DOAR OS ÓRGÃOS DO ALFREDO? NEM PENSAR!
DONATE ALFREDO'S ORGANS? NO WAY!
¿DONAR LOS ÓRGANOS DE ALFREDO? ¡DE NINGUNA MANERA!
DOAR OS ÓRGÃOS DO ALFREDO? NEM PENSAR!
Revista Alcance, vol. 29, núm. 3, pp. 315-327, 2022
Universidade do Vale do Itajaí
Recepción: 28/08/2021
Aprobación: 22/11/2022
Resumo:
							                           Dilema: O caso retrata a difícil decisão da família de Alfredo por doar, ou não, os órgãos do falecido. Esta decisão é influenciada pela qualidade dos serviços prestados pelo hospital à família, assim como pela habilidade dos profissionais de linha de frente em lidarem com a família em um momento tão sensível. Jorge, coordenador da Central Estadual de Transplantes (CET), precisa agir para aumentar o número de “sim” às doações de órgãos de doadores falecidos. Mas o que fazer? Como desenvolver as competências dos profissionais que trabalhavam na CET? Como melhorar a qualidade dos serviços prestados às famílias dos potenciais doadores? 
Objetivos educacionais: O caso foi escrito com o objetivo pedagógico de trabalhar em sala de aula conceitos relevantes no campo da gestão e qualidade de serviços: · o conceito e as cinco dimensões de qualidade percebidas em serviços, discutidos por Parasuraman (confiabilidade, presteza, segurança, empatia, tangíveis); · as três dimensões para avaliação da qualidade de serviços de saúde, propostos por Donabedian (estrutura, processo, resultado); · a importância das pessoas para a entrega de serviços de qualidade em contextos adversos e de alto contato, considerando as quatro características distintivas dos serviços, concebidas por Kotler (intangibilidade, inseparabilidade, perecibilidade, variabilidade), o conceito de “hora da verdade” na prestação de serviços, introduzido por Jan Carlzon, e de “espelho de satisfação” funcionário-cliente. 
Contextualização: O dilema se dá no hospital em que Alfredo foi encaminhado após sofrer um grave acidente de bicicleta – envolvendo traumatismo craniano. A gravidade da lesão resultou na morte do paciente, com diagnóstico de morte encefálica pela equipe médica, critério que permite a doação de órgãos. A discussão do caso se passa nesse contexto, em que o paciente permanece internado, enquanto sua família é comunicada do falecimento e da opção de doar seus órgãos. 
Tema principal: conceito de qualidade em serviços e a importância das pessoas para a entrega de serviços de qualidade, em contextos adversos e de alto contato. 
Público: estudantes de pós-graduação – formação executiva, mestrado ou doutorado. 
Originalidade / valor: A originalidade do caso se dá pelo fato de discutir conceitos de gestão da qualidade de serviços em contextos adversos e de alto desgaste emocional, como é o caso de doação de órgãos de doador falecido.
Palavras-chave: Gestão da qualidade em serviços, Doação-transplante de órgãos, Negativa familiar à doação de órgãos, Gestão de pessoas, Papel das pessoas na entrega dos serviços.
Abstract:
						                           Dilemma: The case portrays the difficult decision of Alfredo's family to donate or not the organs of the beloved deceased. This decision is influenced by the quality of services provided by the hospital to Alfredo's family and the ability of frontline professionals to deal with the family at such a sensitive time. Jorge, the State Transplant Center (CET) coordinator, needs to act to increase the number of "yes" to organ donations from deceased donors. But what to do? How to develop the skills of professionals who worked at CET? How to improve the quality of services provided to the families of potential donors? 
Educational objectives: The case was written with the pedagogical purpose of working in the classroom relevant concepts in the field of services management and quality: · the concept and the five dimensions of perceived quality in services discussed by Parasuraman (reliability, promptness, security, empathy, tangibles); · the three dimensions for assessing the quality of health services proposed by Donabedian (structure, process, result); · the importance of the people for delivering quality services in adverse and high-contact contexts, considering the four distinctive characteristics of services conceived by Kotler (intangibility, inseparability, perishability, variability), the “moment of truth” concept introduced by Jan Carlzon, and the “satisfaction mirror” of providers-clients. 
Contextualization: The dilemma occurs in the hospital where Alfredo is hospitalized, with brain death. 
Main theme: the concept of quality in services and the importance of people for delivering quality services in adverse and high-contact contexts. 
Audience: Postgraduate students – executive training, master's or doctorate. 
Originality/value: The case is original because it discusses concepts of service quality management in adverse contexts and high emotional distress, such as the case of organ donation from deceased donors.
Keywords: Service Quality Management, People Management, Organ donation-transplantation, Family refusal to donate, Peoples’ role in service delivery.
Resumen:
						                           Dilema: El caso retrata la difícil decisión de la familia de Alfredo de donar o no los órganos del fallecido. Esta decisión está influenciada por la calidad de los servicios brindados por el hospital a la familia, así como por la capacidad de los profesionales de primera línea para tratar con la familia en un momento tan delicado. Jorge, coordinador del Centro Estatal de Trasplantes (CET), necesita actuar para incrementar el número de “sí” a las donaciones de órganos de donantes fallecidos. ¿Pero qué hacer? ¿Cómo desarrollar las competencias de los profesionales que trabajaron en CET? ¿Cómo mejorar la calidad de los servicios prestados a las familias de los posibles donantes? 
Objetivo educativo: El caso fue redactado con el objetivo pedagógico de trabajar en el aula el concepto de calidad en los servicios y la importancia de las personas para la prestación de servicios de calidad en contextos adversos y de alto contacto. 
Contextualización: El dilema se da en el hospital donde está internado Alfredo, con muerte encefálica. 
Tema principal: concepto de calidad en los servicios y la importancia de las personas para la prestación de servicios de calidad, en contextos adversos y de alto contacto. 
Público: estudiantes de posgrado - formación ejecutiva, maestría o doctorado. 
Originalidad / valor: La originalidad del caso se debe a que se discuten conceptos de gestión de la calidad del servicio en contextos adversos y de alto malestar emocional, como es el caso de la donación de órganos de donantes fallecidos.
Palabras clave: Gestión de la Calidad del Servicio, Gestión de Personas, Donación-Trasplante de Órganos, Negativa de la Familia a Donar, Papel de las Personas en la Prestación de Servicios.
INTRODUÇÃO
“Alfredo faleceu”, disse Carmem, a enfermeira do hospital em que Alfredo estivera internado por cerca de cinco dias, à Joana, esposa do paciente.
Fim triste o do Alfredo... caiu da bicicleta e bateu com a cabeça. Foram vários dias de agonia no corredor do hospital até haver vaga na unidade de tratamento intensivo (UTI) de um hospital estadual que ficava perto da casa dele. Depois de toda a espera e apreensão, veio o diagnóstico da morte por TCE, ou traumatismo cranioencefálico, termo que a esposa nunca havia escutado antes. Joana estava inconsolável e em choque com a trágica e repentina notícia do acidente, e, poucos dias depois, a morte. “Como pode, um homem tão bom, de 45 anos, forte como um touro, trabalhou a vida inteira na construção civil, ter um fim triste assim... Isso não é justo”, dizia ela repetitivamente.
O ACIDENTE E O RESGATE
Acostumado a acordar cedo por força do ofício, Alfredo saiu da cama naquele domingo em silêncio para não acordar a esposa. Era uma manhã ensolarada e quente e Alfredo resolveu passear de bicicleta pelo bairro e comprar pão quentinho que deveria estar saindo do forno. Imerso em seus pensamentos, Alfredo nem percebeu o carro que o atingiu em alta velocidade. Era cedo, as ruas estavam vazias. Alfredo ficou estendido no chão.
Socorrido, Alfredo chegara ao hospital entubado, imobilizado e bem ventilado. “Traumatismo craniano”, disse o médico de plantão. “Tem que pedir vaga na UTI. Alguém tenta localizar a família, por favor? Parece que não portava documentos...”, completou o médico.
Passada a movimentação inicial, aos poucos a equipe se reorganizava diante da fila enorme dos que aguardavam desde cedo por uma consulta. A epidemia de covid-19 viera pra valer. Enquanto a vaga da UTI não saía, restava deixar o paciente (estaria ainda vivo?) numa maca acoplada a um ventilador mecânico. Definitivamente, o hospital precisava de mais leitos, além de uma limpeza urgente. O cheiro forte de miséria era a assinatura do local.
“Não, não e não! Qual a parte de NÃO TEMOS VAGA na UTI que você não entendeu?”, dizia Felipe, antes de desligar o telefone subitamente. Após um dia que começara com a notícia do adiamento sumário de suas férias de verão, devido à crônica falta de pessoal, o já-não-tão-jovem médico de 32 anos olhava insistentemente para o relógio do celular, esperando ansiosamente pela hora de voltar para casa. “Noites mal dormidas e plantões mal pagos. É o que se ganha por ter escolhido clínica médica...”, bradava frequentemente, antes de soltar sua já conhecida gargalhada em altos decibéis, contrariando as normas daquela unidade sombria. “Vaga na UTI para uma provável morte cerebral, era o que faltava! Não damos conta nem dos vivos, que estão esperando nos corredores por uma vaga na UTI e eles pedindo uma vaga para uma provável morte encefálica? Daqui a pouco isso aqui vira a câmara fria do hospital”, comentara Felipe com um colega que passava.
A FAMÍLIA E A NOTÍCIA
Joana acordara naquele domingo com um pouco de ressaca do churrasco da véspera. Tinha bebido um pouco mais de cerveja e estava com a cabeça pesada. Ao olhar para o lado, não viu Alfredo. Foi à janela e viu um dia ensolarado, perfeito para um passeio a pé com o marido. Alfredo deve ter ido comprar pão, pensou. Trocou de roupa e já estava pronta para a caminhada, esperando Alfredo voltar com o pãozinho para o café da manhã. Mas as horas foram passando e nada do Alfredo... Onde estaria? Para aonde teria ido? Não deve ter ido comprar pão, pois estava demorando muito. Mas aonde teria ido sem avisá-la?
À medida que o tempo passava, Joana ficava cada vez mais aflita. Muito estranho isso, pensou. Ele não costumava “sumir” assim. Perto da hora do almoço, Joana resolveu sair a pé pelo bairro, para saber se alguém tinha visto o Alfredo, mas nada de notícias. Até que encontrou um vizinho que disse ter visto a bicicleta de Alfredo caída no chão. Desesperada, Joana saiu à procura de Alfredo pelas unidades de saúde da região, até que finalmente encontrou Alfredo, ainda no corredor, à espera de uma vaga na UTI.
Foram dias muito difíceis aqueles... Depois de mais de 48 horas do acidente, finalmente conseguiram uma vaga na UTI para o Alfredo. O hospital estadual era o único nos arredores do bairro de residência de Joana a atender pela rede pública (SUS) casos como o de Alfredo, de lesão traumática na cabeça. Os indícios de estrutura precária (pintura descascada, ar condicionado que não esfriava, cadeiras quebradas, fortes odores) e insuficiente para atender às necessidades de todos pacientes (recepção lotada, pacientes e familiares lotando os corredores, médicos e enfermeiros passando em ritmo acelerado, além do Alfredo e outros pacientes na espera por uma vaga de UTI) só contribuíam para a sensação de medo de Joana – de que seu marido não seria atendido a tempo e de forma suficiente para salvá-lo.
Joana ia diariamente ao hospital, em busca de notícias, queria falar com os médicos, saber como estava Alfredo, mas era difícil conseguir falar com alguém. Estavam todos muito ocupados com o hospital lotado. Até que certo dia, ao chegar no hospital, recebeu a notícia: “Teve morte encefálica”, disse a enfermeira, “a coordenadora de transplante vai vir falar com a senhora para saber se a senhora vai querer doar os órgãos do seu marido”.
Joana não acreditava no que tinha acabado de ouvir. Alfredo... morto? Joana estava sozinha e se apressou em ligar para a filha, Maria do Socorro, para que fosse imediatamente para o hospital. Maria do Socorro chegou o mais rápido que pode. Abraçou a mãe, não sabia o que dizer. Estava em choque. Nesse momento, veio a enfermeira novamente perguntando se elas queriam ver o Alfredo. Claro que queriam! Queriam ver com os próprios olhos, sem acreditar na notícia que acabaram de receber. Maria do Socorro lamentava não ter dinheiro para transferi-lo para um hospital privado, com mais recursos e que pudesse salvá-lo.
Ao entrarem na UTI, levaram um susto: Alfredo apresentava um semblante tranquilo, respirando através de um tubo. Sua cabeça estava coberta por um curativo, porém seu rosto e corpo estavam intactos. Como pode? O que estava acontecendo? Joana olhou com os olhos arregalados para a enfermeira da UTI, que se chamava Raquel. “O que está acontecendo? Você está de brincadeira comigo? Meu marido está vivo! Vivinho da silva!”, disse Joana, aos berros. “Sinto muito, senhora, mas ele está morto. Já chegou ao hospital em morte encefálica, confirmada posteriormente pelo neurocirurgião. Nestes casos, a gente mantém os pacientes respirando para ver se aproveita os órgãos, se forem doados. Mas está morto”, respondeu Raquel. “Daqui a pouco a coordenadora de transplantes virá conversar com a senhora.” Sem acreditar no que ouviam, mãe e filha foram conduzidas para uma sala de espera próxima à UTI, sem entender bem o que estava acontecendo.
Alguns minutos depois, Joana e Socorro foram abordadas pela enfermeira Carmem, coordenadora de transplantes do hospital, perguntando se a família desejaria doar os órgãos do falecido. “Como assim doar os órgãos? Ele está vivo! Você está maluca? Acabei de vê-lo dormindo e respirando! Seu coração está batendo. Que papo é esse?”, esbravejou Joana, sentindo suas pernas fraquejarem naquela sala pequena, sem ar-condicionado. “Mamãe, tenta se acalmar, a gente vai tirar o papai dessa espelunca”, disse Socorro. “Como assim, me acalmar? Você não entendeu o que está acontecendo? Estão querendo matar seu pai para retirar os órgãos dele!”, disse Joana, aos prantos.
Carmem abordava família de potenciais doadores há vários anos e já se acostumara com a rotina: quase sempre a notícia da morte era seguida de gritos, incredulidade, desaforos e desespero. “É muita ignorância”, costumava dizer. Definitivamente o desconhecimento da morte encefálica não era privilégio dos mais pobres e sem educação. Carmem dizia fazer parte de uma “equipe de uma só pessoa”. Sempre sobrecarregada, Carmem estava especialmente irritada naquele dia, pois tinha sido chamada de “urubu” pelo plantonista, ao perguntar se havia algum caso grave novo, que pudesse resultar em doação dos órgãos. “Como é que em pleno 2021 ainda há médicos que não entendem o que faço, que não entendem a importância de acolher as famílias e estimular a doação de órgãos?”,pensava ela, consigo mesma. Mas, experiente, Carmem respirou fundo e começou a tentar explicar o conceito de morte encefálica e os detalhes do processo de doação. No entanto, Joana e Socorro não estavam em condições de entender nada e também não queriam ouvir nada. Naquele momento só pensavam em como tirar Alfredo dali.
“Olha, a morte encefálica foi confirmada, não tem volta. Agora é decidir o que fazer com o corpo: enterrar tudo, ou ajudar a salvar vidas. E é importante que vocês decidam logo, pois o processo de doação é longo e tenho que começar logo”, disse Carmem. Joana sentia-se enjoada, o cheiro do hospital lhe embrulhava o estômago. Acabou explodindo de raiva: “Vocês são todos uns papa-defuntos! Quando Alfredo estava vivo, ficou mais de dois dias no corredor, jogado que nem um saco de lixo. Só depois vocês o colocaram na UTI e me deixaram aqui fora, sem notícias. Não tinha uma boa alma para vir aqui me dar notícias, para dizer o que estava acontecendo com meu marido. Ninguém sabia de nada, eu parecia invisível. Quantas vezes fui para casa chorando por não saber o que estava acontecendo com ele lá dentro? Agora que ele tá morto, ou vocês dizem que está, porque eu não acredito, vem você aqui me encher a paciência com esse negócio de doar órgãos. Agora aparece você, antes veio aquela tal enfermeira, vem todo mundo falar comigo. Não vou doar porcaria nenhuma! Ele está vivo e vai sair daqui comigo!”
Esgotada física e emocionalmente, Joana é amparada pela filha. Carmem decide se afastar para deixar as duas processarem a informação. “Vou deixar vocês refletirem. Volto daqui a pouco”, disse Carmem.
Joana e Socorro não tinham o que falar. Ficaram abraçadas, chorando a perda inesperada de Alfredo. Depois de algum tempo, já mais calma, Socorro resolveu procurar no Google o que significava morte encefálica. Achou difícil de entender as definições que encontrou... muitos termos técnicos, tudo muito difícil para qualquer leigo e em especial para ela, naquele momento de fragilidade emocional, e com pouco estudo (Socorro completara o ensino fundamental e trabalhava como diarista em casa de família). Continuou na mesma: estaria o pai realmente morto? Será que esse negócio de morte encefálica é irreversível mesmo? E se ele estivesse morto, será que elas deveriam doar os órgãos dele?
“Mamãe, e se o papai estiver realmente morto? Sempre foi um homem bom. Será que ele gostaria de ter os órgãos doados?”, perguntou Socorro. “Não sei, minha filha, nunca falamos sobre isso. Ele era um homem religioso, mas achava que falar sobre a morte atraía maus espíritos”, respondeu Joana. Depois de algum silêncio, Joana completou: “Sei lá qual era a vontade dele, mas eu não confio nesse povo daqui, não. Eles pensam que sou boba. E imagina, enterrar o corpo dele todo desfalcado, enterrar ele sem olho, sem coração. Nem pensar”.
Ao notar o sofrimento de Socorro e Joana, Francis se aproxima e se apresenta como mãe de Francisco, um paciente de 20 anos, que ocupava o leito ao lado de Alfredo há mais de um ano. Francisco estava em coma e Francis morava no hospital desde a internação de Francisco. Confiava nas pessoas que cuidavam dele e sentia-se amparada por todos. Joana e Socorro ouvem a história de Francis e se sensibilizam.
O DESAFIO
Jorge, coordenador da Central de Transplantes do estado (CET), estava apreensivo com a situação da doação de órgãos, principalmente em relação à negativa familiar.
No Brasil, em 2019, havia 39.469 pessoas na fila de espera por um transplante e 2.484 morreram nesta fila; a negativa familiar correspondeu a 23,46% da perda de órgãos de potenciais doadores em morte encefálica.
A equipe da CET estava com dificuldade em comunicar às famílias o direito de doar os órgãos do parente falecido. Várias eram as dúvidas e os receios dos familiares, que culminavam com o temido “não vou doar”. O caso de Alfredo era o último a chegar à sua mesa. Uma grande perda: Alfredo era relativamente jovem, saudável, poderia ter doado diversos órgãos e tecidos, salvando inúmeras vidas.
Desapontado com os desfechos das entrevistas familiares, Jorge resolveu marcar mais uma reunião com a equipe para discutir possíveis ações a serem implementadas para aumentar o número de doações de órgãos de doadores falecidos no estado. A reunião foi marcada para uma segunda-feira, 5 de julho de 2021. Formado em medicina e coordenador da CET há três anos, Jorge estava convicto de que o sucesso do processo de doação-transplante de órgãos (DxTx) dependia muito do empenho e da motivação dos profissionais envolvidos no processo. Para ele, conhecimento técnico sobre o assunto e atitude positiva em relação à doação de órgãos eram os pilares fundamentais para aumentar o número de órgãos doados e transplantados no país. Além disso, era preciso levar em conta a qualidade dos serviços prestados aos pacientes e familiares. No curso de pós-graduação que estava fazendo, Jorge estudou as dimensões da qualidade percebida em serviços – confiabilidade, presteza, segurança, empatia e tangíveis – e estava convicto de que era preciso trabalhar adequadamente essas dimensões para chegar a um “sim” das famílias dos potenciais doadores. Para Jorge, as negativas familiares eram também fruto da má qualidade dos serviços oferecidos pelos hospitais onde ocorria a morte dos potenciais doadores. Ele achava que não adiantava treinar apenas a equipe que trabalha na CET. Ele queria desenvolver um projeto de treinamento/desenvolvimento que incluísse os profissionais que atuam nas UTIs e emergências dos hospitais do estado. Ele sabia que se tratava de um projeto ambicioso, mas a causa compensava: seria a possibilidade de melhorar a qualidade dos serviços entregues à população e de salvar vidas. Mas o grande dilema de Jorge era o que fazer para melhorar a qualidade dos serviços prestados e engajar os profissionais de linha de frente nessa jornada da doação-transplante de órgãos.
NOTAS DE ENSINO
1. OBJETIVOS DIDÁTICOS
O caso Doar os órgãos do Alfredo? Nem pensar! foi escrito a partir de dados fictícios, com o objetivo pedagógico de trabalhar em sala de aula conceitos de gestão e qualidade em serviços, a saber, as dimensões de Parasuraman de qualidade percebida dos serviços: confiabilidade, presteza, segurança, empatia, tangíveis; as dimensões de avaliação da qualidade dos serviços de saúde de Donabedian: estrutura, processo e resultado; e a importância das pessoas para a entrega de serviços de qualidade em contextos adversos e de alto contato – como é o caso dos serviços relacionados à doação de órgãos de doador falecido, considerando as quatro características dos serviços de Kotler: intangibilidade, inseparabilidade, perecibilidade, variabilidade, e os conceitos de “espelho de satisfação” funcionários-clientes e de “hora da verdade”.
O caso pode ser programado em disciplinas de pós-graduação, dedicadas aos temas de Gerência de Serviços, Operações de Serviços, Gestão de Serviços de Saúde, Gestão de Serviços Públicos, Gestão da Qualidade de Serviços, ou Gestão da Qualidade de Serviços de Saúde.
2. QUESTÕES DE PREPARAÇÃO
A discussão do caso em sala de aula pode ser orientada pelas seguintes questões de preparação por parte dos alunos:
1) Como você avalia a qualidade dos serviços de saúde recebidos por Alfredo e sua família em relação à estrutura do hospital, aos processos de cuidado, e aos resultados das interações?
Se estivesse no lugar de um membro da família, qual seria a sua percepção de qualidade sobre a abordagem utilizada pelos profissionais para informar sobre o falecimento de Alfredo e do direito da família à doação de órgãos? Por quê? Em sua avaliação, qual o “momento-chave” nas interações com a família de Alfredo, e o que deveria ter sido feito de diferente na abordagem de Carmem? Qual o papel desempenhado pelos profissionais que atuam no hospital na abordagem às famílias dos potenciais doadores de órgãos, e qual a influência do contexto de trabalho desses profissionais (carga-horária, remuneração, etc.)? Os serviços, em especial os de saúde, possuem características intrínsecas e que requerem alto grau de interação provedor-paciente. Nesse contexto, que fatores podem ter influenciado a decisão da família de doar, ou não, os órgãos de Alfredo? O que Jorge deveria fazer para aumentar o número de “sim” às doações de órgãos?
3. BREVE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
3.1 Qualidade em serviços
A qualidade percebida pelo usuário de um serviço é a forma pela qual ele julga aquilo que foi recebido, conforme suas expectativas sobre o que deveria receber, de modo que a percepção da qualidade vai resultar da discrepância (grau e direção do afastamento) entre as expectativas e o efetivamente recebido do fornecedor (Parasuraman et al., 1985, 1988, 1994). A qualidade percebida dos serviços, foco deste caso de ensino, deve ser estrategicamente gerenciada pelas organizações de serviços, principalmente em serviços de alto contato entre cliente e profissionais de linha de frente (Parasuraman et al., 1985, 1988, 1994).
A qualidade percebida dos serviços tem sido amplamente discutida na literatura, principalmente a partir da década de 1980, com a pesquisa de Parasuraman et al. (1985), em que os autores realizaram entrevistas e focus group com gestores e clientes de quatro tipos de serviços – seguradoras, bancos, administradora de cartões de crédito e reparo e manutenção de produtos – para identificar os atributos-chave da qualidade dos serviços, na percepção tanto de gestores como de clientes. Os resultados desse estudo indicaram a existência de dez dimensões da qualidade em serviços, as quais foram posteriormente reduzidas para cinco (Parasuraman et al., 1988, 1994): confiabilidade, presteza, segurança, empatia e tangíveis. Confiabilidade refere-se à habilidade de prestar o serviço de forma confiável e consistente, sem variações indesejadas no desempenho. Presteza refere-se à disposição demonstrada para auxiliar/ajudar os clientes, ser prestativo, atencioso. Segurança diz respeito ao conhecimento/competência demonstrados pelos funcionários, transmitindo segurança e credibilidade. Empatia está relacionada à capacidade dos funcionários de fornecer atenção individualizada, comunicar-se de forma adequada, acolhendo os clientes em suas interações. E tangíveis referem-se aos aspectos físicos visíveis – instalações físicas, equipamentos e aparência dos funcionários. De acordo com Parasuraman et al. (1985, 1988, 1994), estas cinco dimensões são válidas para quaisquer serviços, embora seu escopo possa depender do tipo de serviço.
Para Grönroos (1984), há duas dimensões da qualidade percebida dos serviços: qualidade técnica (o que os clientes recebem do serviço prestado); e qualidade funcional (a forma como o serviço é entregue). Posteriormente, o autor propôs que a qualidade do serviço seja descrita também em termos de profissionalismo e habilidades, atitudes e comportamentos, acessibilidade e flexibilidade, confiabilidade e segurança, recuperação do serviço, servicescape (tangíveis), reputação e credibilidade dos serviços (Grönroos, 2000).
Nos estudos que versam sobre as dimensões da qualidade percebida em serviços de saúde, a comunicação destaca-se em diversos estudos (Berry et al., 2017, Ribeiro e Poles, 2019; Guedes e Araujo, 2020), ressaltando a importância da comunicação individualizada, de acordo com o nível de entendimento de cada paciente e a informação sobre a doença, o diagnóstico e o tratamento. A dimensão empatia também é citada como muito importante em diversos artigos sobre o tema, destacando-se a relevância da atenção dispensada ao paciente. Outro elemento que recebe destaque na literatura é o relacionamento de confiança entre médico-paciente (Ali, 2018, Nieto et al., 2018; Fuentes et al., 2019, entre outros).
Ainda sobre o setor de saúde, Donabedian (1980, 1988) propõe que a qualidade dos serviços de saúde deve ser avaliada a partir de três dimensões: estrutura, processo e resultado. A dimensão estrutura refere-se aos recursos físicos, humanos e materiais disponibilizados; o processo, por sua vez, está relacionado à atividade realizada pelos médicos e profissionais de saúde, envolvendo tanto a competência técnica quanto as relações interpessoais estabelecidas com os pacientes/familiares; por último, os resultados se referem ao resultado clínico da assistência ao paciente, assim como à satisfação dos pacientes e familiares com os serviços recebidos (Donabedian, 1980).
Assim, durante a discussão do caso, caso haja interesse em focar a discussão em serviços de saúde, o professor pode também trazer os elementos apresentados nos parágrafos anteriores, assim como as dimensões propostas por Donabedian (1980) para ser analisada juntamente com as cinco dimensões da qualidade propostas por Parasuraman et al. (1985, 1988, 1994).
3.2 A importância das pessoas na prestação de serviços e na qualidade dos serviços
A Cadeia Serviço-Lucro (SPC) foi proposta por Heskett et al. (1994) e tem inspirado gestores de diversos setores a valorizar os funcionários por seu impacto positivo na qualidade dos serviços e no valor superior entregue aos clientes. De acordo com a SPC, o clima de serviço interno tem um impacto positivo na satisfação, retenção e produtividade dos funcionários. Colaboradores satisfeitos, por sua vez, criam uma experiência positiva e valiosa para os clientes, aumentando sua satisfação e lealdade em relação à instituição. E clientes fiéis estão positivamente associados ao crescimento e lucratividade das empresas, melhorando o desempenho corporativo. Dessa forma, pode-se afirmar que há o chamado “espelho de satisfação”, ou seja, a satisfação dos funcionários é positivamente relacionada à satisfação dos clientes. De acordo com Heskett et al. (1994), o construto clima de serviço interno é composto pelo local de trabalho e design de cargos, seleção e desenvolvimento de funcionários, recompensa e reconhecimento dos funcionários e ferramentas para servir adequadamente os clientes.
Especificamente no setor de saúde, Kaldenberg e Regrut (1999) indicam que orgulho, comunicação e práticas de gestão são antecedentes da satisfação dos funcionários. Além disso, Chang e Wang (2011) destacam que os funcionários devem entender perfeitamente o valor do seu trabalho para serem capazes de entregar valor ao cliente externo. Dentre as consequências do bom clima de serviço no setor de saúde, há o empoderamento do funcionário, definido como motivação intrínseca para realizar as tarefas e ajudar a instituição de saúde a ter sucesso (Guglielmetti, Mugion et al., 2020; Guedes & Araujo, 2020), entregando boas experiências para os pacientes (Chang & Wang, 2011). Portanto, caso o professor decida por discutir os conceitos de Cadeia Serviço-Lucro e Espelho de Satisfação com foco no setor de saúde, pode usar a literatura mencionada no parágrafo anterior.
Segundo Kotler (1998, p. 414), os serviços possuem quatro características distintivas: a) intangibilidade (ainda que possuam elementos palpáveis, como o ambiente físico, os serviços são essencialmente intangíveis); b) inseparabilidade e c) perecibilidade (diferente de um produto físico – que pode ser manufaturado, estocado e transportado sem a presença ou participação do consumidor –, os serviços são prestados pelos profissionais de linha de frente e vivenciados pelos clientes de forma simultânea); d) variabilidade (pelos seus elementos intangíveis e por ser prestado em um processo que envolve a interação humana, os serviços tendem a ser menos uniformes). Por tais características distintivas e, especialmente quando se trata de serviços de saúde – que lidam com a vida humana e envolvem alto nível de interação e confiança entre profissionais e pacientes –, é fundamental que as partes tenham um bom relacionamento e comunicação, e que existam protocolos, critérios ou boas práticas que assegurem um padrão mínimo de qualidade para todos os clientes.
Por último, o conceito de “hora da verdade”, introduzido por Jan Carlzon na década de 80 (Carlzon, 1994), pode também ser objeto de discussão. Hora da verdade é qualquer episódio com o qual o cliente entra em contato com o pessoal de linha de frente e extrai uma percepção positiva ou negativa dos serviços, ocasiões em que a imagem ou percepção da qualidade e valor do serviço é formada pelo cliente. No caso sob análise, há diversas “horas da verdade” a serem exploradas, as quais impactam diretamente a decisão de doar, ou não, os órgãos do falecido.
4. SUGESTÃO DE ABORDAGEM DE ENSINO
Trata-se de um caso em que há decisões gerenciais a serem tomadas, estimulando os alunos a refletirem sobre o problema de gestão da qualidade de serviços de alto contato, a partir de três perspectivas: do contexto em que se dão os serviços – pessoas fragilizadas emocionalmente; dos profissionais que atuam na linha de frente – sobrecarga de trabalho e desgaste emocional; e das dimensões da qualidade percebida dos serviços – confiabilidade, presteza, empatia, segurança e tangíveis (Parasuraman et al., 1985, 1988, 1994).
A sugestão dos autores é que o caso seja discutido utilizando o método do caso, ou seja, nenhuma “teoria” deve ser dada antes de os alunos tentarem identificar os principais focos de problema da abordagem à família de Alfredo e do contexto em que se dá o encontro entre a família e os profissionais de linha de frente. Não será difícil para os alunos identificarem os pontos de falha na abordagem da assistente social à família de Alfredo, a importância dessa interação para o desfecho favorável e as dimensões da qualidade que devem ser trabalhadas para o “sim” das famílias dos potenciais doadores. Caberá ao professor “puxar” dos alunos estas questões/reflexões e organizar os fatores listados para, em seguida, “atacar” cada um dos pontos com as ferramentas adequadas.
Dessa forma, a abordagem de condução da sessão envolve dois momentos: no primeiro, estimula-se que o aluno reflita sobre gestão da qualidade de serviços de saúde e sobre a importância das pessoas de linha de frente; no segundo momento, o professor conduz a turma para a análise aprofundada das questões propostas, com base no que foi trazido pelos alunos e nas cinco dimensões da qualidade em serviços evidenciados por Parasuramanet al. (1985, 1988, 1994), com especial foco à importância das pessoas para a qualidade dos serviços.
Pressupõe-se a preparação extraclasse individual prévia dos alunos.
5. PLANO DE AULA
O tempo total estimado para a aula em que o caso for programado é de 120 minutos, buscando adequar a discussão à duração típica das aulas. Conforme anteriormente mencionado, os alunos devem ter preparado previamente o caso individualmente. Em sala de aula, os primeiros 30 minutos devem ser dedicados à discussão em pequenos grupos. Em seguida, deve ocorrer a discussão plenária – 90 minutos de discussão, distribuídos da seguinte forma:
(1) Abertura da discussão em plenário (10 minutos).
(2) Análise das questões do caso (50 minutos).
(3) Encerramento da discussão plenária (30 minutos) – fechamento da discussão com a apresentação dos conceitos por detrás das discussões.
6. ANÁLISE DO CASO EM PLENÁRIO
6.1 Abertura da discussão do caso em plenário (10 minutos)
Na abertura da discussão (primeiros 10 minutos), o professor pode “aquecer” a turma com perguntas gerais relacionadas ao tema – por exemplo: “Qual a sua opinião sobre doação de órgãos?”; “O que você acha que Joana deveria fazer, doar ou não doar os órgãos de Alfredo?”; “Alguém tem alguma estória para compartilhar sobre doação-transplante de órgãos?”. As respostas dos alunos podem sensibilizar a turma sobre o quanto o tema é delicado e podem suscitar aspectos como: talvez algumas pessoas não gostem de falar ou pensar sobre o assunto; alguns alunos podem trazer experiências pessoais marcantes (conhecer alguém na fila de espera por um transplante; ter vivido a situação de doação de órgão de algum familiar próximo, etc.), compartilhando seus sentimentos e receios.
6.2 Respostas às questões para discussão com suporte da literatura (50 minutos)
Q1. Como você avalia a qualidade dos serviços de saúde recebidos por Alfredo e sua família em relação à estrutura do hospital, aos processos de cuidado, e aos resultados das interações?
Essa questão pode ser abordada na ótica das três dimensões de Donabedian para avaliação da qualidade dos serviços de saúde: estrutura, processo, resultado. O relato do caso pode levar os alunos a ilustrar os aspectos da estrutura física do hospital (como a pintura descascando, as cadeiras quebradas, etc.), ao processo de atenção aos pacientes e seus familiares (com profissionais de saúde que passam em ritmo acelerado pelos pacientes, ou da abordagem aparentemente ríspida nas comunicações sobre as vagas de leitos de UTI e sobre o falecimento do paciente), e aos resultados obtidos a partir dessas interações (em que é possível que os alunos reflitam sobre o stress transparecido pelos familiares, sua percepção de qualidade dos serviços e suporte/acolhimento prestado pelos profissionais, o potencial impacto desses fatores na decisão de doar).
Q2. Se estivesse no lugar de um membro da família, qual seria a sua percepção de qualidade sobre a abordagem utilizada pelos profissionais para informar do falecimento de Alfredo e do direito da família à doação de órgãos? Por quê?
O objetivo dessa questão é levantar reflexões sobre a relação estabelecida entre os profissionais de linha de frente e a família do falecido, tendo como foco de análise as dimensões da qualidade percebida em serviços (Parasuraman et al., 1985, 1988, 1994). O relato do caso pode levar os alunos a fazerem comentários relacionados a: “falta de empatia”; “parecia não se importar com o falecido”; “falta de sensibilidade”; “burocrática”; “momento ruim para abordar”; “descaso”; “indiferença”, etc. O professor deve anotar os termos-chave dos comentários dos alunos, tendo em vista as dimensões da qualidade dos serviços que pretende discutir, principalmente as dimensões empatia e presteza.
Caso os alunos não tragam comentários suficientes para a discussão, o professor pode fazer as seguintes transitionquestions (TQ):
TQ1.1: Vocês acham que os profissionais que entraram em contato com a família de Alfredo foram solidários? Por quê?
Esta pergunta visa a estimular a reflexão sobre se as dimensões empatia e presteza dos profissionais que se relacionaram com a família do Alfredo, ressaltando a importância da comunicação na relação entre os familiares e os profissionais de linha de frente.
TQ2: Vocês acham que os profissionais souberam explicar a morte encefálica para a família de Alfredo?
Esta pergunta visa a estimular a reflexão sobre as dimensões segurança e confiabilidade na qualidade dos serviços.
Após ter colocado no quadro os termos-chave dos comentários dos alunos, o professor deve começar a agrupá-los nas dimensões da qualidade percebida dos serviços. Assim, ao final da discussão dessas questões, os alunos terão no quadro, escrito em destaque, as dimensões da qualidade em serviços, especialmente as dimensões empatia, presteza, segurança, confiabilidade.
Q3. Em sua avaliação, qual o “momento-chave” nas interações com a família de Alfredo, e o que deveria ter sido feito de diferente na abordagem de Carmem?
Essa questão se conecta com o conceito de “hora da verdade” na prestação de serviços, com ênfase na interação dos clientes (nesse caso, os pacientes e suas famílias) com a linha de frente (profissionais de saúde). Ao apontar o que deveria ter sido feito de diferente na abordagem de Carmem, é provável que os alunos ilustrem, na prática, o conceito de “hora da verdade”, momento-chave que ajuda o cliente – nesse caso, a família de Alfredo – a construir a percepção positiva ou negativa do serviço prestado. Por exemplo, a fala de Joana (“Como assim doar os órgãos? Ele está vivo! Você está maluca? Acabei de vê-lo dormindo e respirando! Seu coração está batendo. Que papo é esse?”) pode sugerir que o momento para a comunicação sobre a doação de órgãos não foi o mais adequado, dado que não houve o tempo para que a família processasse a impactante notícia do falecimento e tirasse suas dúvidas sobre o conceito e a irreversibilidade da morte encefálica.
Q4. Qual o papel desempenhado pelos profissionais que atuam no hospital na abordagem às famílias dos potenciais doadores de órgãos, e qual a influência do contexto de trabalho desses profissionais (carga-horária, remuneração, etc.)?
Esta pergunta visa a estimular a reflexão sobre a importância dos profissionais que atuam na linha de frente, em contato com o cliente, no caso, em contato com as famílias dos potenciais doadores de órgãos. Da mesma forma, o professor deve anotar no quadro os principais elementos trazidos pelos alunos na discussão. O professor deve conseguir extrair elementos que permitam discutir os seguintes aspectos:
- os funcionários de linha de frente são a “marca viva” dos serviços – são eles que vão tangibilizar a qualidade (ou a falta de qualidade) dos serviços prestados pela instituição.
- os funcionários de linha de frente são a “memória” do serviço – o que ficará na memória da família de Alfredo será este contato que ela teve com os profissionais de linha de frente. Memórias positivas só serão evocadas, se os profissionais de linha de frente tiverem entregado um bom serviço, empático, prestativo, acolhedor.
- os funcionários de linha de frente podem criar ou destruir valor durante os “momentos da verdade” (Carlzon, 1994) – momentos da verdade são todo contato do cliente com o serviço, levando-o a ter uma impressão positiva ou negativa dos serviços recebidos. Uma experiência positiva cria valor para os clientes; uma experiência negativa, destrói valor.
Também permite um gancho para a discussão do conceito de “espelho de satisfação” entre os profissionais de saúde e os pacientes/familiares por eles atendidos. Algumas informações relatadas no caso (como a fala do médico Felipe: “Noites mal dormidas e plantões mal pagos. É o que se ganha por ter escolhido clínica médica...”), podem levar os alunos a refletir sobre o impacto da satisfação do cliente interno (os funcionários) na satisfação dos clientes com os serviços prestados.
Caso precisem de um estímulo, o professor pode fazer a seguinte transition question:
TQ1: Se vocês estivessem no lugar da Joana, vocês doariam os órgãos do Alfredo? Por quê?
Esta pergunta visa a estimular ainda mais a reflexão sobre o quão bem ou malfeita foi a abordagem à família do Alfredo, de tal forma a dar subsídios para a discussão dos conceitos de Cadeia Serviço-Lucro e Espelho de Satisfação.
O professor traz conceitos da Cadeia Serviço-Lucro, colocando o foco de discussão na importância de ter funcionários motivados, bem treinados, valorizados e satisfeitos para poder criar boas experiências e valor para os clientes. Aqui, cabe discutir o conceito de Espelho de Satisfação: em serviços de alto contato, funcionários (in)satisfeitos geram clientes (in)satisfeitos. O relato do caso deixa claro que os profissionais de linha de frente estão sobrecarregados, emocionalmente desgastados, cansados. Assim, é difícil ter uma boa interação com os familiares de potenciais doadores.
Portanto, o professor deve desenhar no quadro, de forma simplificada, a Cadeia Serviço-Lucro e relacionar com os comentários dos alunos, instigando-os a discutir se as interações criaram ou destruíram valor para a família de Alfredo.
Ao finalizar a discussão desta pergunta, portanto, o professor deve ter explicitado o quão importante é valorizar os funcionários de linha de frente para ter sucesso em serviços de alto contato.
Q5. Os serviços, em especial os de saúde, possuem características intrínsecas e que requerem alto grau de interação provedor-paciente. Nesse contexto, que fatores podem ter influenciado a decisão da família de doar, ou não, os órgãos de Alfredo?
A penúltima questão remete às características distintivas dos serviços (intangibilidade, inseparabilidade, perecibilidade, variabilidade), que tornam ainda mais relevantes a adequada interação e a comunicação entre os profissionais de saúde e os pacientes/familiares. Por exemplo, os pacientes não detêm todas as informações necessárias para julgar, de forma técnica, a adequabilidade dos cuidados de terapia intensiva recebidos por Alfredo, ou a confiabilidade do processo diagnóstico da morte encefálica. Por se tratar de um serviço baseado na interação humana (entre profissionais com pacientes e seus familiares), é fundamental que a linha de frente busque tangibilizar a qualidade do cuidado, por meio da adequada informação aos familiares (por exemplo, que procedimentos, medicamentos ou exames estavam ao alcance e foram feitos para salvar a vida de Alfredo, e os resultados obtidos dentro do esperado para a situação de saúde na qual o paciente chegou ao hospital), e, se tratando de uma situação delicada, assegurar o devido suporte emocional e acolhimento familiar no momento de comunicação do falecimento do ente querido.
Nessa altura, o quadro já deve estar bastante cheio de informações. Esta pergunta ajudará a reforçar os elementos já mencionados – que devem ser realçados no quadro pelo professor, na medida em que vão ressurgindo na discussão (sublinhados, por exemplo). Além disso, esta pergunta permite que outros elementos entrem na discussão, como, por exemplo, a importância dos tangíveis (não ter lugar para se sentar, cheiro de hospital, pessoas passando, falta de privacidade). A dimensão tangível talvez ainda não tenha aparecido na discussão e deve ser discutida neste momento.
Outros elementos que devem surgir para completar a discussão: falta de confiança no hospital (medo de darem Alfredo por morto para retirar seus órgãos), relações anteriores à morte de Alfredo impactando a decisão de não doar – o caso traz reclamações de Joana sobre a falta de informações e de atenção durante o período que Alfredo esteve internado.
Caso o professor precise estimular o debate, pode fazer a seguinte transition question (TQ):
TQ1: Como foi a experiência da família de Alfredo no hospital durante o período em que ele esteve internado?
Os alunos devem trazer algumas queixas de Joana, que servirão de base para discutir a importância do relacionamento com os clientes, principalmente em serviços de alto contato e longa duração. São vários os “momentos da verdade” que vão formando a imagem dos clientes em relação à instituição: é confiável? Passa segurança? São prestativos? São empáticos?
Q6. O que Jorge deveria fazer para aumentar o número de “sim” às doações de órgãos?
A última pergunta para discussão visa a recapitular as falhas ou pontos de melhoria percebidos ao longo da leitura e discussão do caso, transformando tais falhas em ações propositivas para a melhor gestão e qualidade dos processos de doação de órgãos. Também tem como intuito estimular os alunos a se colocarem no lugar de Jorge, agora que eles têm uma visão mais clara dos elementos que compõem a qualidade em serviços e da importância dos profissionais de linha de frente para criar valor para os clientes. Espera-se que os alunos tragam elementos da cadeia serviço-lucro para essa discussão e proponham: treinar os profissionais de linha de frente; valorizar estes profissionais; dar significado à tarefa de trabalhar com doação de órgãos.
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