ESTUDOS ORGANIZACIONAIS BASEADOS EM MICHEL DE CERTEAU: A PRODUÇÃO INTERNACIONAL ENTRE 2006 E 2015

ORGANIZATIONAL STUDIES BASED ON MICHEL DE CERTEAU: INTERNATIONAL PRODUCTION FROM 2006 TO 2015

ESTUDIOS ORGANIZACIONALES BASADOS EN MICHEL DE CERTEAU: LA PRODUCCIÓN INTERNACIONAL 2006-2015

Arilton Marques Faria
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Alfredo Rodrigues Leite da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

ESTUDOS ORGANIZACIONAIS BASEADOS EM MICHEL DE CERTEAU: A PRODUÇÃO INTERNACIONAL ENTRE 2006 E 2015

Revista Alcance, vol. 24, núm. 2, pp. 209-226, 2017

Universidade do Vale do Itajaí

Recepção: 28 Outubro 2016

Aprovação: 22 Junho 2017

Resumo: Este estudo teve como objetivo discutir a produção científica internacional nos estudos organizacionais dos últimos dez anos, a qual usou as ideias de Michel de Certeau. Para isso, utilizou-se a bibliometria como estratégia metodológica. Analisou-se uma amostra final de 57 artigos a partir de três dimensões: aspectos gerais, aspectos metodológicos e aspectos temáticos. Os resultados mostram que o Reino Unido foi o país mais recorrente em termos de origem das instituições, dos autores e dos periódicos. Também se verificou que grande parte dos estudos foi do tipo empírico e qualitativo, com predomínio da estratégia do estudo de caso e da entrevista como técnica de coleta. Além disso, constatou-se que resistência foi a temática mais recorrente, tática foi o conceito mais usado e Michel Foucault e Pierre Bourdieu foram os teóricos mais articulados com Michel de Certeau. Acima de tudo, este artigo evidenciou que a característica marcante de Michel de Certeau, que é a crítica sobre a suposta tendência de submissão à manutenção do que está estabelecido como verdade, contamina a sua obra e contagia os estudos que a utilizam. Nesse sentido, concluiu-se que esse é um potencial do autor, com muitos resultados a oferecer, em vários temas dos estudos organizacionais.

Palavras-chave: Michel de Certeau, Estudos Organizacionais, Bibliometria.

Abstract: This aim of this study was to discuss international scientific production in organizational studies in the last ten years that used the ideas of Michel de Certeau. For this, bibliometrics was used as a methodological strategy. We analyzed a final sample of 57 papers from three dimensions: general aspects, methodological aspects and thematic aspects. The results showed that the United Kingdom was the most recurrent country in terms of the origin of institutions, authors and journals. We also found that most of the studies were empirical and qualitative, with a predominance of case study as the strategy and interview as the gathering technique. Furthermore, we found that resistance was the most recurrent theme, tactics was the most used concept, and Michel Foucault and Pierre Bourdieu were the authors most mentioned in conjunction with Michel de Certeau. Above all, this paper showed that the marked characteristic of Michel de Certeau is that criticism of the supposed tendency of submission to the maintenance of what it is established as truth contaminates his work and the studies that use it. We therefore conclude that this is a potential of the author, with so many results to offer, in various themes of organizational studies.

Keywords: Michel de Certeau, Organizational Studies, Bibliometrics.

Resumen: Este estudio tuvo como objetivo analizar la producción científica internacional en los estudios organizacionales de los últimos diez años que utilizaron las ideas de Michel de Certeau. Para ello se utilizó la bibliometría como una estrategia metodológica. Se analizó una muestra final de 57 artículos en tres dimensiones: aspectos generales, aspectos metodológicos y aspectos temáticos. Los resultados muestran que el Reino Unido fue el país más frecuente en términos de origen de las instituciones, de los autores y de las revistas. También se observó que la mayoría de los estudios fue empírico y cualitativo, con un predominio de la estrategia de estudio de caso y entrevista como técnica de recolección. Además, se encontró que la resistencia era el tema más recurrente, el concepto táctico fue el más utilizado y Michel Foucault y Pierre Bourdieu fueron los teóricos más articulados con Michel de Certeau. Pero sobre todo, este artículo mostró que la característica sobresaliente de Michel de Certeau, que es la crítica de la supuesta tendencia de la sujeción al mantenimiento de lo que se establece como verdadero, contamina su trabajo y contagia los estudios que lo utilizan. En este sentido, se concluyó que se trata de un autor con potencialidad, con muchos resultados que ofrecer, sobre diversos temas de los estudios organizacionales.

Palabras clave: Michel de Certeau, Estudios Organizacionales, Bibliometría.

1 INTRODUÇÃO

Michel de Certeau foi um pensador do século XX que não se contentou com restrições de correntes epistemológicas predominantes nem de abordagens teóricas ou metodológicas de um campo específico do conhecimento. Em obras como “A cultura no plural” (CERTEAU, 2012), “A Invenção do Cotidiano” (CERTEAU, 1998) e Heterologies (CERTEAU, 1986), fica clara uma aproximação do autor com o pensamento pós-estruturalista, articulado no sentido de uma revisão de concepções predominantes em diversas áreas do conhecimento, tais como: filosofia, sociologia, antropologia, ciência política, psicanálise, teologia, linguística e história.

Ao reconhecerem a importância dessas concepções, alguns periódicos dedicaram números especiais para discuti-las. É o caso, por exemplo, dos periódicos Paragraph (BUCHANAN, 1999) e South Atlantic Quarterly (BUCHANAN, 2001). O primeiro voltado para a teoria crítica moderna e o segundo para questões políticas, culturais e sociais. Nessas e em muitas outras publicações ficam evidentes as influências das ideias de Michel de Certeau por áreas do conhecimento variadas, articuladas por diversos autores, por exemplo: história (WANDEL, 2000), antropologia (MITCHELL, 2007) e teologia (DURHEIM; TURNBLOOM, 2015).

Na mesma via dessas áreas à dos estudos organizacionais, foco deste artigo, tem recebido contribuições de pesquisadores baseados no pensamento certeauniano. Yuk-kwan Ng e Höpfl (2011), por exemplo, basearam-se nas ideias certeaunianas para interpretar os aspectos simbólicos relacionados aos objetos nos quais as pessoas levavam e deixavam em suas mesas de escritório no contexto de uma empresa asiática. Os autores entenderam que tais objetos representavam marcas de resistência no trabalho (visto como “exílio”) e que esses artefatos serviam para a formação de um espaço permeado por táticas. Em outro exemplo, no contexto dos estudos sobre espaço nas organizações, Munro e Jordan (2013) desenvolveram um estudo etnográfico no contexto de um festival de rua na Escócia para investigar como artistas de rua se utilizavam de táticas espaciais, a fim de dar voz às suas artes.

O conjunto dessas contribuições para a área dos estudos organizacionais deve ser reconhecido para ser possível avaliar seu impacto e seu potencial de desenvolvimento, bem como estabelecer uma crítica sobre o uso do filósofo na área em questão. A relevância deste artigo fica clara ao não se identificar na literatura uma publicação buscando o reconhecimento dessas contribuições e criticando a aplicação delas nos estudos organizacionais. Ou seja, um estudo que reflita sobre como o pensamento de Michel de Certeau está sendo usado pelos estudiosos das organizações na atualidade.

Com o intuito de preencher esta lacuna, este artigo se volta para o seguinte problema de pesquisa: como as ideias de Michel de Certeau foram usadas nos estudos organizacionais dos últimos dez anos? Dessa forma, o objetivo deste estudo se concentra em discutir a produção científica estrangeira nos estudos organizacionais dos últimos dez anos a qual usou as ideias de Michel de Certeau. Para isso, dois objetivos específicos são necessários: mapear os artigos da área de estudos e do período delimitado que citam Michel de Certeau e selecionar aqueles artigos que citam e usam conceitos do autor na argumentação ou na interpretação dos resultados.

Além dos argumentos já apresentados, esse objetivo geral se mostra relevante por oferecer aos interessados em estudos organizacionais um caminho que os possibilite conhecer os pesquisadores que utilizam ideias certeaunianas, as redes em torno do uso delas e as maneiras pelas quais elas têm sido usadas. Ainda sobre a contribuição, argumenta-se que, ao trazer para a discussão o pensamento de um filósofo, este estudo contribui para a aproximação entre filosofia e estudos organizacionais. Ao refletirem sobre o porquê da relevância da discussão filosófica nos estudos organizacionais, Tsoukas e Chia (2011) explanam que a filosofia encontra seu espaço na pesquisa organizacional na medida em que ela oferece a base para se discutir questões ontológicas, epistemológicas e praxeológicas na referida área. Ademais, os autores mostram que o uso de diferentes filosofias contribui de diversas maneiras para as pesquisas empíricas nos estudos organizacionais. Essas contribuições são exploradas com maiores detalhes ao longo do volume organizado pelos autores e que têm como foco algumas correntes filosóficas, tais como a fenomenologia, o marxismo, a hermenêutica e o pragmatismo.

A partir dessas contribuições, este estudo tem o potencial de revelar rumos possíveis de serem tomados por futuros estudos organizacionais, na medida em que pode despertar o interesse no uso do pensamento certeauniano.

Para realizar essa discussão, após esta introdução, encontra-se uma breve síntese da vida e da obra de Michel de Certeau. Em seguida são apresentados os caminhos metodológicos deste artigo e os resultados da pesquisa. Apresenta-se, na sequência, a discussão específica de alguns estudos incluídos na análise bibliométrica, a fim de oferecer um aprofundamento na discussão de como o pensamento certeauniano é articulado na área dos estudos organizacionais. O artigo se encerra com as considerações finais.

2 MICHEL DE CERTEAU: VIDA E OBRA

Michel de Certeau nasceu em Chambéry (França) no ano de 1925, formou-se em filosofia e estudos clássicos em universidades francesas e com vinte e cinco anos se inseriu na Companhia de Jesus, sendo cristão até sua morte, em 1986, com câncer (AHEARNE, 1995). Ao longo desses sessenta e um anos se dedicou ao estudo de vários campos do conhecimento, tais como teologia, antropologia, história, política. Em 1960, tornou-se doutor em teologia pela Universidade Sorbonne (BUCHANAN, 2000). Atuou como professor de antropologia na Universidade da Califórnia e publicou livros e artigos abrangendo diversas áreas do saber (GIARD, 1991).

A respeito de sua obra, a aproximação com o pensamento pós-estruturalista se destaca nos embates entre os caminhos trilhados e defendidos nas obras do autor e as maneiras tradicionais de tratar temáticas como cultura, história, política e teologia, entre outras. Isso fica evidente na coletânea de textos do autor intitulada “Heterologies” (CERTEAU, 1986). Ela reúne trabalhos que tratam desde os modelos políticos dos nativos americanos até a história da psicanálise, para revelar e criticar a redução da história a algo universal, por parte das ideologias do conhecimento iluminista e revelar a resistência a essa redução nas táticas e na produção local da história.

A visão pós-estruturalista, da qual Michel de Certeau se aproxima em diversas obras, trata-se de um pensamento antifundacionista, isto é, calcado em uma rejeição de bases racionais absolutas e de qualquer tipo de essencialismo (SOUZA; SOUZA; LEITE-DA-SILVA, 2013). Em outros termos, esse pensamento exclui os fundamentos estabelecidos previamente que visam guiar a produção intelectual para uma verdade superior. Além disso, essa corrente filosófica entende que os projetos racionais da modernidade científica jamais estiveram desvinculados das relações de poder que sempre marcaram a produção acadêmica. Os saberes não se separam das relações de poder, pois estas influenciam na constituição daqueles (FOUCAULT, 1979).

Tais relações de poder nas práticas científicas são citadas por Certeau (1998) no primeiro volume da obra “A Invenção do Cotidiano”. Nesse livro, o filósofo se aprofunda nos caminhos nos quais as práticas sociais emergem e estabelecem táticas de consumo, capazes de compor uma antidisciplina, na qual o fraco usa o forte para resistir à disciplina. O foco nas práticas sociais cotidianas fez com que Michel de Certeau fosse reconhecido como um teórico da prática.

As práticas para o autor são “maneiras de fazer” que se constituem a partir das estratégias e das táticas cotidianas. Esses dois conceitos se destacam como os mais influentes na obra do autor, chegando a deixar em segundo plano outras de suas contribuições relevantes (BUCHANAN, 1999). Segundo Certeau (1998), a estratégia se trata do cálculo das relações de força no momento em que um sujeito de desejo e poder, na posição de “próprio”, diferencia-se de um alvo, o “outro”. Para o autor, esse “outro” não tem lugar privilegiado de poder para se abrigar, restando-lhe a tática, um cálculo realizado desprovido de domínio sobre o tempo e baseado em uma astúcia relevante para a sobrevivência e resistência dos sujeitos comuns, envolvidos em relações de poder capazes de perverter o lugar a partir dos usos transgressivos de elementos que fazem parte dele. Tais conceitos capitais no pensamento do filósofo têm origem na literatura militar, já que o autor buscou a referência na polemologia para desvendar as práticas.

Os dois volumes da obra “A Invenção do Cotidiano” (CERTEAU, 1998; CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2009) marcam o desejo do pensador por desvendar as minúcias das relações sociais na dimensão cotidiana e refutar a passividade dos consumidores. No primeiro volume, “artes de fazer”, observa-se o predomínio das reflexões do próprio Certeau (1998) sobre o fazer cotidiano, permeado por passividades, transgressões e bricolagens. Já no segundo volume, “morar, cozinhar”, as reflexões em torno dessas duas práticas são articuladas com maior participação de dois membros do “terceiro círculo” de Certeau: Pierre Mayol e Luce Giard (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2009).

Nos dois volumes da obra fica explícito que o cotidiano é dado aos praticantes ao mesmo tempo em que é inventado por eles, em uma dinâmica micropolítica entre sujeitos de posições heterogêneas e efêmeras. Praticantes que se articulam na posição estratégica da “produção” em determinadas circunstâncias articulam-se nas maneiras táticas do “consumo” em outras situações. A visão metafórica de produção e consumo se mostrou eficaz para demonstrar aquela dinâmica do cotidiano, sendo que, em uma ponta, encontra-se a produção de tecnologias controladoras disseminadas no dia a dia, e na outra se nota o consumo das imposições estratégicas. Esse consumo, não se trata da aceitação passiva dessas imposições, visto como ato criativo, ele também é uma produção, porém uma produção do tipo clandestino (CERTEAU, 1998).

No contexto do consumo, os praticantes criam novas formas desviacionistas, assim como fazem do lugar um espaço. Para o autor, o lugar é algo estável onde impera a lei do próprio; enquanto o espaço é instável, dependendo de momentos no tempo, sendo um lugar praticado. Dessa maneira, o autor discorreu sobre práticas de espaço, por exemplo, a prática de caminhar pelas metrópoles. Tais práticas são conectadas por narrativas, portanto, para falar sobre práticas e ter condições para isso, a narrativa é imprescindível (CERTEAU, 1998). São as narrativas que dão vivacidade às práticas de dissimulação, por exemplo. O “trabalho com sucata” citado pelo autor é um exemplo dessa prática, pois essa era uma prática desviacionista na qual os operários aproveitavam sobras de materiais que seriam descartados para seus proveitos pessoais. Isso se trata de uma bricolagem (CERTEAU, 1998), isto é, um conjunto de atividades feitas por praticantes ordinários desprovidos de racionalidade técnica, mas que são capazes de articular produtos fragmentados por meio da criatividade.

O “homem ordinário”, ou “praticante ordinário”, é o sujeito comum esquecido pelos holofotes acadêmicos, um herói anônimo, disseminado na massa marginalizada. Ele também pode ser o “outro” que está no passado. Esse “outro” vai ser desvendado pelo historiador que tentará apresentá-lo parcialmente ao presente por meio da história. Em “A escrita da história”, Certeau (1982) explica que a história é, ao mesmo tempo, uma disciplina, uma prática social e uma escrita. Como disciplina, é relevante pensar nas influências do lugar social marcado por alguma instituição de pesquisa na qual o pesquisador se insere. Já a prática historiográfica se refere às “maneiras de fazer” os procedimentos de pesquisa, que se assemelham ao trabalho de um operário ao empregar métodos e técnicas com o intuito de transformar materiais em produtos. E como escrita, a história articula um discurso de cientificidade para ganhar legitimidade com sofisticados toques de ficção. Segundo Certeau (1982), é a escrita da história que acabará por fazer história, e esse “fazer” dependerá principalmente dos contextos culturais das sociedades.

No entanto, o que seria cultura no pensamento certeauniano? Ora, de acordo com Certeau (2012, p. 141), “para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”. Ou, em um estilo poético característico de sua escrita barroca, Certeau (2012, p. 239) diz que “a cultura é uma noite escura em que dormem as revoluções de há pouco, invisíveis, encerradas nas práticas [...]”. Essas concepções estão reunidas na obra “A cultura no plural”, na qual o autor defende o abandono do entendimento de “cultura” (no singular) para a adoção do entendimento de “culturas” (no plural), pois o primeiro estabelece um efeito unificador de poder, enquanto o segundo possibilita a multiplicidade das culturas e um efeito de luta. Essa noção de cultura, assim como as demais noções certeaunianas, estão sintetizadas no Quadro 1.

Os diferentes conceitos arranjados no Quadro 1 têm sido articulados em recentes estudos organizacionais. Por exemplo, Wilhoit e Kisselburgh (2015) utilizaram as noções de estratégia, tática, lugar e espaço de Certeau (1998) para entender, entre outros objetivos, as resistências por parte de um grupo de ciclistas em torno de estruturas espaciais prescritas. As noções de estratégia e tática também foram o foco da investigação de Vorley e Rodgers (2014), que pesquisaram as trajetórias e as táticas de praticantes que escolheram o caminho do empreendedorismo com o home-based business.

Este artigo discute como o conjunto dessas e de outras ideias certeaunianas foram articuladas nos estudos organizacionais em periódicos internacionais no período de 2006 a 2015. Para mapear essas articulações foi realizada uma análise com base na metodologia descrita a seguir.

Quadro 1
Principais noções de Michel de Certeau
Principais noções de
Michel de Certeau
Fonte: Elaborado pelos autores.

3 CAMINHOS METODOLÓGICOS

Este estudo se baseou em uma pesquisa bibliométrica que se utiliza de técnicas estatísticas para descrever e analisar aspectos da literatura acadêmica (ARAÚJO, 2006). Apesar de a bibliometria carregar um perfil puramente quantitativo de pesquisa desde seu nascimento, no início do século XX, nota-se um recente movimento de adoção de análises qualitativas em conjunto com o método quantitativo nesses estudos (ARAÚJO, 2006). A abordagem aqui adotada está alinhada a esse direcionamento e complementa a estatística descritiva da bibliometria com análises qualitativas.

A seleção dos periódicos da análise se delimitou aos inseridos no “Journal Citation Reports®” (JCR), correspondentes à edição “Social Science 2014” e da categoria “Management”. A delimitação baseada no JCR se justifica, pois ele abarca todos os periódicos indexados no Web of Science, uma base de dados que inclui os principais periódicos das mais diversas áreas do conhecimento. Isso é reconhecido pela área de Administração no Brasil na CAPES, que utiliza o JCR como referência para classificação de periódicos. Essa seleção inicial resultou em um total de 185 periódicos que foram submetidos a alguns critérios para se chegar a uma seleção final dos periódicos a serem analisados.

O primeiro critério foi adotado por questões de viabilidade da coleta de dados e estabeleceu que o periódico internacional selecionado deveria estar disponível no Portal de Periódicos da CAPES. O segundo critério tratou do período, sendo que o período dos últimos dez anos (janeiro de 2006 a dezembro de 2015) foi considerado adequado para refletir o uso das ideias certeaunianas na atualidade. A filtragem com base nesses critérios resultou em um total de 131 periódicos.

Em seguida, em todos os 131 periódicos realizou-se uma busca por aqueles que apresentavam artigos com o termo “Certeau” no texto completo dos artigos ou nas palavras-chave ou no título ou no resumo, ou seja, que apresentassem o termo em qualquer um desses campos. Como resultado, encontrou-se um total de 114 artigos. Observou-se que tais artigos pertenciam a 30 dos 131 periódicos, ou seja, 101 periódicos não tinham ao menos um artigo com a citação de Michel de Certeau.

Após uma leitura integral dos 114 artigos, foram excluídos aqueles que não tratavam de estudos organizacionais ou que citavam Michel de Certeau apenas para exemplificá-lo como um dos teóricos sociais da prática, sem adotar as contribuições teóricas certeaunianas para a construção argumentativa ou o desenvolvimento e a interpretação dos resultados da pesquisa. Isso levou ao número final de 57 artigos, distribuídos entre 18 periódicos.

A partir disso, fez-se uma análise desses 57 artigos. Essa fase consistiu em uma leitura aprofundada de cada artigo, com o intuito de captar as informações necessárias para alcançar o objetivo da pesquisa. Tais informações foram agrupadas em três dimensões: aspectos gerais (periódico, ano, autoria, instituição e país da instituição), aspectos metodológicos (tipo de artigo, natureza da pesquisa, estratégia metodológica e técnica de coleta) e aspectos temáticos (tema, obra de Michel de Certeau utilizada, outros autores usados em conjunto com Michel de Certeau e conceitos mais usados). A reunião dessas informações possibilitou a construção de variadas tabelas por meio do software Microsoft Excel 2013®, as quais foram examinadas com o auxílio de técnicas da estatística descritiva, tais como as medidas de tendência (média aritmética, mediana e moda) e medidas de dispersão (variância, desvio-padrão e coeficiente de variação). Ao final, elaborou-se um conjunto de inferências qualitativas acerca dos trabalhos analisados. São encontrados a seguir os resultados obtidos por meio desse percurso.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Do total de 57 artigos publicados ao longo dos dez anos compreendidos pela faixa de análise desta pesquisa, verificou-se uma média de 5,7 artigos por ano que se utilizaram das ideias de Michel de Certeau. Ao longo desses dez anos, verificou-se uma variação relativamente alta no número de artigos por ano, já que se constatou um desvio-padrão de aproximadamente 3,16. Isto quer dizer que, em alguns anos, a quantidade de artigos se distanciou significativamente da média, destacando-se o ano de 2011, com 13 artigos, como se observa no Gráfico 1.

Quantidade de artigos por ano
Gráfico 1
Quantidade de artigos por ano
Fonte: Elaborado pelos autores.

De maneira oposta à variação da quantidade de artigos por ano, notou-se uma homogeneidade na distribuição de artigos por autoria. Foram contados um total de 97 autores (considerando todos os autores envolvidos em cada um dos 57 artigos). Desses, apenas 14 faziam parte de dois ou mais artigos, isto é, grande parte dos autores só participaram de um artigo. O Gráfico 2 apresenta os 14 autores mais recorrentes, sendo que não passaram de 3 artigos por autor, com destaque para os autores André Spicer e Ann Langley. Pode-se inferir a ausência do estabelecimento de redes de estudos que possam se aprofundar nas contribuições de Michel de Certeau por meio de estudos sistemáticos. Isso denota também descontinuidade por parte dos pesquisadores, que não se aprofundam nas contribuições do filósofo, um pensador tão relevante e recorrente em outras áreas, o que não ocorre com os estudos organizacionais.

Autores mais recorrentes
Gráfico 2
Autores mais recorrentes
Fonte: Elaborado pelos autores.

Com relação ao número de artigos por periódico, observa-se a partir do Gráfico 3 o destaque das revistas Organization (13 artigos), Organization Studies (8 artigos), Human Relations (7 artigos) e Management Learning (5 artigos). Os demais periódicos não apresentaram mais do que 3 artigos. O destaque dessas primeiras revistas se compatibiliza com as informações sobre os países das instituições (Gráfico 4), já que o Reino Unido - justamente o país de origem das revistas - se sobressaiu, com 25 artigos, enquanto os demais países não passaram de 6 artigos.

Quantidade de artigos por periódico
Gráfico 3
Quantidade de artigos por periódico
Fonte: Elaborado pelos autores.

Quantidade de artigos
por país das instituições
Gráfico 4
Quantidade de artigos por país das instituições
Fonte: Elaborado pelos autores.

No entanto, quando se analisa a quantidade de artigos por instituição de pesquisa, notou-se certa homogeneidade nos dados, com uma diversidade de instituições (Gráfico 5), pois o desvio-padrão foi de aproximadamente 0,51 - considerado baixo se comparado ao desvio do número de artigos por ano. Ainda assim, observou-se o destaque de duas instituições britânicas: as universidades de Essex e Warwick. Deste modo, nessa primeira dimensão de características gerais, constatou-se o predomínio de artigos advindos do Reino Unido.

Quantidade de artigos por instituição de
pesquisa
Gráfico 5
Quantidade de artigos por instituição de pesquisa
Fonte: Elaborado pelos autores.

O entendimento da região geográfica predominante em estudos desse tipo é algo relevante, pois o campo acadêmico na área de estudos organizacionais é tratado a partir das preferências políticas dos pesquisadores que são influenciados por diversos fatores, tais como a instituição a qual pertencem e a tradição acadêmica de determinados países ou continentes. Como argumentam Marsden e Townley (2001), a abordagem predominante nos estudos organizacionais sempre foi a ortodoxia funcionalista e positivista, com influência dos Estados Unidos. Ainda segundo os autores, foi a partir da segunda metade do século XX que apareceram as vozes de abordagens alternativas na Europa, principalmente no Reino Unido, com trabalhos interpretativos e críticos. Porém os autores reconhecem que tais alternativas não ganharam força suficiente para alargar seus espaços de prestígio nos estudos organizacionais.

As influências geográficas também ocorrem quando se observa um tema específico dessa área de estudo, como exemplo, a estratégia organizacional. Ao discorrer sobre como as literaturas estadunidense e europeia tratavam a estratégia, Whipp (2004) notou que nos Estados Unidos a estratégia é tratada recorrentemente por uma visão racionalista; enquanto que na Europa o tema é mais fragmentado por receber variadas visões, entre elas um enfoque mais crítico e interpretativo. Um exemplo é a abordagem da Estratégia como Prática Social (EPS) (JARZABKOWSKI; BALOGUN; SEIDL, 2007), baseada nos teóricos sociais da prática e que tem sua origem nos trabalhos de pesquisadores atuantes no Reino Unido. Portanto, quando se nota que Michel de Certeau foi um teórico social que estabeleceu críticas e alternativas ao modelo instrumental de ciência, é possível entender, em parte, as motivações de sua recorrência nos estudos organizacionais na Europa, notadamente no Reino Unido (Gráfico 4), em vez dos Estados Unidos, por exemplo.

A respeito da dimensão metodológica, observou-se que, em termos do tipo de artigo, constaram, do total de 57 artigos, 37 (64,91%) artigos do tipo teórico-empírico e 20 (35,09%) artigos puramente teóricos (GRÁFICO 6).

Tipo de artigo
Gráfico 6
Tipo de artigo
Fonte: Elaborado pelos autores.

Entre os artigos teórico-empíricos, notou-se uma predominância do estudo de caso como estratégia metodológica de pesquisa, com o total de 12 artigos; seguido da etnografia, com 6 artigos; e outras três estratégias metodológicas, com 2 (Estudo Longitudinal) e 1 artigo (Grounded Theory e Estudo Fenomenológico). Daqueles 37 artigos, 15 não explicitaram a estratégia metodológica de pesquisa. Essas informações estão ilustradas no Gráfico 7.

Estratégias metodológicas dos artigos
teórico-empíricos
Gráfico 7
Estratégias metodológicas dos artigos teórico-empíricos
Fonte: Elaborado pelos autores.

Sobre as técnicas de coleta dos dados empíricos daqueles 37 artigos, o Gráfico 8 apresenta a homogeneidade em relação às técnicas de pesquisa: documentos, observação e entrevista. Apenas 1 artigo adotou o grupo focal. Tais técnicas de coleta foram contadas separadamente no Gráfico 8.

Técnicas de coleta dos artigos
teórico-empíricos
Gráfico 8
Técnicas de coleta dos artigos teórico-empíricos
Fonte: Elaborado pelos autores.

Diante dessa dimensão metodológica, duas principais considerações podem ser feitas. A primeira é que, entre os autores dos artigos que explicitaram a adoção da estratégia metodológica “estudo de caso”, grande parte deles não se importou em explicitar a abordagem de estudo de caso adotada ou o autor tomado como base para a execução da estratégia metodológica. Isso revela uma falta de clareza sobre o que é ou não é um estudo de caso, e sobre as implicações dessa escolha metodológica. A segunda consideração se refere às técnicas de coleta usadas. Observou-se um alinhamento com as pesquisas de Michel de Certeau. Nenhum estudo usou técnicas largamente usadas em pesquisas de cunho estatístico, como questionários fechados e se notou o equilíbrio entre o uso de entrevistas, documentos e observações. Para se desvendar as minúcias práticas do cotidiano dos sujeitos ordinários, é preciso mergulhar nas trajetórias desses praticantes em seus fazeres diários, e para isso os dados quantitativos não se mostram suficientes (CERTEAU, 1998).

Acerca da temática dos 57 artigos, o Gráfico 9 apresenta os principais temas, com destaque para o tema da resistência, com 8 artigos. Já o Gráfico 10 mostra as obras mais citadas pelos artigos analisados. Constatou-se a prevalência do primeiro volume do livro “The practice of everyday life” em 85,71% dos artigos. E a respeito dos demais autores articulados com as contribuições de Michel de Certeau, o Gráfico 11 exibe o destaque de dois autores: Michel Foucault (8 artigos) e Pierre Bourdieu (8 artigos).

Principais temas dos artigos
Gráfico 9
Principais temas dos artigos
Fonte: Elaborado pelos autores.

Obras mais usadas
Gráfico 10
Obras mais usadas
Fonte: Elaborado pelos autores.

 Outros
pensadores articulados com Michel de Certeau
Gráfico 11
Outros pensadores articulados com Michel de Certeau
Fonte: Elaborado pelos autores.

Essas três informações estão entrelaçadas, já que cada uma pode servir como fonte de entendimento das outras. O destaque do tema da resistência se explica em parte pelo fato de que, nos estudos organizacionais, esse tema tem recebido significativa atenção por parte dos pesquisadores nas duas últimas décadas, sobretudo como tentativa de complementar estudos que davam exclusiva atenção aos mecanismos minúsculos de poder e controle no cotidiano organizacional, mas ignoravam as práticas de sobrevivência dos sujeitos envolvidos nas relações de poder (THANEM, 2012). No pensamento certeauniano, a preocupação central está justamente na questão da resistência (DEY; TEASDALE, 2015). Ela é vista como as maneiras criativas com que os sujeitos jogam no cotidiano. O livro no qual se encontra uma discussão mais aprofundada acerca desse tema na obra de Michel de Certeau é justamente o primeiro volume de “A invenção do cotidiano” (KONG, 2006). É nessa obra que o autor apresenta suas relações com as teorias das práticas desenvolvidas por Michel Foucault e Pierre Bourdieu, inclusive dedicando um capítulo inteiro a essa questão. Isso porque “um discurso manterá [...] cientificidade explicitando as condições e as regras de sua produção e, em primeiro lugar, as relações de onde nasce” (CERTEAU, 1998, p. 110), ou seja, há um reconhecimento por parte do autor das relações desses dois autores com o seu pensamento, inclusive em termos de origens comuns.

Certeau (1998), Foucault (1979) e Bourdieu (2004) partilham, cada qual a sua maneira, do entendimento de que a realidade social é composta por uma dinâmica de golpes e contragolpes, não havendo passividade de uma das partes da relação de forças. Segundo Foucault (1979, p. 126), “é preciso analisar o conjunto das resistências ao panóptico em termos de tática e de estratégia, vendo que cada ofensiva serve de ponto de apoio a uma contraofensiva”. Assim, nota-se como a noção de tática em Certeau (1998) se aproxima do lado da resistência quando Foucault (1979) trata das manobras de contrapoder que se articulam aos mecanismos de domesticação dos corpos. As táticas de resistência focadas por Certeau (1998) também se alinham às estratégias de subversão de agentes marginalizados em um campo (BOURDIEU, 2004). Para Bourdieu (2004), os agentes necessitam de inventividade para lidar com situações indefinidamente modificadas no campo. Dessa maneira, os três filósofos explicitam a relevância da dimensão da resistência.

Por conseguinte, essa dimensão oferece uma explicação sobre o conceito mais recorrente entre as pesquisas coletadas na amostra final, a noção de tática, usada por 24 artigos (Gráfico 12).

Noções mais usadas
Gráfico 12
Noções mais usadas
Fonte: Elaborado pelos autores.

Se comparado ao conceito de estratégia, nota-se a diferença significativa, já que apenas 7 artigos tratam desse conceito. Contraditoriamente, isso se distancia e se aproxima ao mesmo tempo do pensamento de Michel de Certeau. Distancia-se pelo fato de que o filósofo argumentou que a investigação sobre a estratégia e sobre o lado da repressão é algo fundamental. Assim, não se deve esquecer dos dispositivos repressores quando se investiga o lado tático. Por outro lado, o resultado se aproxima, ao passo que o filósofo defende que existe na literatura certa obsessão pela estratégia, necessitando, dessa forma, de um pouco mais de atenção pelas táticas cotidianas, para as maneiras de lidar com as repressões quando os sujeitos se colocam em posições de consumidores.

5 AS NOÇÕES MAIS USADAS DE MICHEL DE CERTEAU NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS: ARTICULAÇÕES IDENTIFICADAS

Alguns artigos denotam explicitamente as maneiras pelas quais os principais conceitos certeaunianos elencados no Gráfico 12 possibilitam novos olhares para temas dos estudos organizacionais. Tais pesquisas estão reunidas em torno de três principais temas: estratégia organizacional, resistências nas organizações e narrativas.

Sobre estratégia nas organizações, Jarzabkowski, Balogun e Seidl (2007) destacam e assumem as características do entendimento de prática de Certeau (1998), em conjunto com o de outros autores, para auxiliar na construção de um quadro conceitual acerca da abordagem contemporânea da estratégia, chamada de Estratégia como Prática Social (EPS). Abdallah e Langley (2014), por sua vez, utilizaram o conceito certeauniano de consumo em um estudo de caso numa empresa produtora e distribuidora de filmes, com o intuito de entender as implicações da ambiguidade manifestada no planejamento estratégico dessa empresa. Abdallah e Langley (2014) explicaram que, no curto prazo, a ambiguidade tem efeitos benéficos por proporcionar participação entre empregados com diferentes perspectivas, entretanto, no longo prazo, a ambiguidade pode levar ao conjunto de contradições capazes de arruinar o planejamento, já que se manifestarão diversas formas de consumo por parte dos praticantes astuciosos.

Ainda em torno da estratégia, Jarzabkowski e Wilson (2006) discutiram sobre a situação da literatura tradicional em estratégia diante da contemporaneidade, especialmente sobre as exigências de uma virada para a prática. Nesse ensaio, os autores utilizaram a noção de bricolagem para mostrar como estrategistas em suas práticas sociais articulam diferentes dispositivos da gestão estratégica (como as cinco forças e a matriz SWOT) para diversos propósitos, inclusive para fins adversos ao que a literatura que suporta a ferramenta sugere. Por exemplo, o uso da ferramenta matriz SWOT, por meio da bricolagem, para, no lugar de planejar o futuro, que seria sua utilidade prevista, articular um alinhamento cultural e obter legitimidade no presente, defendendo interesses pessoais momentâneos, independentes dos resultados do planejamento futuro.

Acerca do tema da resistência, Dey e Teasdale (2015) estudaram o caso de organizações do terceiro setor no Reino Unido submetidas aos programas governamentais conhecidos pela “empresarialização do terceiro setor”. Nesse caso, os conceitos de estratégias e táticas cotidianas foram cruciais para que os autores entendessem a dinâmica das relações entre gestores daquelas organizações e as imposições dos programas neoliberais. Ao se concentrarem principalmente no lado tático, os autores compreenderam que os praticantes das organizações do terceiro setor passavam a imagem de que estavam de acordo com as políticas impostas, mas que no fundo isso fazia parte de um gesto de resistência, pois tais sujeitos tinham o pretexto de ganhar acesso a recursos valiosos, não concordando de fato com os programas.

Já o estudo de Thanem (2011) focalizou as resistências por parte de pessoas em situação de rua, frente a dois projetos de planejamento urbano que tinham o intuito de expulsá-las de dois locais públicos no centro da capital da Suécia, Estocolmo. Nesse contexto, as noções de lugar e espaço foram relevantes para o autor na medida em que ele explorou um vazio encontrado na literatura sobre resistência. O autor notou que geralmente os pesquisadores desse tema se concentram no nível discursivo, mas seu estudo ampliou o quadro de análise com a abordagem espacial da resistência. Embora nas conclusões o autor tenha se mostrado ciente da limitação da abordagem, principalmente pelo fato de que ela não trouxe mudanças significativas para a vida daquelas pessoas, ele argumentou que o estudo proporcionou contribuições variadas, como a visão de que aquelas pessoas, mesmo que não fossem passivas, precisavam explorar ainda mais os locais públicos de tal modo que seus interesses e vozes fossem considerados no meio social.

Também com a visão na qual aceita a possibilidade de movimentos subversivos nas relações de poder, Paulsen (2013) associou o conceito de resistência às maneiras de apropriação do tempo de trabalho. Nesse caso, a prática subversiva da sucata de que fala Certeau (1998) foi importante para explicar a respeito dos jeitos astuciosos que trabalhadores na Suécia enfrentavam as jornadas de trabalho. O autor entendeu que os momentos de “vagabundagem” no trabalho representavam resistências e que essas se davam de quatro formas distintas, entendidas a partir de uma tipologia construída por ele.

Por fim, em torno do tema das narrativas, Humle e Perdersen (2014), por meio de um estudo etnográfico em uma empresa de consultoria em gestão de pessoas na Dinamarca, investigaram como os sentidos eram construídos naquela empresa a partir de relatos fragmentados contados pelos consultores. Para isso, um referencial teórico foi construído como embasamento, sendo que a visão de Certeau (1998) a respeito de narrativa teve papel fundamental. Os autores notaram que os relatos eram práticas sociais negociadas pelos narradores sobre os quais se articulavam em um processo de tensão, descontinuidade e reconstrução sobre as narrativas. Fletcher e Watson (2007) também elaboraram um estudo etnográfico em torno do tema das narrativas, porém eles investigaram manifestações relacionais de vozes e silêncios em uma organização industrial no Reino Unido. Os autores partiram do entendimento de cotidiano de Certeau (1998). Eles captaram vozes fortes, fracas e silêncios que estavam contextualizados nas maneiras pelas quais os praticantes lidavam com as interações cotidianas.

O conjunto dos usos das noções certeaunianas aqui apresentadas não são exaustivas. O próprio pensamento do autor, que revela a contínua dinâmica de produção social, presente no cotidiano, impede apresentar algo definido de maneira permanente ou exaustiva. Entretanto, esse conjunto de usos permite refletir sobre como a obra do autor é profícua para os estudos organizacionais. Ao se analisar qualitativamente os 57 artigos que usaram as ideias certeaunianas, ficaram evidentes as diferenças entre os usos e os temas organizacionais articulados por meio desses usos.

Isso não quer dizer que não foi possível identificar um elo comum que perpassa todos os artigos, por sinal esse elo revela o potencial das contribuições certeaunianas para estudos futuros. Todos os estudos buscam repensar os modos tradicionais de tratar temas relacionados com o processo organizacional. A seguir, no Quadro 2, encontra-se um panorama com as articulações de alguma dessas noções no contexto organizacional.

Quadro 2
Noções de Michel de Certeau no contexto organizacional
Noções de Michel de Certeau no contexto
organizacional
Fonte: Elaborado pelos autores.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo geral desta pesquisa foi discutir a produção científica internacional nos estudos organizacionais dos últimos dez anos que usou as ideias de Michel de Certeau. A partir da bibliometria, uma quantidade criteriosamente delimitada de artigos foi tratada quantitativa e qualitativamente, tomando-se por base três dimensões: aspectos gerais, aspectos metodológicos e aspectos temáticos.

A respeito dos aspectos gerais, grande parte dos artigos pertenciam aos pesquisadores que atuavam em universidades do Reino Unido e os periódicos mais recorrentes eram britânicos. Em torno dos aspectos metodológicos, todas as pesquisas eram qualitativas, não faziam uso de alguma técnica de coleta de cunho quantitativo e grande parte delas se baseava no estudo de caso como estratégia metodológica. No que diz respeito às questões temáticas, as pesquisas mais recorrentes tinham o tema da resistência, citavam principalmente o primeiro volume do livro “A invenção do cotidiano”, usavam mais o conceito de tática e articulavam o pensamento de Michel de Certeau principalmente com Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Tais achados foram discutidos a partir de inferências qualitativas, levando ao alcance do objetivo geral do estudo. Com base nisso, foi possível construir uma agenda de pesquisa sobre Michel de Certeau nos estudos organizacionais composta por quatro aspectos: estratégia metodológica; técnicas de coleta; uso das obras de Michel de Certeau; articulação entre Certeau e outros pensadores.

Sobre estratégia metodológica evidenciou-se que a maior parte dos artigos empíricos analisados não se preocupou em explicar detalhadamente o método, especialmente em relação à estratégia metodológica. Além disso, as publicações que informam adotar o estudo de caso não especificam o que chamam de estudo de caso. Mas existem diferentes perspectivas de estudo de caso, como a visão interpretativista de Stake (2008) ou a visão crítica de Burawoy (1998), entre outras, com diferentes implicações ao se adotar as contribuições de Certeau. Para que seja possível discutir essas implicações, não apenas em relação ao uso do estudo de caso, mas de qualquer outra estratégia, é relevante dar maior atenção no detalhamento das estratégias metodológicas. Isso permitiria legitimar os estudos e um aprofundamento em seus aspectos epistemológicos. Deve ficar claro que os estudos baseados nas contribuições de Certeau são convergentes com diversas estratégias, tais como: etnografia, fenomenologia, história de vida, pesquisa-ação, estudo qualitativo básico e estudo de caso. Mas ao serem adotadas em estudos baseados nas contribuições certeaunianas, elas oferecem implicações distintas, que devem ser discutidas nos respectivos estudos.

Quanto às técnicas de coleta de dados, na literatura examinada se identificou uma restrição à tríade entrevista, observação e documento. O desafio, então, é pluralizar a lista de meios utilizados para coletar os materiais empíricos. Em vez de triangular os dados, sugere-se cristalizar os mesmos, pois se ganham mais vértices para análise (DENZIN; LINCOLN, 2005). Ou seja, a diversidade nas técnicas utilizadas contribui para maior aprofundamento nas respostas dos problemas de pesquisa (DENZIN; LINCOLN, 2005). A lista de técnicas é vasta, tornando impossível esgotá-la aqui. Porém, podem-se exemplificar as potencialidades existentes a partir de uma técnica pouco explorada nos estudos organizacionais: shadowing (MCDONALD, 2005). Essa técnica é relevante nos estudos organizacionais baseados em Certeau, pois ela possibilita que o pesquisador acompanhe os praticantes ordinários pesquisados a todo momento (como uma sombra) e isso contribui para o maior entendimento do cotidiano dos praticantes. Cotidiano que perpassa as mais diversas contribuições oferecidas por Certeau.

Sobre o uso das obras de Michel de Certeau, os estudos analisados se restringiram ao primeiro volume do livro “A invenção do cotidiano”, o que se trata de uma visão relativamente limitada do pensamento do autor. Além de citarem somente essa obra, muitos estudos trabalharam apenas com os conceitos de estratégia e tática. Dessa maneira, o desafio é rejeitar a análise descontextualizada de conceitos certeaunianos e adotar uma visão mais holística do pensamento do autor. Embora a tarefa seja dificultada pelas várias áreas de estudo que Certeau se aventurou, existem pontos nodais entre suas obras, pontos com os quais pesquisadores podem trabalhar para ampliar os usos de Certeau nos estudos organizacionais.

Por fim, ao se analisar a articulação entre Certeau e outros pensadores, não se constatou trabalho teórico com a preocupação central de fazer tal articulação e mostrar como ela pode ser profícua para os estudos organizacionais. Portanto, há a oportunidade de ensaios com esse enfoque. Entre os pensadores a serem articulados, há uma amplitude significativa. Isso se explica pelo fato de que o pensamento de Certeau não foi construído para ficar enjaulado eternamente em uma corrente ou abordagem. Certeau foi um pensador da pluralidade.

Além desses quatro aspectos, este artigo evidenciou uma característica marcante do próprio Michel de Certeau: a crítica à suposta tendência de submissão à manutenção do que está estabelecido como verdade. Essa crítica contamina a sua obra e contagia os estudos que a utilizam. Neste artigo, defende-se que esse é um potencial da obra do autor ainda com muitas contribuições a oferecer nas mais diversas temáticas dentro do campo dos estudos organizacionais.

Ao tomar para si a responsabilidade de usar as ideias do autor em estudos futuros com esse foco, o pesquisador contribuirá para desvelar algo além da disciplina óbvia dos estudos organizacionais sobre o tema, assim como Michel de Certeau fez, de diferentes maneiras, ao longo de toda a sua vida, em relação às mais diversas temáticas que permearam o seu cotidiano.

Agradecimentos

Agradecimentos à FAPES (processos 67656544/14 e 69922241/15) e ao CNPq (processos 472013/2014-9 e 308376/2014-5) pelas bolsas e pelo apoio financeiro.

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