Resumo: A análise de textos culturais em estudos sobre o fenômeno do consumo permite a interpretação dos símbolos e dos significados contidos nas diferentes narrativas presentes, por exemplo, em propagandas, filmes, novelas, músicas, postagens na internet. Inspirada nessa direção, esta pesquisa tem por objetivo compreender relações e representações de gênero em músicas promocionais de motocicletas. Este estudo adotou como objeto de análise as músicas “Pop 100” e “Shineray” por uma abordagem qualitativa apoiada no paradigma interpretativo e dentro da perspectiva da Consumer and Culture Theory (CCT). As músicas selecionadas foram analisadas a partir da tradição hermenêutica e revelam uma hierarquia de gênero na posse da motocicleta, que está associada à liberdade para os homens e a situações de subordinação para as mulheres. Associações com a posse desse bem e com a ostentação de uma posição de prestígio sugerem homens em posição de dominação, enquanto a mulher aparece com uma conotação sexualizada. A negociação simbólica identificada nesses textos musicais parece influenciar comportamentos, tornando as pessoas mais propensas a reproduzirem valores e significados transmitidos por músicas locais que, além de descreverem um contexto social, também expressam significados culturais.
Palavras-chave:Textos CulturaisTextos Culturais, Música Música, Gênero Gênero, Negociação simbólica Negociação simbólica.
Abstract: The analysis of cultural texts in studies on the phenomenon of consumption enables the interpretation of the symbols and meanings contained in the different narratives present, for example, in advertisements, movies, novels, songs, and Internet posts. Inspired by this possibility, this research aims to understand gender relations and representations in promotional songs of motorcycle brands. The objects of analysis adopted for this study were the songs for the “Pop 100” and “Shineray”, using a qualitative approach supported by the interpretative paradigm, from the perspective of Consumer and Culture Theory (CCT). The selected songs were analyzed from the hermeneutic tradition and reveal a gender hierarchy when it comes to owning a motorcycle, which is associated with freedom for men and situations of subordination for women. In the associations of this ownership, and with the ostentation of a prestigious position, men appear in a position of domination, while women appear with a sexualized connotation. The symbolic negotiation identified in the lyrics of these songs appears to influence behaviors, making people more likely to reproduce the values and meanings transmitted by local songs that, besides describing a social context, also express cultural meanings.
Keywords: Cultural Texts, Music, Gender, Symbolic negotiation.
Resumen: El análisis de textos culturales en estudios sobre el fenómeno de consumo permite la interpretación de los símbolos y de los significados contenidos en las diferentes narrativas presentes, por ejemplo, en propagandas, películas, novelas, músicas, publicaciones en la internet. Inspirada en esa dirección, esta investigación tiene por objetivo comprender relaciones y representaciones de género en músicas promocionales de motocicletas. Este estudio adopto como objeto de análisis las músicas “Pop 100” y “Shineray” por un abordaje cualitativo apoyado en el paradigma interpretativo y dentro de la perspectiva de la Consumer and Culture Theory (CCT). Las músicas seleccionadas fueron analizadas a partir de la tradición hermenéutica y revelan una jerarquía de género en la posesión de la motocicleta, que está asociada a la libertad para los hombres y las situaciones de subordinación para las mujeres. Asociaciones con la posesión de este bien y con la exhibición de una posición prestigiosa sugieren hombres en posición de dominación, mientras que la mujer aparece con una connotación sexual. La negociación simbólica identificada en estos textos musicales parece influenciar comportamientos, haciendo que las personas sean más propensas a reproducir valores y significados transmitidos por músicas locales que, además de describir un contexto social, también expresan significados culturales.
Palabras clave: Textos Culturales, Música, Género, Negociación simbólica.
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E PAPÉIS DE GÊNERO NAS MÚSICAS DE MARCAS DE MOTOCICLETA
SOCIAL REPRESENTATIONS AND GENDER ROLES IN MOTORCYCLE BRAND SONGS
REPRESENTACIONES SOCIALES Y PAPELES DE GÉNERO EN LAS MÚSICAS DE MARCAS DE MOTOCICLETA
Recepção: 18/09/2017
Aprovação: 13/06/2019
Músicas trazem significados culturais em suas letras (Antonacci & Marcelino, 2013; Bradshaw & Shankar, 2008; Hesmondhalgh, 2008; Holbrook, 2004; Holbrook, 2005; Holbrook, 2008; Larsen, Lawson, & Todd, 2009; Larsen, Lawson, & Todd, 2010; Rodrigues & Casotti, 2017). Duas músicas, apresentadas em forma de videoclipe no You Tube e também na TV, que promovem marcas de motocicleta, instigaram nossa atenção em relação às questões relativas aos significados de gênero nelas contidos. Encontramos apenas estudos com motocicletas, cuja temática se relaciona a eventos que envolvem acidentes e mortes (Canova et al., 2010; Montenegro et al., 2011; Ganne et al., 2013; Rodrigues et al., 2015). Torino (2008), em seu livro que analisa a música como parte da vida social, fala que não só temos uma grande diversidade de estilos musicais, mas também que as categorias musicais são criadas por músicos, críticos, fãs, acadêmicos e pela indústria musical. Embora o autor não mencione a categoria musical que vamos analisar, podemos descrevê-la como originada da indústria de uma categoria de produtos - as motocicletas -, com o objetivo de promoção de marcas e modelos. Esse estudo, portanto, tem por objetivo compreender relações e representações sociais e de gênero em músicas promocionais de motocicletas.
As motocicletas são uma categoria de produto com vendas crescentes no Brasil (Sebrae, 2015; Abraciclo, 2015). As músicas como “Pop 100” (nome de um modelo de motocicleta da marca Honda) e “Shineray” (nome de uma marca de motos chinesa) viraram um sucesso com milhões de acessos no You Tube. Em comum, elas têm o ídolo do futebol Neymar Jr. As imagens da marca Shineray trazem uma coreografia improvisada do atacante, na época jogando no Barcelona, na vitória do time sobre o Atlético de Madri em 2015. Já a música Pop 100 traz um vídeo dublado no aplicativo Dubsmash postado no Instagram do famoso jogador (Diário do Nordeste, 2015b). Ainda que esse estudo tenha se limitado a interpretar principalmente o conteúdo das letras das músicas promocionais, o significativo aumento das vendas de motocicletas no Brasil (Sebrae, 2015; Abraciclo, 2015) também contribuiu para nossa curiosidade.
Textos culturais trazem transmissões de símbolos e significados capazes de influenciar ações nos diversos âmbitos da vida das pessoas, inclusive nas suas práticas de consumo (Askegaard, 2010; Hirschman, 1988, 2000; Hirschman, Scott, & Wells, 1998; Holbrook, 2004, 2005, 2007, 2008; Holbrook & Grayson, 1986). No que diz respeito a esse fenômeno, músicas, filmes, programas de televisão, propagandas, novelas, postagens na internet e outros meios de comunicação parecem distribuir interpretações a cada indivíduo que recebe tais informações de maneira particular. Nesse sentido, destacamos a importância de analisar as influências exercidas pelos textos culturais no comportamento das pessoas.
Quanto ao consumo e aos símbolos que o envolvem, McCracken (2007), resgatando as ideias de Simmel (1904), descreve o fenômeno denominado movimento dos significados, quando significados culturais são transferidos de diferentes mídias, como as músicas, para os produtos, e esses produtos, por sua vez, transferem significados aos consumidores que também atribuem diferentes significados aos produtos a partir de seu uso.
Banister e Hogg (2000), em uma pesquisa, ainda destacam que, além do movimento de significados no consumo, há a associação do produto à imagem do artista que está na propaganda e esta imagem deve estar adequada à identidade e à personalidade da marca de um determinado produto ou marca. Assim, essa preocupação em construir uma negociação simbólica entre a propaganda e o público que pretendemos atingir. Diferentes comunicações transferem um conjunto de valores e significados que passam a envolver o produto, o que repercute tanto para os consumidores, quanto para os fornecedores.
Em relação à presença dos símbolos e dos significados no consumo, a Consumer and Culture Theory (CCT) ou Teoria de Cultura e Consumo formulada por Arnould e Thompson (2005; 2007) chama atenção para um consumo que não podemos explicar sem que compreendamos o contexto sociocultural.
Nesse sentido, este estudo adota uma abordagem qualitativa, que tornou possível compreender os dados presentes nas músicas a partir do paradigma interpretativo (Denzin & Lincon, 2000; Rocha & Rocha, 2007) com apoio da perspectiva do CCT (Arnould & Thompson, 2005, 2007), que investiga diversidades culturais e padrões sócio históricos que envolvem as práticas de consumo. O estudo compreende a reprodução de comportamentos socialmente aceitáveis e propagados por textos culturais que exercem influência nas experiências de consumo das pessoas (Hirschman, Scott, & Wells, 1998; Holbrook, 2008) a partir de valores simbólicos (Simmel, 1904; Mccracken; 2003). As letras das músicas, que têm seus significados associados às práticas de consumo (Rodrigues, 2015.), sugerem uma relação com o crescimento das vendas da categoria do produto e, nas duas marcas brasileiras analisadas, apontam para um crescimento de vendas no período em que as músicas foram veiculadas.
O procedimento metodológico desse estudo segue a perspectiva do paradigma interpretativo amparado pela CCT, a fim de relacionar elementos culturais que permitem explorar símbolos expressos em letras de músicas que revelam aspectos relativos à realidade de um determinado contexto. As análises e as discussões das músicas são interpretadas a partir da tradição hermenêutica de interpretação textual (Prasad, 2002; Thompson, Pollio, & Locander, 1994). A análise destaca hierarquias de papéis de gênero nas imagens e nas letras de músicas e fornece contribuições que podem apoiar o mercado de consumo de motocicletas.
As ciências sociais levaram algum tempo para perceber a relação existente entre o consumo e o contexto social, bem como as muitas transformações que são moldadas por um sistema cultural cujo consumo é um processo carregado de significados sociais e culturais (Arnold & Thompson, 2005; Mccracken, 2003; Rocha & Barros, 2007).
O consumo envolve um movimento de significados originado no contexto cultural em que consumidores transferem aos produtos e aos serviços significados a partir de seu uso e de uma construção identitária apoiada por esse consumo (Mccracken, 2003; 2007; Rocha & Barros, 2006). Nesse sentido, as pessoas podem comprar por motivos que fogem à lógica mais funcional e utilitária do consumo, pois podem enxergar o produto como uma forma de expressar experiências, fantasias e/ou excitação emocional na sua utilização (Hirschman & Holbrook, 1982), expressar relações interpessoais (Sherry Jr., 1983) ou valores e práticas que localizam os indivíduos na sociedade (Rocha, 2005).
Alguns estudos de consumo discutem o fenômeno do consumo como uma experiência que ultrapassa a ideia do produto como objeto utilitário e funcional (Hirschman, 1988, 2000; Hirschman, Scott, & Wells, 1998; Holbrook, 2004, 2005, 2007, 2008; Holbrook & Grayson, 1986; Mccracken, 2003; Rocha & Barros, 2006). Nesse campo dos estudos de consumo, Arnould e Thompson (2005) reúnem 20 anos de pesquisa para compartilhar uma visão ampliada sobre formas de consumir que envolvem aspectos vivenciais, simbólicos e ideológicos. Os autores também chamam atenção para o meio social e cultural, no qual o indivíduo está inserido para, então, compreender que influências o contexto tem na aquisição de determinados produtos, independentemente do valor aquisitivo. Os autores também analisam estudos que são avaliados com significados atribuídos ao objeto consumido em textos construídos no contexto sócio histórico (Hirschman, Scott, & Wells, 1998; Holbrook, 2004, 2005, 2007, 2008). Esses textos expressam significados simbólicos propagados na sociedade por meio de diferentes mídias, como filmes, telenovelas, propagandas, programas de televisão, músicas (Hirschman, 1988, 2000; Holbrook; GRAYSON, 1986) e diferentes conteúdos disponíveis na internet (Kozinets, 2002).
A antropóloga Mirian Goldenberg traz contribuições com base nas ideias do antropólogo Marcel Mauss, ao descrever a ação que o sistema cultural exerce sobre o comportamento das pessoas, o qual pode ser intermediado pelo que caracteriza como “imitação prestigiosa”, quando indivíduos inseridos em uma determinada cultura constroem seu padrão de comportamento de acordo com o contexto sócio histórico que conhecem ou vivenciam (Goldenberg, 2014). A pesquisa de Goldemberg sugere que essa reprodução se propaga por meio de modelos que detêm o poder de influenciar comportamentos. Esses modelos tornam-se objeto de desejo e são representados por pessoas com prestígio social (Goldenberg, 2005). Borges (2015) também descreve esse fenômeno de imitação como algo natural, a partir do qual as pessoas sentem necessidade de se tornarem reconhecidas e são atraídas por uma construção de imagem idealizada.
Goldenberg (2011a; 2011b), em seus estudos, descreve a “imitação prestigiosa” como um instrumento pelo qual são construídos padrões de comportamento de consumo que variam de acordo com o seu contexto social, histórico e cultural. Observamos que esses padrões influenciam e são influenciados por textos culturais como músicas (Rodrigues & Casotti, 2017), filmes (Holbrook, 2004; 2005; 2008), novelas (Faria & Casotti, 2014) e outros meios que podem despertar a busca por uma “imitação prestigiosa” nas pessoas e o desejo (Belk, Ger, & Askegaard, 2003) em relação à posse do bem.
O comportamento do consumidor parece ser influenciado por experiências multissensoriais. Motivos da compra de produtos e serviços estão envoltos em fantasias que incluem experiências sensoriais que podem incluir sabores, sons, aromas, impressões táteis e imagens visuais e, assim, influir nas preferências dos consumidores (Hirschman & Holbrook, 1982).
Em relação às experiências multissensoriais, a música parece revelar nas suas entrelinhas uma expressividade que abrange a coletividade. Músicas narram histórias heroicas, ideias revolucionárias, inconformismos, paixões, traições ou, até mesmo, situações corriqueiras que são capazes de provocar sensações, despertar sentimentos e, assim, influenciar comportamentos (Setton, 2009; Wazlawick, Camargo, & Maheirie, 2007).
Setton (2009) refere-se à música como uma produção social que narra histórias e representa elementos socioculturais de uma sociedade. A autora fala de como a música revela características peculiares de um povo, desvela tradições e sentimentos que se relacionam às vivências subjetivas dos indivíduos.
As possíveis ações que a música pode exercer sobre o comportamento começou a despertar interesses em investigações sobre como ela se relaciona ao comportamento do consumidor. Diferentes pesquisadores (Askegaard, 2010; Gorn, 1982; Holbrook & Hirschman, 1993; Holbrook, 2004, 2005; Milliman,1986) trouxeram contribuições à área de estudos de consumo, quando buscaram uma melhor compreensão sobre o que a música, como texto da cultura, pode transferir significados para produtos ou grupos sociais. Também, no Brasil, alguns estudos falam da relação da música na construção de significados de produtos consumidos ao abordá-la como um instrumento que exerce influência sobre o comportamento e a emoção das pessoas (Corrêa, 2011; Monteiro, 2013; Schott, Cupolillo, & Suarez, 2010).
As primeiras contribuições em relação à influência da música nas práticas de consumo foram feitas a partir de análises de fundos musicais de anúncios publicitários (Gorn, 1982; Kellaris & Cox, 1989; Milliman, 1986). Tais pesquisas revelaram como esse instrumento possui uma capacidade de transformar formas de consumo pela força que exerce no comportamento de consumidores.
Holbrook (2005) observa que a música, por si só, não poderia ser uma justificativa para um novo padrão de consumo, mas sim deve ser reconhecida como elemento importante que está envolvido na prática de consumo e na construção de significados trazidos pelas letras e pelos sons (Holbrook, 2007, 2008; Holbrook & Hirschman,1993; Scott, 1990).
Rodrigues e Casotti (2017), em sua pesquisa que analisa os significados e as práticas relacionados aos automóveis que fazem parte das letras de músicas de forró, trazem a música como elemento cultural capaz de representar comportamentos por meio das narrativas contidas nas letras das músicas que estão carregadas de aspectos simbólicos construídos e transmitidos culturalmente.
Já a pesquisa de Schott, Cupolillo e Suarez (2014) traz uma análise sobre a música como um meio de manifestações sociais carregadas de significados. Nela, o fenômeno estudado é a campanha publicitária da FIAT “vem pra rua”, feita para a Copa das Confederações FIFA em 2013 no Brasil, e que se tornou um “hino” dos manifestantes nos protestos de rua ocorridos no país naquele mesmo ano. A música da propaganda da FIAT teve o significado de sua letra espontaneamente transferido para as manifestações de rua ocorridas em todo o Brasil em 2013.
O estudo se insere na perspectiva da CCT (Arnould & Thompson, 2005, 2007) em busca das interpretações de significados socioculturais e se apoiou nas indicações metodológicas preconizadas nas pesquisas de Askegaard (2010), Hirschman (1988), Hirschman e Stern (1994), Holbrook (2005), Mick (1986), Rodrigues (2015), Rodrigues e Casotti (2017) e Suarez (2010), que sugerem ser possíveis interpretações sobre significados e associações feitas em relação às práticas de consumo e que são assimiladas pelos consumidores, influenciando suas construções simbólicas das categorias de produto, no caso dessa pesquisa, as motocicletas. As letras das músicas permitem interpretações de natureza social e cultural sobre o consumo.
O trabalho traz uma abordagem hermenêutica, na qual há um processo interativo de interpretações e reinterpretações dos dados analisados em busca de uma compreensão da interação entre significados transmitidos pela tradição cultural (Prasad, 2005). O procedimento de análise do conteúdo cultural das letras das músicas seguiu referências da tradição hermenêutica de interpretação textual, técnica muito presente em pesquisas de abordagem qualitativa (Prasad, 2002; Thompson, Pollio, & Locander, 1994). Essa técnica permite resgatar informações implícitas presentes em textos culturais, a fim de atribuir significados aos elementos aparentemente óbvios que as letras das músicas expressam (Prasad, 2002; Rodrigues, 2015; Rodrigues & Casotti, 2017).
O círculo hermenêutico adotado na análise (Thompson, Pollio, & Locander, 1994) possui três significados distintos: a) um processo metodológico para interpretar um texto em busca da interatividade entre uma parte dos dados qualitativos e a (re)interpretação em relação ao sentido do todo, a fim de obter uma compreensão holística; b) uma visão filosófica do processo de pesquisa em que a interpretação é tida como aspecto necessário e inevitável da compreensão científica; e c) um modelo geral do processo pelo qual os entendimentos são formados, com apoio na interação entre os significados transmitidos pela tradução cultural e os significados que o indivíduo constrói a partir deles.
A seleção das músicas promocionais “Pop 100” e “Shineray” está relacionada à quantidade de acessos no You Tube (cerca de 28 e 2 milhões de visualizações, respectivamente) dessas duas músicas, o que chamou atenção do estudo que é mais abrangente e que investiga a mobilidade nos centros urbanos. A viralização das músicas em diferentes sites da internet se intensificou, quando o atacante Neymar Júnior fez uma dublagem da “Pop 100” no aplicativo Dubsmash, postando no Instagram e construiu coreografia com a música “Shineray”, vídeo postado no You Tube (Diário do Nordeste, 2015b).
s músicas acompanham as transformações socioculturais e sinalizam mudanças do ambiente social. Um exemplo é a “ostentação” cantada em melodias associadas a novas formas de representação do consumo de bens de luxo por classes emergentes no Brasil, que é chamado de “funk ostentação” (Antonacci & Marcelino, 2013; Pereira, 2014). Outros estudos analisara
As músicas acompanham as transformações socioculturais e sinalizam mudanças do ambiente social. Um exemplo é a “ostentação” cantada em melodias associadas a novas formas de representação do consumo de bens de luxo por classes emergentes no Brasil, que é chamado de “funk ostentação” (Antonacci & Marcelino, 2013; Pereira, 2014). Outros estudos analisaram as representações dos produtos de luxo e do automóvel em músicas no Brasil (Alonso, 2011; Rodrigues & Casotti, 2017). Esse estudo traz mais um exemplo da música como produto e texto de uma cultura (Setton, 2009), pois permitiu uma análise capaz de atribuir significados às representações de gênero presentes e revelar associações com o uso da motocicleta.
As músicas promocionais analisadas revelam, em suas letras, a dominação masculina (Bourdieu, 2002). Observamos, ainda, que as músicas promocionais, além de chamarem consumidores para a compra, seu principal objetivo, trazem estratégias para a posse e o uso do veículo, assim como apresentam predominantemente benefícios sociais ou amorosos para os homens usuários da motocicleta.
Rocha (2005) fala das diferenças culturais entre os gêneros que são expressas por meio do consumo. Na música “Pop 100”, a posse da motocicleta apresenta uma relação de dominação dos homens em relação a ela, não apenas porque ele sempre conduz o veículo, mas também pelo lugar dado à mulher – sempre na carona da moto –, sugerindo um papel de acessório para o homem que a dirige em situações de lazer. Desta forma, a música posiciona a mulher em um status inferior. Essa é uma representação na mídia que pode ser vista como uma apresentação estigmatizada da mulher. Goffman (1988) define estigma não como algo inerente a um comportamento, mas sim como um produto do relacionamento entre dois atores. Na letra da música, a repetição do trecho “na Pop 100, ela empina o bumbum” evidencia não uma aparência que gera o estigma, como Goffman observa em relação a portadores de deficiência, mas um estigma associado a uma condição física de subordinação, cujo “bumbum” empinado, com sua conotação sexualizada, torna visível uma mulher que possui um lugar na motocicleta, o de carona, apenas por realçar um atributo físico. O corpo feminino assume um valor de desejo e posse masculina ou de um “capital desejável” (Goldenberg, 2005).
Enquanto na música “Pop 100” o personagem principal é sempre o homem, o dono da motocicleta; na música promocional da “Shineray” a mulher pode ser a dona da moto e aparece de “forma discreta” nas imagens para compor o slogan “todo mundo tem shineray”. Mais igualdade entre os gêneros? Desconstrução dos papéis sociais em que o homem é hierarquicamente superior? O refrão a seguir, no entanto, traz outra associação desfavorável para as mulheres, a qual Wolf (1992) descreveu em sua pesquisa que analisava representações estéticas de gênero. De acordo com a pesquisadora, a idade do homem é perdoada e da mulher não, o que ela exemplifica com a imagens da mídia que mostra casais cujos homens mais velhos e grisalhos são acompanhados de mulheres novas, mas não é encontrada a imagem oposta e nem homens acompanhados de mulheres da sua idade. A Shineray traz o estigma do envelhecimento feminino, pois só “as novinhas” têm Shineray:
“Todo mundo tem shineray, meus amigos têm shineray Minhas colegas têm shineray e as novinhas têm shineray”.
Em outra parte da música é possível associar “as novinhas”, que também estão na carona, que o dono da motocicleta chama para “dar um rolé”, a objetos de exibição ou “pura ostentação”.
“Domingo de tarde, vou no orelhão pra ligar pras novinha Chamar pa dar um rolé pela cidade com o Rei da Cacimbinha Desde na época do cruzeiro que eu sou pura ostentação Eu só bebo 51, mas na conta tem 1 bilhão.”
A motocicleta foi pesquisada como um veículo de grupos fora da lei (SCHOUTEN & Mcalexander, 1995), mesmo quando associada a mulheres (Thompson, 2011). Thompson (2011) sugere que as motociclistas manipulam diversos aspectos simbólicos, de forma a redefinir o que é visto como um comportamento feminino desviante, pois elas possuem a sensação de liberdade e empoderamento já que, tradicionalmente, as motocicletas fazem parte de um empreendimento de aventura masculina. As letras das músicas, no entanto, trazem estigmas, preconceitos e posições de inferioridade das mulheres em relação aos homens no uso da motocicleta, pois elas, “as novinhas”, “com bumbum empinado”, são exibidas na carona. As mulheres têm ocupado cada vez mais espaço no mercado de trabalho e se tornado importantes compradoras de automóveis e motocicletas, como indicam os dados demográficos no Brasil (IBGE, 2010; 2013). No entanto, no conteúdo das músicas promocionais, as mulheres não alcançaram essas posições sociais de conquista.
As representações femininas trazidas nas músicas analisadas seguem no sentido oposto ao estudo de Thompson (2011), pois as mulheres e seus bumbuns são “cantados” como objetos de exibição, conquista e desejo pela marca Pop 100 da Honda, e são, ainda, valorizadas em sua juventude, sem protagonismo pela popular marca chinesa Shineray.
As músicas selecionadas trazem uma reflexão em relação também a hierarquias sociais, pois a posse da marca e/ou da categoria do produto dá, ao seu dono, o benefício de um status social diferenciado – como um “rei”. A música é capaz de despertar o desejo de posse da motocicleta e associa essa posse a uma conquista que pode ser transformadora para o pertencimento social. Outros estudos (Gorn, 1982; Milliman, 1986; Kellaris & Cox, 1989) destacaram relações entre música e consumo e revelaram a importância dessas associações para incentivar e transformar formas de consumo e de exercer influência no comportamento de consumidores.
As músicas analisadas, além de divulgar a categoria e as marcas, promovem um diálogo entre personagens populares do mundo real, como “Dj Shineray” e “Rei da Cacimbinha”, e o público que consome as informações divulgadas por meio das músicas. Esse diálogo pode gerar uma sensibilização capaz de influenciar o comportamento de consumo. Como exemplo de representações de conquista e pertencimento social, destacamos a parte da letra da música que diz:
“...todo mundo tem Shineray, existe até um DJ Shineray, eu também devo ter uma Shineray”... “As piriguetes têm shineray e os marmanjos têm shineray
“...todo mundo tem Shineray, existe até um DJ Shineray, eu também devo ter uma Shineray”... “As piriguetes têm shineray e os marmanjos têm shineray Os cachaceiros têm shineray e as gostosas têm shineray Até as bibas têm shineray / Os raparigueiros têm shineray”.
A música traz também uma associação da motocicleta com um “paredão” – que é típico de um carro e não de uma moto, ou seja, a associação feita na música dá à motocicleta uma equivalência de status que não parece possível no mundo real. O “paredão” é um tipo de som automotivo muito grande, acoplado a um reboque na traseira do carro:
“Eu sou o Rei da cacimbinha, meu nome é Jhony Falcão Bota meu cd pra tocar no paredão” (Shineray).
Ao mesmo tempo em que encontramos nas letras associações com a conquista de um nível mais elevado de status social, a partir da exibição e da ostentação da posse da motocicleta, há também associações que aproximam as músicas das classes mais populares. A música “Pop 100”, por exemplo, chama a atenção desse fato quando o personagem liga para as “novinhas” de um orelhão - telefone público que praticamente não existe mais depois do acesso massificado aos celulares. A experiência com o orelhão, assim como o consumo de uma marca popular de cachaça – “bebe 51”, são consumos característicos das classes mais populares.
Outro exemplo dessa aproximação com comportamentos de consumo típicos de classes com níveis mais baixos de renda é o acesso à posse da motocicleta por meio de parcelamentos e endividamento, e com a possível ajuda de familiares. Esse comportamento foi analisado na pesquisa feita por Mattoso (2005) na favela da Rocinha no Rio de Janeiro. De acordo com essa pesquisa, o grupo analisado mostrou naturalidade em sua busca por ajuda financeira de familiares e amigos para que uma compra seja possível, por exemplo, o uso de cartão de crédito de outro para a compra parcelada do objeto de desejo. Na história contada pela letra da música, para comprar a “Shineray”, o personagem pede a mãe para falar com a avó aposentada, que supostamente teria renda para a obtenção de financiamento para comprar a motocicleta que custa três mil reais. Alguns estudos (Oliveira & Silva, 2012; Souza & Moretto, 2014) descrevem a realidade de famílias brasileiras, em que são os mais velhos – principalmente os avós - com suas aposentadorias de valores maiores, conquistadas no passado, que têm viabilizado o consumo de bens e serviços de filhos e netos.
“Ei mãe... Fala com a vovó aí / Ela é aposentada mãe / A senhora também é..., Né / Ei mãe, preciso de três mil reais
A galera tá montada mãe / Quero comprar minha shineray / Ei mãe... Tô indo pra balada a pé / Voltar a pé de madrugada mãe Fala com a vovó e vê qual é”
Portanto, o meio social é destaque nas músicas que promovem as motocicletas como objetos de um consumo hedônico e divertido. Diferente do estudo de Rodrigues e Casotti (2017), que entrevistou um grupo a partir da compra do primeiro carro, foram poucas as características funcionais ou relativas à mobilidade, identificadas nas letras analisadas. Apenas no caso da música promocional da Shineray a motocicleta aparece como um item associado à mobilidade e à segurança. No entanto, essa função aparece associada ao consumo hedônico (Hirishman & Holbrook, 1982), pois, na mesma música, a motocicleta serve também para não voltar a pé da balada e assim não estar vulnerável aos perigos da madrugada.
A música pode ser vista como um elemento de manifestação da cultura que reflete a forma como as pessoas pensam, vivem, se relacionam e se motivam. As palavras se unem à melodia e formam assim um sistema de significados que interage nos contextos culturais e sociais. Mas não são muitos os estudos culturais encontrados na área de marketing que incluem a música como tema de investigação ou contexto. Esse trabalho traz duas músicas promocionais como parte da experiência de consumo. As músicas trazem características curiosas pois, ao mesmo tempo em que promovem o status da posse de uma motocicleta, elas trazem em suas letras contextos reais da vida de seus potenciais consumidores predominantemente de classes mais populares, como sugere a análise, por exemplo, do pedido de ajuda do dinheiro da avó aposentada para as prestações a serem pagas. Nesse estudo, destacamos os aspectos relativos a gênero e classe socioeconômica a partir da análise das letras das músicas “Pop 100” e “Shineray”.
Músicas promocionais podem ser descritas como propagandas que oferecem, ao mesmo tempo, uma experiência musical. O filósofo e museólogo alemão Adorno (1993) fala da construção do status social a partir da relação dos consumidores com o consumo de bens e experiências hedônicas, em que localizamos também experiências musicais. Adorno (1993) fala que esses textos são capazes de transformar a percepção dos consumidores de produtos hedônicos como necessidades do dia a dia. As motocicletas aparecem como possibilidade de ostentação para conquistas, tanto das mulheres “novinhas” quanto de status social. Sabemos, no entanto, que são utilizadas pelas classes populares para atender principalmente à necessidade de mobilidade urbana, mas encontramos nas letras a mobilidade social trazida pelos sinais de conquistas a partir da posse da motocicleta.
As músicas analisadas promovem, além de uma negociação simbólica, negociações sociais mais diretas e reais, diferindo de posicionamentos de propagandas mais tradicionais de diferentes veículos automotores nas quais predomina uma subjetividade de texto e imagem que pode ser mais difícil de ser interpretada pelos compradores de classes mais populares. Pop 100” e “Shineray” têm letras sugestivas ao consumo e, nelas, o produto aparece como um instrumento que promove, de forma clara, benefícios sociais por meio da posse da motocicleta.
A propaganda é um bem cultural criado pela mídia de massa capaz de reconfigurar significados culturais para vender bens de consumo (Zhao & Belk, 2008). As músicas promocionais analisadas dos modelos e das marcas de motocicletas trazem referências aspiracionais de status que sugerem conquista do gênero masculino apresentado como hierarquicamente superior. Embora estudos falem de uma imagem idealizada da mulher na propaganda, encontramos homens idealizados nas letras dessas músicas que estão distantes dos diversos movimentos que buscam redefinir o papel da mulher na sociedade.
Cabe observar também que a indústria da propaganda acompanha a mudança nas expressões musicais em que o consumo ostentação tem um lugar de destaque. Esse novo padrão “ostentação” de apresentação está presente em diversos estilos musicais pelo mundo, entre eles estão o Rap americano (cantado por Rihanna, Nicki Minaj e Jason Derulo), o Pop americano (na voz de Britney Spears, Madonna, Beyoncé), o Rap canadense (interpretado por Aubrey Drake Graham), o Pop coreano (representado pelo grupo Girls Generation), o Indie Pop Britânico (cantado por Ella Marija Lani Yelich-O'Connor, mais conhecida pelo nome artístico Lorde) e o Rap australiano (com a cantora Iggy Azalea). Músicas brasileiras em diferentes estilos musicais (Sertanejo, Pop, Forró, Funk e Pagode) também têm acompanhado esse estilo ostentação. As músicas promocionais analisadas seguiram essa tendência, pois trazem uma negociação simbólica entre a ostentação e a necessidade da posse da motocicleta.
Podemos pensar na música, tradicionalmente, como uma experiência individual ou compartilhada e, embora não seja uma experiência imposta, a música não pode, muitas vezes, ser evitada em locais públicos. No entanto, chamou nossa atenção o número de acessos, via YouTube, aos casos analisados. Podemos dizer que esse acesso é público, mas traz características diferentes: o acesso público está associado a uma decisão individual, ou seja, um acesso que poderia ser visto como privado. Porém, muitos acessos foram seguidos pelo compartilhamento, o que dá lugar ao que chamamos viralização da informação ou da música/vídeo. Desta forma, a divulgação ou o acesso a partir das redes sociais podem ser vistos como mais um elemento para estudos futuros que considerem o rico e curioso contexto da música em estudos culturais.