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A PROBLEMÁTICA DA AUTORIA DELITIVA E DO BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO CRIME DE “USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA” NO MERCADO DE CAPITAIS BRASILEIRO
THE PROBLEM OF CRIME AUTHORS AND PROTECTED LEGAL GOODS IN THE CRIME OF “MISAPPROPRIATION OF INSIDER TRADING” IN BRAZILIAN CAPITAL MARKET
A PROBLEMÁTICA DA AUTORIA DELITIVA E DO BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO CRIME DE “USO INDEVIDO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA” NO MERCADO DE CAPITAIS BRASILEIRO
Revista Científica Hermes, vol. 16, pp. 49-68, 2016
Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa

Recepção: 01 Agosto 2016
Aprovação: 10 Setembro 2016
Publicado: 10 Outubro 2016
Resumo: O presente artigo discute, em pesquisa bibliográfica descritiva, o crime de “uso indevido de informação privilegiada”. Tal discussão será orientada pela premissa de que o mercado de capitais, como parte do mercado financeiro, é responsável por realizar o encontro dos agentes econômicos deficitários e superavitários para, por meio da canalização da poupança nacional, promover a capitalização das empresas e, uma vez emitidos os valores mobiliários, dotá-los de liquidez, desempenhando um importante papel na economia e contribuindo diretamente para o desenvolvimento econômico nacional. Assim será exposto um debate sobre qual o bem jurídico protegido no delito de “uso indevido de informação privilegiada, analisando-se, para tanto, diferentes doutrinas. Em seguida, levantar-se-á questões relativas a qual é o sujeito deste delito. Enfim, depois de detida análise, concluir que este se constitui em uma espécie de delito especial próprio, o qual somente pode ser praticado por algumas pessoas, pois consigna expressamente que somente as pessoas detentoras de um dever legal de guardar sigilo acerca de informações relevantes ainda não divulgadas ao mercado poderão ser autoras do presente crime.
Palavras-chave: Informação privilegiada, Crime econômico, Sujeitos do crime.
Abstract: This article discusses, in a descriptive and bibliographic research, the crime of “misappropriation of insider trading”. This discussion will be guided by the premise that the capital market, as part of the financial market, is responsible for conducting the meeting of the deficit and surplus economic agents, through the channeling of national savings, promoting the capitalization of companies, and once with the credits, provide them with liquidity, playing an important role in the economy and directly contributing to national economic development. So it will be exposed a debate on what the legal interests protected in the crime of “misappropriation of insider trading” are, analyzing, therefore, different doctrines. Then it will rise up issues about what the subject of this offense are. Anyway, after careful analysis, we conclude that this constitutes a kind of very special offense, which can only be practiced by some people because consigns expressly that only persons holding a legal duty to maintain the confidentiality of relevant information yet not disclosed to the market may be authors of this crime.
Keywords: Insider trading, Economic crime, Perpetrators of the crime.
1 INTRODUÇÃO
O atual estágio da economia é fruto de gradativa evolução histórica, desde a primeira mobilização de capitais, passando pelo incremento do financiamento às companhias comerciais, durante o Mercantilismo, “para atingir a consolidação a partir do século XIX, com a Revolução Industrial, e século XX, com o desenvolvimento dos transportes e dos meios de comunicação” (MELLO NETO, 2007, p. 11).
Neste contexto, é fundamental o papel desempenhado pelas sociedades anônimas no acúmulo de capitais, possuindo como princípios norteadores a diluição do risco causado pelo empreendimento novo e a divisão dos gastos para empreender tal feito. Para atingir tal desiderato, no entanto, tornou-se imprescindível a criação de um local em que poderiam ser negociados os títulos emitidos por essas empresas, ou seja, um grande e interligado sistema responsável pela captação de recursos disponíveis (poupança) para ulterior aplicação em atividades diversas (investimentos). Surge, portanto, o mercado de capitais (caracterizado por operar a prazos longos ou indeterminados, por meio de um sistema de distribuição e circulação) para atender a duas importantes finalidades: capitalizar as companhias (mercado primário) e dotar os valores por elas emitidos de liquidez (mercado secundário).
Em razão de seu relevante papel – inclusive de cunho social, conforme preconizado na Constituição da República Federativa do Brasil –, o mercado de capitais é regulado e fiscalizado pelo Estado, inclusive por meio de normas penais, as quais, todavia, não afastam a atuação daqueles que, de qualquer forma, burlam as regras do mercado pela manipulação de suas estruturas, de modo a diminuir ou mesmo aniquilar os riscos inerentes às negociações com valores mobiliários, em detrimento de outros agentes econômicos ou mesmo de todo o mercado, pela afetação de sua credibilidade, transparência, confiabilidade, estabilidade e eficiência.
Visando coibir práticas atentatórias ao normal funcionamento do mercado de capitais brasileiro, foi criada a Lei n. 10.303/2001, que acrescentou três figuras delituosas à Lei n. 6.385/1976, dentre as quais constitui objeto do presente artigo o tipo penal de “uso indevido de informação privilegiada”, capitulado no artigo 27-D, com a seguinte redação: “Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários”.
Sobre o tipo penal supra, o presente artigo pretende discutir exatamente o bem jurídico que foi protegido pela incriminação, vale dizer, qual o interesse ou valor quis o legislador ordinário preservar com a criação do delito em questão, ou, em outras palavras, o motivo, o fundamento da existência de tal crime no ordenamento jurídico brasileiro.
Outra questão relevante, muito debatida e objeto deste trabalho, é a do sujeito ativo do crime de “uso indevido de informação privilegiada”, sobretudo a celeuma a respeito de ser esse um delito comum ou especial próprio, isto é, responder à indagação se toda e qualquer pessoa pode cometer o delito em análise ou apenas aqueles que, por dever funcional, devem guardar sigilo sobre informação relevante ainda não divulgada ao mercado.
2 o bem jurídico protegido no delito de “uso indevido de informação privilegiada”
Não é pacífico o fundamento da incriminação da utilização, no mercado de valores, de informação relevante ainda não divulgada ao público (SEMINARA, 1989, p. 29 et seq), podendo-se identificar duas orientações completamente antagônicas.
De um lado, defende-se a incriminação, por se entender que a utilização de informação privilegiada é prejudicial ao mercado, afrontando suas bases teóricas, como a formação dos preços de ativos financeiros, segundo a relação oferta/procura. De outro viés, adota-se a concepção de que a utilização de informação privilegiada, em sentido contrário, traz benefícios ao funcionamento do mercado de valores mobiliários, fazendo parte das regras do jogo do mercado financeiro, sequer devendo constituir delito (VOLK, 1998, p. 129; MONROY ANTÓN, 2006, p. 65 et seq; BARJA DE QUIROGA, 1993, p. 1033-34; RUIZ RODRIGUEZ, 2003, p. 197; BAJO FERNANDEZ, 1999, 641 et seq), uma vez que, em tese, aquele que teve acesso a uma informação relevante ainda não divulgada ao mercado passa a ser o seu proprietário, podendo utilizá-la livremente (PINTO, 2000, p. 43).
De fato, existem aqueles que relatam supostos benefícios econômicos advindos do uso de informação privilegiada (COSTA; RAMOS, 2006, p. 22 et seq), como, por exemplo, contribuição para a fixação das cotações em nível ideal (D’URSO, 2006, p. 797) e antecipação de tendências do mercado, como subidas ou descidas do valor da cotação, servindo essa prática de indicador para o restante dos investidores. Ademais, a incriminação poderia, ainda, ocasionar um desestímulo à análise e pesquisa de informação relevante (PINTO, 2000, p. 44).
Contudo, a ideia de que a utilização de informação privilegiada contribui para a eficiência do mercado de capitais é destituída de sentido e eivada de vícios, pois, em última instância, essa orientação resultaria na desagradável consequência de que todas as negociações com valores mobiliários seriam efetuadas por detentores de informação relevante reservada, visto que não haveria incentivo à sua divulgação[1], não existindo, portanto, a transmissão de novas informações (SEMINARA, 1989, p. 67-68), ao que as negociações de valores mobiliários seriam sempre vantajosas para aqueles que tivessem relação direta com as empresas emitentes desses títulos e que, por essa relação, pudessem tomar conhecimento de informações restritas e reservadas antes dos demais participantes do mercado.
Além disso, o mercado seria prejudicado justamente em sua eficiência, na medida em que as negociações amparadas em informações privilegiadas na verdade não antecipariam tendência alguma de mercado, mas, antes disso, causariam sempre prejuízos àqueles que estivessem no outro polo da negociação[2]. Não resulta exagerada, portanto, a afirmação de que a utilização de informação privilegiada representa “um fenômeno patológico” (SEMINARA, 1990, p. 572) do mercado de valores mobiliários.
Não há dúvidas de que a discussão sobre a eventual ilegitimidade da utilização de informação privilegiada, inclusive sobre o fundamento da incriminação dessa conduta, encontrou campo fértil nos Estados Unidos da América, dado o desenvolvimento de seu mercado de capitais e a grande crise ocorrida em 1929[3], tendo surgido, naquele país, três teorias principais sobre a necessidade de se combater o uso de informação relevante ainda não divulgada ao mercado: a equal access theory (baseada em iguais condições de acesso à informação, uma vez que a utilização de informação relevante restrita não possibilita essa condição); a fiduciary duty theory (parte da ideia do dever de fidelidade que os administradores ostentam perante a companhia em que trabalham e o mercado como um todo; assim, a eventual proibição de utilização de informação privilegiada dirigir-se-ia a esses profissionais); e a misappropiation theory (VANNINI, 1992, p. 277) (que, embasada na indevida apropriação da informação, tenta fundamentar a proibição de utilização de informação privilegiada por terceiros que são alheios ao mercado e às companhias emitentes de valores mobiliários e que, por isso, em princípio, não possuem nenhum dever de lealdade) (PRIETO DEL PINO, 2004, p. 229 et seq; RUIZ RODRÍGUEZ, 2003, p. 198; PINTO, 2000, p. 45 et seq). De qualquer maneira, não se pode negar que as teorias surgidas nos Estados Unidos da América concedem relevo à proteção daquele que negocia com o detentor da informação privilegiada, tutelando-se, assim, principalmente, bens jurídicos individuais (patrimônio ou interesse individual) (RUIZ RODRÍGUEZ, 2003, p. 198).
Embora não haja unanimidade sobre o bem jurídico protegido pelo artigo em questão (HERNÁNDEZ SAINZ, 1997, p. 183), com a incriminação do “uso indevido de informações privilegiadas” no mercado de capitais, a doutrina majoritária diz que se protege o próprio mercado em si (BAJO FERNÁNDEZ, 1999, p. 643), vale dizer, a confiabilidade de seus mecanismos[4], a sua estabilidade, a segurança das operações realizadas (COSTA; ALONSO; COELHO, 2004, p. 33; SERRANO GÓMEZ, 1999, p. 467), bem como, em última análise, o seu regular funcionamento[5]. Por isso, constitui um bem jurídico transindividual (MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, 2002, p. 115) e não uma justaposição de interesses individuais (COSTA; RAMOS, 2006, p. 37)[6].
A previsão do delito em questão, pois, visa garantir confiabilidade ao mercado de valores[7], possibilitando o seu desenvolvimento e procurando atrair para esse tipo de mercado os agentes econômicos “que dele se afastariam, caso soubessem dos riscos de serem prejudicados pelas práticas, se deixadas impunes, dos poucos e privilegiados detentores de informações confidenciais das empresas” (PROENÇA, 2005, p. 45).
Não há dúvidas de que a utilização de informação privilegiada contraria, também, a eficiência informativa do mercado de capitais[8], na medida em que o detentor dessas informações “atua em situação de vantagem, pois tem conhecimentos que ultrapassam a mera informação disponível” (SILVA, 2000, p. 209), contrariando também a justa distribuição dos riscos do negócio, por meio da função da informação (MUCCIARELLI, 1995, p. 08-09; PINTO, 2000, p. 67; DE SANCTIS, 2003, p. 107).
A incriminação dessa figura representa, além disso, mais uma forma de tutelar o processo de ampla e irrestrita divulgação de informações no mercado de capitais, reputado esse processo de transparência, elemento essencial de proteção aos que atuam no mercado (EIZIRIK; CARVALHOSA, 2002, p. 548; GONZÁLEZ AMADO, 1996, p. 115).
Importante destacar, contudo, que, com o delito de “uso indevido de informação privilegiada”, não deseja o legislador penal, por óbvio, igualar o padrão informativo dos diversos agentes econômicos, tendo em vista que, como já foi dito, a “disparidade informativa entre os agentes que procuram o mercado de valores mobiliários constitui uma característica ineliminável deste universo e, além disso, um pressuposto da sua própria eficiência” (COSTA; RAMOS, 2006, p. 37).
Trata-se, pois, de um delito pluriofensivo (MONROY ANTÓN, 2006, p. 168), cujos bens jurídicos protegidos são de natureza complexa (COSTA; RAMOS, 2006, p. 37), consistentes no regular e eficiente funcionamento do mercado de capitais (BARJA DE QUIROGA, 2000, p. 460); HERNÁNDEZ SAINZ, 1997 (p. 188); SEMINARA, 1989 (p. 90); LUZON CUESTA, 1997, p. 168), com a preservação da função pública da informação, que é gerar uma justa distribuição dos riscos nas negociações levadas a cabo no mercado de capitais (igualdade de oportunidades) (TIEDEMANN, 1993, p. 240; MUÑOZ CONDE, 1995, p. 14) – “justiça informativa das cotações”[9] –, bem como na consequente confiança e credibilidade do mercado (QUINTANAR DÍEZ, 2006, p. 161; HERNÁNDEZ SAINZ, 1997, p. 188).
O tipo penal visa conferir tutela ao regular funcionamento do mercado de valores, cujos ativos negociados, por não possuírem ínsito valor, expressam o preço resultante da confluência de informações presentes no mercado, de acesso igual a todos os agentes econômicos. Em vista disso, aquele que, detendo informação relevante ainda não divulgada ao mercado, negocia valores mobiliários, está burlando o regular funcionamento do mercado de valores, subvertendo a clássica lei dos mercados, isto é, a de que os preços formam-se livremente, pelo conhecido mecanismo oferta/procura, vale dizer, os preços dos valores mobiliários necessitam expressar todas as informações disponíveis, constituindo a ampla e irrestrita divulgação de informações condição essencial à eficiência do mercado (MELLO NETO, 2015, p. 156).
Tal efeito é potencializado pelas estruturas típicas do mercado de valores mobiliários, que, com suas peculiaridades – volatilidade, reatividade, sensibilidade, instabilidade e massificação –, facilita a atuação do possuidor de informação privilegiada, vez que, no mercado, sempre há agentes econômicos dispostos a negociar os títulos correspondentes.
De outra feita, quem negocia valores mobiliários sob o auspício de informação privilegiada destrói ou restringe consideravelmente a maior característica do mercado de valores mobiliários – o risco inerente às operações –, colocando-se em uma posição de ampla vantagem em relação ao resto do mercado, fato que gera desconfiança por parte dos demais agentes econômicos, ao passo que “a confiança na transparência do mercado é indispensável para sua manutenção e para o próprio sistema econômico e financeiro” (GONZÁLEZ RUS, 1996, p. 817).
Protege-se também, ainda que secundariamente, em função das características próprias do bem jurídico tutelado, o patrimônio do investidor lesado pela negociação (MONROY ANTÓN, 2006, p. 141) e também da companhia emitente dos valores mobiliários correspondentes, uma vez que a conduta incriminada pode atentar contra seu prestígio, reputação e, consequentemente, ocasionar a depreciação de seus títulos e valores mobiliários (COSTA; RAMOS, 2006, p. 36). Contudo, importante sublinhar que, mesmo diante da consideração desses bens jurídicos secundários, não se pode olvidar que o crime de “uso indevido de informação privilegiada” não atenta prioritariamente contra bens jurídicos individuais, tampouco perfaz um delito societário (SEMINARA, 1989, p. 02 et seq), mesmo porque, conforme se verá, entre a informação privilegiada e o segredo empresarial ou industrial não há uma relação de identidade (HERNÁNDEZ SAINZ, 1997, p. 186).
3 SUJEITOS DO delito de “uso indevido de informação privilegiada”
Quanto ao sujeito ativo do delito, é importante destacar que este constitui um dos temas que mais tem merecido atenção do direito comparado na discussão do “uso indevido de informação privilegiada”, principalmente pela conveniência de se apresentar como delito especial ou comum (RUIZ RODRÍGUEZ, 2001, p. 1.803). No Brasil, para efeitos de responsabilidade extrapenal, o art. 155, §1º, da Lei n. 6.404/1976[10] enuncia que o administrador de companhia aberta não pode se utilizar de informações privilegiadas para auferir vantagem no mercado de capitais; todavia, no mesmo artigo, desta feita no §4º, há previsão expressa de que é vedada a utilização de informação privilegiada por qualquer pessoa, independentemente de suas características e de suas relações com o mercado.[11]
Diante dessa previsão expressa, pode haver o errôneo entendimento de que qualquer pessoa pode praticar o delito em comento, uma vez que a Lei n. 10.303/01, ao incluir o art. 27-D na Lei n. 6.385/76 – “uso indevido de informação privilegiada” –, não restringe expressamente o rol de possíveis sujeitos ativos, resultando na equivocada conclusão de que, além dos administradores em geral e dos acionistas majoritários – os quais detêm informações privilegiadas a respeito das companhias às quais estão vinculados –, qualquer pessoa poderia ser sujeito ativo do delito em questão, mesmo aquelas sem nenhuma relação com a empresa, órgãos do poder público ou mesmo com o mercado.
Todavia, embora o art. 155, §4º, da Lei n. 6.404/76 vede que qualquer pessoa se utilize de informação relevante ainda não divulgada, tem-se que o melhor entendimento consiste em considerar o crime de “uso indevido de informação privilegiada” delito especial (LEITE FILHO, 2006, p. 33).
De fato, não é qualquer pessoa que pode ser sujeito ativo do delito em questão, pois, além de ter conhecimento da informação relevante, a lei penal determina ainda o dever de manter sigilo sobre a referida informação por parte do agente.[12] Impõe, portanto, a lei que o sujeito ativo detenha uma característica especial, vale dizer, seja portador de “dever jurídico preexistente, próprio a quem, na estrutura da empresa, tenha acesso a tais informações” (LEITE FILHO, 2006, p. 99; AVOLIO, 2006, p. 456).
Tem-se afirmado, porém, que o art. 155, §4º, da Lei n. 6.404/1976, ao enunciar que é vedado a qualquer pessoa utilizar informação relevante ainda não divulgada, criou um dever de sigilo, ou melhor, estendeu-o à generalidade de pessoas (DE SANCTIS, 2003, p. 110). Todavia, tal dispositivo não menciona um explícito dever funcional de sigilo, referindo-se apenas à proibição genérica de se negociar valores munido de informação relevante ainda não divulgada ao mercado. Nem mesmo o tipo penal do art. 27-D da Lei n. 6.385/1976 cria um dever de sigilo, já que “não há na sua construção normativa atribuição de dever de lealdade (ou mesmo sigilo) às pessoas que, ocasionalmente, tenham acesso à informação privilegiada” (LEITE FILHO, 2006, p. 99).
Assim, somente se poderia cogitar de um dever de sigilo se houvesse uma nova previsão, desta feita estendendo o referido dever a todos os demais participantes do mercado que tivessem, de qualquer forma, acesso a informações relevantes (AVOLIO, 2006, p. 457).
Por isso, por exemplo, as pessoas de confiança do círculo pessoal de convivência dos administradores das companhias, desde que não trabalhem na empresa emitente dos valores mobiliários correspondentes, em princípio não podem praticar o delito em questão, ante a ausência de norma específica atribuindo-lhes um dever de sigilo.
Dessa maneira, com essa previsão, a legislação penal brasileira não adotou a teoria da “apropriação de informações relevantes”, surgida nos Estados Unidos, segundo a qual serão sujeitos ativos do delito quaisquer pessoas que se apropriarem de uma informação privilegiada e a utilizarem para negociação com valores mobiliários, vale dizer, a incriminação estaria baseada na mera apropriação de uma informação relevante ainda não divulgada a todo o mercado (AVOLIO, 2006, p. 456-57).
Igualmente, é inviável cogitar que o dever de guardar sigilo mencionado no delito de “uso indevido de informação privilegiada” tenha surgido com a incriminação em si e que, por isso, se estenda a todos, indistintamente (LEITE FILHO, 2006, p. 103).
Ademais, não seria a melhor solução considerar esse crime delito comum, pois, se assim fosse, seriam apenados identicamente agentes que porventura se encontrassem em posições diferentes no mercado, vale dizer, em princípio, estariam sujeitos à mesma sanção penal in abstrato tanto os funcionários dos órgãos de fiscalização do mercado de capitais (Comissão de Valores Mobiliários) como qualquer pessoa que tivesse acesso prévio a uma informação relevante ainda não divulgada (LEITE FILHO, 2006, p. 105).
Argumenta-se, todavia, que a intenção de o legislador proteger o regular funcionamento do mercado e, por via de consequência, também a ordem econômica, seria incompatível com a interpretação restritiva do sujeito ativo, “até porque, como se observou, não foi esse o seu intuito que, sabiamente, incluiu qualquer pessoa como responsável pela utilização de informação relevante (art. 155, §4º, Lei n. 6.404/76)” (DE SANCTIS, 2003, p. 111).
Em que pese esse argumento, não há como ignorar que o legislador penal consignou expressamente o dever jurídico preexistente de guardar sigilo sobre a informação relevante ainda não divulgada ao mercado, não restando outra conclusão, senão a de que se trata de delito especial.
Todavia, pelo teor do art. 155, §4º, da Lei n. 6.404/1976, a infração administrativa de uso de informação privilegiada, a cargo da Comissão de Valores Mobiliários, pode, essa sim, ser praticada por qualquer pessoa (APRIGLIANO, 1998, p. 180). A restrição dos possíveis sujeitos ativos do delito ainda cumpre uma finalidade importante, evitando, por conseguinte, a simples transformação de um ilícito administrativo em delito, o que geraria problemas, ante o papel desempenhado pelo Direito Penal (MANNA, 2005, p. 668).
Há, ainda, quem tente, de forma equivocada, restringir sobremaneira os possíveis sujeitos ativos do delito em tela, identificando-os com os operadores do mercado de valores mobiliários (PAULA, 2006, p. 28). Todavia, o referido artigo tem uma abrangência maior, de modo a alcançar os administradores de sociedades de capital aberto, bem como profissionais que prestam serviços a essas sociedades e que, por lei, devem guardar sigilo acerca de suas operações – como os advogados; desse modo, podem figurar como sujeitos ativos os membros de conselhos e os ocupantes de funções técnicas e de assessoramento em uma companhia de capital aberto e os que, em face de atividade, função ou cargo (advogados, auditores, analistas de investimento, instituições financeiras etc.) obtenham dados relevantes sobre as circunstâncias econômico-financeiras de uma empresa da mesma citada espécie (PROENÇA, 2005, p. 43-44).
Podem ser sujeitos ativos desse delito, por exemplo, os administradores das sociedades por ações (art. 155, §1º, da Lei n. 6.404/1976)[13]; os conselheiros e diretores[14] (art. 145, caput, da Lei n. 6.404/1976)[15]; os integrantes de órgãos técnicos e consultivos (art. 160 da Lei n. 6.404/1976)[16]; os demais empregados das companhias emitentes de valores mobiliários (art. 8º da Instrução da Comissão de Valores Mobiliários n. 358/2002)[17]; os profissionais que prestam serviços à companhia e que, além disso, por lei, tenham o dever de guardar silêncio, como advogados, auditores externos, contadores; os agentes atuantes nas instituições financeiras do mercado de capitais[18], como, v.g., participantes das sociedades distribuidoras e corretoras de valores mobiliários, das bolsas de valores; os funcionários públicos que fiscalizam o mercado de capitais e que, pela natureza de sua função, possuem o dever de guardar sigilo[19] a respeito dos fatos relevantes ainda não divulgados ao mercado (LEITE FILHO, 2006, p. 102).
Criando um delito especial, com a previsão de um dever de sigilo, o legislador não adotou a técnica de enumerar expressamente os possíveis sujeitos ativos, conforme verificado com certa frequência na legislação penal sobre delitos transindividuais, fato esse que evita alguns inconvenientes, como o surgimento de novos profissionais no mercado de valores mobiliários que eventualmente ficariam fora do marco da proibição (RUIZ RODRÍGUEZ, 2003, p. 214).
Por ser um delito especial próprio, em que o dever de sigilo é circunstância elementar do tipo de injusto, pode-se perfeitamente ser praticado em concurso de pessoas, conforme se infere do art. 30 do Código Penal.[20] É importante notar que o concurso de agentes, evidentemente, não elimina o caráter reservado da informação, uma vez que a informação, para deixar de ser privilegiada, precisa ser disponibilizada ao público, não bastando sua comunicação seletiva.
Verifica-se, ainda, conforme característica dos bens jurídicos metaindividuais – relação de complementaridade com os bens jurídicos individuais[21] –, que há uma duplicidade de sujeitos passivos: de um lado a coletividade, que é atingida pelo enfraquecimento do mercado de capitais[22], da capitalização do setor produtivo e consequentemente de toda a economia nacional e o Estado (DE SANCTIS, 2003, p. 121); de outro, o investidor lesado pela negociação (interesse individual)[23] e a própria companhia, que pode ser prejudicada em seu prestígio e seu patrimônio pela atuação de quem negocia no mercado de valores mobiliários, utilizando-se de informação privilegiada.
4 considerações finais
O presente artigo teve por finalidade apresentar alguns comentários críticos a respeito do bem jurídico protegido e também dos sujeitos do delito de uso “indevido de informação privilegiada”.
Sabe-se que o mercado de capitais surgiu para cumprir duas finalidades distintas, mas complementares: capitalizar as companhias (mercado primário) e dotar os valores por elas emitidos de liquidez (mercado secundário). Por isso, o mercado de capitais é uma espécie de mercado financeiro, caracterizado pelo financiamento a prazos longos e indeterminados, cujos recursos canalizados tendem principalmente a reforçar o capital fixo das denominadas sociedades anônimas.
Para atingir sua dupla finalidade, o mercado de capitais é regulado pelo Estado, por meio do qual, utilizando-se de vários instrumentos, dentre os quais a legislação penal, garantem-se a credibilidade, a transparência, a confiabilidade, a estabilidade, a eficiência e, com isso, o regular funcionamento do mercado de capitais.
No Brasil, como forma de se proteger o mercado de capitais, foi criado pela Lei n. 10.303/2001 o delito de “uso indevido de informação privilegiada”, cuja conduta proibida prevista no art. 27-D é a de “Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários”.
Embora há quem defenda o uso de informação privilegiada no mercado de capitais, não apenas como algo normal, mas também salutar, não se deve permitir a transação de valores mobiliários por quem detenha informação relevante ainda não divulgada ao mercado, tratando-se, pois, essa figura de um crime pluriofensivo, em que se tutela o regular e eficiente funcionamento do mercado de valores mobiliários, mediante a preservação de sua credibilidade, com a proteção da função pública desempenhada pela informação ampla e irrestritamente divulgada.
Por fim, é relevante esclarecer também que, apesar de divergências doutrinárias e interpretativas, o art. 27-D, da Lei n. 6.385/1976 perfaz delito especial próprio, o qual somente pode ser praticado por uma categoria de pessoas, pois consigna expressamente que somente as pessoas detentoras de um dever legal de guardar sigilo acerca de informações relevantes ainda não divulgadas ao mercado poderão ser autoras do presente crime.
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Notas
Autor notes
lauro.ishikawa@alfa.br