Editorial
QUANDO O RIGOR ENCONTRA A REALIDADE: REFLEXÕES AOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CONTABILIDADE NO BRASIL
WHEN RIGOR MEETS REALITY: REFLECTIONS ON GRADUATE PROGRAMS IN ACCOUNTING IN BRAZIL

Recepção: 15 Fevereiro 2021
Aprovação: 22 Fevereiro 2021
Publicado: 26 Fevereiro 2021
Muito me honra o convite dos professores Sérgio Murilo Petri e Sandro Vieira Soares para escrever o editorial da Revista Catarinense da Ciência Contábil no ano de 2021. Instigado pelos colegas a trazer minhas percepções sobre o impacto das pesquisas aplicadas, aproveito o nobre espaço para propor questões de reflexão aos programas brasileiros de pós-graduação stricto sensu (PPG) em contabilidade. Os questionamentos deste breve ensaio germinaram com a recente ascensão da modalidade profissional no Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG). Em 1997, eram apenas quatro mestrados profissionais, cinco anos depois, o número de mestrados profissionais passou de uma centena (Fischer, 2003) e, ao final de 2020, o SNPG contava com 860 cursos de mestrado e doutorado profissionais no Brasil (Capes, 2020).
A Portaria Capes nº 60, de 20 de março de 2019, estabeleceu as disposições gerais de funcionamento de mestrados e doutorados profissionais no Brasil, destacando cinco objetivos centrais: capacitar profissionais qualificados; transferir conhecimento para a sociedade; contribuir para o aumento da produtividade; atentar aos processos e procedimentos de inovação; e formar doutores com perfil caracterizado pela autonomia, pela capacidade de geração e transferência de tecnologias. O caráter prático e aplicado da modalidade profissional teve alta repercussão nas áreas de conhecimento vinculadas à gestão e aos negócios. Dados da Plataforma Sucupira apontam que, na Área 27, a qual abrange os PPGs em administração pública, administração de empresas, contabilidade e turismo, a modalidade profissional alcançou 40% dos programas em funcionamento em 2020. Contudo os números dos PPGs em contabilidade não acompanharam tal ascensão. Ainda que tenham tido crescimento relevante nas últimas duas décadas e representassem 20% dos programas acadêmicos em 2020, na modalidade profissional havia tão somente seis programas de contabilidade em funcionamento, significando menos de 8% dos programas profissionais da Área (Capes, 2020).
Uma explicação para a baixa aderência dos programas de contabilidade é a sua própria ênfase prática e aplicada, que dispensaria a criação de programas profissionais. A necessidade de uma modalidade profissional no SNPG, aliás, tem sido extensamente debatida desde sua proliferação até o presente (Barros et al., 2005; Mattos, 2020). Por conseguinte, este ensaio não discute as escolhas dos PPGs em contabilidade e muito menos se propõe a motivar alguma mudança de modalidade. As questões aqui contidas têm o propósito de auxiliar coordenadores, docentes e discentes de PPGs a refletir sobre suas trajetórias à luz dos novos desafios impostos ao SNPG (Salgado, 2020; Pinto, 2020).
Ainda que distante, as reflexões se alinham ao debate estabelecido nas ciências biológicas quanto ao viés de uso de experimentos com a adoção de complexas e rigorosas análises estatísticas (Roush, 1995) em detrimento da tradicional pesquisa de campo da chamada biologia das “botas enlameadas” (Resetarits, 1995). Naturalmente, tanto naquele contexto quanto neste, agora, não se quer abandonar o rigor e as complexas e rigorosas análises estatísticas. Pelo contrário, espera-se que as questões levantadas auxiliem os programas a refletirem sobre a integração entre rigor e utilidade prática em suas pesquisas (Shrivastava, 1987). Para tanto, exploram-se três requisitos basilares da avaliação dos programas profissionais, de acordo com própria a Portaria Capes nº 60, que, gradativamente, se alastraram por todo o SNPG: impacto na sociedade, produtos técnico-tecnológicos (PTT) e a capacitação de profissionais com experiência.
A preocupação com impacto dos programas de pós-graduação na sociedade tem crescido no Brasil acompanhando uma tendência internacional (Johnson & Orr, 2020). Motivada pelas rotineiras avaliações da percepção pública acerca da ciência e tecnologia (CGEE, 2019) e pelas recorrentes críticas e sugestões de melhorias ao modelo de avaliação (Hortale, 2003; Spagnolo & Souza, 2004; Patrus, Shigaki, & Dantas, 2018), a Capes instituiu na quadrienal 2017-2020 um conjunto de mudanças. Entre elas, foi incluído o quesito “Impacto na Sociedade” para analisar os efeitos econômicos e sociais dos PPGs (Capes, 2019a). A repercussão externa que antes era esperada dos programas profissionais transbordou para todo o SNPG, compelindo o repensar dos PPGs quanto a seu impacto potencial e realizado. Duas reflexões, ao menos, podem auxiliar esse repensar.
A primeira trata da relação do Programa com seus stakeholders. Embora ela viabilize a aproximação do rigor com a realidade, profissionais e acadêmicos entendem impacto de forma diferente e possuem expectativas distintas quanto a suas implicações (Kieser & Leiner, 2009). Logo, cabe aos PPGs em contabilidade um autoquestionamento: há espaço para um diálogo criativo entre profissionais e acadêmicos na esfera do programa? É possível incorporar o impacto na sociedade, de forma explícita, no ensino e pesquisa do programa? A segunda reflexão abrange os resultados dos esforços de impacto. Ainda não há um consenso a respeito do que se espera de um PPG em contabilidade, mas algumas questões podem orientar decisões. Que demandas sociais podem ser abrangidas pelas pesquisas do programa? Com qual recorrência as implicações práticas das pesquisas do programa são implementadas nas práticas empresariais e nas políticas públicas? Como materializar o impacto na sociedade nos produtos do PPG? Esta última questão pode ser mais facilmente respondida a partir da reflexão sobre os produtos técnico-tecnológicos.
O PTT é definido pela Capes como o resultado tangível da aplicação de novos conhecimentos científicos, técnicas e expertises desenvolvidas no âmbito das pesquisas dos programas (Capes, 2019b). Atualmente, grande parte da produção da pós-graduação nas ciências sociais e humanas é técnica e tecnológica (McManus & Baeta Neves, 2020). Ela aproxima o rigor acadêmico da realidade econômica e social ao colocar a teoria a serviço da prática (Vasconcelos, 2020). Atendendo a antiga solicitação dos programas profissionais, a Capes tem ampliado o peso dos PTTs nas recentes avaliações quadrienais. E, da mesma forma que no quesito impacto, a valorização de PTTs começa a se estender a todo SNPG motivando o repensar do esforço de produção do corpo docente e discente dos PPGs.
A comunicação por meio de PTTs difere da produção acadêmica tradicional em periódicos. São públicos e formas de atribuir relevância distintos (Capes, 2019b). Por isso, cabe o autoquestionamento aos PPGs em contabilidade: é possível atender ambas as demandas com os estudos em andamento? Pesquisas futuras conseguirão incorporar certa ambidestria em seus escopos e objetivos? As seções de implicações práticas ou gerenciais dos relatórios finais e dos trabalhos de conclusão podem se constituir em uma fonte de geração de PTTs? Quais seriam as implicações dessa orientação dos produtos finais na formação de mestres e doutores? A última questão está vinculada à discussão sobre a maior ênfase da capacitação de profissionais na pós-graduação stricto sensu.
A ascensão dos mestrados e doutorados em contabilidade esteve, por um período, vinculado à necessidade da formação de professores (Comunelo, Espejo, Voese, & Lima, 2012). O arrefecimento da demanda por professores na área de gestão e negócios e o esgotamento do modelo de especialização lato sensu em grande escala ampliaram a presença de profissionais experimentados nos cursos de mestrado e doutorado. Pesquisadores defendem que programas stricto sensu reforçam a capacidade analítica dos profissionais e oferecem ferramentas, perspectivas e posturas que os habilitam a atuar na gestão e nos negócios com maior embasamento (Fontes-Filho & Pimenta, 2020). Contudo, a capacitação de profissionais experimentados traz desafios que provocam reflexões aos PPGs e docentes do stricto sensu (Verschoore, 2019).
Na sala de aula dos PPGs, a realidade é que encontra o rigor. Profissionais trazem rotinas e verdades enraizadas em suas trajetórias. Docentes de PPGs trazem a visão crítica alicerçada nos achados de pesquisas sistemáticas. As abordagens de ensino podem tanto descontruir as rotinas e verdades enraizadas quanto reforçá-las. Neste contexto, um autoquestionamento aos PPGs em contabilidade é necessário: a estrutura curricular e as didáticas de ensino são adequadas para lidar com tal desafio? Elas conseguem conectar a evolução do conhecimento em contabilidade com o contexto econômico e social? São suficientes para desenvolver as capacidades requeridas fora do meio acadêmico? Na área contábil, comportamento ético, inteligência e proatividade são características associadas positivamente ao perfil de um profissional (Tonin, Arantes, Colauto, & Juaniha, 2020). Essas características são incorporadas às premissas de aprendizagem dos cursos? O programa tem repensado seus princípios e valores tendo em vista as crises e os escândalos corporativos recentes? Como a formação no PPG afeta o comportamento ético dos seus egressos?
Seguramente, o amplo leque de questões aqui discutidas não esgota as reflexões provocadas pelas transformações da pós-graduação stricto sensu. Neste breve ensaio, foram abordadas questões decorrentes da “inflexão profissional” que perpassa o SNPG. Em especial, os PPGs em contabilidade têm a oportunidade de ampliar sua relevância nacional se conseguirem encorajar, interna e externamente, a integração do rigor com a utilidade prática do ensino e pesquisa. Espera-se que as questões propostas os ajudem nessa jornada. Não obstante, incentiva-se que mais pesquisadores avancem no entendimento das implicações de longo prazo das transformações do SNPG, agregando novas evidências aos debates sobre o futuro da pós-graduação brasileira.