de solidariedade. Livres da hierarquia rígida dos processos de trabalho, os servidores podem olhar uns para os outros como iguais, como integrantes de um coletivo que luta por objetivos iguais ou semelhantes. Angela relaciona o movimento organizado à solidariedade entre os servidores na seguinte fala:

Quando a gente viu colegas sendo machucados é que vimos o tamanho dos estragos e o risco que a gente estava correndo. Mas a gente não desistiu, porque estava vendo que era o momento de fazer o enfrentamento para que eles também sentissem a nossa força, que nós só tínhamos um papel ali e voz, cartaz, faixa e voz [...], nós não tínhamos armas, não tínhamos pedra, e eles jogaram tudo isso em cima de nós. Então, esse foi um momento de muita bravura desse grupo [...]. A gente viu que estão se organizando, estão entendendo a importância de ser um movimento organizado, de a gente ter consciência da força coletiva. A união é uma das coisas que ajuda. Eu vejo, assim, que os colegas todos, e eu também, a gente é mais solidário uns com os outros (ANGELA, informação verbal, 2018).

O relato de Ângela pode ser compreendido à luz do que Alves e Palmela definem como intensificação dos laços relacionais:

Com o movimento da classe ‘em-si’ e ‘para-si’ (a luta sindical com direção política consciente), tende a ocorrer a intensificação (e ampliação) dos laços relacionais, não apenas no interior da ‘corporação funcional’, mas para além dela, com outras categorias de trabalhadores assalariados públicos ou trabalhadores privados. (ALVES; PALMELA, 2011, p. 45).

Esse processo descrito pelos autores fica evidente nas experiências relatadas pelos entrevistados. A intensificação dos laços relacionais ocorreu para dentro e para fora do coletivo de servidores organizado dentro da instituição, haja vista as inúmeras manifestações organizadas juntamente com professores estaduais, residentes da Escola de Saúde Pública da Secretaria de Estado do Rio Grande do Sul e moradores da comunidade próxima ao hospital, que chegaram a participar de reuniões de mobilização dentro da instituição.

Por conseguinte, compreende-se que a participação política no contexto de perdas de direitos e desmonte do serviço público proporcionou aquisições importantes para os trabalhadores do hospital público pesquisado, como a ampliação da capacidade de analisar criticamente a realidade, pois tiveram acesso a informações que possibilitaram reflexões mais complexas, principalmente no nível macropolítico. Ademais, houve o fortalecimento da identidade de trabalhadores, a afirmação de um lugar de fala, o reconhecimento e a valorização do trabalho e do trabalhador e o estreitamento dos vínculos de solidariedade entre colegas.

Conclusão

A participação política orgânica dos trabalhadores do hospital público especializado, materializada em um coletivo que atuou em defesa da categoria, da saúde pública e dos usuários do serviço, repercutiu nas relações interpessoais no ambiente de trabalho. No período de 2015 a 2017, esse coletivo consolidou-se como um espaço protegido onde os trabalhadores, independentemente do cargo e do nível de escolaridade, manifestaram as suas opiniões, dividiram responsabilidades, construíram estratégias de intervenção para a defesa de suas pautas de lutas e estreitaram os seus vínculos de solidariedade. Ademais, tornaram tal coletivo visível na cidade por meio das mobilizações de rua em lugares estratégicos, como a praça da matriz e os estabelecimentos públicos.

Essa participação, mediada tanto pelos sindicatos quanto pelo coletivo formado dentro da instituição, foi um fator importante para a superação do isolamento e da invisibilidade no ambiente de trabalho, pois engendrou relações interpessoais pautadas na solidariedade, no reconhecimento do outro e na ampliação dos lugares de fala, configurando-se como estratégia de resistência dos trabalhadores à precarização do trabalho no serviço público que é cada vez maior.

Por fim, os resultados da pesquisa corroboram a necessidade de se retomar a luta popular e sindical em outras bases, alicerçada em ampla e democrática participação dos trabalhadores, visto que o amadurecimento político e a elevação da consciência de cada um são condições fundamentais para o crescimento da organização coletiva.

Referências

ALVES, Giovanni; PALMELA, Thayse. Trabalhadores públicos e sindicalismo no Brasil: o caso dos trabalhadores públicos do judiciário brasileiro. PEGADA - A Revista da Geografia do Trabalho, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 42-53, 2011. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/view/912. Acesso em: 8 set. 2020.

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NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil. São Paulo: Cortez, 2004.

SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. A gravidade do neoliberalismo radical pós-2008 e nossas estratégias de resistência. Argumentum, Vitória, v. 12, n. 2, p. 47-66, 2020.

VINUTO, Juliana. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.

Elsa Franke ROSO Trabalhou na concepção, no delineamento e na redação do artigo, bem como na análise e na interpretação dos dados.

Possui Mestrado em Política Social e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018). Atualmente é servidora estatutária da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.

Paulo Antonio Barros OLIVEIRA Trabalhou na concepção e no delineamento, bem como na revisão crítica e na aprovação da redação final do artigo.

Professor Titular de Medicina Social. Doutor em Engenharia de Produção do Departamento de Medicina Social (DMS) da Faculdade de Medicina (FAMED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Notas de autor

* Assistente Social. Mestra em Política Social e Serviço Social. Servidora Pública da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (UFRGS, Porto Alegre, Brasil). Av. Paulo Gama, 110, Porto Alegre (RS), CEP: 90040-060. E-mail: elsaroso@gmail.com.
** Médico. Doutor em Engenharia de Produção do Departamento de Medicina Social. Professor Titular de Medicina Social. Membro do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (UFRGS, Porto Alegre, Brasil). Av. Paulo Gama, 110, Porto Alegre (RS), CEP: 90040-060. E-mail: oliveira.pauloantonio@gmail.com.
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