FÉ NOS UNICÓRNIOS: SACRALIZAÇÃO E DISCURSOS REDENTIVOS SOBRE O MUNDO SIMBÓLICO DAS STARTUPS À LUZ DE WEBER

FAITH IN UNICORNS: SACRALIZATION AND REDEMPTIVE DISCOURSES ON THE SYMBOLIC WORLD OF STARTUPS IN LIGHT OF WEBER

FE EN LOS UNICORNIOS: SACRALIZACIÓN Y DISCURSOS REDENTORES EN EL MUNDO SIMBÓLICO DE LAS STARTUPS A LA LUZ DE WEBER

EDUARDO CARNEIRO LIMA
Universidade de Lisboa, Portugal
VITOR SÉRGIO FERREIRA
Universidade de Lisbo, Portugal
YTALLO KASSIO FRANCO DE SOUZA
Universidade de Lisboa, Portugal

FÉ NOS UNICÓRNIOS: SACRALIZAÇÃO E DISCURSOS REDENTIVOS SOBRE O MUNDO SIMBÓLICO DAS STARTUPS À LUZ DE WEBER

Revista Alcance, vol. 29, núm. 3, pp. 375-386, 2022

Universidade do Vale do Itajaí

Recepción: 30/11/2021

Aprobación: 05/10/2022

Resumo: Objetivo. Explorar algumas das configurações simbólicas investidas sobre as startups. De forma específica, buscamos (i) resgatar as bases fundamentais de perspectivas e concepções sócio-históricas weberianas sobre o capitalismo e o espírito empreendedor para, metaforicamente, (ii) analisar a prossecução de um ethos particular orientado por marcadores simbólicos sobre o mundo das startups, tomando como referência contextual os discursos atuais da corrente do empreendedorismo redentivo que, supostamente, emparelham-se com algumas das observações de Weber.

Design/metodologia/abordagem. A abordagem weberiana abre-nos o olhar para novas possibilidades de compreensão das startups, especialmente ao supor que as discussões realizadas sobre estas organizações nestas disciplinas parecem ser atravessadas pela construção de narrativas proféticas e messiânicas em torno do papel social das startups e das vidas dos CEOs, sendo essa uma perspectiva pouco explorada pela academia. Resultados. Destacamos que (i) nem tudo é tão perfeito quanto parece ser no mundo das startups, por mais que essa corrente preconize ações que tentam refletir mais da bondade divina e a criação de uma atmosfera de celebração constante, de práticas vitoriosas e de uma fraternidade transformadora; (ii) os conceitos da corrente ligada ao empreendedorismo redentivo se aproximam das observações weberianas; e, por fim, (iii) a suspeita de que outras configurações simbólicas podem estar incorporadas nos discursos dos agentes integrantes dos ecossistemas de inovação.

Originalidade/valor. Está no fato de termos conseguido pensar as startups como um fenômeno social a partir da abordagem weberiana.

Palavras-chave: Empreendedorismo redentivo, Liderança carismática, Espírito empreendedor, Startups.

Abstract: Objective. The aim of this essay is to explore some of the symbolic configurations invested on startups. Specifically, we seek to (i) rescue the fundamental bases of Weberian perspectives and socio-historical conceptions about capitalism and entrepreneurship in order to metaphorically (ii) analyze the pursuit of a particular ethos guided by symbolic markers about the world of startups, taking as contextual reference the current discourses of the redemptive entrepreneurship current that supposedly pair with some of Weber's observations.

Design/method/perspective. The Weberian approach opens our eyes to new possibilities for understanding startups, especially by supposing that the discussions held about these organizations in these disciplines seem to be crossed by the construction of prophetic and messianic narratives around the social role of startups and the lives of CEOs, this being a perspective little explored by academia.

Results. We highlight that (i) not everything is as perfect as it seems to be in the world of startups, even though this current advocates actions that try to reflect more of the divine goodness and the creation of an atmosphere of constant celebration, victorious practices, and a transforming fraternity; (ii) the concepts of the current linked to redemptive entrepreneurship are close to Weberian observations; and, finally, (iii) the suspicion that other symbolic configurations may be incorporated in the discourses of the agents integrating innovation ecosystems. Originalidade/valor. This essay lies in the fact that we have managed to think of startups as a social phenomenon from the Weberian approach.

Keywords: Redemptive entrepreneurship, Charismatic leadership, Entrepreneurial spirit, Startups.

Resumen: Objetivo. Explorar algunas de las configuraciones simbólicas invertidas en las startups. Específicamente, buscamos (i) rescatar las bases fundamentales de las perspectivas weberianas y las concepciones socio-históricas sobre el capitalismo y el emprendimiento para, metafóricamente, (ii) analizar la búsqueda de un ethos particular guiado por marcadores simbólicos sobre el mundo de las startups, tomando como referencia contextual los discursos de la corriente del emprendimiento redentor que, supuestamente, maridan con algunas de las observaciones de Weber.

Diseño/metodología/enfoque. Weberiano nos abre los ojos a nuevas posibilidades de comprensión de las startups, sobre todo al suponer que las discusiones que se mantienen sobre estas organizaciones en estas disciplinas parecen estar atravesadas por la construcción de narrativas proféticas y mesiánicas en torno al rol social de las startups y la vida de los CEOs, siendo esta una perspectiva poco explorada por la academia.

Resultados. Destacamos que (i) no todo es tan perfecto como parece en el mundo de las startups, aunque esta corriente aboga por acciones que intentan reflejar más la bondad divina y la creación de un ambiente de celebración constante, de prácticas victoriosas y de fraternidad transformadora; (ii) los conceptos de la corriente ligados al emprendimiento redentor se acercan a las observaciones weberianas; y, finalmente, (iii) la sospecha de que otras configuraciones simbólicas pueden ser incorporadas en los discursos de los agentes que integran los ecosistemas de innovación.

Originalidad/valor. Radica en que hemos conseguido pensar en las startups como un fenómeno social desde el enfoque weberiano.

Palabras clave: Emprendimiento Redentor, Liderazgo carismático, Espíritu emprendedor, Startups.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO E REFLEXÕES INICIAIS

Os modelos de negócios considerados mais inovadores e ditos disruptivos ganharam força na década de 1990 com a emergência das tecnologias de comunicação e informação (Castells, 2003) e a consequente explosão de organizações do tipo startups[i] na região da Califórnia, especificamente no Vale do Silício, berço de grandes empresas tecnológicas, como Amazon, Facebook, Google, Uber, AirBnb, Netflix, Whatsapp entre outras. O crescimento acelerado e globalmente escalar dessas empresas alargou o interesse de diferentes agentes institucionais e empresariais em torno das startups no mundo, nomeadamente nos chamados “ecossistemas de inovação[ii]”. Nesse sentido, temos percebido a construção de algumas narrativas com apelo simbólico sobre a criação de startups em garagens para serem os próximos unicórnios[iii], a (re)produção de trajetórias duras e homogeneizantes de líderes considerados “de sucesso” e a valorização das performances dos startuppers(Maia, 2019) – que são os principais idealizadores de startups – como empreendedores de si e orientados pelo próprio desempenho, reforçando a lógica neoliberal que responsabiliza o sujeito pelo sucesso-fracasso dos negócios (Mazzucato, 2014; 2020).

O empreendedorismo, por meio dessas organizações, tem recebido atenção especial da economia, gestão, política e tecnologia, mas pouco problematizado do ponto de vista social e sociológico. E é aqui que pretendemos contribuir para a produção de conhecimento sobre esse fenômeno, especialmente ao supor que as discussões realizadas nessas disciplinas parecem ser atravessadas pela construção de narrativas proféticas e messiânicas em torno do papel social das startupse das vidas dos CEOs. Em “Faça acontecer: a política da busca por autorrealização em empresas startups no Brasil e Reino Unido”, Faria (2020) identificou a construção de narrativas simbólicas e proféticas[iv] em torno dessas organizações que convivem em uma atmosfera de celebração constante e que tem o sucesso atrelado à força de vontade dos seus idealizadores, refletindo no que parece ser o exercício de um ethos particular, ordenado, em grande medida, por uma ética da positividade, da colaboração, do misticismo e da profusão de frases de efeito, como “vai dar certo”, “foguete não tem ré”, “faturar acima de tudo”. A glamourização de práticas culturais e organizacionais de startups estabelecidas como unicórnios, também contribui para a reprodução simbólica e social de narrativas homogeneizantes sobre as vidas de líderes e de organizações considerados “de sucesso” (Lima & Ferreira, 2022).

Há, no entanto, indícios de que essas atuais dinâmicas carregam aspectos anteriormente percebidos na própria história do desenvolvimento do capitalismo e do empreendedorismo, marcando nosso ponto de partida e recorte analítico para a reflexão e construção deste ensaio sobre alguns dos aspectos do mundo simbólico das startups. De forma específica, a ideia deste ensaio foi evidenciada durante o processo de construção do estado da arte de uma pesquisa maior sobre o fenômeno das startups, onde encontramos discursos simbólicos carregados por marcadores religiosos, além das vivências dos autores com startups e startuppers[v]. Para nós, pode ser simbólico “um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente [...]. É simbólico quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato” (Jung, 2002, p. 20).

Ainda sobre a relevância das práticas empreendedoras nas agendas de pesquisadores organizacionais, econômicos e tecnológicos em comparação aos interesses de sociólogos, no Brasil, utilizando apenas para exemplificar essa ideia, uma busca pelos termos “sociologia” AND “empreendedorismo” no banco de dados de periódicos da Capes retornou o total de 285 (duzentos e oitenta e cinco) artigos publicados nos últimos 05 (cinco) anos, de 2017 a 2021, número ainda menor no contexto específico das startups. Fizemos, ainda, a mesma busca na base de dados do Google Scholar e Scielo para tentar perceber esta mesma relação contextual nas publicações em inglês de 2017 a 2021. Ou seja, buscamos pelos termos “sociology” AND “entrepreneurship” nos títulos e resumos de artigos, retornando, no caso do Google Scholar, o total de 19 (dezenove) publicações e, no caso do Scielo, o total de 04 (quatro) artigos publicados, e em nenhum dos casos há o interesse pelos temas startups no contexto de marcadores religiosos. Realizamos, ainda nessas mesmas bases de dados, uma busca pelos termos “Weber” OR “Weberiano” AND “Startups”, retornando o artigo “COMO AS START-UPS CRESCEM? Performances e discursos de empreendedores à procura de capital”, do autor Marcel Maggion Maia, utilizado como uma das referências-chave deste ensaio.

Essa aparente elasticidade multidisciplinar e baixa produção sociológica sobre o fenômeno das startups para além das questões organizacionais e econômicas, por exemplo, é o que nos motiva a produzir este ensaio teórico e resgatar as perspectivas e concepções sócio-históricas de autores considerados clássicos nas ciências sociais, nesse caso Weber, para, ainda que metaforicamente, refletir sobre o mundo simbólico das startups como se estivéssemos dentro de uma oficina experiencial e reflexiva de conexões improváveis, especialmente por se tratar de um fenômeno contemporâneo (Bertero, 2011).

A investigação foi conduzida e orientada por meio do objetivo principal de explorar algumas das configurações simbólicas investidas sobre as startups. De forma específica, buscamos (i) resgatar as bases fundamentais de perspectivas e concepções sócio-históricas weberianas sobre o capitalismo e o espírito empreendedor para, metaforicamente, (ii) analisar a prossecução de um ethos particular orientado por marcadores simbólicos sobre o mundo das startups, tomando como referência contextual os discursos atuais da corrente do empreendedorismo redentivo que, supostamente, emparelham-se com algumas das observações de Weber. Destacamos, ainda, que a construção deste ensaio teórico foge à forma comum de produção científica tida mais positivista, ou seja, assumimos a liberdade de criar uma estética própria neste ensaio, bordando fios de conexões improváveis entre um tema tão atual, a partir da base histórica-teórica weberiana.

Voltando aos discursos da corrente do empreendedorismo redentivo, os defensores argumentam que o futuro das organizações e da cultura empreendedora depende de uma próxima geração de empreendedores mais conscientes, atraindo os futuros e potenciais startuppers pelo viés simbólico-religioso como prática necessária para a sustentabilidade dos negócios e da sociedade (Praxis, 2017). Faz sentido, então, buscarmos em Weber algumas de suas principais observações acerca da ética do trabalho, da liderança carismática e do espírito empreendedor para, metaforicamente, ajudar-nos a compreender algumas das construções simbólicas em torno das startups nos dias de hoje.

A dita aproximação com as obras weberianas se configura para o mundo das organizações como lugar interdisciplinar de trânsito e de produção de conhecimento crítico-reflexivo, mas, em grande medida, prático, uma vez que o autor se dedicou à compreensão da ética do trabalho, da liderança carismática, do espírito empreendedor e da própria racionalidade do trabalho. Pretendemos avançar em termos das fronteiras interdisciplinares no âmbito dos estudos organizacionais e dos indivíduos, despertando os pesquisadores para a importância da problematização sociológica de fenômenos como uma tentativa de considerar suas complexidades, subjetividades e, também, para capturar outros aspectos que ultrapassam os limites das próprias organizações, da economia, da tecnologia. Como mencionado, a escolha pelas obras weberianas é uma das possibilidades investigativas para, ainda que simbolicamente, refletir, aprofundar o olhar e produzir conhecimento sobre as startups a partir do que identificamos como práticas e discursos orientados por marcadores simbólicos na contemporaneidade.

Por mais que Weber tenha suprimido de suas análises a compreensão sobre o prelúdio capitalista – a fase protocapitalista – consideramos, especialmente para o desenvolvimento deste ensaio, o que o autor discorreu no livro “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo” que trata da conduta econômica e de suas raízes religiosas numa perspectiva de classe, em especial na Alemanha, e associa o desenvolvimento econômico e social do mundo moderno ao protestantismo, sendo essas as principais ligações que nos interessam. Para ele, a fé e a ética protestante dos fiéis contribuíram para o desenvolvimento do capitalismo e de um espírito empreendedor que impulsionou a economia ocidental, notadamente em relação às atitudes de devotamento ao trabalho em afeição à ordem religiosa. Nesse sentido, até que ponto os discursos redentivos conservam a ação e o espírito empreendedor ordenados por uma ética religiosa – tal como observado por Weber? Em que medida eles impactam nas construções idealizadas do mundo simbólico das startups? São questões que se colocam e nos fazem supor o que parece ser a prossecução do pensamento weberiano através dos discursos de uma corrente ideológica ligada a um tipo específico de “fazer-empreendedorismo”, qual seja o redentivo, figurando em sua base a salvação dos fiéis vocacionados para a preservação de uma ética religiosa nos negócios e para a transformação de realidades individuais e sociais (Praxis, 2017). Essa abordagem parece reforçar as idealizações de mundo das startups pautadas, por exemplo, no sucesso, na prosperidade financeira, na celebração constante de uma positividade de que vão vencer na jornada empreendedora, no compartilhamento de informações, na colaboração como regra geral e na glamourização de suas práticas.

Considerando as questões discutidas nesta breve nota introdutória, este ensaio teórico está organizado, primeiramente, em torno de reflexões e articulações entre o que discorreu Weber em suas principais obras (1999; 2001; 2008; 2011; 2013) acerca da ética do trabalho, da liderança carismática e do espírito empreendedor que moldaram as práticas empreendedoras; da lógica vocacional que, segundo os desígnios de Deus, orientava os fiéis quanto à aceitação e à devoção das atividades laborais; e da atmosfera religiosa que parecia ordenar o trabalho dos sujeitos de sua época. De forma secundária, e transportados para o contexto presente, o ensaio apresenta os discursos redentivos que parecem mobilizar “novos fiéis” para a execução de um tipo específico de “fazer-empreendedorismo” que preserva um ethos particular ordenado por uma ética da positividade, da colaboração, do misticismo e da profusão de frases de efeito nos negócios e, ao mesmo tempo, parecem contribuir para a idealização do mundo simbólico das startups. Por fim, exibe três sínteses reflexivas que poderão ser transformadas em pressupostos para investigações futuras.

2. TECENDO CAMINHOS SOBRE A ÉTICA DO TRABALHO E O ESPÍRITO EMPREENDEDOR EM WEBER

Segundo Max Weber ([1905]2013)[vi], o aumento de atividades ligadas a empréstimos de todos os tipos, financiamentos marítimos e de guerras, pirataria, contratos e obras de grandes edificações despertava o mundo para práticas econômicas, até então, não vistas no século XVI, e hoje tidas como empreendedoras. Já eram considerados “aventureiros” os empreendedores coloniais que se valiam da potência de suas atividades para explorar as terras e a força de trabalho escrava, dando forma a um tipo de capitalismo cada vez mais envolvido com aquisições, especulações, aproveitamentos, combates e explorações. Mas Weber quis pensar o capitalismo não apenas do ponto de vista econômico, do seu impulso de aquisição, do ganho da maior quantidade de dinheiro ou da “persecução do lucro e lucro eternamente renovado” ([1905]2013, p. 17). O autor buscou também compreender esse sistema numa perspectiva de classe e de filiação religiosa, começando por identificar que na Alemanha a maior parte dos “líderes empresariais e detentores do capital, assim como os trabalhadores com maiores níveis de qualificação, e tanto mais o pessoal das empresas modernas” eram protestantes, justificando o seu interesse sobre esse fenômeno social ([1905]2013, p. 33).

Aprofundando o olhar, Weber percebeu esses mesmos movimentos em outros contextos, como entre os poloneses, em que as peculiaridades mentais e espirituais absorvidas pelos fiéis por meio da educação religiosa também determinavam suas escolhas profissionais e de carreira. O autor destaca que o maior número de fiéis-protestantes em relação ao de católicos, em ocupações técnicas nas fábricas, se dava por obediência, dos primeiros, a uma vocação divina à atividade laboral e, os segundos, a um maior interesse por atividades humanísticas, voluntárias e carismáticas. Weber argumenta que foram esses mesmos fiéis-protestantes os que primeiro “apresentaram uma tendência especial ao desenvolvimento de um racionalismo econômico” ([1905]2013, p. 37), indicando “uma forma muito peculiar de capitalismo que não surgiu em nenhum outro lugar: a organização capitalista racional do trabalho [formalmente] livre” ([1905]2013, p. 20), notadamente nas plantações e nos feudos, com a especialização das oficinas senhoriais, os trabalhos domésticos organizados e a separação do que se entendia sobre negócio e vida privada, inclusive do ponto de vista espacial do local de trabalho e da residência. Cabe, aqui, reforçar que não pretendemos levantar suspeitas sobre as crenças ideológicas-religiosas em nenhum dos contextos abordados, mas avançar em termos das influências de suas práticas a respeito dessa aparente organização do mundo da vida como um todo pela ordenação e desígnios religiosos.

Deixamo-nos, então, afetar pelas noções weberianas de um espírito moral, ou ethos, que justifica, em boa medida, a racionalização do trabalho no contexto específico em que o autor produziu a sua obra e, de igual modo, o que discorreu a respeito da existência de práticas e vivências de um espírito empreendedor que reagia ao tradicionalismo econômico. Weber tentava fugir das definições demasiado abstratas e, por isso, utilizou algumas referências de Benjamin Franklin para interpretar as bases do “espírito do capitalismo organizado e racional”, tais como: “lembre-se que tempo é dinheiro”; “dinheiro pode gerar dinheiro”; “o bom pagador terá sempre crédito”, “quanto mais dele houver, mais ele produz”; “aquele que gasta [...]”; “aquele que desperdiça no ócio [...]”; “aquele que perde seu tempo [...]” ([1905]2013, p. 53-54). Para ele, os preceitos de Franklin são como retratos de uma moralidade dos trabalhadores em seus ofícios e vê como principal mandamento desse espírito empreendedor o trabalho árduo, o esgotamento das energias dos trabalhadores para ganhar o máximo de dinheiro possível e reinvesti-lo nos empreendimentos para produzir mais lucro.

Apesar do tema empreendedorismo não ser central nas investigações de Weber, é por meio da sua capacidade de considerar as complexidades, as conexões e as múltiplas interpretações de um mesmo fenômeno que nos ajuda a identificar, com certo destaque, a figura sedutora do capitalista que ganhava e reinvestia a maior parte do seu dinheiro para acelerar o crescimento da sua empresa. Vale a lógica do trabalho pelo trabalho e, ao que parece, o sujeito moderno continua carregando essas características no mundo dos negócios, conjugando a racionalidade econômica e um espírito que privilegia os próprios interesses, de modo a alcançar o sucesso de seus empreendimentos. Nesse sentido, somos conduzidos a prosseguir pelas tensões conceituais weberianas a respeito do capitalismo moderno e sobre o que se pensa dessa lógica de trabalho que produz apenas o necessário para si, mas que privilegia a produção de capital para o progresso dos negócios e o aumento dos lucros (Santiago, 2009; Martes, 2010).

Nesse contexto, Weber foi detalhista ao discorrer sobre outros aspectos ligados a essa forma de vida com base na ética religiosa desse tipo ideal de empreendedor capitalista que, apesar de superar os negócios considerados tradicionais e ter o sucesso como foco,

“não tem relação [apenas] com esses arrivistas mais ou menos refinados. Ele evita a ostentação e as despesas desnecessárias, bem como o desfrute consciente de seu poder, e sente-se embaraçado com os sinais externos de reconhecimento social que recebe. Seu modo de vida é, em outras palavras, comumente, e devemos investigar o significado histórico de tal importante fato, distinguido por uma determinada tendência ascética, da forma como citamos anteriormente. [...] Ele não tira nada para si mesmo de sua riqueza, exceto o senso irracional de ter cumprido seu dever” ([1905]2013, p. 72).

Essa perspectiva faz ainda mais sentido, se considerarmos que o sistema capitalista precisa dessa devoção ao trabalho para continuar a produzir mais lucro. Por aí, o único “modo de vida aceitável para Deus não era superar a moralidade mundana, [...], mas somente pelo cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo por sua posição no mundo. Essa era sua vocação” ([1905]2013, p. 96). O protestantismo da época motivou uma ética do trabalho pautada na vida racional, metódica, regrada, que negava os sentimentos mundanos e as paixões carnais e defendia o trabalho como fonte de dignidade da existência, o trabalho pelo trabalho, a carreira como um dever e a excelência das atividades laborais como justificação da sua própria salvação.

As ações desses trabalhadores eram direcionadas para um fim principal: a salvação eterna, baseada numa “humildade penitente e crença fiel na palavra de Deus e nos sacramentos” ([1905]2013, p. 133). Essa ação profundamente racionalizada, atrelada às vivências de sujeitos que deveriam, obrigatoriamente, seguir seus planos vocacionais e cumprir o que era determinado a eles, mobilizou algumas das práticas subversivas nesse mundo desencantado de “eliminação da mágica enquanto meio de salvação” ([1905]2013, p. 145), quando muitos se perceberam diante de uma realidade dura de enfrentar e superar. Um modo de vida estimulado e pautado pelo avanço da burocratização, da previsibilidade e do controle de suas relações sociais, simbolicamente dentro de um enquadramento existencial pouco heterogêneo, uma jaula de ferro, como sugere o autor, caracterizando esse desencantamento do mundo, a partir de práticas que inibiam suas capacidades criativas e desejos, por vezes, silenciados.

É aqui que identificamos outros nós contextuais entre Weber e a corrente do empreendedorismo redentivo, nomeadamente sobre a aparente “dupla condição” das narrativas dos defensores dessa abordagem. Primeiramente, partimos do que parece ser a prossecução do pensamento weberiano acerca da ação empreendedora do sujeito envolvido e preocupado em atender aos desígnios vocacionais de um trabalho orientado pela fraternidade, divindade e, especialmente, pela transformação dos contextos individuais e sociais por caminhos marcadamente simbólicos-religiosos nos negócios. E, secundariamente, supomos que os discursos redentivos podem funcionar como “antinarrativas” sobre alguns dos preceitos neoliberais que defendem o sujeito do desempenho e que produz para si, partindo de uma das principais premissas dessa corrente, qual seja a de colocar os interesses dos outros em desfavor dos seus próprios e da execução de um tipo de empreendedorismo orientado por uma ética religiosa e não somente econômica (Praxis, 2017).

De qualquer modo, a corrente redentiva parece colocar disponível aos sujeitos uma nova forma de salvação de si, do outro e do mundo através de uma prescrição laboral baseada num ordenamento religioso salvacionista no contexto do empreendedorismo. Além das aparentes contribuições para a idealização do mundo simbólico das startups, essa abordagem também parece se aproximar das novas formas do capitalismo na sociedade contemporânea (Boltanski & Chiapello, 2009; Sennett, 2019), bem como do que Henrekson et al. (2010) e Shane (2009) observaram sobre o papel do Estado que tende a estimular a criação em massa de startups como salvação para a recuperação econômica e social de uma região, sem considerar aspectos menos orientados pela lógica da oportunidade-necessidade que circunscreve o empreendedorismo (Williams & Williams, 2014). Shane (2009) sugere, ainda, que considerar as startups como salvação econômica e social sem ponderar outros critérios, pode ser perigoso para o desenvolvimento de políticas públicas falhas e a consequente má utilização de recursos públicos.

2.1 UMA BREVE PARAGEM PARA REFLETIR SOBRE A LÓGICA VOCACIONAL WEBERIANA

Weber sugere que somente após a tradução bíblica e interpretações de Lutero é que o trabalho passou a ser fortemente tomado por concepções religiosas e vocacionais, tornando-se, em grande medida, um chamamento divino que, nesses termos, era mais percebido em culturas protestantes do que em católicas ou em outras religiões. Para Weber, era evidente essa domesticação da vida do trabalhador como condição substancial de todos aqueles que seguiam seu plano vocacional – ou, pelo menos, daqueles que o respeitavam à risca –, supervalorizando o “cumprimento do dever em afazeres mundanos como a forma mais elevada que a moral dos indivíduos poderia assumir” ([1905]2013, p. 96), ou seja, atribuindo um olhar religioso às atividades mais cotidianas da vida. Nesse sentido, Weber afirma que:

“o trabalho dentro da vocação mundana aparece para ele como a expressão exterior do amor fraternal. Isso ele prova pela observação de que a divisão do trabalho força cada indivíduo a trabalhar para os outros. [...] o cumprimento do dever mundano é sob todas as circunstâncias o único modo de vida aceitável para Deus. Isso por si só é a vontade de Deus, [...] e, desse modo, toda profissão legítima possui o mesmo valor diante dos olhos de Deus” ([1905]2013, p. 97).

Era devido aos fiéis, ainda segundo o autor, aceitar o que era predestinado a eles, refletindo em ações de conformismo e permanência em suas ocupações laborais. Mas, ainda assim, a não incorporação desses pensamentos em sua totalidade pelos fiéis foi o que os mobilizou a valorizar o ganho material para além de suas necessidades pessoais à medida que se aproximavam dos prazeres mundanos.

E para lidar com tais tentações, Weber passou a observar práticas com forte apelo para os elementos da “graça” e da “providência” como forma de combater tais prazeres considerados corruptíveis. O que o protestantismo da época defendia, segundo o autor, é que “o indivíduo deveria permanecer, de uma vez por todas, na posição e na profissão na qual Deus o houvesse posto e deveria restringir sua atividade mundana dentro dos limites impostos por sua posição estabelecida na vida” ([1905]2013, p. 100), já que a simples obediência resultaria na providência de suas necessidades. Não era necessário corromper seus atos para alcançar a graça divina, esperava-se apenas a conformação e a obediência.

Esta era uma lógica que contribuía para criar um espírito motivacional e inspiracional para o empreendedorismo. Assim, Weber revelou que o capitalismo, no período da Revolução Industrial, acreditava no trabalho vinculado ao ascetismo secular do protestantismo. E até que ponto não é este mesmo “espírito” que é defendido, estimulado e promovido do ponto de vista religioso?

2.2 Jornadas messiânicas carismáticas: os antigos deuses voltam às suas tumbas e retornam como unicórnios na contemporaneidade

No mundo antigo, quando este ainda não tinha desencantado de seus deuses e demônios, as diferentes entidades combatiam entre si. Estes deuses e suas eternas lutas decidiam o destino de homens, mulheres, povos e nações. No atual mundo desencantado, a abordagem redentiva considera que o futuro das organizações e da cultura empreendedora, especialmente ligada às startups, não depende da bonança ou da perversidade das divindades, mas exclusivamente das ações da próxima geração de empreendedores. Embora de forma desencantada e desprovida das práticas místicas, mas de modo verdadeiramente similar de comportamento, os discursos proféticos e redentivos sobre as startups não se direcionam apenas à salvação individual ou pós-vida do empreendedor, mas à redenção da vida material prática (Weber, 2011).

Os deuses antigos abandonaram seus templos e retornaram às suas tumbas e, sob a forma de poderes carismáticos, homens e mulheres da modernidade atingem de maneira espetaculosa o campo das experiências empreendedoras e parecem construir jornadas messiânicas pautadas pelo sucesso. Apesar da racionalização, intelectualização e, sobretudo, desencantamento do mundo, como sugere Weber (2011), as dinâmicas em torno das startups parecem construir negócios que sacralizam valores, comportamentos e ideais sublimes que poderão servir de exemplo para todos aqueles que pretendem alcançar o Olimpo ou, nesse caso, o vale dos unicórnios. Essas empresas passam a tentar inventar novos estilos de empreender – numa espécie de arte monumental –, que não fabrica, intelectualmente, novas religiões, mas novas e autênticas fórmulas mágicas organizacionais, verdadeiras “profecias econômicas” (Weber, 2011).

Essas “profecias” que recaem sobre as trajetórias dos startuppers parecem resultar na criação de “seitas de fanáticos” que condicionam o destino de determinados grupos de startups. Um fanatismo que (re)produz discursos coordenados feitos para guiar os startuppers, incondicionalmente, ao triunfo empreendedor. São (re)produções que refletem em constantes e habituais publicizações das trajetórias dos principais líderes e expoentes de histórias de sucesso, empreendedores que gozam de prestígios e de certos atributos que impedem qualquer contraposição ou questionamento a tais profecias. E o mercado midiático contemporâneo parece ter encontrado nessas trajetórias consideradas “de sucesso” uma forma de construir e estimular o imaginário dos startuppers por um mundo empreendedor socialmente idealizado. A Netflix, por exemplo, disponibiliza filmes e séries que contam a história de empreendedores das maiores empresas ligadas ao mundo das startups, como a Apple e Steve Jobs, seu principal idealizador; o Facebook e as estratégias e astúcias de Mark Zuckerberg; e a Microsoft, por meio da biografia da vida de Bill Gates. Recentemente, o canal televisivo CNN Brasil lançou uma série intitulada “Unicórnios do Brasil”, apresentando um panorama sobre o contexto brasileiro que abrange mais de 14 mil startups em um contexto que movimentou quase R$ 20 bilhões de investimentos (Mundo Rh, 2021).

Dessa forma, como a midiatização e a mercantilização dessas histórias consideradas “de sucesso” recaem sobre os startuppers? Em que medida essas histórias representam as realidades diversas dos empreendedores de startups? Como eles enxergam as trajetórias desses líderes que parecem congregar as fórmulas mágicas para o sucesso? São questões que se colocam a partir dessa breve reflexão e de uma busca dos startuppers que parecem viver à espera de novos profetas-guias e de novos salvadores para iluminar as suas trajetórias empreendedoras (Weber, 2011). Nas prováveis situações de dificuldades empresariais, são esses líderes “naturais” que podem oferecer dons “físicos” e “espirituais” específicos aos startuppers para a salvação de si, do outro e do mundo, correlacionando categorias psíquicas, políticas e econômicas (Weber, 1999).

Nessa perspectiva, alguns agentes integrantes dos chamados ecossistemas de inovação parecem ser portadores desse carisma, especialmente os líderes que congregam tais fórmulas mágicas para o sucesso de seus negócios. Os defensores da corrente redentiva também parecem carregar aspectos dessa liderança carismática e se aproximam do que discorreu Weber, senão vejamos:

“o portador do carisma assume as tarefas que considera adequadas e exige obediência e adesão em virtude de sua missão. Se as encontra, ou não, depende do êxito. Se aqueles aos quais ele se sente enviado não reconhecem sua missão, sua exigência fracassa. Se o reconhecem, é o senhor deles enquanto sabe manter seu reconhecimento mediante ‘provas’. Mas, neste caso, não deduz seu ‘direito’ à vontade deles, à maneira de uma eleição; ao contrário, o reconhecimento do carismaticamente qualificado é o dever daqueles aos quais se dirige sua missão” (Weber, 1999, p. 325).

Assim, o que determina o carisma não são as ordens externas ao mundo das startups, mas uma determinação que acontece por fatores internos, características qualitativas da missão e do poder de seu portador. Nesse sentido, as startups organizadas e idealizadas pelo empreendedorismo redentivo, na perspectiva weberiana, parecem dispor de uma autoridade puramente carismática para a instituição de um negócio transformador do mundo. Os portadores desse carisma possuem liberdade para propor novas e diferentes estratégias, especialmente pautadas pela ordenação e desígnios religiosos para tentar introduzir modelos organizacionais que, acima de tudo, desejam modificar os contextos individuais e sociais na contemporaneidade (Praxis, 2017).

3. ARTICULAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE A AÇÃO EMPREENDEDORA DA CORRENTE REDENTIVA E AS (RE)PRODUÇÕES SIMBÓLICAS SOBRE O MUNDO DAS STARTUPS

Examinar as origens do empreendedorismo redentivo nos coloca disponíveis algumas das questões que parecem ser centrais para os seus defensores, tais como: Qual o propósito de quem decide empreender? O que os guia? Em prol de quem a energia empreendedora é mobilizada? Para si? Para os outros? Tem sido cada vez mais comum a idealização de negócios pautados pelo “propósito”, mas, fundamentalmente, a abordagem redentiva sobre o empreendedorismo parece investir em narrativas orientadas por uma ordenação simbólica-religiosa que busca refletir mais da bondade divina nas ações empreendedoras e, até mesmo, como dispositivo de amor, serviço e transformação das realidades individuais e sociais do mundo (Praxis, 2017). Seus defensores alegam que o interesse próprio sem limites é condenável e pode ser destruidor, tanto para o empreendedor, quanto para a sociedade, correspondendo à lógica apresentada por Weber ([1905]2013) sobre o amor fraternal de um trabalho focado nos outros e, também, as noções de “graça” e “providência” no que tange ao cumprimento de um suposto plano vocacional, e apenas isso, para que as necessidades pessoais dos trabalhadores sejam atendidas e supridas.

A ânsia dos fiéis seguidores da corrente redentiva em transformar o mundo é incorporada de tal forma e defendida com tanto fervor que parecem embarcar em narrativas messiânicas de recrutamento de novos adeptos, tentando combater algumas das práticas empresariais condenáveis para eles. Respondem às narrativas empreendedoras mundanas[vii] com engenhosidade, criatividade e fraternidade em prol dos outros, insistindo que o propósito da riqueza do empreendedorismo deve ser para servir o próximo e não aos próprios interesses. À época, Weber ([1905]2013, p. 96) trouxe essa mesma discussão ao observar um “trabalho dentro da vocação mundana que aparece para ele como a expressão exterior do amor fraternal, [...] a divisão do trabalho força cada indivíduo a trabalhar para os outros” a partir do amor que se deve ter pelo próximo.

Nesse sentido, a Praxis (2017) aposta no aumento do número de jovens interessados por organizações do tipo startup e argumenta que uma nova geração de empreendedores muito mais sensível às questões sociais e ambientais tem sido moldada, não mais pelas promessas de riquezas, mas pela reputação social causada pelos impactos dos negócios. Concordamos com a ideia de que os jovens, de modo geral, estão mais conscientes e adquirindo hábitos mais sustentáveis em suas práticas e modos de vida pessoal e empresarial, mas questionamos se essa medida supera, como sugere a Praxis (2017), a “corrida” pelo dinheiro quando se pensa em abrir uma startup, por exemplo. Se é dessa forma, até que ponto discursos como esses proferidos pelos apoiadores da corrente redentiva não estariam reforçando a (re)produção de narrativas simbólicas sobre o mundo das startups e dos startuppers?

As pesquisas de Pires (2021), Faria (2020), Maia (2019) e Shane (2009) revelam aspectos de um clima de celebração constante entre os startuppers, de performances construídas para o alcance de objetivos definidos, de frases de efeito proferidas por líderes e empresas midiatizadas como “de sucesso”, da disseminação de narrativas e de trajetórias dos grandes empreendedores de startups como detentores de fórmulas mágicas para o sucesso, de uma estética particular que enfeita os espaços ditos colaborativos e divertidos. Analogamente ao que discorreu Weber ([1905]2013), é possível perceber a renovação de um tipo de espírito empreendedor contemporâneo inserido num contexto profético e de celebração constante entre os startuppers que, no caso da abordagem redentiva, preservam princípios morais e simbólicos enraizados em tradições religiosas que parecem estar refletidos nos grandes eventos contemporâneos para as startups, tais como o Web Summit, o Startup Olé, o Case Startup Summit[viii] e tantos outros. São em eventos que se percebe a construção e a incorporação de uma atmosfera simbólica, pautada pelo sucesso por meio do trabalho duro, pela corrida dos unicórnios e outras configurações simbólicas.

Pressupomos que não seja preciso carregar explicitamente marcadores religiosos – como a abordagem redentiva – para reproduzir algumas das principais ações apontadas até aqui. Os eventos citados no parágrafo anterior, por exemplo, não apresentam qualquer tipo de ideologia religiosa em suas peças publicizadas para serem caracterizados como apoiadores da corrente redentiva. Apesar disso, acabam por reproduzir algumas das práticas percebidas pela abordagem simbólica-religiosa em questão. Dessa forma, em que medida o exercício de um ethos particular, ordenado por uma ética da positividade, da colaboração, do misticismo e da profusão de frases de efeito incorpora-se, de forma mais ou menos consciente, nas práticas cotidianas dos diferentes agentes envolvidos nos ecossistemas de inovação? De que forma passam a contribuir para as construções simbólicas e idealizações sobre o mundo das startups? Essas questões apontam, inclusive, para a existência de outras dinâmicas e configurações simbólicas nos discursos dos diferentes agentes que fazem parte dos ecossistemas de inovação e que podem ser exploradas em campo.

A abordagem redentiva também sugere que a missão do empreendedor está em equilibrar suas ambições, desejos, esforços e contentamentos, para, somente então, alcançar o que pensam sobre sucesso. Parece agir em direção a uma contracorrente de culturas econômicas prevalentes, interessa-se mais em promover a construção de negócios não como fonte de poder e riqueza, mas como dispositivo de renovação de um espírito que coloca os interesses dos outros à frente dos próprios, (re)criando seus próprios líderes carismáticos que, em grande medida, diferem daqueles que buscam, primordialmente, o lucro financeiro. O empreendedorismo, para os defensores da abordagem redentiva, é uma das vocações divinas que precisa ser renovada no contexto atual para refletir mais da bondade divina, tal como observou Weber ([1905]2013), a respeito da ordenação religiosa sobre os modos de vida e as ações empreendedoras dos fiéis de sua época.

Ideologicamente, apesar de estarem posicionados em preceitos pouco amigáveis com os das culturas econômicas prevalentes – como a não supervalorização do lucro e da imagem do sujeito do desempenho, já que acreditam na “providência” e na “graça” como ação prática para o sucesso dos negócios –, os apoiadores da abordagem redentiva parecem reforçar a idealização e a (re)produção de um mundo simbólico que recai sobre as startups e os startuppers. Substanciam, ainda, essa atmosfera profética e de celebração constante construída, inclusive, por outras narrativas e estimulam a imagem do espírito empreendedor atual pautado na lógica de que “tudo pode, basta crer”[ix]. Nesse sentido, pressupomos que há uma aparente tensão conceitual que aproxima o empreendedorismo redentivo à teologia da prosperidade – da sacralização dos valores, das práticas cotidianas da empresa e dos discursos de fé em busca do que pensam sobre sucesso e transformação do mundo –, embora esteja distante do principal aspecto que defende a riqueza material como garantia divina para todos os fiéis. A aproximação acontece em termos de uma atmosfera mística, religiosa e de múltiplas possibilidades disponíveis para o alcance do sucesso.

4. CONSIDERAÇÕES SOBRE TUDO ISSO

Discorrendo sobre o que chamamos de sínteses reflexivas, nota-se que pouco tem sido teorizado e discutido no campo científico sobre a corrente do empreendedorismo redentivo, o que reflete a baixa produção acadêmica sobre esse fenômeno. Apesar disso, é possível perceber algumas das práticas dessa abordagem incorporadas, de forma mais ou menos consciente, em outras formas de organizações de diferentes agentes dos ecossistemas de inovação e que acabam por contribuir para as construções simbólicas e idealizações sobre o mundo das startups. As conexões pensadas e desenvolvidas até aqui, a reflexividade sobre os múltiplos cenários que tomou o contexto weberiano como ponto de partida e as descobertas ao longo do processo de escrita, permite-nos esboçar três sínteses reflexivas que organizam o campo das possibilidades deste ensaio teórico. Para tanto, retomamos o que foi revelado logo no início deste ensaio como principal objetivo, qual seja explorar algumas das configurações simbólicas investidas sobre as startups. De forma específica, buscamos (i) resgatar as bases fundamentais de perspectivas e concepções sócio-históricas weberianas sobre o capitalismo e o espírito empreendedor para, metaforicamente, (ii) analisar a prossecução de um ethos particular orientado por marcadores simbólicos sobre o mundo das startups. Destacamos, ainda, nosso interesse em buscar nas obras de Weber, especialmente a “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo”, algumas de suas principais observações acerca da ética do trabalho, da liderança carismática e do espírito empreendedor para, ainda que metaforicamente, tentar compreender as ações e as construções (re)produzidas pelos discursos redentivos sobre o mundo simbólico das startups na contemporaneidade.

Vale ressaltar que não tivemos a intenção de criar disputas ideológicas ou questionar as crenças dos que se identificam com o empreendedorismo redentivo, mas perceber, à luz do pensamento weberiano, as margens para o exercício de associação, reflexão, articulação e compreensão dos fenômenos sociais em diferentes contextos históricos. Por isso, como primeira síntese reflexiva, destacamos que nem tudo é tão perfeito quanto parece ser no mundo das startups. Por mais que essa corrente preconize ações que tentam refletir mais da bondade divina e a criação de uma atmosfera de celebração constante, de práticas vitoriosas e de uma fraternidade transformadora, as startups estão inseridas em um cenário econômico de disputas e mercados cada vez mais competitivos. Ideologicamente, os empreendedores redentivos podem até preservar e inserir alguns desses conceitos simbólicos-religiosos nas práticas culturais e organizacionais das startups, mas é provável que precisem equilibrar uma pluralidade de atividades em seus cotidianos tomados por realidades duras e menos glamourizadas das que são midiatizadas. Sendo assim, em que medida essa abordagem redentiva contribui para os impactos nas subjetividades dos empreendedores, por exemplo, em termos de ansiedade, prazer-sofrimento, adoecimento, burnout, lazer, convívios sociais, práticas familiares? São questões que se colocam e que podem ser exploradas em campo.

Como segunda síntese reflexiva, e em articulação com a primeira, os conceitos da corrente ligada ao empreendedorismo redentivo se aproximam, fundamentalmente, das observações weberianas acerca do sujeito pré-moderno que, naquele contexto, já defendia o plano vocacional e a ordenação religiosa sobre o trabalho. Isso parece revelar a prossecução da influência religiosa sobre os modos de vida pessoal, laboral e sua força cultural que parece inspirar a nova geração de empreendedores mais sensíveis às questões sociais e ambientais a modelarem negócios inovadores, especialmente por meio de startups, a partir de outras perspectivas simbólicas-ideológicas. A renovação do espírito empreendedor weberiano é o que também parece contribuir para a (re)produção dessas organizações como tipo ideal, refletindo uma comunicação particularizada repleta de termos, gírias e expressões simbólicas e, em muitos casos, religiosas, como: angels, que são possíveis investidores financeiros; vale da morte, período crítico no desenvolvimento da startup; unicórnio, negócio que vale mais de 1 bilhão de dólares; zone to win, metodologia para implementação de práticas inovadoras; ecossistema de inovação, agentes que se conectam para o desenvolvimento de negócios inovadores; smart money, dinheiro investido de forma inteligente; incubadora, ambiente de acolhimento e apoio gerencial; mentores, guias e orientadores carismáticos; seed money, investimento semente fundamental para o início de uma startup, entre outros.

Por fim, a terceira síntese reflexiva é uma suspeita de que, assim como o empreendedorismo redentivo, outras configurações simbólicas – correntes de valores, representações e atitudes face ao empreendedorismo – podem estar incorporadas nos discursos dos diferentes agentes integrantes dos ecossistemas de inovação e, algumas vezes sem saber, passam a colaborar com a (re)produção de narrativas simbólicas e proféticas sobre as startups, reforçando a construção de um mundo ideal onde os seus empreendedores buscam, a todo custo, visibilidade e destaque na corrida dos unicórnios, criando uma atmosfera de competição velada em um universo organizacional que se pressupõe ser, essencialmente, colaborativo e cooperativo. O que pode causar certa confusão interpretativa, uma vez que se aproximam de outras doutrinas simbólicas-religiosas que defendem a busca e a supervalorização de riquezas para si. Até que ponto os discursos dos apoiadores do empreendedorismo redentivo não permanecem apenas no campo ideológico? Seus empreendedores executam, efetivamente, os preceitos dessa corrente nas práticas cotidianas de seus negócios inovadores e transformadores? São outras questões que podem ser exploradas no processo de pesquisa de campo.

A produção deste ensaio buscou a exposição de ideias, conectividades entre diferentes abordagens e o resgate conceitual weberiano, considerado um dos principais clássicos das ciências sociais, para, metaforicamente, refletir sobre alguns dos aspectos mais particulares do empreendedorismo redentivo no que tange às construções e (re)produções investidas sobre o mundo simbólico das startups. As questões que emergiram ao longo deste trabalho, especialmente na última seção que trata das sínteses reflexivas, são indicações possíveis para futuras investigações. Metodologicamente, esperamos contribuir e estimular a produção de ensaios teóricos criativos, autorais e crítico-reflexivos. E, ainda, despertar a curiosidade e o interesse investigativo sobre o mundo das startups, especialmente do ponto de vista das práticas que carregam marcadores simbólicos-religiosos, mas sugerimos que essa análise seja ampliada a partir de uma contextualização mais profunda sobre o capitalismo neoliberal, o empreendedorismo e outras formas de (re)produções simbólicas sobre o mundo das startups.

REFERÊNCIAS

Bertero, C. O. (2014). Documentos e debates: Réplica 2 - O Que é um Ensaio Teórico? Réplica a Francis Kanashiro Meneghetti. Revista de Administração Contemporânea, 15(2). DOI: 10.1590/S1415-65552011000200012.

Boltanski, L., & Chiapello, È. (2009). O novo espírito do capitalismo. Martins Fontes.

Castells, M. (2003). A galáxia da internet. reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar.

Faria, L. P. S. (2020). Faça acontecer: a política da busca por autorrealização em empresas startup no Brasil e no Reino Unido. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 24(3). DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.7854.

Henrekson, M., & Johansson, D. (2010). Gazelles as job creators: A survey and interpretation of the evidence. Small Business Economics, 35(2), 227–244. DOI: https://doi.org/10.1007/s11187-009-9172-z.

Jung, C. G. (2002). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.

Lima, E., & Ferreira, V. S. (2022). Ao som de Belchior: uma experiência auditiva-musical sobre o mundo das startups. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 9(1), 72–98. DOI: https://doi.org/10.21583/2447-4851.rbeo.2022.v9n1.482.

Maia, M. M. (2019). COMO AS START-UPS CRESCEM? Performances e discursos de empreendedores à procura de capital. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34(99). DOI: https://doi.org/10.1590/349919/2019.

Martes, A. C. B. (2010). Weber e Schumpeter: a ação econômica do empreendedor. Revista de Economia Política, 30(2). DOI: 10.1590/S0101-31572010000200005.

Mazzucato, M. (2014). O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Westminster: Portfolio Penguin.

Mazzucato, M. (2020). O valor de tudo: Produção e apropriação na economia global. Westminster: Portfolio Penguin.

Moore, J. F. (1993). Predators and Prey: A New Ecology of Competition. Harvard Business Review, 71(3).

Mundo Rh. (2021). CNN Séries Originais estreia a série “Unicórnios do Brasil”. Https://Www.Mundorh.Com.Br/Cnn-Series-Originais-Estreia-a-Serie-Unicornios-Do-Brasil/.

Pires, A. S. (2021). As novas configurações espaciais do empreendedorismo tecnológico e as experiências de trabalho no pólo de tecnologia de São Carlos-SP. Revista Brasileira de Ciencias Sociais, 36(106). DOI: 10.1590/3610605/2021.

Praxis. (2017). Full of promise: a vision for redemptive entrepreneurship. https://journal.praxislabs.org/full-of-promise-534310dca752.

Santiago, E. G. (2009). Vertentes teóricas sobre empreendedorismo em Schumpeter, Weber e McClelland: novas referências para a sociologia do trabalho. Revista de Ciências Sociais, 40(2).

Sennett, R. (2019). A cultura do novo capitalismo (7a ed., Vol. 1). Record.

Shane, S. (2009). Why encouraging more people to become entrepreneurs is bad public policy. Small Bus Econ, 1(33). DOI: 10.1007/s11187-009-9215-5.

Weber, M. (1999). Economia e sociedade. fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília.

Weber, M. (2001). Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez.

Weber, M. (2008). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC.

Weber, M. (2011). Ciência e política: duas vocações (18a ed.). São Paulo: Cultrix.

Weber, M. (2013). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Martin Claret.

Williams, N., & Williams, C. C. (2014). Beyond necessity versus opportunity entrepreneurship: Some lessons from English deprived urban neighbourhoods. International Entrepreneurship and Management Journal, 10(1), 23–40. DOI: https://doi.org/10.1007/s11365-011-0190-3.

Notas

[i] As startups são modelos de negócios inovadores, enxutos, repetíveis e escaláveis, consideradas, de acordo com o que temos identificado, como uma das principais formas de empreender nos dias de hoje. Cada vez mais a possibilidade de empreender por meio da abertura de uma startup tem atravessado o imaginário dos sujeitos que iniciam nesse mundo.
[ii] Entende-se, aqui, por “ecossistemas de inovação” as redes de relações sociais marcadas por relações de força e poder entre os seus diferentes agentes institucionais e individuais. Proponho avançar em termos da problematização sociológica de um termo amplamente utilizado pelas organizações para identificar e compreender outras dinâmicas estabelecidas em torno das startups e dos startuppers. O termo “ecossistema de inovação” também pode ser identificado como “ambiente de inovação”, caracterizando um conjunto de diferentes agentes que se juntam para promover e apoiar a inovação e o empreendedorismo, notadamente por meio das startups. O americano James Moore (1993) foi quem primeiro desenvolveu e impulsionou a ideia de “ecossistema” no âmbito dos negócios ao defender que as empresas não atuam de forma isolada, mas em blocos associativos e cooperativos com objetivos comuns, como a criação de novos produtos, serviços inovadores e geração de lucro. Destaco, ainda, que a produção deste ensaio surgiu a partir de uma pesquisa maior de tese de doutoramento (em andamento) que tem como objetivo perseguir os ecossistemas de inovação a partir dos percursos dos startuppers, numa perspectiva crítico-reflexiva sobre algumas metáforas, muitas vezes falaciosas, que parecem idealizar um mundo de sucesso e de glamourização das startups.
[iii] Uma startup unicórnio possui avaliação de preço de mercado no valor de mais de 1 bilhão de dólares. Esse termo foi criado em 2013 por Aileen Lee e, atualmente, ocupa o imaginário de boa parte dos startuppers.
[iv] Faria (2020, p. 02) defende que as empresas startups são consideradas negócios constituídos numa perspectiva de “narrativas salvacionistas” e proféticas, exaltando um cenário de múltiplas realizações.
[v] Além de “pesquisar sobre”, um dos autores também “trabalha com” startups e contribuiu com as experiências e vivências práticas para enriquecer o desenvolvimento deste ensaio com outras perspectivas.
[vi] Destaca-se como a principal obra de Max Weber (1864-1920) adotada para a construção deste ensaio, e em especial desta seção, a A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicada em 1905 na revista alemã Archiv für Sozialwissenschaft. A edição escolhida foi traduzida por Mário Moraes e publicada em 2013 pela editora paulista Martin Claret. Os “não referenciamentos” nos parágrafos fazem menção a ela, do contrário mostram as citações às outras obras de Weber catalogadas na última seção do ensaio.
[vii] Segundo eles, práticas que não têm viés religioso ou que não representam os valores religiosos em ações cotidianas.
[viii] Os três eventos acontecem todos os anos. O Web Summit é considerado o maior evento de tecnologia e empreendedorismo do mundo e ocorre em Portugal; o Startup Olé, promovido pela Universidade de Salamanca, na Espanha; e o Case Startup Summit, junção de dois grandes eventos e é considerado o maior evento de empreendedorismo online da América Latina.
[ix] Alusão a alguns dos discursos proféticos e salvacionistas que parecem figurar nos cotidianos dos empreendedores de startups.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por