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DESVELANDO A COMPETÊNCIA EM ROTINAS DE PROGRAMAÇÃO DA PRODUÇÃO A PARTIR DO MÉTODO FENOMENOGRÁFICO
UNVEILING COMPETENCE IN PROGRAMMING ROUTINES OF PRODUCTION BASED ON THE PHENOMENOGRAPHIC METHOD
DESVELANDO LA COMPETENCIA EN RUTINAS DE PROGRAMACIÓN DE PRODUCCIÓN A PARTIR DEL MÉTODO FENOMENOGRÁFICO
Revista Alcance, vol. 24, núm. 4, pp. 602-618, 2017
Universidade do Vale do Itajaí



Recepção: 21/10/2017

Aprovação: 05/03/2018

DOI: https://doi.org/alcance.v24n4(Out/Dez).p602-618

Resumo: Nas organizações industriais contemporâneas, globalização e tecnologia tornam produtos cada vez mais semelhantes. Nesse cenário, a operação passa a ser um dos principais mecanismos de diferenciação e o planejamento da produção ganha um inédito papel estratégico. O objetivo deste estudo foi investigar esse fenômeno com um olhar centrado nas rotinas organizacionais e nas pessoas. A partir de uma abordagem qualitativa e interpretativa, o trabalho utilizou o método fenomenográfico para compreender como os próprios programadores concebem a competência nas suas rotinas. A análise das entrevistas identificou três diferentes concepções distintas. A programação da produção como Alocação de recursos e materiais; como Mediação entre diferentes áreas; e como Gestão tático-estratégica da operação. Além disso, foram identificadas seis dimensões do fenômeno que explicam e diferenciam as concepções: Raciocínio lógico, Conhecimento técnico, Conhecimento sistêmico, Estratégia de negociação, Aspecto manifesto da rotina e Envolvimento com a estratégia corporativa. Os achados sugerem que a dimensão estratégica da programação é verificável nas rotinas em diferentes graus. Além disso, ao revelar a concepção competência como sendo a mediação entre as diferentes áreas da empresa, o estudo revela as estratégias de negociação no centro do debate sobre a competência nas rotinas de programação da produção.

Palavras-chave: Rotinas organizacionais, competências, programação da produção.

Abstract: In contemporary industrial organizations, globalization and technology are increasingly similar products in in this scenario, the operation becomes one of two main mechanisms of differentiation, and planning of production takes on a new strategic role. The objective of this study was to investigate this phenomenon, focusing on organizational routines and people. Based on a qualitative and interpretative approach, the work used the phenomenographic method to understand how the programmers themselves understand competence in their routines. Analysis of the interviews identified three different and distinct concepts. The programming of production as Allocation of resources and materials: as Mediation between different areas; and as Tactical-strategic management of the operation. Also, six dimensions of the phenomenon on were identified that explain and differentiate the concept: Logical reasoning, Technical knowledge, Systemic knowledge, Negotiation strategy, Manifest aspect of the routine and Involvement with the corporate strategy. The findings suggest that the strategic dimension of programming can be seen in the routines to varying degrees. Moreover, by revealing the concept of competence as the mediation between different areas of the company, the study reveals the strategies of negotiation at the heart of the debate on competence in programming and production routines.

Keywords: organizational routines, the competencies, production programming.

Resumen: En las organizaciones industriales contemporáneas, globalización y tecnología son productos cada vez más semejantes. En este escenario, la operación pasa a ser uno de los principales mecanismos de diferenciación y el plan de producción recibe un papel inédito estratégico. El objetivo de este estudio fue investigar este fenómeno con una mirada centrada en las rutinas organizacionales y las personas. A partir de un abordaje cualitativa e interpretativa, el trabajo utilizó el método fenomenográfico para comprender como los propios programadores conciben la competencia en sus rutinas. El análisis de las entrevistas identificó tres diferentes concepciones distintas. La programación de la producción como Asignación de recursos y materiales; como Mediación entre diferentes áreas; y como Gestión táctica-estratégica de la operación. Además, fueron identificadas seis dimensiones del fenómeno que explican y diferencia las concepciones: Raciocinio lógico, Conocimiento técnico, Conocimiento sistémico, Estrategia de negociación, Aspecto de la rutina, Envolvimiento con la estrategia corporativa. Los hallazgos sugieren que la dimensión estratégica de la programación es verificable en las rutinas en diferentes grados. Además, al revelar la concepción competencia como siendo la mediación entre las diferentes áreas de la empresa, el estudio revela las estrategias de negociación en el centro del debate sobre la competencia en las rutinas de programación de la producción.

Palabras clave: Rutinas organizacionales, competencias, programación de la producción.

1. INTRODUÇÃO

Em um mundo globalizado, com a circulação de informações veloz e incessante, tanto as inovações tecnológicas quanto as características dos produtos e processos ofertados pela indústria estão cada vez mais semelhantes entre si. Em decorrência disso, nos últimos anos, a função de gestão de operações no chão de fábrica e, mais especificamente, a atividade de programação da produção, vem ganhando crescente relevância estratégica para a competitividade das empresas. A operação, isto é, a maneira pela qual as empresas agem e reagem em relação às dinâmicas do mercado, torna-se um dos principais mecanismos de diferenciação (HILL; HILL, 2009; PAPKE SHIELDS; MALHOTRA, 2008; CARVALHO, 2005).

O programador de produção, em que pese os limites à prática racional de sua função (SIMON, 1947; CYERT; MARCH, 1963), toma decisões a partir de um problema combinatório explosivo, ao mesmo tempo em que intermedia os objetivos das áreas comercial e produtiva das empresas. Objetivos esses que são frequentemente contraditórios e mensurados por indicadores conflitantes (CARVALHO, 2005; SAISSE; WILDING, 1997). Alguns autores apontam metodologias e ferramentas de gestão da capacidade produtiva para lidar com o conflito da tomada de decisão com objetivos antagônicos (BROWN; MARIN; SCHERER, 1995; COSTA, 1996; THOMAS et al., 1997; CARVALHO, 2005). Outros autores, como Quinn e Novels (2011) e LaForge e Craighead (2000), dão atenção especial às soluções baseadas em tecnologia da informação e nos de sistemas corporativos, os chamados softwares de APS (Advanced Planning and Scheduling). Nota-se, portanto, que essas abordagens são racionalistas, centradas em uma perspectiva tecnológica e funcional, e que tendem a não levar em consideração a dimensão das competências profissionais e a percepção de quem efetivamente exerce a função.

No entanto, as abordagens racionalistas não são a única maneira de se compreender as múltiplas dimensões envolvidas no estudo das organizações. Nas últimas décadas, outras abordagens, como o paradigma interpretativista, por exemplo, têm criticado o funcionalismo por desconsiderar a natureza contextual e subjetiva dos fenômenos (MORGAN, 2005; VERGARA; CALDAS, 2005). Para Morgan (2005), o paradigma interpretativista se baseia no entendimento de que a experiência social não é constituída por uma única realidade objetiva, mas por um conjunto de interpretações subjetivas e jogos de linguagem. Em paralelo, e considerando o âmbito específico da área de programação da produção, alguns autores (MACCARTHY; WILSON; CRAWFORD, 2001; RITTER; SOHAL; D’NETTO, 1998) têm destacado nos últimos anos que, apesar dos avanços tecnológicos, na maioria das organizações industriais as rotinas organizacionais de planejamento e programação ainda dependem significativamente da competência humana na tomada de decisão para garantir um desempenho considerado eficaz. Nesse sentido, em um seminal estudo sobre competência humana no trabalho, Sandberg (2000) faz uma crítica à abordagem funcionalista da competência, que restringe o bom desempenho profissional a uma lista universal de habilidades e conhecimentos. Para o autor, a competência na realização de uma tarefa não pode ser separada do trabalho em si, nem dissociada do entendimento que cada pessoa tem do trabalho que excuta.

Esse contexto geral levanta algumas importantes questões, tanto sobre a natureza da área de planejamento e programação da produção, quanto sobre a percepção dos programadores acerca do que é a competência na realização de suas rotinas. Os programadores de produção reconhecem um papel estratégico em sua função? É possível identificar em suas descrições sobre as rotinas organizacionais aspectos que reflitam esse novo papel? Como os programadores de produção concebem a competência para a realização de tais rotinas? As concepções de competência formuladas pelos programadores de produção levam em consideração uma relação direta com as estratégias organizacionais? A busca por respostas a esses questionamentos está no cerne da motivação do presente estudo.

Para investigar o fenômeno e responder a tais perguntas, optou-se pela abordagem interpretativista e pelo método da fenomenografia. Nessa perspectiva, a competência de programação da produção é descrita a partir do significado que as rotinas organizacionais têm para o programador que as vivencia, tomando-se como base os relatos de sua experiência.

Assim, para atender ao objetivo proposto, após esta introdução o artigo está organizado da seguinte maneira: fundamentação teórica; metodologia; resultados encontrados; discussão dos resultados e considerações finais a respeito da contribuição do estudo.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

É comum, em distintas disciplinas científicas, desde a geologia até a medicina, que se procure entender a estrutura interna pela qual os fenômenos ocorrem. O mesmo vale para os estudos dos processos e das rotinas organizacionais, conforme afirmam Pentland e Feldman (2005). Uma das maneiras de se compreender um fenômeno organizacional é articulando-o dentro do contexto prático em que é vivenciado. A perspectiva das “dinâmicas da rotina” é, portanto, o ramo dos estudos organizacionais de orientação processual que se baseia na ideia de que as rotinas são práticas com dinâmicas internas que afetam estabilidade e mudança nas organizações (FELDMAN et al., 2016). Nesse sentido, tomar as rotinas organizacionais como uma de análise contribui com a compreensão do fenômeno organizacional por colocar o foco na maneira pela qual ele é performado e nas dinâmicas emergentes dessa performance.

2.1 Rotinas organizacionais como unidade de análise

Para Parmigiani e Howard-Grenville (2011), a exemplo de outras ideias fundamentais no campo organizacional, a origem do conceito de rotinas remonta marcadamente à Carnegie School (CYERT; MARCH, 1963; MARCH; SIMON, 1958; SIMON, 1947). Na influente classificação das autoras, os estudos sobre rotinas organizacionais vêm sendo categorizados nos últimos anos em duas grandes perspectivas distintas: a baseada em capacidades (Capabilities Perspective) e a baseada na prática (Practice Perspective).

A ênfase no hábito (ou Practice Perspective) está relacionada às maneiras de lidar com a complexidade, reduzindo o esforço de cálculo, o custo de aquisição de informações, e conservando os esforços mentais (MILAGRES, 2011; Pentland; Feldman, 2005). Tal entendimento está de acordo com a visão de que padrões de comportamento favorecem a efetividade das tomadas de decisão, das resoluções de conflito e das necessidades de adaptação a mudanças ambientais (PARMIGIANI; HOWARD-GRENVILLE, 2011; ARGOTE; GREVE, 2007).

Segundo Turner e Fern (2012), tanto a estabilidade quanto a mudança refletem a maneira como a performance das rotinas é percebida. Os autores exploram o conceito de rotinas dinâmicas para explicar como a mudança de rotinas é capaz de ocorrer de maneira estável. Ou seja, ao contrário do que poderia parecer, as rotinas ajudam as organizações a se transformarem. Esse caráter “mutável mas estável” é ilustrado por Feldman e Orlikowski (2011) com a imagem de um ciclo estável, mas sempre atualizado a cada vez em que é rodado.

Outra característica recorrentemente abordada nos estudos das rotinas organizacionais é a que as descreve segundo seus aspectos ostensivo e performativo. O conceito que está por trás dessas expressões é o de que, por um lado, as rotinas são constituídas por padrões abstratos (ostensive) reconhecidos pelos membros da organização. Por outro, estes mesmos membros realizam ações (performative) em seu dia a dia segundo o entendimento particular que fazem das rotinas (PENTLAND; FELDMAN, 2005). Performances, nesse contexto, nas palavras dos autores, são “as ações específicas tomadas por pessoas específicas em momentos específicos quando elas estão engajadas no que entendem ser uma rotina da organização” (p. 796). Por sua vez, o caráter ostensivo das rotinas, ainda segundo Pentland e Feldman (2005), tem natureza abstrata e pode ser entendido pela metáfora de uma narrativa. No entanto, Feldman e Orlikowski (2011) comentam que os aspectos ostensivos são também múltiplos, uma vez que sempre dependem de um ponto de vista e normalmente estão mal representados por regras escritas ou procedimentos formais. Nos últimos anos, vêm ganhando importância ainda os estudos sobre os artefatos utilizados no processo de operacionalização das rotinas. Para Pentland e Feldman (2005), os artefatos são as “manifestações físicas” das rotinas. Tal definição engloba desde as regras formais de um processo até computadores instrumentados para suporte à decisão, passando também pelo próprio layout das organizações, por exemplo.

Por fim, a literatura sobre rotinas organizacionais, especialmente a filiada à perspectiva prática (FELDMAN; ORLIKOWSKI, 2011), chama atenção também para as relações de interdependência nas rotinas organizacionais. Deken et al. (2016) partem de conceitos como os fenômenos mutuamente constitutivos e o caráter relacional da agência para explicar o que definem como a “abordagem relacional” do estudo das rotinas organizacionais.

2.2 Competência na perspectiva interpretativa e racionalidade prática

O presente trabalho tem como base a perspectiva de competência apresentada por Sandberg (2000), que faz um contraponto à tradicional visão racionalista de competência. Segundo o autor, é possível identificar que a abordagem tradicional está centrada em atributos humanos gerais. Sua origem remonta aos clássicos estudos Tayloristas de tempos e movimentos, quando a competência era reduzida a um conjunto funcional de regras, leis e fórmulas. A partir daí, desenvolveu-se uma abordagem racionalista do tema, em que a competência foi sendo definida por um conjunto específico de atributos, conhecimentos e habilidades. Ainda segundo Sandberg (2000), é possível identificar três abordagens distintas nessa perspectiva racionalista: a baseada no trabalhador, a baseada no trabalho, e a mista. A visão baseada no trabalhador (worker-oriented) é aquela que está centrada nos atributos humanos, tipicamente representada pelos chamados KSAs (Knowledge, Skills, Abilities) ou CHAs (Conhecimentos, Habilidades e Atitudes). É criticada por produzir descrições de competência excessivamente generalistas. A visão baseada no trabalho (work-oriented), por sua vez, apresenta a vantagem de chegar a descrições de competência mais concretas e detalhadas. No entanto, também sofre críticas que se referem ao fato de uma lista de atividades ser insuficiente e limitada para indicar os atributos requeridos a um profissional. Já a visão mista seria apenas uma combinação das duas anteriores, carregando consigo tanto as prerrogativas funcionalistas de ambas quanto as críticas que recebem.

Todas essas abordagens, portanto, são criticadas por produzirem descrições de competência excessivamente generalistas. Os estudos da linha interpretativa (PINNINGTON; SANDBERG, 2014; SANDBERG, 2000), por sua vez, apontam para a percepção de que os atributos usados para realização de um trabalho efetivo não são livres do contexto em que estão inseridos. Ao contrário, são situacionais e dependentes dele. Além disso, não é raro que divirjam significativamente da maneira como estão descritos em manuais de treinamento e descrições de cargo. Assim, mostram que a maneira como as pessoas vivenciam o trabalho é mais relevante para a sua competência do que os atributos por si só. Ainda nessa linha, as teorias desenvolvidas sob a perspectiva de uma racionalidade científica são percebidas como insuficientes para estudar a prática organizacional, justamente porque não conseguem capturar sua lógica. O presente estudo, portanto, está alinhado com a ideia de Sandberg e Dall’Alba (2009) de que a adoção da “perspectiva mundo-vida” (em tradução literal) aproxima os estudos organizacionais da maneira como a prática é efetivamente constituída, permitindo que seu desempenho seja examinado mais de perto, e trazendo à tona a maneira pela qual a prática é constituída no entrelaçamento (entwinement) entre pessoas e coisas na organização.

3. METODOLOGIA

Uma vez que o principal objetivo do presente estudo foi compreender o que constitui competência no âmbito das rotinas de programação da produção, tomando por base o ponto de vista dos programadores, optou-se por uma visão centrada na prática, com uma abordagem interpretativa, e realizada a partir do método fenomenográfico (AKERLIND, 2005; MARTON; BOOTH, 1997; MARTON, 1986). A fenomenografia é um método relativamente novo e que nas últimas décadas vem crescendo em relevância no âmbito dos estudos organizacionais (AKERLIND, 2005). Seu pressuposto central é o de que todo fenômeno pode ser experimentado por seus participantes em um número limitado de diferentes maneiras (MARTON; BOOTH, 1997). O objetivo da fenomenografia é, portanto, investigar qualitativamente a variação entre essas diferentes maneiras (concepções) pelas quais as pessoas vivenciam um fenômeno em particular (AKERLIND, 2005; BOWDEN et al., 2000; MARTON, 1986). Assim, durante o trabalho de análise dos dados, tais concepções são agrupadas em categorias descritivas e, em seguida, correlacionadas logicamente em um espaço de resultado (AKERLIND, 2005).

O método fenomenográfico preconiza ainda que essas diferentes concepções tipicamente apresentam uma relação hierárquica entre si (AKERLIND, 2005; MARTON; BOOTH, 1997). Dessa forma, as categorias descritivas devem ser organizadas desde a mais simples ou restrita até a mais ampla ou complexa. É o que Marton e Booth (1997, p. 125) denominam de “increasing complexity”. Além disso, para que seja possível identificar, classificar e diferenciar as categorias descritivas (ou concepções), é importante determinar os elementos que as constituem; são as chamadas dimensões explicativas. As dimensões explicativas representam, portanto, os aspectos centrais que variam em cada concepção. Cumprem o papel de explicar as categorias descritivas e relacionar as maneiras pelas quais cada uma se diferencia das demais (AKERLIND, 2005; BOWDEN et al., 2000; MARTON; BOOTH, 1997).

Nesse sentido, o método fenomenográfico convencionou organizar os achados em uma matriz em que um eixo traz as categorias descritivas e o outro as detalha a partir de suas dimensões explicativas. É o que se denomina espaço de resultados ou outcome space (AKERLIND, 2005; BOWDEN et al., 2000). Idealmente o espaço de resultados deve representar toda a gama de formas possíveis de experimentar o fenômeno em questão, considerando o momento em que o estudo é feito e a população representada coletivamente pelo grupo de amostra (AKERLIND, 2005).

Apoiado em distintos trabalhos, Sandberg (2000) demonstra que a variação de um fenômeno atinge a saturação em cerca de 20 participantes da pesquisa. Após este número, não surgem novas concepções. Seguindo essa orientação, os dados coletados no presente artigo foram obtidos por meio de 20 entrevistas semiestruturadas (via Skype) com profissionais de diferentes posições (gerentes, programadores e analistas) dentro das suas respectivas rotinas organizacionais de programação da produção, como mostra a Figura 1. Os entrevistados relataram seus entendimentos sobre o que consideravam melhores práticas e sobre o caracterizava um programador de produção competente. Perguntas centrais foram acrescidas de perguntas de acompanhamento que buscaram detalhar as percepções, capturar as emoções envolvidas e explorar exemplos.

A análise dos dados tomou como base estudos de referência no método fenomenográfico (AKERLIN, 2005; MARTON, 1986). O período de análise durou cerca de dois meses e consistiu em recursivos ciclos estruturados de leitura e releitura que permitiram determinar as categorias descritivas do fenômeno e suas respectivas dimensões explicativas. A primeira etapa, portanto, consistiu na leitura integral e consecutiva de todas as transcrições. Cabe lembrar que desde esse primeiro momento os relatos já estavam desassociados dos entrevistados. O objetivo desse procedimento foi fazer uma aproximação inicial dos pesquisadores com os dados, possibilitando uma visão abrangente e completa das informações coletadas. É importante frisar, em que pesem as limitações inerentes, que o processo foi inteiramente conduzido com a preocupação de se manter isenção em relação aos dados.

A segunda etapa se caracterizou por uma nova releitura consecutiva de todas as 20 entrevistas, procurando separar e agrupar cada um dos relatos com base em semelhanças gerais. Ao final da leitura de cada um deles, elaborava-se uma intepretação geral de seu conteúdo e, toda vez que outro relato parecia se assemelhar a essa interpretação geral, era reunido em conjunto com o primeiro. Ao passo que, quando um relato seguinte divergia do anterior, era encaminhado a outro grupo ou fundava um grupo novo, caso nenhum dos existentes se adequasse a seu perfil geral. Para Marton e Booth (1997), nessa etapa, o autor começa a verificar em linhas gerais o que os sujeitos respondem sobre o problema de pesquisa.

Nesse sentido, a etapa seguinte consistiu na leitura dos relatos grupo a grupo. O objetivo foi validar a pertinência dos agrupamentos prévios para a configuração das concepções. Nesse processo, alguns relatos migraram de grupo e em algumas circunstâncias grupos distintos se fundiram. Ao longo dessa terceira leitura, os principais trechos representativos que assinalavam cada relato dentro de um determinado grupo também foram sendo sinalizados. Este ciclo se repetiu cerca de três ou quatro vezes até que três grupos principais, e que pareceram configurar três categorias descritivas, ainda não nomeadas, se estabilizaram.

O passo seguinte foi fazer uma leitura integral dos relatos, novamente grupo a grupo, mantendo uma atenção especial nos trechos sinalizados e agora sinalizando outros trechos. Ao longo desse processo, alguns extratos foram destacados e denominados livremente em uma tentativa preliminar e individual de capturar as dimensões. Quando uma dimensão parecia se repetir, ganhava o mesmo nome. Quando um trecho parecia jogar nova luz sobre uma dimensão preexistente, ela era renomeada. Em seguida, se deu um novo processo de releitura, com o intuito de compreender a fundo a natureza desses trechos demarcados e seus sentidos gerais no processo de delimitação de cada categoria descritiva.

Por fim, as últimas etapas consistiram na realização de testes de alocação dos extratos sinalizados. Nesse processo, as dimensões iniciais foram sendo agrupadas em um número menor e mais sólido de dimensões. Em seguida, novas releituras integrais dos relatos, grupo a grupo, foram feitas com foco na validação das experiências comuns a todos os relatos de um mesmo grupo. Esse processo foi então refeito em relação a cada dimensão e cada grupo, até que o quadro geral de categorias descritivas e dimensões explicativas estivesse estabilizado e validado.


Figura 1
Caracterização dos sujeitos que participaram do estudo. Elaborado pelos autores. 
Fonte: Elaborado pelos autores.

4. RESULTADOS

4.1 As concepções de competência nas rotinas organizacionais de programação da produção

A estruturação da resposta à pergunta de pesquisa sobre as diferentes maneiras pelas quais os programadores de programação percebem a competência em suas rotinas organizacionais está apresentada no espaço de resultados (outcome space), conforme as Figura 3 e 4 ao final deste capítulo. O espaço é formado por três categorias descritivas (concepções) e seis dimensões explicativas (aspectos que estruturam e relacionam as concepções). Cabe observar que a utilização das rotinas como unidade de análise para este estudo se baseia na ideia de que os padrões de ação explicam mais sobre o comportamento organizacional do que o foco exclusivo nas decisões em si ou nos atores envolvidos (PENTLAND; FELDMAN, 2005; PARMIGIANI; HOWARD-GRENVILLE, 2011). A Figura 2 ilustra a relação hierárquica entre as categorias descritivas.


Figura 2
Hierarquia entre as categorias descritivas
Fonte: Elaborada pelos autores.

Assim, as três concepções diferentes pelas quais os programadores definem o exercício competente da função estão diretamente relacionadas às maneiras como os programadores descrevem a natureza, a forma e o propósito de suas rotinas de programação. São elas: 1) Alocação de recursos e materiais; 2) Mediação entre diferentes áreas da empresa; e 3) Gestão tático-estratégica da operação. O processo de análise dos dados obtidos nas entrevistas também possibilitou a identificação de cinco atributos da competência, que possuem papel chave para distinguir as concepções, estruturá-las e compreender a maneira como se relacionam entre si. As seis dimensões explicativas emergentes das descrições e constituintes do segundo eixo do espaço de resultados (ver Figuras 2 e 3) são: 1) Raciocínio lógico, 2) Conhecimento técnico (relativo ao processo produtivo), 3) Conhecimento sistêmico (relativo às outras áreas), 4) Estratégia de negociação, 5) Aspecto manifesto da rotina e 6) Envolvimento com a estratégia corporativa (relação com os objetivos estratégicos).

O raciocínio lógico se refere às habilidades matemáticas a que os programadores recorrem em primeiro lugar para a execução das tarefas de programação. O conhecimento técnico relativo ao processo produtivo diz respeito a quanto o programador conhece sobre as etapas de fabricação. A dimensão explicativa do conhecimento sistêmico (de outras áreas) envolve as demais áreas da operação. A quarta dimensão explicativa está relacionada à estratégia de negociação praticada pelo programador em suas interações com as demais áreas. A quinta dimensão, aspecto manifesto da rotina, se relaciona com o aspecto da teoria sobre rotinas organizacionais que se manifesta de maneira mais explícita e recorrente na concepção dos programadores acerca da competência em sua função. E, por fim, a sexta e última dimensão, envolvimento com a estratégia corporativa, refere-se à natureza da relação do programador de produção com os objetivos e com o planejamento estratégico da empresa.

4.2 Competência como “alocação de recursos e materiais”

A primeira categoria descritiva, denominada de “Alocação de recursos e materiais”, caracteriza-se por uma concepção que restringe a noção de competência à habilidade requerida para a execução da tarefa básica da rotina de programação da produção. Isto é, a habilidade necessária para distribuir as quantidades demandadas pelos recursos produtivos disponíveis, e considerando as datas esperadas pela área comercial.

Competente é fazer uma programação dentro daquela quantidade que, digamos, a fábrica possa fazer, atender, usando-se dos meios de produção. Eu tenho um estudo da capacidade que existe dentro da fábrica, então eu não vou colocar produção a mais do que aquilo que a fábrica vai conseguir, ou do que aquela máquina vai conseguir fazer para atender... Competente também é (...) cumprir exatamente os prazos e a capacidade que o cliente determinar. (Entrevista 6)

Apesar do enfoque majoritário na tarefa individual, a rotina de programação da produção nessa primeira concepção é sempre descrita como tendo seu início a partir da demanda, em geral proveniente de um esforço de vendas e previsões e culminando no acionamento da fábrica. Portanto, a dimensão explicativa de conhecimento sistêmico das demais áreas fica restrita ao reconhecimento de uma interface com a área comercial e outro com a área produtiva. Assim, os programadores alinhados a essa primeira categoria descritiva dão mais relevância à segunda dimensão explicativa (conhecimento do processo produtivo). Segundo estes entrevistados, programar a produção de maneira competente é sequenciar cada máquina de modo a obter os melhores resultados de produtividade. Nas entrevistas, tais indicadores apareceram relacionados a: volumes e taxas de produção; ao percentual de pontualidade das entregas; à disponibilidade dos produtos prontos nos estoques para a venda; e à ocupação de máquinas.

Para que se possa fazer uma Alocação de recursos e materiais, isto é, uma alocação que seja considerada competente, é preciso realizar uma função de caráter lógico ou matemático que considera concomitante uma série de variáveis e dados provenientes de outras áreas. Tais como os roteiros de produção, a disponibilidade real de recursos e materiais de consumo e também os apontamentos do que já foi produzido em cada etapa. Dentro deste contexto, a competência do programador fica sujeita a uma habilidade essencial que os programadores chamaram de raciocínio lógico. É a habilidade atribuída à capacidade de considerar todas as variáveis relevantes e calcular rapidamente soluções alternativas para a Alocação da demanda nos recursos produtivos, de acordo com cada cenário vigente.

Nessa primeira concepção de competência não costuma estar em jogo administrar, controlar, mediar ou negociar as informações provenientes de outras áreas, como ocorre com a segunda categoria descritiva. Além disso, os relatos agrupados na concepção de competência se concentraram na rotina individual e na interface com a área de produção. As demais áreas, quando muito, foram lembradas como pano de fundo. Para um segundo grupo de relatos, no entanto, a competência vai aparecer essencialmente atrelada à relação com as demais áreas, conforme se verá a seguir.

4.3 Competência como “Mediação entre diferentes áreas”

A segunda categoria descritiva apresenta uma concepção que pode ser compreendida como mais ampla e mais complexa do que a primeira. O foco deixa de ser apenas o resultado da conta de alocação, e passa a considerar diretamente a administração da relação com outras áreas da empresa. É o que está sendo denominado de Mediação entre diferentes áreas. Nessa concepção, as rotinas organizacionais de programação da produção foram definidas pelos entrevistados a partir de uma dinâmica de intermediação de interesses entre diversas áreas envolvidas na operação. É uma visão de competência essencialmente relacionada à dimensão explicativa de conhecimento sistêmico. Isso porque, segundo as entrevistas agrupadas nessa categoria, o exercício competente da programação da produção passa principalmente por se ter um conhecimento geral sobre os aspectos das demais áreas que vão desde as atividades específicas até as metas, passando às ferramentas disponíveis e restrições gerais.

O programador tem que ter esse conhecimento geral. É uma pessoa que faça a interligação entre todas as áreas envolvidas e que consiga enxergar todas as necessidades. É claro que ela não tem o conhecimento técnico das outras áreas, mas precisa ter um conhecimento de como funcionam.(...) O programador tem que enxergar onde pode ter uma falha, onde a pessoa não está fazendo o que deveria, saber por que, e quando vai ser resolvido. Tem que ter a habilidade de conhecer o todo da fábrica, não no detalhe, mas ter noção de como funciona todo o processo. (Entrevista 16)

Em relação às descrições dessa concepção, cabe destacar uma observação importante. Em alguns casos foi possível identificar uma divergência entre as concepções do programador e a de sua respectiva empresa acerca do que constitui a competência nas rotinas de programação. É como se a visão da empresa pudesse ser enquadrada em uma categoria descritiva e a percepção de seu programador da produção em outra. Algumas entrevistas sugerem, por exemplo, que programadores de produção que concebem a competência das rotinas organizacionais na segunda categoria descritiva podem estar inseridos em culturas organizacionais alinhadas com a primeira e mais restrita categoria descritiva. Nesses casos, se mostrou confirmada a teoria de que a cultura organizacional se impõe às rotinas (BERTELS; HOWARD-GRENVILLE; PEK, 2016). Na prática, essa imposição pode ser especialmente notada pelo poder que os artefatos computacionais demonstraram para delimitar as rotinas organizacionais e normatizar as suas práticas (FELDMAN; ORLIKOWSKI, 2011; PARMIGIANI; HOWARD-GRENVILLE, 2011).

A partir dos relatos, foi possível perceber também que as soluções resultantes da rotina de programação nem sempre são percebidas como positivas por todas as áreas afetadas. Tome-se como exemplo o caso de uma solução de programação em que se atendeu a uma necessidade comercial de produzir uma ampla variedade de produtos em pequenos lotes, o que “prejudicou” a área produtiva que se viu obrigada a fazer lotes menores e um maior número de paradas para a troca de produto. Nesse sentido, a concepção da segunda categoria descritiva define a competência da programação de produção como sendo a habilidade de mediar tanto os objetivos quanto as restrições de diferentes áreas da empresa, destacando que o papel do programador é negociar e comunicar bem o resultado final de suas programações. Cabe a ele manejar o engajamento global dos diferentes setores em prol da execução dos programas que define. As entrevistas sugerem que, segundo essa concepção, as estratégias utilizadas em tais processos de negociação constituem uma dimensão essencial da competência nas rotinas organizacionais de planejamento e programação da produção. Na prática, os relatos indicam que uma boa programação é sempre uma solução que foi negociada em reuniões com as demais áreas. Nesses casos, a estratégia de negociação utilizada pelos programadores alinhados com a segunda categoria descritiva pode ser entendida como sendo a chamada negociação integrativa (integrative negotiation). Para Thompson, Wang e Gunia (2010), as negociações integrativas ocorrem quando o resultado negociado satisfaz os interesses de ambas as partes, o que significa que o resultado final não pode ser melhorado sem prejudicar uma ou mais das partes envolvidas.

Pode-se afirmar ainda que a segunda categoria descritiva, ao identificar a mediação como o papel principal da programação, foi aquela em que se encontrou uma concepção particularmente nova, que não havia sido antevista na revisão de literatura. Até se pode argumentar que a mediação entre as áreas comercial e produtiva é tradicionalmente uma função esperada para a programação. No entanto, a concepção que emergiu dos relatos foi além disso: coloca a área de programação como um mediador de toda a função operativa da indústria. Os programadores veem a competência associada principalmente à habilidade de mediar, de se relacionar, de negociar. O conhecimento das demais áreas se torna mais relevante do que o conhecimento específico do processo produtivo – que é o objeto direto do trabalho de programação. Os indicadores locais, que são de responsabilidade do planejamento, passam a ter o mesmo peso de outros indicadores cuja responsabilidade provém das demais áreas. O programador é uma espécie de juiz que media a tomada de decisão coletiva. Nessa concepção, esse ator vislumbra com clareza a relação de interpendência, própria às rotinas organizacionais (Parmigiani; Howard-grenville, 2011; PENTLAND; FELDMAN, 2005) e deve ser capaz de se concentrar nelas. Nesse sentido, o programador é um gestor da rotina organizacional; ele se torna o responsável por seu desempenho.

4.4 Competência como “Gestão tático-estratégica da operação”

A concepção que configura a terceira categoria descritiva é a que foi considerada como a mais ampla e também a mais complexa. Segundo essa percepção, tanto calcular rapidamente boas alocações de demanda, quanto mediar a relação entre as diferentes áreas que se relacionam com a produção, são habilidades necessárias e importantes, mas não são as principais. Segundo os entrevistados componentes desse grupo, o que define competência na programação de produção é fazer o que se está denominado aqui de gestão tático-estratégica da operação, e que significa cumprir um papel central não apenas na operacionalização, mas também na elaboração das estratégias corporativas. Envolve também uma liderança hierárquica das atividades de programação, no sentido de organizar a operação para os objetivos estratégicos da empresa. Ou seja, há uma dimensão tática, caracterizada pela execução operacional das metas corporativas. E uma dimensão estratégica, que se caracteriza pela participação efetiva na formulação do planejamento estratégico da empresa. Por essa razão, é uma concepção que parece ser mais frequente em empresas que posicionam o planejamento da produção em degraus hierárquicos mais elevados dentro da organização.

É importante que esse programador, esse planejador, seja bom negociador. E ele tem que ter empatia com as demais áreas. Se possível, estar aberto a conhecer essas áreas, conhecer as necessidades do Comercial, conhecer as necessidades da Produção, sem estar julgando previamente, dizendo ‘Não, esses caras estão malucos, o que eles querem não funciona’. Então, acho que essas são as principais competências do programador. Essa abertura de se colocar no lugar do outro na cadeia de produção e na cadeia [produtiva] da empresa. (Entrevista 12)

Esta é uma premissa dentro da empresa que a gente trabalha hoje, as estratégias são originárias da logística [planejamento da produção e distribuição]. (Entrevista 9)

Na prática, conceber as rotinas de planejamento e programação da produção como responsáveis pela gestão tático-estratégica da operação significa conceber a competência do programador por sua capacidade de atuar diretamente nas decisões estratégicas. Os relatos indicaram que o programador precisa ter uma visão do todo e estar alinhado com os objetivos corporativos. Segundo alguns destes relatos, cabe à programação de produção atuar desde as previsões de cenários futuros e análises de investimento, até liderar as tomadas de decisões táticas de curto e médio prazo. Os entrevistados afirmaram também que é preciso considerar os objetivos globais e os resultados financeiros decorrentes de cada escolha de sequenciamento.

A segunda dimensão explicativa, referente ao conhecimento técnico, aparece nessa concepção associada à utilização de sistemas computacionais para lidar com uma gama de dados ampla e composta de distintas variáveis. Ou seja, para os entrevistados, não basta ter o conhecimento técnico, mas dominar os mecanismos que lhes permitam lidar com o volume das informações e sua dinâmica de mudança constante.

A dimensão explicativa referente ao conhecimento das demais áreas da empresa é naturalmente essencial para a concepção dessa terceira categoria descritiva. As entrevistas relatam a necessidade de se conhecer as metas e as restrições dos demais setores da operação. Nesse caso, não apenas para mediar, mas também para avaliar e projetar cenários futuros, estudando alternativas de curto, médio e longo para, por fim, decidir estrategicamente. Porém, ao contrário da segunda categoria descritiva – em que as negociações entre áreas são pautadas pelo equilíbrio dos resultados locais de cada área –, na gestão tático-estratégica da operação as estratégias de negociação utilizadas estão reguladas pelos indicadores estratégicos globais, independente das posições locais. A competência, portanto, está definida também pela utilização de estratégias de negociação do tipo parceria ou reciprocidade (BRETT; THOMPSON, 2016). Cabe às rotinas de programação, segundo essa concepção de competência, garantir a relação recíproca de parceria em prol de objetivos comuns. Objetivos esses que são os resultados estratégicos da operação, avaliados por indicadores globais.

Por fim, diante desse cenário, foi possível notar que o papel estratégico da programação preconizado pela teoria (HILL; HILL, 2009) já está claro e foi descrito de maneira explícita quando os entrevistados ponderam sobre o que é uma programação da produção competente. Neste capítulo, portanto, foram apresentadas e detalhadas as três categorias descritivas (ou concepções) que respondem à pergunta de pesquisa principal. Isto é, foram demonstradas as três maneiras pelas quais os programadores de produção vivenciam a competência na execução de suas rotinas organizacionais. Nas Figuras 2 e 3, apresenta-se o espaço de resultados que estrutura e sistematiza as concepções encontradas no campo. A esse respeito, cabem as considerações de Bowden e Walsh (2000): mais do que representar toda a gama de formas possíveis de experimentar o fenômeno em questão (AKERLIND, 2005), o espaço de resultados é sinônimo do próprio fenômeno em si.


Figura 3
Espaço de resultados (outcome space) das concepções de competência nas rotinas organizacionais de programação da produção (1/2)
Fonte: Elaborada pelos autores.


Figura 4
Espaço de resultados (outcome space) das concepções de competência nas rotinas organizacionais de programação da produção (2/2)
Fonte: Elaborada pelos autores.

5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Para compreender a constituição da competência nas rotinas de planejamento e programação da produção, o presente estudo foi organizado a partir de três conceitos estruturais: planejamento e programação da produção, rotinas organizacionais e competência. Cada um desses conceitos pode guardar significados múltiplos e ser abordado de maneiras distintas. O primeiro deles, e que constituiu a motivação e o objeto de análise, é a área de planejamento e programação da produção. Mais do que delimitar o que é a referida área, seu papel e as atividades que constituem suas rotinas – aspectos que o próprio método fenomenográfico sugere que devem emergir das entrevistas de campo –, coube estabelecer inicialmente os motivos pelos quais o planejamento e a programação da produção foram escolhidos como objeto de estudo, dimensionando sua relevância dentro do contexto organizacional contemporâneo. Sobre esse aspecto, é importante ressaltar as mudanças pelas quais passam as organizações nos últimos anos. Particularmente, em decorrência do fenômeno da globalização, somado aos avanços nas tecnologias de comunicação, a área de gestão de operações e a atividade de programação da produção ganharam papel estratégico para as empresas industriais dentro de seus mercados (HILL; HILL, 2009). É uma mudança de paradigma que pôde ser verificada nos resultados do presente estudo. Ainda foi possível demonstrar a maneira pela qual esses aspectos se manifestam, na prática, nas rotinas organizacionais de planejamento e programação da produção.

Em relação ao objetivo central do estudo, também foi preciso estabelecer como se entendem as rotinas em si, e porque elas constituem uma unidade análise pertinente e útil ao trabalho. A definição de rotinas organizacionais feita neste trabalho se inscreve, portanto, em uma discussão que possui sólidas raízes conceituais (MARCH; SIMON, 1958; WINTER; NELSON, 1982), as quais vêm ganhando aprofundamento e maior destaque nos últimos anos (PENTLAND; FELDMAN, 2005; PARMIGIANI; HOWARD-GRENVILLE, 2011, FELDMAN; ORLIKOWSKI, 2011). Pentland e Hærem (2015), por exemplo, definem as rotinas como sendo conjuntos de práticas, ou padrões de ações individuais e coletivas, que são circunscritas por algum contexto material ou social. O posicionamento do presente estudo está alinhado com o entendimento de que esses padrões de ação explicam mais sobre o comportamento organizacional do que as abordagens centradas em pessoas ou decisões (PENTLAND; FELDMAN, 2005; PARMIGIANI; HOWARD-GRENVILLE, 2011). Outro aspecto marcante em relação às rotinas organizacionais e que permeou as discussões dos achados diz respeito ao papel da cultura organizacional como origem desse repertório de estratégias de ação (BERTELS; HOWARD-GRENVILLE; PEK, 2016). Sobre essa discussão, foi possível identificar na análise das entrevistas uma recorrente menção ao uso de softwares de apoio à programação da produção. Pode-se dizer também que esta frequente menção à importância de sistemas computacionais revela, às vezes, de maneira direta e noutras indiretamente, como a cultura organizacional efetivamente molda os artefatos das rotinas de programação de produção e, com isso, determina os resultados esperados delas.

Outro aspecto significativo da teoria sobre rotinas organizacionais diz respeito à variação entre as dimensões ostensiva e performativa das rotinas (PENTLAND; FELDMAN, 2005; TURNER; FERN, 2012). Significa que as maneiras como as pessoas executam as suas rotinas na prática costumam ser diferentes da maneira como essa mesma rotina é descrita formalmente. Nesse estudo, identificaram-se que não apenas as etapas e as características das rotinas podem variar dentro de seus âmbitos ostensivo e performativo. Variam, também, as percepções que um mesmo praticante da rotina tem acerca de alguns conceitos presentes na prática de suas rotinas. Em um momento inicial das entrevistas, por exemplo, os programadores tenderam a descrever a competência a partir de uma lista de habilidades essenciais ou universais. Conforme as descrições de práticas das rotinas gradualmente se desdobraram, foi recorrente o surgimento de mudanças nas conceituações individuais de competência. Essas novas concepções que emergiram foram frequentemente mais contextuais, específicas e derivadas das práticas, o que permite entendê-las como “competências performativas”.

Ainda em relação ao conceito de competência – particularmente no contexto das rotinas organizacionais de programação da produção –, o presente estudo se posicionou de maneira crítica à visão tradicional e funcionalista em que a competência é entendida como sendo constituída por um conjunto de atributos relacionados a conhecimentos, habilidades e atitudes universais. Curiosamente, vale destacar que esse tipo de visão apareceu de maneira recorrente na fala de alguns programadores entrevistados. A abordagem da presente pesquisa, no entanto, partiu de uma noção alternativa da competência, a interpretativa, e que está intrinsecamente relacionada às formas em que a competência é experimentada e enriquecida cotidianamente pela prática. Entende-se, portanto, que as estruturas e os significados atribuídos à competência mudam conforme mudam as práticas e as maneiras de experimentá-las (FELDMAN; ORLIKOWSKI, 2011; DALL’ALBA; SANDBERG, 1996).

No que diz respeito à aplicação do método fenomenográfico, é importante frisar que sua utilização foi uma forma de explorar, consolidar e reforçar o uso de métodos alternativos à etnografia para o estudo de rotinas organizacionais, conforme vem sendo proposto por alguns pesquisadores, como Howard-Grenville e Rerup (2016). Segundo Marton (1986), a fenomenografia parte justamente do pressuposto de que todo fenômeno pode ser percebido de diferentes maneiras, em um número limitado de concepções. Para Akerlind (2005), o que está na essência deste método, portanto, é a busca dos significados de um determinado fenômeno, ou das maneiras de vivenciá-lo, tomando como base o ponto de vista daqueles que o experimentam. Especificamente, a abordagem fenomenográfica permitiu explorar entre os programadores de produção as diferentes concepções que eles fazem acerca da competência. Assim, a resposta à pergunta de pesquisa central do presente estudo está nas três concepções que foram identificadas durante o processo de análise. Tais concepções são as três categorias descritivas que estruturam o espaço de resultados: 1) Alocação de recursos e materiais; 2) Mediação entre diferentes áreas; e 3) Gestão tático-estratégica da operação.

A primeira categoria descritiva, conforme detalhado na descrição dos resultados, ilustra a competência na programação de produção estritamente relacionada à 'alocação de recursos e materiais'. Revelou uma concepção mais tradicional da área de planejamento e programação da produção. Essa abordagem pode ser considerada como sendo mais funcionalista, porque restringe a noção de competência a uma dimensão exclusivamente operacional. Além disso, outros elementos chamaram atenção nesse grupo. Primeiro, certa resistência a se pensar a rotina organizacional para além das tarefas individuais. Em paralelo, notou-se uma atitude que pode ser considerada como majoritariamente passiva em relação ao comercial e à produção.

A segunda categoria descritiva revelou a concepção de competência mais surpreendente do ponto de vista das expectativas iniciais do estudo, a mediação entre diferentes áreas. Em tese, o papel histórico da programação é fazer uma intermediação entre as áreas comercial e produtiva. Porém, esta segunda concepção, pelo que se pôde perceber a partir dos relatos, foi muito além. Ficou claro que não somente as áreas comercial e produtiva são mediadas pelos programadores. Eles são percebidos aqui como a intersecção de todas as áreas associadas ao ambiente produtivo. Incluindo, por exemplo, engenharia, qualidade, logística, manutenção, dentre outros. Seu papel não é apenas gerar um programa, mas ser efetivamente o elo central da cadeia produtiva, capaz de negociar coletivamente as soluções para a empresa. Por essa percepção, se tornam mais importantes habilidades de relacionamento do que habilidades lógicas. O conhecimento dos indicadores e das restrições das demais áreas envolvidas na rotina se torna tão ou mais importante do que a fidelidade a seus indicadores locais. O programador foi então descrito pela metáfora de um juiz que media a tomada de decisão com base nas argumentações coletivas advogadas pelas demais áreas. As entrevistas agrupadas nessa categoria descritiva indicam que, na segunda concepção, a competência foi associada ao uso de um tipo de estratégia de negociação que a literatura denomina como integrativa (BRETT; THOMPSON, 2016; THOMPSON; WANG; GUNIA, 2010).

A concepção consubstanciada na terceira categoria descritiva confirmou a abordagem estratégica da programação de produção prevista teoricamente (HILL; HILL, 2009; CARVALHO, 2005). Ela foi aqui denominada de Gestão tático-estratégica da operação. Nessa categoria, os relatos indicaram a percepção de que a competência precisa contemplar a capacidade de influenciar e formular as estratégias corporativas. Em relação à dimensão do raciocínio lógico, merece destaque a frequente noção, dentro desta categoria descritiva, de que tal habilidade deveria ser terceirizada para sistemas computacionais APS (Advanced Planning Systems) programados para resolver a dimensão matemática da programação.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma contribuição significativa deste estudo foi demonstrar que a dimensão estratégica começa efetivamente a ser associada às rotinas de planejamento e programação da produção de maneira consistente em algumas empresas. Foi expressiva a maneira pela qual alguns entrevistados relataram explicitamente que atuar na estratégia da empresa é um dos principais fatores constituintes da competência em planejamento da produção. Esse resultado se destacou em relação às expectativas iniciais do estudo, demostrando que o caráter estratégico do planejamento e da programação da produção aos poucos deixa de ser uma perspectiva majoritariamente acadêmica e passa a ecoar no cotidiano das práticas organizacionais.

Por fim, a partir dos resultados encontrados, cabe listar alguns possíveis desdobramentos para futuros estudos ao redor dos temas que foram abordados. No presente estudo, surgiu de maneira marcante a dimensão da negociação dentro das rotinas organizacionais de planejamento e programação da produção. Acredita-se que poderia ser promissor avançar nas correlações entre os campos de negociação e rotinas organizacionais. Em relação à área de gestão de operações, um estudo semelhante também poderia ser desenvolvido no sentido de compreender a competência no planejamento e programação em empresas da área de serviços. Além disso, outros mecanismos de intermediação entre diferentes atores de uma rotina organizacional também parecem apresentar um potencial teórico rico a ser explorado.

Referências

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