POLÍTICAS, MEDIAÇÕES E TERRITÓRIOS: INTERPRETAÇÃO SOBRE O 'URBAN0-RURAL' NA AMAZÔNIA [1]
POLITICS, MEDIATIONS AND TERRITORIES: INTERPRETATION ABOUT 'URBAN-RURAL' IN THE AMAZON
POLÍTICAS, MEDIAÇÕES E TERRITÓRIOS: INTERPRETAÇÃO SOBRE O 'URBAN0-RURAL' NA AMAZÔNIA [1]
Aposta. Revista de Ciencias Sociales, núm. 71, pp. 209-258, 2016
Luis Gómez Encinas ed.

Recepção: 15 Dezembro 2015
Aprovação: 16 Abril 2016
Resumo: Nos últimos anos tem se manifestado um aumento nas pesquisas no Brasil sobre cidades na Amazônia, voltadas, sobretudo, para compreender a diversidade do urbano, considerando o contexto social, cultural e étnico desses aglomerados. Contudo, apesar deste esforço ainda existem lacunas teóricas acerca da formulação de questões analíticas que explorem, desde uma perspectiva sociológica e etnográfica na sua positividade, a dimensão simbólica das práticas (compreenda-se os efeitos e eficácia) sobre o espaço social. Nesta línea analítica, este trabalho explora, a partir de uma situação empírica (cidade Altamira-Amazônia Brasileira) a dimensão simbólica do “rural-urbano” ou, melhor, a dimensão produtiva do 'urbano no rural', isto é, seus efeitos constitutivos para instituir identidades ou território no espaço da cidade, no marco de processos de reagrupamentos urbanos e viabilização de políticas. Pressupomos que o espaço da cidade assume e produz diferentes significados, conforme o contexto em que os diversos agentes envolvidos na produção vivenciam esse espaço, lutam e materializam práticas. Nessas disputas põe-se em jogo a divisão desse espaço e, ao mesmo tempo, revelam a eficácia simbólica ou a ação produtiva da prática. Desta perspectiva, também é tema de interesse as implicações simbólicas que têm os efeitos do saber especializado, no marco desses processos, isto é, das “novas” dinâmicas culturais urbanas em que a produção de símbolos torna-se significativa.
Palavras-chave: Cidade, territorio e identidade, 'Urbano-rural' na Amazônia, Índios misturados, Mediação simbólica.
Abstract: An increase in studies on cities in the Amazon region has recently been observed, aimed at understanding, above all else, the diversity of the urban, cultural and ethnic populations of these population clusters. There are still however, in spite of much effort, considerable theoretical gaps in structuring analytical questions that, from a sociological and ethnographic perspective, fully explore, in their positivity, the symbolic extent of the practices (the effects and effectiveness) on the social landscape. From an analytical and empirical perspective, this study seeks to explore the city of Altamira in the Brazilian Amazon, the symbolic rural-urban dimension or better, the productive dimension of the 'urban -rural', that is, its constitutive effects in establishing identities or territories in Altamira within a framework that includes of urban regrouping processes and policy feasibility. Our perception is that the Altamira region assumes and proposes different meanings according to a context in which various agents, involved in the production and living experience within this region, fight for and create practices that bring into play the divisions of this area and, at the same time, demonstrate the symbolic effectiveness or the productive action of the practical. From this perspective, the symbolic implications and their specialized knowledge are also topics of interest within this process framework, i.e. being part of the "new" urban cultural dynamics in which the production of symbols becomes significant.
Keywords: City, territory and identity, 'Urban-rural' in the Amazon, Indians mixed, Symbolic mediation.
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, no contexto brasileiro e, em particular, na Amazônia, houve um aumento dos estudos nas ciências sociais sobre o fenômeno urbano. Este interesse pelas cidades está ligado, em grande parte, à compreensão de processos urbanos de ocupação ou processos territoriais e, ao mesmo tempo, à viabilização das “novas políticas de desenvolvimento regional e/ou sustentável”. Nesse sentido, também têm aumentado as iniciativas de produzir conhecimento acadêmico voltado para a viabilização de políticas públicas nesses espaços, envolvendo agentes de instituições acadêmicas, entidades não governamentais e os próprios atores sociais.
Aqui nos interessa destacar o incremento dos estudos urbanos e das iniciativas que envolvem atores do campo acadêmico e do político, que implicam em condições ligadas às agências e entidades governamentais ou não governamentais nacionais ou internacionais. Destacamos, entre outras, a aplicação de novos princípios organizativos, atribuindo um grau maior de descentralização à política administrativa; a implementação de políticas de “desenvolvimento local” e de “gestão e planejamento urbano” (compreenda-se também novos planos urbanísticos no território), que se manifestam no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001), na criação e instituição do Ministério das Cidades, em janeiro de 2003, e nos Planos Diretores no marco dos Programas Urbanos de Planejamento [2].
Igualmente, são expressões significativas para o avanço do pensamento sobre as cidades na Amazônia, o Projeto Mudanças no Estuário Amazônico pela Ação Antrópica coordenado pelo NAEA/UFPA, de 2004 a 2007, com apoio da Financiadora de Projeto/FINEP/MCT, Fundação Ford e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); o Projeto Cidades, Povoados e Aldeias na Amazônia: construindo uma tipologia de aglomerados urbanos, de 2008 a 2010, realizado igualmente pelo NAEA/UFPA com o apoio do CNPq e da Fundação Ford; o Projeto Pequenas e Médias Cidades, do Observatório de Conhecimento e Movimentos Sociais (COMOVA), experiência realizada entre a Universidade Federal do Pará (UFPA) e a FASE/Amazônia Oriental, com o apoio da Fundação Ford; e o Seminário Internacional Cidades na Floresta, realizado em 2007, em Belém do Pará, pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA). Este evento reuniu, em uma perspectiva multidisciplinar, acadêmicos de várias universidades e institutos de pesquisa localizados na Amazônia Brasileira e Colombiana, e representantes de movimentos e organizações sociais urbanas e agroextrativistas.
Embora não seja nossa intenção falar dessas experiências para os objetivos deste trabalho, parece-nos importante situá-las no contexto da produção sociológica sobre cidades na Amazônia no início do século XXI que constituíram espaços de reflexão na perspectiva aqui adotada. Interessa-nos reter que se trata de condições que têm contribuído, em diferentes sentidos e de diferentes perspectivas, para (re)vitalizar a crítica, nas ciências sociais, a “antigos” debates teóricos em torno da definição de urbano, cidade e/ou da relação “rural-urbano”, “campo-cidade” e, por extensão, às ideias “evolucionistas” que ainda estruturam o debate entre grupos de pesquisa na atualidade, como o de “tradição versus modernidade”, “atrasado versus desenvolvido”. Esta retomada do interesse na relação rural-urbano e do fenômeno urbano, adotando outras abordagens, não se dá apenas na Amazônia, mas também em outras regiões do Brasil e no exterior, pois ocorrem expressões diferentes do mesmo processo de urbanização no mundo [3].
Tomando como pano de fundo o processo de ocupação na cidade de Altamira, na Amazônia brasileira, no contexto das transformações geradas a partir dos anos de 1970, com a construção da rodovia Transamazônica e das políticas de desenvolvimento, exploramos neste trabalho, na sua positividade, uma abordagem que permita compreender certas dimensões simbólicas da “relação rural-urbano”, ou melhor, a dimensão produtiva que exerce o urbano no rural. Por isso, o nosso interesse está voltado para os agentes, nas suas práticas e nos efeitos de mediação simbólicos que exercem sobre o espaço da cidade (físico e social).
Focalizamos o nosso olhar sobre agentes e, entre eles, os agrupamentos indígenas Xipaia e Curuaia que moram na cidade de Altamira, centrando-nos, sobretudo, nas lideranças, para examinar de que maneira e em que sentido os elementos da simbologia do rural-urbano (na floresta amazônica) contribuem para definir essas populações como “índios misturados”, porém “autênticos”.
Nesta linha, o trabalho também indica possíveis conexões entre as políticas, os saberes especializados, as divisões e identidades socioespaciais. Desta perspectiva, tentaremos evidenciar, através das análises dessa simbologia e das ideias de cultura e sociedade que a estruturam, em que sentido a oposição rural-urbano está na base constitutiva desse aparente paradoxo.
O caso de Altamira nos parece exemplar: o seu mosaico urbano expressa a manifestação de uma hierarquia na qual a simbologia do rural-urbano, entendida como processo de construção social sustentada em critérios igualmente construídos, é objetivada por meio de uma linguagem temporal (ou simbologia) no espaço da cidade, que contribui para criar e alimentar critérios de divisão e distinção de identidades socioculturais.
Há muitas cidades amazônicas que, na sua composição demográfica, são indígenas. Destacamos que a população indígena da (ou na) cidade de Altamira tem sido objetivada como tal relativamente recente, e há questões urbanas que emanam desse universo. Desde finais do século XX e, sobretudo, a partir dos primeiros anos do século XXI, em contextos de demandas de direitos a bens e serviços urbanos, reivindicações territoriais, entre outras, têm gerado um processo de objetivação dessa população enquanto “índios misturados”, porém “autênticos”, que têm contribuído para um certo grau de reconhecimento social da sua cultura e identidade indígenas referenciadas a esse espaço (ou cidade).
Como hipótese, pensamos que os processos de transformação e de reagrupamento rural- urbano gerados em Altamira criam uma série de condições que favorece a constituição de processos de mobilização e de emergência de atores com propriedades e graus diferenciados de poder, no marco dos debates e da viabilização de políticas implementadas nas últimas décadas, orientadas para “o desenvolvimento da Amazônia” em geral, e de Altamira em particular. Neste marco, materializam-se diversas práticas pelas quais se produz e se atualiza um conjunto de representações e de ideias de sociedade e de cultura em jogo, tomando com base elementos da simbologia rural- urbano da floresta amazônica e, por extensão, de oposições “campo-cidade” ou “aldeia- cidade”. Entre outras representações, destacamos “famílias rurais”, “pobres”, “índios da floresta”, “povos tradicionais da floresta” e “índios misturados”. As oposições “pureza- mistura”, “tradição-modernidade” e “subdesenvolvido-desenvolvido”, entre outras, são ideias que estruturam essas representações.
O enfoque aqui adotado parte do pressuposto teórico e analítico de que o urbano e, por extensão, o rural, são compreendidos como fenômenos sociais e, portanto, são parte e resultados constitutivos de um processo de construção social e cultural que se sustenta em critérios culturais igualmente construídos. Deste processo tomam parte, com propriedades e posições diferentes, diversos agentes em disputa pelos usos e apropriação do espaço e, no limite, pelos critérios e limites culturais de definição legítima do espaço (entenda-se também lugar ou território), “são lutas de classificação” [4].
O texto está estruturado em quatro partes. Na primeira consta uma breve reflexão do contexto no qual se inserem as nossas preocupações, o instrumental analítico utilizado e a relevância do trabalho. A segunda, precedida de uma breve síntese histórica sobre a criação do município, contextualiza e identifica, concomitantemente, de um lado as políticas, atores e práticas da administração (local ou do governo central), agentes do setor comercial e industrial, trabalhadores rurais (agentes sindicais), entidades sociais e grupos indígenas (ou sociedades tradicionais); de outro, examinamos os seus efeitos e contribuições para a construção da simbologia do rural-urbano na Amazônia. Tomando como eixo os fluxos migratórios, na terceira parte analisamos as ideias que estruturam essa simbologia (ou aparente oposição) e os seus efeitos de capitalização sobre o espaço da cidade. Dadas as particularidades relativas à situação indígena e política(s) indigenista(s) no Brasil, temos considerado oportuno examinar as questões que envolvem a população indígena da cidade de Altamira. Assim, na quarta parte abordamos as situações da pesquisa indígena examinando a “autenticidade da mistura” no marco do processo de reagrupamento urbano naquela cidade. E, por fim, as considerações finais.
1.1 REFLEXÕES SOBRE O CONTEXTO NO QUAL SE INSEREM AS NOSSAS PREOCUPAÇÕES E PERSPECTIVA TEÓRICA
Sem dúvida, há um inegável aumento das pesquisas sobre cidades na Amazônia, algumas adstritas a diferentes campos do conhecimento, outras que partem de uma leitura do urbano no cruzamento de temas (pesquisas sobre planejamento urbano, economia regional, relação campo-cidade, cidades novas, estudos para fins de elaboração de planos diretores, grupos étnicos na cidade). Igualmente há um esforço intelectual em superar as análises mais convencionais que associam as grandes cidades às demandas urbanas por bens, serviços e empregos ou que analisam o fenômeno da urbanização na dinâmica demográfica. Este esforço se põe em relevo, além da produção de eventos interdisciplinares organizados tanto no campo acadêmico quanto no político ou entre ambos. Na literatura recente sobre o tema, ver, entre outros, Veiga (2002), Castro (2006, 2009), Trindade Júnior (2002), Duarte (2006), Alonso e Castro (2006) e Nobre-Júnior e Mayer (2013), Leitão (211), Rodrigues (2014).
Um dos aspectos que se depreendem desses trabalhos é que a compreensão da relação “rural-urbano” no contexto da Amazônia passa por ultrapassar a dicotomia rural-urbano e o olhar homogeneizador que a estrutura. O foco de análise não recai na sociedade agrária (ou “tradicional”) e suas transformações, próprias dos estudos da sociologia rural, que emergem com força a partir dos anos de 1970, tampouco no fenômeno urbano ou processo de ocupação urbana, sendo o “rural” compreendido como uma dimensão do urbano.
Cabe destacar a estreita conexão deste enfoque com os programas e planos diretores da nova política administrativa municipal, que “propõem uma visão integrativa e de articulação entre os diferentes espaços do território administrativo”. Deste ponto de vista, além de repensar o rural-urbano, os autores põem em questão, implícita ou explicitamente, a referida dicotomia e a percepção homogeneizadora que define e entende a cidade, entre outros critérios, com base em um dado padrão que remete à ideia de sociedade industrial. Sublinhamos que este modelo, próprio da urbanização na Europa, mostrado por Castells (1999) sustenta-se em programas e planos urbanísticos da política administrativa que define a cidade a partir da separação entre o que é considerado ou não cidade, isto é, a definição e concepção de cidade são constitutivas do limite que a separa do campo. Aqui nos interessa destacar que o urbano ou urbanização que resulta desse modelo de espaço uniforme é concebido, em última instância, como se fosse um processo inevitável que marca a “ocidentalização do mundo”, e os processos de globalização (Sassen, 2010).
Embora tenha havido um aumento dos estudos e dos esforços intelectuais voltados para compreender a diversidade morfológica de aglomerados urbanos, no marco da complexidade do processo de ocupação urbana em geral e, na Amazônia em particular, ainda se encontram lacunas teóricas na formulação de questões analíticas que explorem, na sua positividade, em uma perspectiva sociológica e etnográfica, a dimensão simbólica das práticas (leia-se também efeitos ou eficácia) e os sentidos atribuídos e vivenciados pelos sujeitos.
O nosso ponto de partida pressupõe que a cidade e, por extensão, o rural-urbano, não é uniforme na sua expansão e produção do espaço. Ela expressa divisões e distinções sociais na conformação dos seus espaços, na consolidação de bairros antigos e/ou no aparecimento de novos. Isto é, há a produção de uma hierarquia físico-espacial através da qual se criam e (re)significam identidades e classificações sociais, como “famílias rurais, “índios da floresta”, “índios misturados, porém índios”. No limite, o urbano (ou cidade) assume e produz diferentes significados, segundo o contexto em que os diversos agentes envolvidos na produção e vivência desse espaço lutam e materializam práticas que põem em jogo as divisões desse espaço e, ao mesmo tempo, evidenciam a eficácia simbólica ou a ação produtiva da prática.
Deste ponto de vista, que é atento à gênese, preocupam-nos as conexões entre práticas (e/ou políticas nacionais e internacionais), agentes (e/ou efeitos de mediação simbólicos) e criação de classificações e identidades através do espaço da cidade, no contexto do processo de reagrupamento urbano, no marco maior das transformações do Estado-nação.
Nos últimos anos, especialmente na França, vem se configurando um campo de pesquisas a respeito da cidade e da observação do espaço (social) a partir da mudança no ângulo de visão (Villanova et. al., 2001; Villanova e Vermès, 2005). Contextualizado na ideia do mundo globalizado, o importante na observação é ver como se efetuam e se produzem os cruzamentos entre mundos, em matéria de espaço, dada a velocidade da generalização dos modelos urbanos. Deixa-se de lado o uso de conceitos analíticos referenciados em modelos teóricos fundamentados implícita ou explicitamente em análises binárias, como campo versus cidade, rural versus urbano, tradição versus modernidade, simples versus complexo, centro versus periferia, oriente versus ocidente, entre outras. Em outros termos, aqui já não importa a “tradição versusmodernidade” nem o “culturalismo”, mas os processos de imitação ou de “préstimo cultural”. Na base desta perspectiva está a ideia de que há uma “fusão” em um todo dado e, portanto, é impossível distinguir, nessa “uniformidade”, um centro de uma periferia, um dominante de um dominado, uma tradição de uma modernidade. No interior dessa fusão manifestam-se espaços que podem ser interpretados como “resistências” e “invenções” que se alimentam reciprocamente.
Ampliando esta linha, Segaud (2007) sugere que, em matéria de espaço, dado que é importante compreender os empréstimos, identificar os deslocamentos, ver as transformações, no limite, pouco importa estabelecer as direções. O que importa é inscrever as observações nos processos de produção em perpétuo movimento. Neste sentido, a autora, tomando como base o enfoque de Laplantine (2005), aborda os elementos que resultam da interação entre diferentes culturas, como as manifestações das competências “das artes de fazer” nunca fixadas, e sim como “produções originas” “reinventadas” e “transmutadas” (Segaud, 2007: 153-154).
Ainda que o nosso enfoque tenha certa proximidade com a perspectiva da prática utilizada pelos autores franceses, não obstante, pensamos que a sua visão “culturalista” estrutura uma ideia de modernização (ou cultura) e, portanto, de cidade (ou “campo- cidade”). Nossa proposta implica em observar o fenômeno urbano de outro ângulo, cujo foco está na positividade das práticas culturais, ou melhor, focalizando as ações nos seus próprios termos: nas conexões que se dão entre agentes, práticas e efeitos de mediação para definir identidades e classificações sociais no marco das transformações do espaço rural-urbano, e na viabilização de políticas.
Esta perspectiva implica focalizar tanto a constante produção das ações segundo os atores e contextos quanto a eficácia simbólica que estes exercem sobre o espaço social, isto é, enquanto prática representada e vivenciada pelos sujeitos. Neste marco, não se trata apenas de incorporar os atores na análise do sentido ou significado das ações no universo do simbólico enquanto espaço vivido na experiência cotidiana (Lefevre, 1974), mas de compreender os efeitos performáticos com que exercem seus atos (também de fala), de acordo com os diferentes contextos [5].
Nesta linha, pensamos que a simbologia do rural-urbano, ao ser acionada e utilizada pelos agentes nos contextos de mobilização e de disputa pela apropriação e uso do espaço, favorecem a criação de um discurso sobre a relação rural-urbano cuja eficácia simbólica contribui para criar o rural-urbano e, ao mesmo tempo, subjetividades e identidades a partir do espaço da cidade. Não estamos afirmando que há uma homogeneidade de sentidos, mas sim que as ações são significativas para os atores envolvidos, para negar ou confirmar essas identidades e espaços. Este ponto de vista é atento à dimensão temporal ou o “tempo” das ações, com a finalidade de observar as continuidades e rupturas ocorridas no tempo.
Adotando como pano de fundo a importância que têm as situações e experiências etnográficas para o conhecimento de processos particulares, pensamos que as situações de pesquisa que envolvem grupos indígenas da (na) cidade de Altamira, representados socialmente como “índios misturados” em oposição a “puros” (índios da floresta amazônica que moram na aldeia), são situações favoráveis para questionar os naturalismos e essencialismos estruturados na relação rural-urbano e, sobretudo, para evidenciar que a oposição “rural-urbano” (ou “aldeia-cidade”) assim como a de “tradição-modernidade” estão na base constitutiva desse aparente paradoxo. Desta forma, também são exemplares para revelar conexões com o saber especializado.
Neste aspecto, este trabalho também traz uma reflexão em sentido duplo. De um lado, sobre a prática do saber especializado – aqui compreendida a partir dos efeitos políticos da teoria ou como mediação simbólica com alto grau de eficácia sobre o espaço social, no marco das novas dinâmicas culturais urbanas cuja produção de símbolos torna-se significativa. De outro, sobre a vivência do espaço social e as conexões não substantivas do local e do global (no sentido amplo do termo).
Considerando tal perspectiva, pensamos também em contribuir para as reflexões sobre a compreensão do urbano, objetivando um olhar crítico e reflexivo na viabilização de estratégias e políticas locais de desenvolvimento, mas em acordo com a existência de uma ampla diversidade cultural e social na Amazônia rural-urbana.
2. O MUNICÍPIO DE ALTAMIRA: PROCESSO DE (RE)AGRUPAMENTO, PRÁTICAS DESENVOLVIMENTISTAS E SEUS EFEITOS
O município de Altamira, localizado na região do vale do rio Xingu, foi criado em 1911, tendo como sede a vila de Altamira [6]. Cabe destacar que a sua constituição está relacionada com a presença de missionários nos rios Xingu e Iriri, nos séculos XVIII e XIX, especialmente com as práticas de aldeamento de grupos indígenas (Xipaia e Curuaia) realizadas pelos missionários da Companhia de Jesus, e depois pelos capuchinhos, após a expulsão dos jesuítas em 1757. Uma expressão dessas práticas foi a aldeia-missão Tavaquara [7], criada na confluência do rio Xingu com o igarapé Panelas. A partir dessa missão e da foz do igarapé Ambé, na margem esquerda do rio Xingu, estabeleceram-se as primeiras bases de Altamira como vila (1897), e posteriormente como cidade, em 1927.
O porto de Altamira foi fundamental para a irradiação da cidade rumo a povoações menores e áreas rurais, já que a cidade serviu de entreposto comercial, estimulando a exploração dos recursos naturais, especialmente dos seringais para extração de látex e a sua exportação para o resto do país [8]. O escoamento de mercadorias era feito de Altamira pela estrada até Vitória, hoje município de Vitória do Xingu, seguindo por barco até o porto de Belém. Vale destacar que ainda hoje a comunicação entre Altamira e Belém se dá pela estrada e pelo rio, principalmente no período das chuvas, quando a rodovia Transamazônica fica praticamente intransitável [9].
Desde a sua constituição, o município passou por várias fragmentações territoriais (Alonso e Castro, 2006). Apesar disso, Altamira ainda é considerado um dos maiores municípios do país, com extensão de 160.755 km2, e densidade populacional de 0,64 hab/km2. Os seus limites geográficos são: ao norte o município de Vitória do Xingu, ao sul limita-se com o estado do Mato Grosso; a leste, nordeste e sudeste com os municípios de São Félix do Xingu e Vitória do Xingu; a oeste, noroeste e sudoeste com os municípios de Brasil Novo, Medicilândia, Uruará, Placas, Rurópolis, Trairão, Itaituba e Novo Progresso. A Figura 1 mostra a projeção gráfica do município de Altamira, dos novos municípios e de suas sedes urbanas, que foram se constituindo, sobretudo nos últimos 20 anos, tendo a Rodovia Transamazônica como eixo principal da ocupação dessa região a partir dos anos 1970.

Para os objetivos deste trabalho, interessa-nos destacar que por trás das formalidades relativas à criação e à alteração de limites municipais, ocultam-se os processos de reagrupamento físico. Estes processos implicam, por um lado, na estruturação e organização de novas divisões geopolíticas e sociais, como é o caso das novas unidades administrativas e territoriais criadas ao longo da rodovia Transamazônica, e seus respectivos núcleos municipais; por outro, na emergência de novas dinâmicas urbanas ao serem incorporadas demandas por serviços urbanos, embora sejam mantidas estruturas agrárias e modos de vida rurais. Em última instância, o campo do urbano se complexifica, porém com particularidades que dizem respeito ao território marcado pela presença das águas e da floresta (Castro e Rodrigues, 2006) [10].
No processo de configuração espacial do município de Altamira, de modo geral, encontramos um núcleo urbano principal –a cidade de Altamira– e uma extensa zona rural, atualmente dividida em áreas devolutas (ou terras da União), em terras indígenas, em áreas de colonização agrícola, projetos de assentamento rural (Pas), unidades de conservação e florestas nacional. Nessa divisão do espaço rural, os inúmeros povoados e vilas onde se constituem grupos e identidades socioculturais, exercem uma função relevante na organização produtiva e nas redes de sociabilidades. Nas proximidades da sede estão localizadas as áreas de colonização mais antigas, as estradas vicinais abertas após 1970, quando foram criados o Projeto Integrado de Colonização (PIC Altamira- Transamazônica) e os assentamentos ‘espontâneos’, originados nas décadas de 1980 e 1990, na Gleba Assurini.
De certa forma, como veremos adiante, esses processos associados a práticas administrativas se expressam através da cidade, por personagens que a religam a outros espaços sociais onde vivem, trabalham e se reproduzem grupos sociais diversos. Na mesma linha, os pequenos portos existentes na extensão da orla da cidade abrigam um sem número de trabalhadores vindos das ilhas, povoados e aldeias ou de lugares entre os rios e furos próximos, e também viajantes de lugares mais distantes descendo o rio Xingu e seus afluentes em direção a Altamira (a “capital”). Esses portos e trapiches de madeira se projetam no rio como palafitas, sobrepondo-se às pedras abundantes nas margens do rio Xingu.
2.1 EXPRESSÕES DAS PRÁTICAS DE DESENVOLVIMENTO: MEDIÇÕES, MOBILIZAÇÕES E NOVOS ATORES
Com a finalidade de compreender na sua temporalidade elementos do processo de (re)agrupamento espacial (físico e social) de Altamira, consideramos pertinente contextualizar, ainda que brevemente, as transformações ocorridas na região, e os vínculos existentes com as políticas públicas e com a emergência de novos atores. No marco desse processo de (re)organização, a cidade de Altamira ocupa uma posição de destaque como núcleo político e social da “região” confluente entre a Transamazônica e o rio Xingu, o que, sem dúvida, está relacionado com as novas condições geradas na região a partir da década de 1970.
O programa de colonização implementado pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) nos anos 1970, teve a rodovia Transamazônica como eixo central. Na região de Altamira, o órgão federal operou através de dois eixos : o Projeto Integrado de Colonização (PIC/Altamira) e o Projeto Fundiário de Altamira (PF/Altamira), com base nos Decretos-leis nº 1106/70, 1164/71 e 68.443/71, que desapropriam as terras do Polígono de Altamira e incluem o município entre as Zonas de Segurança Nacional. Em consequência, a região atraiu intensos fluxos migratórios de pequenos agricultores, com ou sem estabelecimentos rurais, mas que foram se constituindo como unidades produtivas. Esta situação ocorreu de forma semelhante nos demais municípios cortados pela rodovia Transamazônica.
Contudo, paralelamente a esta política de ocupação e de colonização com base na agricultura familiar (modalidade de 100 ha), o Governo Federal, por meio de subsídios ou da política de incentivos fiscais ligada ao Programa Polo-amazônia, priorizou os grandes empreendimentos privados nos setores voltados para a exportação: pecuária, madeira e mineração. Altamira, a principal cidade da região, foi projetada como um dos 15 polos planejados para o estado do Pará. A modalidade de apropriação da terra logo foi definida pela presença desses novos atores que se estabeleceram na terra, que se contrapõe, pela própria lógica de funcionamento, à lógica da pequena produção. Nesse contexto, os projetos de colonização estavam e ainda continuam subordinados ao projeto mais amplo de modernização institucional e econômica do país, e à tensão entre práticas de desenvolvimento.
Nesta direção, num contexto de políticas dirigidas para apoiar e fixar os pequenos agricultores, em meados da década de 1990, parte da área da Gleba Assurini foi destinada ao Projeto de Assentamento Assurini (criado em 17/07/1995). Em 1999, foram implementados os projetos de assentamento –o PA Itapuama e o PA Morro dos Araras [11].
Mais adiante abordaremos algumas das implicações sociológicas que se depreendem das diferentes práticas ou projetos de desenvolvimento. Por ora, centramo-nos nos efeitos das práticas e na emergência de novos atores na região, em decorrência das condições geradas pós-anos 1970, sobretudo a partir das décadas de 1980 e 1990, alterando em grande medida as dinâmicas sociocultural e espacial vinculadas aos projetos de colonização. Os conflitos e as tensões não somente fizeram parte intrínseca desse quadro, mas de certa forma contribuíram para criar uma imagem negativa da Amazônia, veiculada mundialmente como “lugar de pistolagem”, “de trabalho escravo”, “de chacinas”, “de extermínio indígena”, entre outras concepções.
Na segunda metade dos anos 1980, a Eletronorte inicia os estudos para a construção do Complexo Hidrelétrico de Altamira, já idealizado pela empresa em 1975, formado por duas usinas – a de Kararaô e a Babaquara, que, juntas, inundariam uma área de 8 mil km². A usina não chegou a se projetar, em parte, devido às mobilizações geradas no contexto dessas políticas, lideradas por pequenos produtores rurais, povos indígenas e entidades urbanas, que têm como máxima expressão o I° Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Não obstante, em 2000 a Eletronorte (Consórcio Norte Energia) retoma o projeto para a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte realizando novos estudos, num contexto atualizado de mobilizações e de implementação de políticas de gestão e de ordenamento territorial que favorecem a viabilização de grandes projetos locais [12].
Cabe destacar que a Licença Prévia nº 342/2010 e a Licença de Instalação nº 795/2011, ambas relativas ao projeto Belo Monte, foram concedidas, porém sem considerar os seus impactos sociais e ambientais, especialmente sobre as populações indígenas e tradicionais. Igualmente, o canteiro de obra foi iniciado em 2011, sem prévia avaliação do impacto que causaria à cidade, sobretudo na população indígena urbana que teria seus bairros alagados. Cabe destacar que a avaliação dos impactos ambientais e antrópicos é a condição prévia para a construção da Usina, como indicam entre outros, Fearnside, (2013); Bermann (op.cit); Castro et al. (2014). Além, esta ligada às novas condições que surgem a partir da segunda metade da década de 1980, como efeito das mobilizações na Amazônia e da pressão de forças políticas internacionais. Em grande parte, os efeitos dessas pressões acabaram levando as agências financiadoras a rever os seus critérios de financiamento de grandes obras de energia hidráulica na Amazônia, redefinindo os termos de compromisso assinados com as empresas.
Do ponto de vista da eficácia simbólica dessas mobilizações, destacamos a gerada como parte e resultado do Iº Encontro dos Povos Indígenas do Xingu [13]. Este Encontro, realizado em Altamira, em 1988, reuniu diversos grupos indígenas. Além de ser uma manifestação da oposição à construção da Barragem de Belo Monte, o evento contribuiu para a produção e divulgação de representações da cultura indígena e o reconhecimento do índio como “habitante natural da floresta”. Assim, (re)atualizando não apenas a representação exótica dos índios da Amazônia, mas também sua expressão política frente ao Estado e a grandes corporações do setor elétrico, tendo conseguido, como efeito, o cancelamento da construção das hidrelétricas, ainda que retomada 20 anos depois.
Esta imagem do índio ligado à floresta amazônica estrutura ideias extraídas de um arcabouço de cunho evolucionista, produzidas e atualizadas nesse contexto. De um lado, e de forma concomitante, a ideia da Amazônia como a “última fronteira”, ancorada na imagem da “pureza do índio” como guardião natural da floresta, ou seja, mais próximo da “natureza” do que da “cultura”. De outro, a ideia de “frentes econômicas de expansão”, além de uma noção de sociedade e desenvolvimento econômico que sustenta um modelo de contato entre culturas: a “simples” ou “tradicional” (rural) e a “complexa” ou “moderna” (cidade). A primeira é personificada nos “índios” (“autóctones - colectores” e “isolados”) e a segunda nos “brancos civilizados”. A extinção ou perda paulatina dos costumes indígenas e a “incorporação” dos costumes do branco é uma das implicações dessa lógica. Contudo, ainda perduraria uma certa identidade como resíduo ou vestígio do passado indígena, ou melhor, enquanto “remanescentes indígenas” ou “grupos misturados” e, por extensão, com similares características ao resto da população (conforme a dimensão regional ou local).
Neste sentido, favoreceu o reconhecimento e a visibilidade desses grupos num sentido cultural ou exótico, antes que social. Desta forma, condicionam-se a uma ideia de cultura e de ação como sujeitos políticos que lutam pelos seus direitos constitucionais, como a garantia da terra, da floresta, das águas e da vida do Xingu [14]. Mais adiante ampliaremos estas ideias. Por ora, retemos como expressões significativas, no marco dos efeitos do encontro, os índios Kaiapó considerados como referentes “do exotismo dos índios da floresta”, e a viagem internacional empreendida durante o ano de 1990 pela liderança indígena Raoni como “embaixador dos índios da floresta”, juntamente com o cantor Sting.
Não podemos deixar de vincular aqui a “exotização” como uma prática simbólica que costuma ter visibilidade e maior grau de eficácia em contextos de transformações e processos de construção como o de Estado-nação. Pois, nestes contextos, agentes em condições e posições favoráveis intentam postular legitimidade para fazer valer num sentido universalista suas práticas e políticas desenvolvimentistas, isto é, pautadas pela ideia “da modernização e do desenvolvimento da cidade” como o seu principal eixo (leia-se também regional), ambas percebidas como algo inevitável e teleológico. Neste sentido, grupos 'exotizados', como os índios de Altamira (ou do Xingu), costumam emergir socialmente ou ter visibilidade a partir de diagnoses catastróficas sobre a sua existência, como “testemunhas de tradições milenares”, “grupos em perigo de extinção”, “testemunhas de um mundo que desaparece rapidamente” e, por extensão, “assimilados como civilizados ou como vestígios misturados desse passado”, entre outras formulações.
Esse evento de Altamira foi também significativo ao gerar condições que contribuíram para materializar alterações na correlação de forças políticas locais, seja por uma rearticulação das forças ou pelo reconhecimento das mobilizações (ou movimentos). Foi a partir da década de 1990, que diversas organizações políticas direcionaram seus esforços de mobilização, notadamente por meio da articulação das redes de relações de associações ou entidades sindicais (camponesas, indígenas, de mulheres, de educadores e de indígenas da cidade). Este trabalho não pode ser desvinculado das práticas pastorais e indigenistas realizadas por agentes do Conselho Indigenista Missionário e da Prelazia do Xingu, sediadas em Altamira. Através da formação de lideranças rurais e da criação de Comunidades Eclesiais de Bases (CEB), a ação dos agentes pastorais visava, entre outros aspectos, criar condições de vida mais favoráveis para as famílias de agricultores na área da Transamazônica e do Xingu, num contexto de oposição e de conflito com forças políticas locais, como fazendeiros, madeireiros e comerciantes [15].
Um exemplo revelador dos efeitos das práticas pastorais é o movimento pela Sobrevivência na Transamazônica (1991), conhecido posteriormente como Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu (MDTX). A Fundação Viver, Preservar e Produzir (FVPP), constituída em 1992, na cidade de Altamira, foi a expressão formalizada das demandas e reivindicações articuladoras e propositivas do referido movimento como agente mediador, voltado a propor e executar projetos “identificados com uma visão sustentável de desenvolvimento”, através de parcerias com organismos governamentais e não governamentais nacionais e internacionais.
Em 2008, a FVPP tinha 113 organizações filiadas nos municípios da Transamazônica e Xingu, e em 19 municípios do sudoeste paraense. Numa conjuntura política favorável à viabilização de uma “gestão democrática participativa”, os agentes da FVPP implementaram políticas nas áreas de educação (agrícola), florestal, pecuária e pesca, assistência técnica e crédito agrícola, com a finalidade de materializar benefícios sociais, especialmente para as populações ou famílias de trabalhadores rurais. Dentro deste marco, a FVPP foi também uma expressão de mudanças no equilíbrio das relações de forças locais ou estaduais, na medida em que o efeito político da mobilização popular parece ter contribuído para alterar não apenas as diferenças de poder local, mas também as diferenças que as sustentam, como revela a dimensão e o efeito performático da proposta ideológica da FVPP [16].
Em geral, há uma certa tendência para consolidar, legitimar e instituir diferentes atores e seus projetos e/ou visões do desenvolvimento (leia-se rural-urbano). Isto significa dizer que, conforme os contextos e situações, com diferentes autoridades e legitimidades, posicionam-se, de um lado, agentes vinculados a organizações ou movimentos populares e indígenas e, de outro, agentes das organizações comerciais e industriais, como pecuaristas e madeireiros. Do nosso ponto de vista analítico, esses agentes e suas propostas podem ser exemplificados na visão da sustentabilidade proposta pela FVPP, e na visão desenvolvimentista proposta por entidades e representações empresariais, como a Associação Comercial, Industrial e Agropastoril de Altamira (Aciapa), o Sindicato da Pecuária de Corte (Sindicorte), a Associação de Indústrias Madeireiras da Transamazônica (Aimat) e o Sindicato de Indústrias Madeireiras do Alto Xingu (Sinbax). Não pretendemos afirmar que estas entidades sejam as únicas na região, porém, para efeito deste trabalho são consideradas expressões significativas das novas condições sociais geradas a partir da década de 1990.
Nesta linha, em 1997, a Aciapa promoveu o redirecionamento das diretrizes e dos objetivos da associação, passando a tomar parte de atividades destinadas ao “desenvolvimento da região e de Altamira como cidade”, no marco de políticas urbanas sobre uso e gestão do território, participando inclusive da Discussão do Plano Diretor de Altamira, representada pelo seu presidente. A partir deste momento, a entidade tenta ser reconhecida e postular legitimidade protagonizando as discussões sobre o “desenvolvimento da região” e, por extensão, sobre a ideia e modelo “de cidade moderna e desenvolvida”, por exemplo, através da criação do Fórum de Desenvolvimento de Altamira [17].
3. A OBJETIVAÇÃO NO ESPAÇO DA CIDADE DOS MOVIMENTOS DO RURAL E DO URBANO
Foi na década de 1970, no contexto do programa de colonização implementado pelo Incra, que o processo de ocupação e adensamento da população na cidade de Altamira se torna evidente. Milhares de famílias, sobretudo vindas do Nordeste e do Sul do país se instalam na região, notadamente no perímetro urbano de Altamira. Como um evento significativo para a história do país, e para aquela cidade em particular, este período foi representado simbolicamente como um “lugar da memória” no próprio espaço urbano, com a construção da “Praça da Integração” [18] (Figura 2), localizada no centro da cidade, ao lado do mercado, em uma das ruas mais movimentadas pela circulação de pessoas e tráfego intenso na entrada e saída de Altamira [19].

A pretensão performática deste ato, no sentido da eficácia que exerce para criar e objetivar elementos simbólicos de unidade fica ainda mais evidente no texto da placa:
Estamos integrados em Altamira onde vivem brasileiros de todos os estados. Homenagem da Administração Municipal aos integrantes de nossa comunidade, responsáveis pelo progresso de nossa terra.
Os dados sobre a população de Altamira, em comparação com os do Pará e do Brasil no período entre 1960 e 2014, são indicadores importantes e necessários para aprofundar a análise e compreender melhor os processos de (re)agrupamento no espaço da cidade e as conexões com as transformações geradas a partir da década de 1970 (Quadros 1 e 2).


Os Quadros 1 e 2 demonstram a explosão demográfica ocorrida no município de Altamira nos últimos 54 anos (1960 a 2014), com um crescimento da ordem de 790,7%, superando o crescimento do estado do Pará e do Brasil, que apresentaram crescimento de 424,9% e 189,5%, respectivamente. Ao analisarmos a evolução populacional por situação do domicílio, este crescimento atinge proporções extraordinárias, enquanto que a população urbana do Brasil cresceu 443,9% no período, a do estado do Pará 424,9%, o município de Altamira exibe um crescimento da população urbana na ordem de 3.044,2%. Enquanto o Pará possui um terço de sua população rural, Altamira compara- se ao Brasil, em termos relativos, com 84% de sua população urbana e 15% rural, ainda que seja o maior município do país em extensão territorial.
Considerando outro recorte dos dados do Quadro 1, a população de Altamira quase duplica o número de habitantes no período de 1960 a 1970. De um total de 11.987 habitantes em 1960, passa para 15.345 em 1970. Este crescimento é ainda mais acentuado nas décadas seguintes. Para o nosso objetivo, interessa destacar não apenas o crescente aumento da população no município de Altamira, mas também a concentração contínua no núcleo urbano. Entre 1970 e 2000, a população urbana passou de 5.905 para 62.285 habitantes (um índice de 504,65%). Desse montante, o maior crescimento se dáde 1970 a 1980, ou seja, passa de 5.905 para 26.911 habitantes.
Em relação à relativa estabilidade (ou queda) no número de habitantes na área rural durante o período de 1980-1990, devemos considerar que além dos desmembramentos territoriais (criação de novos municípios) ocorridos nessa década –o que implica em redistribuições populacionais–, o grande fluxo de saída da população rural para a cidade, parece evidenciar, de forma objetiva, o aumento do número de habitantes da população urbana.
É importante destacar que a década de 1980 foi um período que muitos colonos abandonaram seus lotes na Transamazônica, sendo a cidade de Altamira uma das principais escolhas de destino desses migrantes. Contudo, ao final dos anos de 1990 e, sobretudo nos primeiros anos do século XXI, há um novo fluxo migratório no sentido contrário, isto é, da cidade de Altamira para o campo. No entanto, a confirmação pelo Estado da construção da hidroelétrica de Belo Monte no rio Xingu, tendo a cidade de Altamira como epicentro, retomam de forma extraordinária os fluxos migratórios para Altamira [20]. Neste contexto, parecem-nos significativas as formulações do dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira, extraídas de uma entrevista coletiva realizada em dezembro de 2004. Além de falar sobre o fluxo migratório na região de Altamira, indica outros elementos desse processo, considerados importantes para compreender, de modo geral, as estratégias políticas a respeito dos (re)agrupamentos e a organização dos mesmos no município, em particular no núcleo urbano.
[...] No momento, pelo menos de 2000 para cá, nesses últimos quatro anos tem aumentado mais o número de famílias migrando da cidade para o campo [...]. O que tem de agricultor da cidade voltando para o campo, não é fácil [...]. Num momento teve um foco assim de invasão do campo, mais foi de 96 para trás. [...]. A partir de 94, 96 que já foi dada a questão do crédito [foi], implementada a questão do crédito [agrícola] já foi havendo um retorno, alguns da cidade foram para o campo e os que vieram do campo voltaram, e isso tem um motivo.
P: Como assim?
R: Era porque antes não tinha incentivo rural. Nos anos 80 até os anos 90, teve um fluxo muito grande de pessoas do campo vindo para a cidade [...]. Teve um prefeito, um gestor que dizia, fazia uma propaganda muito grande de Altamira dizendo que era muito bom, que aqui era a solução, e isso funcionou. O pessoal vinha para cá, saíram muitos da roça e vieram para a cidade, isso foi no período do Arlindo. De certa forma, ele investiu um pouco na estrutura da cidade, ele investiu, em vista dos outros que na verdade não faziam nada, então ele investiu um pouco e com isso trouxe muita gente do campo para a área urbana. [...] Aí, de 90 para cá começou a sair os créditos (âmbito federal), e deu uma boa segurada [refere a “fixação das famílias na área rural]. Hoje é difícil você ver placas de vendas, e naquele período eram constantes as placas de vendas nas propriedades rurais, nos meios de comunicação, vendas de propriedades.
Interessa-nos destacar, por um lado, que o abandono das terras para morar na cidade nos anos de 1980 e 1990 gerou uma visível concentração fundiária por parte de pecuaristas (fazendeiros), comerciantes e políticos da região –o que não pode ser desvinculada da grilagem de terras –de novas áreas ou das terras ocupadas por agricultores familiares. Por outro lado, há conexão desse fluxo com a política da administração municipal, voltada principalmente para a sede do município. Na década de 1980, a Prefeitura regularizou novos bairros através de loteamentos de áreas urbanas, porém as condições nestes novos espaços (e/ou bairros) eram deficientes, favorecendo, em parte, o retorno “ao campo” de muitas famílias ou de algum dos seus componentes anos depois, num diferente contexto de políticas de incentivo ao retorno e à fixação do homem no campo, através da política de créditos do governo federal. Neste sentido, não podemos deixar de relembrar que as intervenções orientadas à população da área “rural” do município costumam estar ligadas às políticas do Governo Federal, num contexto mais amplo de intervenção na Amazônia. Em geral, as políticas municipais têm como eixo de intervenção a cidade e sua população (ver nota 2).
Estes processos geraram, direta ou indiretamente, condições favoráveis à ocupação urbana pelas pessoas procedentes da área rural, acelerando o movimento de ocupação e expandindo a cidade com a criação de novos “espaços na área urbana” [21], especificamente na direção noroeste (em direção à Transamazônica). A Figura 3 ilustra esse processo de expansão e deslocamento da população para a cidade e a conformação dos bairros. O que implica numa (re)significação das divisões e distinções sócioespaciais que tomam como referência a polaridade rural-urbano. Neste sentido, as interpretações do dirigente sindical, num momento posterior da entrevista acima referida, são exemplares:
Olha, o bairro de Brasília, ele é basicamente composto de pessoas de origem rural, as pessoas que vieram da área rural [entende-se também indígenas], eles normalmente vinham para Brasília. Brasília era periferia, hoje não, hoje cresceu muito, mas na época era periferia de Altamira. Então esse é o bairro mais popular, fica para lá, quem vai para a Transamazônica, do outro lado do Igarapé Altamira [...]. Era o bairro mais pobre da cidade, como sempre, né. Qualquer pessoa que vier da área rural vai procurar um lugar mais barato; muitos deles às vezes entregavam a propriedade por quase nada.
P: Qual era a estrutura desse bairro?
E: [a estrutura do bairro] era muito péssima, a água muito ruim, a luz já tinha, em certa parte, sendo que a luz não era elétrica, era de motor, então era uma energia de péssima qualidade, e uma boa parte ainda não tinha. Asfalto nem se falava nas ruas, a limpeza pública deixava muito a desejar. Era o lugar que as pessoas com um recurso pouco poderiam arranjar um cantinho para estar se acomodando, comprando uma casinha.
[...] Além do bairro de Brasília, saindo pelo alto [leste cidade] às margens da rodovia [...] na Magalhães Barata, todo aquele pessoal ali do Açaizal [Ig. Altamira, Centro], tem o bairro Mutirão (Progresso) [...] são pessoas que vieram dessas famílias [de origem rural], que vieram do bairro de Brasília [...] O bairro da Liberdade, temos hoje o Santana, Mutirão todos são bairros que vão se formando com essas pessoas da área rural [...]. Quem chega a Altamira vindo de Marabá [estrada Marabá-Itaituba pela Transamazônica], todos [os bairros] estão à direita.

Sem deixar de considerar as particularidades das populações indígenas, ligadas em grande parte às continuidades e descontinuidades da política indigenista tutelar, o movimento migratório também ocorre com essas populações localizadas no Xingu, que saem da aldeia para morar na cidade de Altamira [22]. Posteriormente retomaremos algumas das implicações da prática da tutela, pois nos interessa neste momento sublinhar a prática simbólica dessa política, que se manifesta socialmente por meio de uma linguagem paternalista e evolucionista que liga o índio à aldeia (ou floresta, leia-se também natureza). Esta pressupõe uma ideia de “integração”, exemplificada pelas noções de “índios misturados” ou “des-aldeados”, segundo a qual a perda paulatina das características originais e a “incorporação” de costumes dos brancos são algumas das implicações. Em outras palavras, o índio que sai da aldeia para morar na cidade é definido com características similares ao resto da população, na sua dimensão regional ou local.
Interessa-nos destacar, das formulações extraídas das referidas entrevistas, a aparente conexão entre as divisões espaciais e as sociais que delas se depreende, evidenciando o processo de construção de uma hierarquia no espaço físico da cidade, através da qual se projetam diferenças sociais. Isto fica mais explícito nas formulações do último entrevistado, quando define Brasília como o “bairro mais popular”, e o conjunto dos bairros criados durante o processo de ocupação como aqueles que “vão se formando com essas pessoas de origem rural”. Contudo, esses bairros e as diferenças sociais que objetivam são percebidos como se fossem culturais, mais que propriamente sociais. Neste sentido, destacamos as representações “famílias pobres”, “origem rural”, “periferia”, “bairro mais popular”, “índios misturados”, que definem e classificam social e culturalmente as pessoas que moram, por exemplo, nos bairros de Brasília, Açaizal e outros “bairros pobres” posteriormente formados, como Liberdade e Progresso, entre outros.
Ampliando a linha de argumentação, pensamos que essas representações, compreendidas como marcas de um “estigma”, favorecem e alimentam as diferenças de poder e, por extensão, as desigualdades sociais, na medida em que atuam como inibidores de comportamento social e individual das pessoas e dos grupos estigmatizados, isto é, como (re)produtoras de uma certa “territorialização rural” marcada pelo estigma e tendência a evitar essas pessoas e grupos [23]. Neste sentido, são relevantes as interpretações formuladas pela funcionária da Associação dos Comerciantes (Aciapa), que evidenciam outros elementos relativos à eficácia simbólica que exerce a mencionada oposição no processo de ocupação. Trata-se de uma entrevista informal realizada em março de 2005, em decorrência da disposição e interesse da informante em conversar com as autoras deste trabalho. Num momento da nossa interação, pedimos para a secretária esclarecer o significado de “invasão”, atribuído por ela a um determinado bairro.
A gente chama invasão porque é assim, pelo que eu entendo, eu não sei pela lei como é, mas, por exemplo, esses bairros aí [como o bairro de Bela Vista], no início era um loteamento que era bem deserto, não era desenvolvido, e aí as pessoas começaram a invadir o terreno, começaram a morar e foi aumentando e hoje é um bairro lá, é Bela Vista, e hoje está incluído no Uirapuru. Não tem muito tempo, foi um ano e meio a dois que começaram a desenvolver esse bairro [...]. Você indo lá vai ver casas bonitas, tem escola , tem posto de saúde [...]. Eu não sei se continuam como invadido, ou pagaram o terreno, só sei que a história do bairro é assim, está incluído no bairro Uirapuru [...], mas a gente conhece como invasão.
P: Quem são as pessoas que moram lá?
E: Geralmente são pessoas que vêm de lá [área rural da Gleba Assurini], vem do Dezoito, também de outros lugares, mas é mais de lá [Assurini], foi saindo aquele comentário e tal, que estava havendo loteamento que o pessoal estava invadindo [...] o pessoal da roça chegavam em Altamira – ouviam aquele comentário e iam para lá, entendeu?
Cabe destacar o termo “invasão”, que faz referência implícita às disputas pelo uso e apropriação do espaço, alguns ainda em processo de regularização administrativa e outros já formalizados. Entretanto, compreendido como termo nativo, estrutura ideias negativas de sociedade e cultura, que costumam ser usadas para definir determinados espaços (rurais ou urbanos) e a população “pobre” que os integra. Cabe destacar, nestes bairros ou “invasões” usualmente estão ausentes as políticas ou serviços de atenção às necessidades básicas (saneamento urbano, esgoto, abastecimento domiciliar de água etc.). Em geral, tais serviços urbanos são condicionados ao “tempo da política” [24], além dos acordos firmados, sobretudo nos últimos anos, entre o prefeito e os responsáveis pela implementação dos grandes projetos, no marco dos efeitos da hidroelétrica Belo Monte.
Ampliando estas argumentações, sublinhamos o uso de ideias com base na oposição rural-urbano, que a informante pressupõe como critério para classificar e distinguir socialmente os moradores desses bairros através da sua objetivação como sinais distintivos inscritos no espaço físico da cidade de Altamira. Estes princípios classificatórios ficam ainda mais explícitos nas formulações extraídas num momento posterior da entrevista com a secretária da Aciapa, além de explicitar a dimensão sociológica e etnográfica do processo de ocupação e da lógica evolutiva que a sustenta.
E: Assurini é agrovila, é travessão [25] do Assurini; P: como assim? [...]
E: É assim, a gente não discrimina com isso ou aquilo não; só que a gente também não fala é de Altamira [cidade] [...] não considera como de Altamira; é do Assurini, é do Dezoito. Mas é sim, são populações daqui, classificados como habitantes de Altamira [aqui se refere a Altamira como área fora do núcleo urbano, porém próxima].
P: O que você quis dizer com travessão?
E: A gente fala travessão porque não tem aquele desenvolvimento como o da cidade, é como se você fosse para a roça. Assurini é um lugar desses, é como se fosse uma roça. Agora eu não sei se lá já tem energia. Aí as pessoas atravessam para lá pela balsa, fica do outro lado do rio, é mais ou menos uma hora para atravessar, aí as pessoas chegam lá, pega carro que te leva para o travessão, aí tem várias casas. Tem muita gente [morando na cidade] que faz roça para lá [...]. Então a gente fala em travessões [...] tipo como se você fosse para um lote, para uma roça de alguém, aí tem aquele travessão, tem as agrovilazinhas antes de você chegar na cidade. Assim, é Assurini lá.
P: E o Dezoito?
E: Ah, já o Dezoito é bem mais desenvolvido. O Dezoito é uma agrovila, só que já é bem mais desenvolvido porque o asfalto já passa bem lá na frente; tem os travessões, mas são mais lá pra dentro, mas o Dezoito já é bem conhecido há muito tempo [...]. Altamira um tempo atrás também era uma cidadezinha, agora é uma cidade bem desenvolvida.
Em síntese, das diferentes formulações extraídas das entrevistas examinadas neste tópico depreende-se uma certa morfologia social organizada segundo uma linguagem temporal (evolutiva), referenciada e sistematizada nos polos “rural-urbano”. É como se a ocupação e a constituição dos bairros de Altamira gerassem, como parte e resultado desse processo, uma dada lógica cultural que objetiva dar visibilidade social no sentido negativo a determinados espaços da cidade e também à população que os constitui.
Nesta linguagem, a roça (também sinônimo de interior, aldeia) é expoente do polo rural “subdesenvolvido” e a cidade (comércio) do polo urbano “desenvolvido”, sendo o “travessão” e as “agrovilas” os fluxos intermédios de um e outro polo. Em outros termos, no processo de desenvolvimento os “nós” dos “travessões” tendem a transformar-se em “agrovilas”, que, por sua vez, transformam-se em “cidadezinhas” e, por último, em “cidades” ou sedes municipais.
4. OS EFEITOS OBJETIVANTES DA SIMBOLOGIA DA MISTURA INDÍGENA E O APARENTE PARADOXO CAMPO-CIDADE
A população indígena localizada nas áreas indígenas na região de Altamira é de aproximadamente 7.000 habitantes, e na cidade de Altamira habitam cerca de 1.500 índios [26], sendo os Xipaia, Curuaia e Juruna os grupos que têm maior expressividade. Como uma experiência histórica particular, há várias gerações, a vivência dos índios e das famílias indígenas, especialmente Xipaias e Xipaias-Curuaia, na cidade de Altamira tem favorecido a criação de vínculos e de sentimentos de pertença. Desta forma, põem em questão ideias a respeito das sociedades indígenas, arraigadas, de um modo geral, no senso comum brasileiro, como a ideia de índio localizado numa dada aldeia ou território e, por extensão, com rasgo de pureza. Contudo, a existência social desta população indígena não é reconhecida enquanto sujeitos políticos ou coletividade organizada que reivindica direitos pela sua condição indígena, contextualizado na política indigenista tutelar [27]. Esta política é elaborada e destinada, em última instância, para os índios que habitam nas aldeias (ou “índios aldeados”) e, por extensão, desconsidera e exclui os “des-aldeados” ou “misturados”, tanto os que habitam na cidade ou famílias que moram na beira do rio, ou em outras áreas ainda não reconhecidas oficialmente como “terras indígenas”.
Nesse marco, há também situações em que agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) desenvolvem práticas assistencialistas com “os índios misturados da cidade”, porém, percebidas por estes como se fossem favores, além de estarem condicionadas à atribuição da carteira de índio, documento que representa a identidade legal do índio.
Nesta mesma linha, um dos efeitos constitutivos da prática tutelar tem sido a criação de relações de interdependência desigual, que configuram um “campo de ação indigenista” (Oliveira, 1988), no qual se situam agentes com posições e autoridades diferentes, como os agentes do órgão do governo federal, os missionários, os antropólogos e as populações indígenas. As relações nesse campo variam conforme as situações e contextos. Contudo, vale dizer que as disputas travadas entre os diferentes agentes têm favorecido a emergência de lideranças e dos grupos cujas práticas têm contribuído para o seu reconhecimento e desses grupos como novos atores.
A produção de conhecimento sobre os índios de Altamira exigiria dar uma particular atenção às ações do campo indigenista construído nessa região, o que vai além dos limites deste trabalho. Para os nossos objetivos interessa mencionar que há uma estreita conexão entre as práticas e agentes de medição do Conselho Indigenista Missionário (Cimi Norte II) e as dos agentes da Funai em Altamira, e a emergência de lideranças Xipaia na cidade de Altamira.
O Conselho Indigenista Missionário, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foi criado em 1972, visando rever a ação da Igreja Católica junto aos grupos indígenas. Partindo de uma proposta de conscientização e de organização dos grupos, os agentes missionários procuram manter e resgatar os direitos dos grupos indígenas, como a defesa e garantia da terra. De modo geral, as práticas do Cimi em Altamira, e também as dos antropólogos compartilham com a Funai uma certa lógica de dar prioridade às sociedades indígenas que habitam nas aldeias. Contudo, nos anos de 1990, os agentes missionários começaram a viabilizar algumas ações voltadas para a mobilização e organização da população indígena que habita na cidade de Altamira, definindo revindicações como o direito à saúde e ao antigo território da missão Tavaquara.
Contextualizada no marco da retomada dos debates sobre a barragem de Belo Monte em 2000, a demanda do território indígena na cidade tem um significado particular para os trabalhos de mobilização e os efeitos objetivantes das ideias de mistura e cultura indígena sobre o espaço social da cidade. Os bairros que concentram o maior número de indígenas serão inundados com os possíveis efeitos das obras da hidrelétrica, como os bairros Independente II, Altamira, Açaizal e Brasília [28].

No Bairro Independente II mora um grupo familiar constituído desde 1964, pelo casal Maria Xipaia e Alberto Curuaia. Trata-se de um grupo bastante coeso, que mora nesse lugar há quatro gerações. A Figura 5 mostra alguns membros desta família junto à liderança Xipaia ao centro da foto. Cabe destacar a atuação e figura desta liderança nesse contexto, que fez questão de ser fotografada pelas pesquisadoras neste momento junto com os “seus parentes” (Figura 5).

Em decorrência das práticas ligadas ao Cimi, emergem na cidade lideranças indígenas Xipaia e Curuaia, que tentam fazer valer e reconhecer socialmente os índios da cidade. Com a finalidade de captar recursos e de materializar demandas, entre outros aspectos, essas lideranças criaram, em 2001, a Associação Indígena dos Moradores de Altamira (Aima), reforçada no contexto do Programa Raízes, criado pelo Governo do Estado em 2002, para implementar políticas com as sociedades indígenas e as populações remanescentes de quilombos.
Além da Aima, em 2003 foi criada a Associação Cacique Agrícola, que é a representação do Índio Regional de Altamira Xipaia e Curuaia (Acarira). A fundação e a prática da Acarira estão diretamente vinculadas aos trabalhos realizados pelo então Delegado Regional da Funai de Altamira, concretamente através da empresa Amazon- Cooperativa. A cooperativa compra a castanha extraída pelos índios da região, sobretudo os Assurini, Araweté e Parakaná, e através de Acarira contrata, no período da safra, os índios que moram na cidade para o beneficiamento da castanha. Segundo a interpretação da liderança Xipaia e presidenta de Acarira:
A Acarira foi criada para organizar e beneficiar famílias [indígenas] que moram na cidade de Altamira. Aí, a Acarira contrata o índio que vai trabalhar na cooperativa. [...] Porque vou lhe dizer, Benigno (delegado da Funai] é uma benção para mim, ele veio bater na minha porta quando mais precisava [...] os índios gostam muito dele. Só que ele não é como Deus, nem todo mundo gosta dele. Tem índio por aí que não gosta dele [referência implícita às lideranças de Aima e agentes do Cimi].
As interpretações da liderança e presidenta de Acarira, extraídas da entrevista realizada em março de 2005, nos parecem reveladoras para pôr em evidência elementos do contexto de constituição da Acarira. Destacamos o particular vínculo moral que a presidenta estabelece com o agente da Funai de Altamira, o que não pode ser desligado da prática assistencialista da Funai na região, em particular a do próprio agente indigenista.
Nesta linha analítica, as divergências entre lideranças e agentes do Cimi e Funai são também conexões que se despreendem da fala da presidente de Acarira. Nesse contexto, foi criada uma situação de conflito entre os representantes das duas associações, favorecendo a desestabilização dos trabalhos realizados pela Aima. Pondo no cenário outros aspectos relacionados à experiência e à condição indígena como tutelados, que estão contribuindo, ainda que aparentemente paradoxal, para dificultar os trabalhos de mobilização e, ao mesmo, tempo gerar símbolos identitários como o de “sangue índio”. Neste sentido, destacamos a experiência que unifica as lideranças dessas entidades e, por extensão, a dos Xipaia e Curuaia da cidade como “índios misturados” [29].
Em termos gerais, a base unificadora da existência desta população está fundamentada em ideias de cultura e de índio (ou sociedade), expressas, segundo contextos, através de um código cultural exemplificado, entre outras representações, pelos “índios misturados”, “civilizados”, ou “des-aldeados”, fortemente arraigados na região. Destacamos os pressupostos evolucionistas dessas representações, ligados em grande parte à ação indigenista, compreendida como prática orientada à integração do índio ao processo de construção do Estado-nação, isto é, com base na ideologia da nacionalidade e na mescla das três raças e culturas como legitimadora desse processo de unificação político-cultural.
Contudo, essas ideias de “cultura” e de “índio”, nos contextos em que são atualizadas pelos agentes, favorecem a criação de um discurso sobre o “sangue índio”, contribuindo concomitantemente para negar ou confirmar a identidade do índio de Altamira. Por um lado, a manifestação e o reconhecimento social dessa população como grupo indígena; e, por outro, gera condições para que as lideranças que postulam legitimidade criem representações de si e dos grupos indígenas com base em uma ideia de “autenticidade” e de “mistura”, no marco maior dos efeitos das disputas travadas entre os agentes e as práticas do campo de ação indigenista.
Vejamos as interpretações de um morador de Altamira, extraídas de uma entrevista informal. Este informante, além de pôr no cenário de forma exemplar os efeitos simbólicos dessas disputas, resume a percepção que a maioria dos habitantes da região tem a respeito dos índios que moram em Altamira ou que “saem da aldeia para morar na cidade”:
[Os índios que moram na cidade] não têm mais os costumes do índio, têm os costumes do homem branco, foram criados na cidade. Eles sempre falam que são filho de índio. Só que ele [o índio] pode ser filho de índio, mas ele se criou na cidade, vai vestido que nem nós, come fritura [...] ele pode ser filho de índio, mas ele é misturado, mora na cidade. Tem esses aí que moram em Brasília, Açaiçal, Liberdade, eu nem sei qual é a etnia deles [refere-se aos índios Xipaia que moram esses bairros].
Com a intenção de ampliar estas formulações, as da liderança Luis Xipaia nos parecem reveladoras, extraídas do trecho de uma entrevista realizada na casa desta liderança em Altamira, em dezembro 2004:
Hoje o nosso povo se tornou muito frágil por causa dessa mistura, entendeu? [referência implícita da liderança às tensões, acima referidas. Neste sentido, a interrogação-afirmativa é dirigida à pesquisadora a título de cumplicidade]. Então o nosso povo tem que fazer ficar a cultura de novo forte porque no conhecimento [refere-se ao conhecimento cristalizado ou de sentido comum] tem duas nomeações para o índio. O pessoal fala ‘aquele índio puro e aquele já mestiço’ [...]. Tem índio que ainda sai da aldeia, índias também, né? Eu vejo assim, fico muito preocupado quando vejo isso porque perde o costume dele, a força dele. No nosso caso, eu me considero índio, não vejo a minha mestiçagem nas minhas coisas, mas também eu não posso negar o lado do meu pai branco, né? Então você já não tem aquela consistência que um povo puro tem. E você já fica dividido entre duas ideias: a do índio [puro] e a do branco [mistura]. Aí a cada mistura a gente sofre [porque] a gente vai ficando mais fraco. Então o nosso povo está fraco de opinião, não é mais a mesma ideia [que havia] do passado [...]. Por isso que eu falo que a cultura tem que ficarforte, tem que trazer de volta para o povo ficar forte e defender osnossos direitos.
Não podemos desvincular a fala de Luís do trabalho destinado a se reconhecer e legitimar como representante indígena, no contexto das disputas geradas como parte e resultado das ações empreendidas através da Acarira.
Em diversas entrevistas formais ou informais e em observações de campo, membros das diferentes famílias indígenas que eram definidos como “misturados” referiam-se àqueles que questionavam a sua “autenticidade” usando outras metáforas de pureza, tais como: “esse pessoal daí fala que é índio, mas ele é de longe”. Por exemplo, referindo-se aos membros das associações Aima e Acarira, questionavam suas ações usando as ideias de sangue e mistura para desqualificá-los como índios.
É como se antes do processo de objetivação dos direitos, que aparentemente não parecia possuir sinais diacríticos que os distinguissem dos “seus vizinhos” (resto da população regional rural), a simbologia do sangue se tornasse socialmente significativa para avaliar ou definir os comportamentos de uns e de outros membros das associações. Contudo, estes comportamentos, mesmo se mostrando posteriormente contraditórios, na prática são sancionados e reconhecidos como legítimos, com base na definição de critérios de identidade índia.
É neste marco que devemos compreender o uso da ideia de sangue pela liderança para desqualificar o “outro”. Isto é, com base na oposição entre pureza e poluição, a liderança define os atributos indígenas do “seu povo” e utiliza a metáfora do sangue para questionar a atitude (de “fraqueza”) que parte do seu povo adotou (“os outros”) a favor da Acarira e da rede de relações a ela vinculada.
Neste sentido, são significativas as formulações de Luis Xipaia no último parágrafo da entrevista. No contexto de disputa, põe em evidência, de um lado, a dificuldade de conseguir direitos enquanto “índio misturado”, isto é, “a cada mistura a gente sofre [porque] a gente vai ficando mais fraco”; de outro lado, o reconhecimento e a garantia
de direitos têm como condição mostrar que têm e compartilham uma cultura comum, nos termos da liderança, “por isso que eu falo que a cultura tem que ficar forte, para o povo ficar forte e defender os nossos direitos”.
Deste ponto de vista, a disputa nos revela, entre outros aspetos, o processo de objetivação do sanguee suas implicações, pondo no cenário o próprio questionamento de uma das coisas mais essenciais: “o sangue”. O enfraquecimento do índio e da cultura (ou perda desta) é gerado quando sai da aldeia e vai para cidade, porém é passível de ser recuperada ou de ficar forte. Em outras palavras, a crença na “miscigenação” ou no reconhecimento de ser “índio, mas misturado”, é vivenciada como um dos elementos que dão sentido à experiência social e histórica das famílias Xipaia e Curuaia.
Ainda que num sentido generalizado, destacamos aqui a resolução do aparente paradoxo (leia-se também “autenticidade da mistura”) por parte da liderança, como se depreende das suas primeiras formulações. O reconhecimento de ser índio, porém misturado, possibilita localizar o índio e o seu povo (Xipaia) num passado original, na aldeia na floresta (leia-se um “povo puro” e “sem mistura”) e, ao mesmo tempo, a mistura o situa na cidade e no seu tempo presente: o do “pai branco”.
Desta perspectiva, a referência implícita que faz à cidade está ligada ao branco como mistura –o novo e a mudança– e, por extensão, à luta pelos direitos. Ambos os elementos –o do mundo do branco e do índio– são constitutivos da experiência social desta liderança e também do povo Xipaia-Curuaia que habita na cidade de Altamira. Isso não quer dizer que exista uma unidade de critérios ou limites de grupo, mas sim que a crença na existência “do nosso povo” –nós índios– é inquestionável. O conteúdo é que continua sendo objeto de disputa. Neste sentido, como sugere Douglas (1966), só é possível definir o que se exclui –regrar o conteúdo a respeito da mistura ou acabar com ela– quando os moldes da estrutura estão fixados.
A mistura,assim entendida, não implica a perda da pureza original nem a assimilação ou síntese, mas a “continuidade de origem” dada pela herança cultural do “sangue índio”. Quando essa herança é projetada no branco, as qualidades ou “atributos naturais” vinculados ao “sangue índio” permanecem em sua essência. Mas,
acostumados ao “novo”, à cultura da cidade (ou branca), “consomem” principalmente os elementos desta. Em termos da experiência social dessas famílias, trata-se de uma oposição entre o “índio” como “puro”, “original”, “estático” (aldeia) e o “branco” como “mistura”, “novo” e “mudança” (cidade). Questionar um ou outro implica pôr em cheque a própria existência social.
Dentro desse contexto analítico, a mistura não significa metade branco e metade índio; sua existência passa pelo reconhecimento de ser “cem por cento índio”. Trata-se de um simbolismo que ao estruturar ideias comuns, está contribuindo para criar e alimentar sentimentos de identidade. A crença na existência de uma cultura original, “natural”, que foi “quebrada” pelas “forças externas”, legitima também as ideias das “lideranças” quando pretendem fazer com que a “cultura fique forte de novo”, isto é, “trazê-la de volta”. Interpretações que pressupõem uma “invenção” do passado e/ou seleção e ordenação da memória, a partir da qual estas lideranças, entre outros, pretendem dar sentido à experiência social e individual do grupo, com o fim de justificar as ações do presente, voltadas para o futuro.
Aqui não podemos deixar de destacar a eficácia simbólica que exercem as conceituações elaboradas pelo antropólogo, ao serem objetivadas e cristalizadas na realidade social [30]. Um exemplo paradigmático a este respeito é a instituição de atributos indígenas a partir da classificação linguística elaborada pelos especialistas, como os Tupi e os Jê, como põe em evidência a formulação dessa liderança Xipaia, sobretudo num momento posterior da entrevista, quando diz:
Nós somos um povo Tupi, e o povo Tupi é um povo dócil, [que] se deixa levar [pela cultura do branco]. Não é que nem os Kaiapó um povo rude e forte que sabe preservar, até hoje, a sua cultura.
Para complementar estas observações, além de contextualizá-las estabelecendo vínculos com o saber do especialista, ampliamos alguns pontos anteriormente abordados em relação às percepções e diagnoses elaboradas sobre os índios. Há um senso comum geral (ou global), e também no âmbito acadêmico em relação às populações indígenas do Brasil, e em particular da Amazônia, que implica no uso de representações sobre os índios como grupos exóticos. “Selvagens”, “aborígenes”, entre outras, costumam ser as expressões mais frequentemente utilizadas para defini-los, objetivadas a partir da ideia de traços fisiológicos e culturais (a língua indígena, a vestimenta e outras práticas culturais como as danças e as músicas). Nesta perspectiva, recordamos que a manifestação exponencial do exotismo indígena refere-se àqueles grupos que habitam lugares recônditos da Amazônia, como na região do Xingu, cujas concepções remetem a um arcabouço evolucionista atualizado, sobretudo em contextos de mobilização e transformação, como por exemplo, em eventos como o I° Encontro dos Povos Indígenas do Xingu.
Neste sentido, da mesma forma que há uma ideia de “pureza indígena ou autenticidade indígena" exemplificada na representação dos indígenas como habitantes da floresta, também há outra de “poluição” ou “de mistura indígena”, isto é, como resíduos do passado indígena materializado naqueles índios que nasceram ou moram na cidade. Ampliando estas argumentações, não será demais lembrar os efeitos de divulgação ou de popularização que exerceram para a construção e cristalização dessas percepções, tanto as teorias evolucionistas do final do século XIX e início do XX quanto os teóricos da aculturação e/ou do contato, através das ideias de “traços culturais” e de “frentes de expansão” na literatura sociológica a partir dos 1970. Há, ao mesmo tempo, uma noção de grupo ou sociedade original vinculada a uma aldeia ou território rural e uma interpretação de cultura como expressão estática ou anacrônica de um passado longínquo.
Ora, não pretendemos afirmar que as teorias evolucionistas ainda hoje sejam usadas enquanto base analítica nesses estudos. No entanto, os efeitos desse saber continuam sendo produzidos e cristalizados nos diferentes contextos em que se manifestam.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a intenção de explicitar os objetivos e as evidências principais do nosso trabalho, para finalizar, gostaríamos de retomar algumas observações expostas no decorrer do texto. Um dos aspectos que buscamos mostrar foi de que maneira a simbologia do rural-urbano, num contexto de transformação e de viabilização de políticas de desenvolvimento, contribuiu para objetivar e criar, através do espaço da cidade, distinções e identidades por meio dos agentes e dos novos atores que emergem como parte e resultado constitutivo desse processo.
Foi indicado que ideias a respeito do rural-urbano, ao serem usadas e atualizadas por agentes em contextos de disputa e de mobilização no marco de processos de reagrupamento urbano, como examinado no caso de Altamira, geraram condições para criar e definir, por meio dos efeitos simbólicos da mobilização, atributos culturais a partir dos quais se definem e instituem tanto as identidades e/ou classificações quanto os reagrupamentos urbanos, que passam a fazer parte do mesmo espaço ou universo social. Isto implicou na construção, por parte dos agentes, de um discurso evolucionista temporal (ou por etapas) sobre a situação atual dessas populações, com representações positivas e negativas a partir dos polos rural e urbano, tais como “pobreza”, “origem rural”, “mistura”, “vestígios do passado”, “grupos em perigo de extinção”, “índios da floresta” e “testemunhas de um mundo que desaparece rapidamente”.
Também indicamos que as diferentes denominações do processo de agrupamento urbano de Altamira referem-se a condições sociais geradas como parte e resultado da dinâmica sociopolítica que ocorreu nessa região nas últimas décadas, refletindo sobre a expansão dos bairros da cidade a oeste e acompanhando o rio Xingu. Neste sentido, indicamos que os “travessões”, seguidos das “agrovilas” e vilas criadas no eixo da Transamazônica passam a formalizar-se como sedes de novos municípios. Nesta configuração e visão sociológica do espaço, Altamira ocupa uma posição de destaque.
Na base dessas denominações e diagnósticos, segundo a linguagem evolutiva (ou temporal), apresenta-se a aldeia como expoente do polo rural “tradicional ou subdesenvolvido”, e a cidade o do polo urbano “moderno e desenvolvido”, sendo o “travessão” e as “agrovilas” os fluxos intermédios entre um polo e outro. Nessa cronologia de etapas, os “nós” dos “travessões” tendem a se transformar em “agrovilas” que, por sua vez, transformam-se em “cidadezinhas” e, por último, em “cidades” ou sedes municipais. Isto é, estrutura-se uma ideia de origem (ou passado) a partir de um presente e uma direção ao futuro (referenciada na ideia de cidade e desenvolvimento), que contribui para objetivar e organizar identidades e grupos de uma determinada forma ou marca simbólica, segundo o espaço físico da cidade: “famílias de origem rural” índios da cidade (ou misturados), “periferia” e “bairros pobres”.
Baseia-se numa cumplicidade entre as percepções do presente e as do passado e uma ideia de tempo passado, um código em que os diagnósticos do presente são feitos em termos “de um passado original” e os do passado ocultam a história da ocupação e das populações à medida que é objetivada como uma continuidade cronológica do passado. Foi assim que tentamos indicar outras dimensões e implicações da eficácia que essa linguagem exerce para que determinados agentes postulem legitimidade do processo de reagrupamento e das diferenças que dele são parte e resultado constitutivo. Nessa linha, mostramos conexões entre a simbologia do rural-urbano e os movimentos o fluxos migratórios do campo à cidade e/ou da cidade ao campo corridos nas três últimas décadas, sendo essa simbologia entendida como prática que contribui para atualizar e materializar a produção constante de uma hierarquia física através da qual se projetam diferenças sociais, porém percebidas como se fossem culturais.
Ampliando esta linha, sugerimos também que a prática “da cidade moderna e desenvolvida” viabilizada em Altamira por determinados agentes nos últimos anos, pelos seus efeitos está contribuindo concomitantemente, por um lado, para instituir princípios de visão e de divisão social. Pelo outro, para alimentar e manter a determinados grupos em suas posições de poder, através das marcas e símbolos que permitem definir quem são os incluídos e os excluídos nos diferentes contextos.
Para complementar esta informação, parece-nos pertinente estabelecer uma ponte com certas práticas culturais realizadas nos últimos anos na cidade. A anterior gestão municipal, em colaboração com diretores da Associação Comercial, implementou uma série de práticas “de resgate cultural” na cidade, que está contribuindo, nessa direção, para fixar visões de mundo através da eficácia simbólica que exercem os seus empreendimentos.
Além da construção do cais (orla do rio Xingu), destacamos os eventos realizados nesse espaço durante o período do Natal, cuja pretensão performática está ligada à imposição e criação de uma ideia de “cultura comum” da cidade (e da região) como produto econdição de um esquema de reprodução social e física do espaço urbano. É como seatravés da orla se pretendesse “resgatar culturalmente” o passado, uma parte da“história” ou “um lugar da memória”, parafraseando a Pierre Nora (1984). E, ao mesmotempo, fosse um espaço de “novas experiências” que vinculam o seu uso a essa ideia defuturo (leia-se desenvolvimento urbano). Em outros termos, esses atos materializadosno espaço urbano, põem no cenário uma particular relação entre cultura e política,manifestada através da eficácia que exerce a ideia de “cultura comum” para criar ealimentar posições de poder. Em último termo, para gerar coesão através dossentimentos de lealdade e relações de solidariedade criadas entre os diferentesindivíduos pelos vínculos que estabelecem com o lugar (leia-se também território).
Não pretendemos dizer que todas as pessoas concordam ou não com essas práticas. Interessa-nos apenas destacar os efeitos simbólicos de poder que exercem na “realidade social ou espacial”. Ao serem objetivadas e naturalizadas no espaço urbano, são também naturalizadas como referentes classificatórios e símbolos de distinção sociocultural pelos grupos e indivíduos que ocupam posições de poder menos favoráveis e, por extensão, contribuem para naturalizar as práticas que os definem social e culturalmente como se fossem marcas de um estigma.
Esperamos ter mostrado, por meio da análise dos índios da cidade, de que maneira esses efeitos negativos podem ser questionados e objetivados num sentido positivo. Isto implicou num processo de mobilização e de objetivação do “sangue índio”, cujos efeitos estão contribuindo para o reconhecimento e visibilização dessa população de Altamira e das lideranças Xipaia-Curuaia como índios misturados, porém índios, num contexto maior de práticas de agentes indigenistas, missionários e especialistas em ciências sociais.
Tentamos indicar que os próprios atores sociais, a exemplo dos índios de Altamira, estão se apropriando e significando concomitantemente, de um lado, determinadas simbologias vinculadas, embora de formas distintas, a discursos evolucionistas nas suas continuidades e descontinuidades ─ seja através do exotismo indígena, da mistura ou da noção de frentes de expansão. De outro lado, “trazendo de volta a cultura”, nos contextos de defesa e de garantia de direitos, como a reivindicação do território indígena Tavaquara, o saneamento nas moradias e bairros onde habitam, entre outros. Assim, pondo em questão, ou contrariando os diagnósticos quase proféticos sobre a extinção de determinados grupos indígenas.
No sentido exponencial da simbologia do rural-urbano na floresta, foram indicadas as conexões com o saber dos especialistas, no que tange à sua contribuição para objetivar e criar essa identidade, por meio do efeito político da teoria que esse conhecimento exerce sobre o mundo social. Em outros termos, dado o reconhecimento atribuído ao cientista social na divisão do trabalho intelectual para tratar do campo social, em geral os seus atos de fala exercem um grau maior de eficácia performática. Foi assim que também sugerimos o vínculo substantivo entre as práticas locais e globais.
Na base da simbologia, além das considerações sobre a lógica histórica mencionada, estão as resoluções do aparente paradoxo de “ser índio, mas misturado” e da oposição campo-cidade. Neste sentido, indicamos de que maneira a crença e reconhecimento da miscigenação possibilita localizar o índio e o seu povo (Xipaia) num passado original, na aldeia na floresta (leia-se um povo puro e sem mistura) e, ao mesmo tempo, a “mistura” que o situa na cidade e no seu tempo presente: a do “pai branco”. Não se trata de uma continuidade retrospectiva, se não da descontinuidade posta em evidência. Foi assim que tentamos mostrar de que maneira as aparentes oposições campo-cidade e tradição-modernidade estão na base constitutiva dessa identidade e território(s) e dos agentes que dela são parte e resultado constitutivo, assim como as particularidades e generalidades do processo de ocupação de Altamira e da Amazônia em geral.
Para finalizar, embora com o risco de generalizar, não será demais destacar que a divisão rural-urbano ou campo-cidade implícita na proposta desenvolvimentista (ou na ideia de cidade moderna e desenvolvida), indica uma certa (re)semantização da dimensão campo-cidade (e/ou urbano-rural) num contexto maior de políticas urbanas e de desenvolvimento (nacionais e internacionais), que caberia aprofundar em trabalhos posteriores, para compreender melhor as suas implicações sociológicas e etnográficas.
Contudo, complementando estas observações foi mostrado que as mobilizações e disputas entre agentes e suas visões de desenvolvimento –sustentável (ou de responsabilidade social) e desenvolvimentista– implicaram numa mudança na correlação das forças políticas locais, aumentando o grau de equilíbrio entre essas forças. Na base desta mudança está a tendência a uma maior formalização e articulação das práticas entre fazendeiros, madeireiros e comerciantes de um lado e, de outro, a das entidades e dos movimentos e sociais em geral. Isso implicou num maior reconhecimento social da ideia desenvolvimentista de cidade (como oposição ao campo) e dos grupos que postulam legitimar-se e legitimá-la através das suas práticas. Ampliando esta linha, destacamos a ideia econômica estruturada na visão desenvolvimentista, que está contribuindo para criar necessidades, pelos efeitos que as práticas dos agentes exercem para gerar expectativas socioeconômicas, especialmente sobre a população em condições desfavoráveis, por exemplo, através dos indicadores ou práticas de emprego e renda, dos madeireiros e do setor do comércio, entre outros.
Entretanto, o quadro do processo de ocupação intensa e sem planejamento prévio ao qual grande parte está ligada, incluindo os programas e projetos políticos viabilizados nas últimas décadas ou em processo de viabilização, como a hidrelétrica Belo Monte, são também exemplos da necessidade urgente de uma mudança nessa visão economicista, isto é, de uma planificação eficaz do projeto de cidade sustentável, social e participativa, atenta às particularidades da região, tal como se depreende da proposta política que norteia o “Estatuto da cidade”.
Nesta perspectiva, também tentamos indicar de que maneira o processo de objetivação e de reivindicação de direitos por parte dos índios da cidade pode ser uma mudança nessa direção, pois uma interconexão eficaz entre a produção do conhecimento especializado e os movimentos sociais, no caso dos índios, tem como premissa criar condições favoráveis que possibilitem a esta população ter maior grau de mobilização e de organização e, por extensão, de reconhecimento e de legitimação enquanto coletividade indígena. Criar espaços de troca simbólica e/ou viabilizando práticas, entre outras, as de resgate do território da aldeia Tavaquara na cidade de Altamira podem ser expressões significativas dessas novas condições.
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