Artículos

A nação argentina à época do Centenário: uma análise da produção intelectual de Carlos O. Bunge e José Ingenieros

The Argentine nation at the time of the Centenary: an analysis of the intellectual production of Carlos O. Bunge and José Ingenieros

Camila Bueno Grejo
Universidad de San Pablo, Brasil

A nação argentina à época do Centenário: uma análise da produção intelectual de Carlos O. Bunge e José Ingenieros

e-l@tina. Revista electrónica de estudios latinoamericanos, vol. 16, núm. 64, pp. 33-48, 2018

Universidad de Buenos Aires

Recepção: 25 Fevereiro 2018

Aprovação: 12 Junho 2018

Resumo: Neste artigo, buscamos discutir as ações de Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros, intelectuais que transformaram as festividades do Centenário da Independência da Argentina num modo de enfrentar a heterogeneidade étnica causada pela grande porcentagem de imigrantes.

Palavras-chave: Centenário, independência, Argentina.

Abstract: In this article, we discuss the actions of Carlos Octavio Bunge and José Ingenieros, intellectuals turned the centenary festivities of the Independence of Argentina in order to address the ethnic heterogeneity caused by the large percentage of immigrants.

Keywords: Centenary, independence, Argentine.

O período compreendido entre o final do século XIX e o início do XX foi emblemático para os países latino-americanos no que diz respeito à afirmação de suas nacionalidades. Na Argentina, o desenvolvimento econômico e o grande contingente imigratório, transformaram a questão nacional no tema central das discussões políticas e intelectuais da época.

As transformações pelas quais a Argentina passara nos últimos anos do século XIX e os conflitos sociais acarretados pela imigração massiva faziam-se sentir com maior intensidade nos primeiros anos do século XX. Diante da ameaça representada pela heterogeneidade social, a elite política e intelectual de tendência liberal via a necessidade da afirmação da nacionalidade e buscava novos meios de redefini-la. Neste artigo, analisaremos como a questão nacional foi debatida por Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros às vésperas das comemorações do Centenário da Independência, e também, em que medida o modelo proposto por estes intelectuais contribuiu para a definição do que significava ser argentino.

À época do Centenário, a sociedade argentina vivia um momento ambíguo: sua economia havia se transformado devido a um acelerado processo de crescimento, mas, ao mesmo tempo, enfrentava a desigualdade na distribuição dos frutos do progresso; além disso, o grande contingente imigratório, outrora tomado como sinônimo de modernidade, mostrava-se alheio à questão nacional uma vez que não buscava se nacionalizar. A combinação destes três fatores levou à emergência de uma série de conflitos sociais: em 1909, mobilizações operárias, compostas principalmente por imigrantes que denunciavam as longas jornadas de trabalho foram violentamente reprimidas num episódio que ficou conhecido como Semana Roja e, em 1910 foi registrado um número elevado de greves e distúrbios sociais com o intuito de arruinar os preparativos para as comemorações do Centenário da Independência. Organizados sobretudo por anarquistas, tais conflitos foram reprimidos preventivamente pelas forças policiais que, valendo-se da Lei de Defesa Social[1], frustraram completamente seu objetivo.

Nesse contexto, a data da comemoração do Centenário da Independência foi tomada como pretexto pela elite política e intelectual para inspirar na população o sentimento de pertencimento à nação argentina. Impulsionados pelos grupos dirigentes, todos os setores sociais foram, de alguma forma, incluídos nos preparativos de manifestações que tinham por objetivo resgatar a “argentinidade” e as tradições históricas, o que acabou transformando as festividades num modo de enfrentar a heterogeneidade étnica causada pela grande porcentagem de imigrantes.

Os preparativos para a grande comemoração[2] iniciaram-se com anos de antecipação, o que permitiu a chegada de propostas, informações e pedidos vindos de todos os cantos do país, as quais serviram como base para que as autoridades nacionais decidissem acerca dos locais onde seriam construídos estátuas e monumentos que deveriam representar fatos históricos importantes para a Argentina[3]. Os artistas da época buscavam identificação com momentos históricos que haviam marcado o século XIX e que continuavam frescos na memória dos contemporâneos tais como a Revolução de Maio de 1810, a luta pela independência, a construção do Estado Nacional e a consolidação da nação. A estratégia elaborada pelo governo para criar um ambiente que inspirasse o sentimento patriótico contou, a princípio, com dispositivos visuais, mas logo foi complementada pela expressão escrita através da produção poética sobre temas relacionados ao significado histórico do Centenário. Revistas e jornais publicaram obras de poetas de reconhecida trajetória e também de autores das províncias, os quais viam nos festejos uma oportunidade de fazer com que seus versos fossem ouvidos. Nesse sentido, estimulou-se, ainda, a impressão de obras completas de notáveis intelectuais argentinos, além da publicação de documentos históricos e cartas geográficas, as quais traziam as atualizações dos limites do país, e da inauguração de bibliotecas[4].

A escola, que desde os anos de 1880 havia se transformado numa ferramenta em prol da questão nacional, na década de 1910 teve papel fundamental pois, por seu intermédio, a elite pretendia transformar os filhos dos imigrantes em seres argentinos, isto é, a instrução primária tinha a finalidade de incorporar os imigrantes e recuperar a argentinidade. Através da utilização de símbolos como a bandeira, o hino e o escudo nacional, a história nacional e das instituições políticas, o governo pretendia assimilar aos filhos dos estrangeiros, acreditando que quando aqueles se vissem rodeados pelos símbolos nacionais e pela exaltação dos heróis pátrios, passariam a sentir-se pertencentes à nação argentina e passariam a introjetá-la. Seguindo essa perspectiva, o ensino da História nacional deveria apontar as responsabilidades individuais mostrando o caminho percorrido pelos grandes personagens e despertando, assim, um sentimento de pertencimento à pátria.

O historiador argentino José Luis Romero assinala que o robustecimento do patriotismo pareceu, a muitos intelectuais, a arma necessária para neutralizar os perigos representados pela imigração aluvional (1956: 71). José Maria Ramos Mejía, diretor do Conselho Nacional de Educação (CNE) à época do Centenário, via a necessidade de resgatar a história do país, criar um panteão pátrio, dotar de símbolos, ou seja, elaborar uma “mitologia” capaz de fazer nascer no peito da nova geração –formada pelos filhos dos imigrantes– um sentimento de pertencimento à terra que os acolheu. O melhor método seria o de induzi-los a uma espécie de sujeição interior, pois Ramos Mejía considerava tratar-se de uma massa carente e pouco ilustrada a qual carregava consigo outros comportamentos e sentimentos, distintos dos argentinos. Ricardo Rojas também defendia a necessidade de rever os princípios fundamentais da educação argentina, pois afirmava que a educação baseada na história seria o único caminho capaz de criar o sentimento coletivo que o país requeria para fundir todos os seus elementos.

Para Romero, a retórica oficial parecia ter cunhado definitivamente o tópico da “grandeza nacional”, do invejável destino argentino e de suas inatas virtudes. A ideia de pátria havia adquirido um valor convencional nas frases feitas, mas arrastava um sentimento autêntico e inevitável que se difundia e operava na sociedade como um vivo estímulo para a transformação do heterogêneo em homogêneo e para a absorção dos grupos humanos de diversas origens em uma coletividade (1956: 70).

No entanto, para resgatar o sentimento nacional, a elite intelectual propunha retornar ao passado, às origens, em busca do ser essencialmente argentino. Porém, se compararmos a história argentina à de outros países como, por exemplo, França ou Inglaterra, notamos que a Argentina era um país que não tinha passado, pois este ainda era muito recente na memória da sociedade. Foi nesse contexto que a identidade nacional, antes simbolizada pelo imigrante europeu, passou a ser problematizava a partir de outra perspectiva, na qual a herança colonial, outrora repudiada pelos liberais, foi recuperada e considerada parte integrante do novo modelo nacional.

Nicolas Shumway definiu a essa corrente defensora das mesclas culturais e orgulhosa da tradição hispânica como nacionalista ou populista e a relacionou aos nomes de José Henández, Olegario Andrade e Carlos Guido y Spano (2000: 317-318). Para este historiador o nacionalismo era, antes de mais nada, nativista, orgulhoso da herança hispânica e de sua mistura étnica e rejeitava o racismo “esclarecido” dos liberais argentinos. A perspectiva criollista também constitui-se num resultado dessa visão otimista acerca do passado colonial. Originando-se no campo literário, o criollismo utilizava-se da mitificação do passado e do discurso do telurismo, e associava a colonização espanhola a um período positivo da história argentina pois considerava que foi a partir da miscigenação com os espanhóis que surgiu o tipo gaúcho identificado, por esses intelectuais, como aquele que melhor representaria a nação argentina.

Como já havíamos afirmado, no final do século XIX, o posicionamento intelectual de Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros refletia os ideais propagados pela tendência liberal. Todavia, às vésperas do Centenário, ambos os intelectuais buscavam meios para legitimar a nação argentina e também se voltaram ao passado colonial em busca do ser tipicamente argentino, como analisaremos a seguir.

Nuestra Patria

Carlos Bunge já havia enunciado em La educación contemporánea, obra datada do início do século XX, a importância desempenhada pela educação patriótica e pelo idioma nacional na construção da identidade argentina frente à ameaça de dissolução nacional representada pelos imigrantes. Essa idéia foi reafirmada pelo autor no artigo “La educación y la disciplina social”, publicado na revista El Monitor de la Educación Común –órgão subordinado ao Conselho Nacional de Educação-, no qual postulava que a educação teria a função de reintroduzir no país, a qualquer custo, uma ordem disciplinar atavés do estabelecimento de um ensino com caráter eminentemente nacional e para todos os níveis, fosse ele veiculado de maneira teórica (ensino do idioma nacional, da história e da geografia) ou prática (propondo sempre a aplicação nacional de estudos científicos e técnicos), dando valor indispensável à educação moral e à instrução cívica (1910a: 339).

Nesse contexto tornava-se muito clara para Carlos Octavio Bunge a necessidade de construir, apelar ou resgatar um passado comum a toda a sociedade sobre o qual fosse possível edificar as bases da argentinização. A escola seria o instrumento utilizado pelo autor, uma vez que defendia o caráter verdadeiramente nacional da mesma. Nesse ponto, a perspectiva de Bunge aproximava-se da proposta por Ricardo Rojas, o qual considerava necessário que “nossa escola seja nossa, pela conexão dos programas, pela elaboração argentina dos temas, pela substituição dos livros, pela adoção do material didático” (1971: 147). Isso nos permite concluir que a imposição da ordem tanto na educação quanto na própria sociedade vinha de cima; isto é, alguns intelectuais argentinos –como Bunge e Rojas- não tomaram decisões apenas a respeito do problema da constituição da nação, mas também abordaram a relação desta com a escolarização massiva encarregando-se, até mesmo, de produzir livros de texto para as escolas primárias e secundárias.

Esse foi o caso de Carlos Bunge que, em 1910 publicou Nuestra Patria, um livro de leitura escolar dedicado a estudantes do 5°e 6°graus da escola primária, o qual levava como propósito despertar nos alunos o sentimento nacional.

Diferentemente do que havia proposto em Nuestra América, obra na qual aplicou os princípios do biologismo racista a fim de obter uma sociedade biologicamente apta, em Nuestra Patria, assumiu um discurso inclusivista que tinha como objetivo incorporar os gaúchos, negros e índios à nação argentina[5]. A mistura racial não era mais vista como um problema, passando a ser pensada a partir da figura do gaucho idealizado, o qual transmitiria seus genes às novas gerações, numa fecunda mistura com o imigrante que um dia chegou ao solo pátrio (Terán, 2000: 203), constituindo, por fim, a verdadeira nação argentina. Na perspectiva de Bunge, o conteúdo de Nuestra Patria representava um exemplo da “boa miscigenação”, isto é, aquela que conciliava as bondades da raça aliadas à tradição nacional.

Um fato curioso a respeito dessa obra é o de que Bunge escreveu um prólogo, o qual não acompanhou o livro no momento de sua publicação. Intitulado “Teoría de un libro de lectura escolar”, o referido prólogo apareceu, pela primeira vez, na revista El Monitor de la Educación Común sob a justificativa de que o livro era muito extenso e que por esse motivo não poderiam ser acrescentadas algumas poucas páginas correspondentes ao prólogo. Nossa hipótese para esse fato é a de que o interlocutor ideal de Bunge não eram as crianças, mas sim os professores leitores da revista e a comunidade educativa que incluía também os funcionários do Conselho Nacional de Educação. De alguma forma, a publicação do prólogo no último número do ano de 1910 –apesar de ter sido escrito no último mês do ano anterior– foi o modo que Bunge encontrou para apoiar o programa de educação patriótica desenvolvido por Ramos Mejía, presidente do CNE entre os anos de 1908 e 1913, e para ampliar seu público leitor buscando atingir a todos os professores que eram leitores assíduos da revista e não apenas aos que utilizariam seu livro em sala de aula. Outra possível explicação é a de que o texto não utilizava uma linguagem apropriada para crianças pois trazia textos rebuscados e conceitualizações compreensíveis somente por um público adulto.

No início do prólogo, Bunge explicitava sua concepção de nação e a relação desta com a educação nacionalista. Assim, igualava a pátria à nação e queixava-se da debilidade da nacionalidade argentina:

La Patria, según se infiere de la sociología, es ante de todo y essencialmente el resultado de los sentimientos é ideas sociales de cada pueblo. Si esos sentimientos é ideas no se cultivan y florecen, la Patria se disgrega y corrompe. (...) hase notado por desgracia últimamente en la República Argentina un cierto debilitamiento de los factores psicológicos de la nacionalidad. (1910b: 572).

Retomando sua visão psicológica da sociedade, o autor considerava que os indivíduos deveriam estar unidos pelos sentimentos comuns e pelas ideias sociais e constatava que a Argentina passava por um momento de perda da nacionalidade, fato que o autor atribuía aos

(...) principios jacobinos de menosprecio por el pasado y la tradición, las modernas ideas de anarquismo e internacionalismo, en cierto modo el carácter un tanto disolvente y levantisco del criollo, y sobre todo el cosmopolitismo de la copiosísima inmigración extranjera (1910b: 572).

Embora acreditasse que, em 1910, a nação estava dada por sua peculiaridade étnica, não compartilhava de certas idéias introduzidas pelos estrangeiros como, por exemplo, o anarquismo e o internacionalismo, vistas pelo autor como responsáveis pela ruptura das fronteiras da nação. Além disso criticava a imigração massiva que trouxera consigo o cosmopolitismo, fator entendido por Bunge como a principal causa da heterogeneidade sociocultural, isto é, como aquele que contribuía tanto para a desagregação da sociedade quanto para a consequente perda do sentimento nacional.

Neste ínterim a educação foi, mais uma vez, apontada por Bunge como a mais eficaz arma que a sociedade e o Estado argentino poderiam contar “para combater tão perniciosas tendências e amalgamar à nacionalidade o elemento imigratório” (1910b: 572) e, dialogando com vários estudiosos do fenômeno nacional argentino, o autor de Nuestra Patria, defendia a capacidade da educação para produzir a coesão social, requisito considerado por ele como fundamental para gerar o nacionalismo, uma vez que permitiria moldar os membros da sociedade argentina dentro de uma cultura homogênea.

Para Carlos Bunge, pensar em uma educação nacional consistia em resgatar a história e a tradição através da redescoberta e reinterpretação do passado a fim de que o entusiasmo nacionalista entrasse em cena. Para cumprir tal objetivo admitia que, em Nuestra Patria, buscara deixar de lado os fatos da história recente argentina, pois acreditava que estes poderiam provocar comoção ou tomada de posições por parte dos estudantes; assim, abordava apenas os fatos que não implicassem distintas versões ou juízos pessoais como, por exemplo, a educação religiosa de Mariano Moreno escrita por Manuel Estrada. Além disso, podemos assinalar que a seleção dos fatos históricos ou a referência a personalidades importantes da história argentina contidas no manual escolar de Bunge também são explicadas pela intenção do autor de não nomear e nem tocar em certos temas polêmicos naquele momento tais como a imigração e os movimentos políticos nos quais muitos imigrantes haviam se envolvido.

Quanto à organização, Nuestra Patria está estruturada em quatro partes, cada qual com um eixo temático: “La tradición y la historia del pueblo argentino”, “La poesía argentina”, “El país argentino” e “Cuadros y fases de la vida argentina”, através dos quais Bunge relacionava a educação à nacionalidade.

É interessante notarmos como o texto desta obra foi iniciado de forma semelhante ao realizado pelo autor em Nuestra América. Numa tentativa de definir as origens da sociedade e da cultura argentina, Bunge recorreu à influência dos povos que teriam sido responsáveis pela constituição do caráter argentino tal como este se mostrava na primeira década do século XX. Nesse sentido, sublinhou a presença dos indígenas e dos espanhóis, mas o fez de forma a exaltar os aspectos positivos de sua herança cultural, perspectiva diferente daquela desenvolvida em 1903, segundo a qual a herança espanhola era tomada como causadora dos problemas argentinos e o sangue indígena como responsável pela degeneração dos criollos. Ademais, em Nuestra América o autor versava sobre a presença do elemento negro na constituição dos hispano-americanos –ainda que a tenha apresentado a partir de uma perspectiva negativa– enquanto em seu manual didático a figura do negro africano nem era lembrada.

Carlos Bunge sustentava que a verdadeira herança cultural argentina estava no campo e era sintetizada pela figura do gaúcho. Por isso, na segunda parte da obra, utilizou-se da poesia gauchesca com o intuito de resgatar as raízes do idioma nacional “sem nenhum tipo de adulteração estrangeirizante”, pois considerava que a linguagem poética praticada nas aulas de declamação acabariam por corrigir a pronúncia incorreta dos filhos dos imigrantes. Nesse ponto fica claro que, segundo a perspectiva de Bunge, os imigrantes haviam se constituído num problema, o qual poderia ser corrigido a partir da educação e do ensino do idioma nacional, o que nos permite concluir que o autor associava a correção do idioma à correção da nação, afinal, a partir do momento em que o imigrante deixasse de se expressar por seu idioma de origem daria mostras de sua integração à sociedade argentina.

A maior dificuldade apontada por Bunge ao selecionar os textos poéticos consistia na escolha da melhor forma para apresentá-los ao público infantil; para que houvesse uma melhor compreensão por parte dos alunos, Bunge apresentava os poetas a partir de algum traço marcante o que permitia às crianças lembrarem-se deles com maior facilidade. Como exemplos podemos citar: Vicente López y Planes apresentado como o autor da Canção Nacional, Echeverría representado como o cantor dos Pampas e Juan Cruz Varela, descrito como o poeta clássico (1910c: 576).

Ao ressaltar o caráter popular da poesia gauchesca, contrariando tudo o que havia postulado anteriormente, Bunge chama a atenção para as características positivas da personalidade do gaúcho. Segundo essa perspectiva, aquele não era um criminoso, apenas estava acostumado a ditar suas próprias leis num período em que os pampas eram praticamente despovoados. No entanto, a partir do século XIX com a ocupação dos campos, o gaúcho viu-se numa situação difícil e perigosa, pois as leis impostas pelos homens das cidades chocavam-se com seus costumes, isto é, com suas próprias leis. Assim, Bunge constatava que o gaúcho não era nada mais que uma “vítima das circunstâncias” e que, apesar de ter sido retratado como um “mau elemento”, sua natureza era repleta de bondade e todos os seus atos justificavam-se através da luta pela vida e pela glória, o que o transformava num herói que lutava pela sobrevivência. Para demonstrar seu ponto de vista, Bunge recorreu a dois personagens criados pela literatura argentina: Martin Fierro e Santos Vega.

Para Shumway, o objetivo de José Hernández ao criar o poema Martin Fierro, em 1872, foi o de mostrar os abusos, humilhações, dificuldades, desgraças e azares da vida do gaúcho, mas também, de retratar um homem que era, ao mesmo tempo, um protótipo e um indivíduo, uma atraente persona literária e uma vítima representativa do liberalismo argentino (2000: 337). Na releitura de Bunge, Martin Fierro representava o tipo genérico do gaúcho em meados do século XIX: um homem comum e não idealizado que se mostrava valente, generoso e trovador, ao mesmo tempo que era viciado em bebidas alcoólicas (1910c: 167). Considerava, ainda, o poema de Hernández como um documento histórico através do qual a figura do gaúcho seria perpetuada no imaginário da sociedade argentina e o seu personagem principal, Martin Fierro transformaria-se num “herói dos tempos bárbaros” (1910c: 169).

Da mesma forma que fez com Martin Fierro, Carlos Octavio Bunge descrevia Santos Vegas como a mais pura e elevada personificação do gaucho. Para o autor, a história deste personagem, criado por Rafael Obligado, representava “o destino de uma raça e a síntese de uma epopéia” (1910c: 48)

(...) Santos Vega fué el más potente payador. Su numen era inagotable en la improvisación de endechas, ya tiernas, ya humoristicas; su voz de timbre cristalino y trágico, inundaba el alma de sorpriesa y arrobamiento; sus manos arrancaban á la guitarra acordes que eran sollozos, burlas imprecaciones. Su fama llenaba el desierto (...) Dondequiera que se presentase rendíale el homenaje de su poética soberanía aquella turba gauchesca tan amante de la libertad y rebelde á la imposición. Para el alma sencilla del paisano, dominada por el canto exquisito, Santos Vega era el rey de la Pampa (1910c: 48)

Podemos perceber que a visão de Bunge a respeito deste gaúcho mostrou-se contrária à descrita pelo próprio Obligado, segundo a qual Santos Vega perdia a payada e, simbolicamente, o país para o imigrante devido à sua falta de cultura e “civilidade”. De acordo com a interpretação de Bunge, a lenda de Santos Vega poderia ser relacionada à doutrina bíblica do Gênesis

(...) Santos Vega en la Pampa fué Adán en el Paraíso Terrestre, antes de incurrir en el pecado original. (...) El demonio tienta su orgullo de dueño y señor de la llanura. Él, estimulado por la presencia de la morocha, acepta el reto, y es vencido. El demonio lo desaloja de sus dominios. El ombú hace, aunque imperfectamente, el papel del árbol de la ciencia y del bien y del mal. Lo cierto es que la ciencia vencedora, el arte del demonio, se identifica al mal, contraponiéndola al bien, al arte espontáneo, a la inspiración del payador que viene de Dios (1910c: 50)

E, apesar de vencido, Bunge considerava que o gaúcho Santos Vega permaneceria triunfante na alma do povo argentino e propunha que sua história fosse passada adiante, como um exemplo do que havia de mais genuíno na nação.

Seguindo a proposta de apresentar aos pequenos estudantes todos os elementos que compunham a tradição cultural argentina Bunge indicava, na terceira parte de Nuestra Patria, as distintas regiões geográficas do território argentino - os pampas, o litoral, o interior, o norte e o sul - com o intuito de associar a natureza a um elemento do patrimônio identitário nacional, um bem coletivo da nação. Além disso, nesta parte do livro, descrevia os costumes dos habitantes das regiões citadas a partir de um olhar esteriotipado.

Na última parte, “Cuadros y fases de la vida argentina”, o autor buscou, por meio do relato de cenas e práticas culturais do cotidiano e da análise dos sujeitos e instituições nelas envolvidas, criar uma consistência material e simbólica para a nacionalidade. Com o propósito de fixar o sentimento nacional desenvolvido ao longo de todo o livro, Bunge comparou o “povo argentino” a uma família e a nação a um numeroso grupo de irmãos e acrescentou que apenas as sociedades decadentes e corrompidas precisariam estimular o patriotismo pois, segundo ele

(...) cuando se tiene la suerte de nacer em uma patria invicta, libre y gloriosa como la República Argentina, entonces amarla no es ya forzado sacrificio, sino legítimo orgullo. Pertenecer al pueblo de San Martín y Belgrano, de Rivadavia y Sarmiento, de Echeverría y Alberdi, es sentirse miembro de uma familia de hombres ilustres (1910c: 469)

Nesse sentido, o autor afirmava que o amor à pátria se baseava no conhecimento da história nacional e que o passado capacitaria os argentinos para que eles enfrentassem os obstáculos futuros; argumentava, ainda, que para demonstrar seu patriotismo os argentinos tinham de servir à pátria e propunha que a melhor maneira de fazê-lo seria através do trabalho e do respeito às leis.

É importante destacarmos que o discurso contido em Nuestra Patria em nenhum momento assumiu um caráter de neutralidade; pelo contrário, refletia a realidade social, política e cultural vivida pela Argentina na primeira década do século XX e foi elaborado com o objetivo de pensar a nação em consonância com um projeto político centrado em homogeneizar a sociedade através da educação. Portanto, entendemos que essa mudança de discurso assumida por Bunge relaciona-se ao fato de que num livro escolar o autor dirigia-se a outro público, tornando-se difícil projetar seu discurso cientificista elitista a círculos mais amplos e, nesse sentido, concordamos com a perspectiva de Oscar Terán, a qual sustenta que Bunge acreditava que as massas não se encontravam nas mesmas condições que a elite para compreender e assimilar os relatos fundamentados no saber científico e, por isso, fazia-se necessário dispensar um tratamento diverso à maior parcela da população argentina do período “(...) dando cuenta del abismo que escindiría a la elite con respecto a los subalternos, el desafio será respondido apelando a un discurso nacionalista para las masas, paralelo al destinado a los pares” (Terán, 2000: 201).

A partir disso, entendemos que Bunge desenvolveu duas estratégias de abordagem, as quais podem ser evidenciadas ao tomarmos como referência o paralelo entre Nuestra América, obra dirigida a seus pares, e Nuestra Patria, voltada a um público maior, uma vez que as intenções e os objetivos do autor, ao escrevê-las, nos parecem ter finalidade semelhante: exaltar a nação argentina.

A reorganização da cultura argentina

Para que possamos compreender como José Ingenieros definiu a questão nacional, temos de analisar as mudanças que se operaram em sua vida política e intelectual a partir da primeira década do século XX. Em 1911 se apresentou para ocupar a cátedra de Medicina Legal na Faculdade de Medicina de Buenos Aires, pois, devido a seus antecedentes intelectuais, seu prestígio como docente e sua produção sobre o tema seria o primeiro nome –dentre três– a ser indicado pelo conselho diretivo daquela instituição. A escolha ficou a cargo do chefe do Poder Executivo representado, naquele momento, pelo presidente Roque Sáenz Peña que, contrariando a hierarquia proposta e, segundo Terán, obedecendo às pressões da Igreja Católica, designou a outro postulante para ocupar o referido cargo (1986: 57). A reação de Ingenieros se deu de uma forma quase espetacular: renunciou ao cargo que já ocupava no Instituto de Criminologia, fechou seu consultório médico, repartiu sua biblioteca entre os amigos e abandonou o país iniciando um período de autoexílio na Europa. Em uma carta pública dirigida ao presidente argentino, o intelectual denunciava a ofensa cometida contra sua dignidade profissional e se negava a continuar vivendo no país enquanto Sáenz Peña estivesse no poder, “[a] raíz de un acto que considero de inmoralidad gubernativa, e irrespetuoso para mi dignidad de universitario, me ausenté del país en 1911, con el propósito de no regresar a él mientras persista en su empleo la persona que desempeña el Poder Ejecutivo de la Nación” (Ponce, 1949: 80).

Durante sua estadia na Europa publicou o livro El hombre mediocre[6], cuja primeira edição foi lançada em 1913 na cidade de Madrid. Ainda hoje, esta é considerada de suma importância pelos estudiosos de Ingenieros uma vez que agrega os elementos teóricos que rompem com seu pensamento anterior, tais como o crescimento da noção de ideal e o progressivo abandono dos escritos criminológicos e psiquiátricos, os quais foram substituídos pela abordagem de temas filosóficos.

Esquematicamente, El hombre mediocre foi estruturado em torno da seguinte seqüência temática: a definição do ideal e sua função social; a determinação do sujeito social portador do mesmo; a contraposição ao ideal, representada pela mediocridade, e os momentos históricos onde esta impera, até chegar aos efeitos políticos implicados por estas noções.

José Ingenieros argumentava que o oposto binário do ideal estaria configurado pela imitação, apontada como um traço distintivo da mediocridade. O homem medíocre seria, então, aquele incapaz de produzir ideais, cuja índole mimética permitia sua adaptação para viver em “rebanhos” pois, para o autor, os medíocres pretendiam suprir com a força do número suas debilidades individuais.

Ingenieros defendia que o progresso deveria ser liderado pela minoria –os chamados homens de gênio, cujos maiores expoentes teriam sido Sarmiento e Ameghino– embora isso não implicasse na necessária aniquilação da mediocridade, pois entendia que a diferenciação era um fenômeno útil e inevitável dado que, de acordo com sua perspectiva, a uniformidade dos indivíduos jamais resultaria no aperfeiçoamento da sociedade. Oscar Terán explica que nesse sistema de forças e valores enunciado por Ingenieros, a igualdade seria a inimiga do progresso, que surgiria da dialética entre o impulso dos idealistas e o lastro dos medíocres, os quais atuariam como um contrapeso conservador afastando os extremismos que poderiam desagregar a sociedade (Terán: 1986, p. 61).

No entanto, Ingenieros advertia que os medíocres poderiam tornar-se perigosos. Isso ocorreria quando excedessem a sua função de equilíbrio e expandissem seus valores até transformá-los num sistema de vida e governo, ao qual o autor chamou de mediocracia. Voltando às circunstâncias em que este intelectual escreveu a referida obra, podemos concluir que seu texto está repleto de referências, tanto silenciosas quanto explícitas, à figura do presidente Sáenz Peña e ao clima que, segundo Ingenieros, envolvia sua gestão de governo. Assim, o autor aplicava à política argentina os postulados de seu livro pois constatava que, naquele momento, a Argentina constituía-se numa mediocracia, o que resultaria, segundo ele, num período marcado por uma sociedade em decadência na qual os jovens não teriam acesso ao Estado e os intelectuais perderiam sua função social.

Em 1914, quando a presidência da República foi assumida por Victorino de la Plaza, tornou-se o momento propício para que Ingenieros cumprisse a promessa de retornar ao país. Seu regresso marcou uma nova fase em sua vida intelectual devido ao destaque dado em seus próximos trabalhos à problemática nacional, o que ficou evidenciado a partir do empenho em reorganizar a cultura argentina. Um texto emblemático da produção intelectual de Ingenieros referente a esse período foi “El suicidio de los bárbaros”, escrito poucas semanas depois do início da Primeira Guerra Mundial. Logo no início afirmava que “[l]a civilización feudal imperante en las naciones bárbaras de Europa, ha resuelto suicidarse, arrojándose en el abismo de la guerra” (s/d: 455).

A novidade nesta proposição está no fato de Ingenieros utilizar noções de caráter negativo como barbárie e feudalismo, para referir-se à realidade européia, a qual, até então, fora apontada pelo autor como exemplo de civilização e progresso. A ideia de feudalismo –já expressa anteriormente nas obras de Ingenieros– não continha apenas um significado econômico, mas também a negação do saber e do protagonismo das minorias intelectuais. Terán argumenta que o desencadeamento da guerra revelava definitivamente o triunfo dos violentos, opostos à elite pensante e inovadora, aos filósofos, aos sábios e aos trabalhadores; em suma, “las fuerzas malsanas oprimieron las fuerzas morales” (1986: 75). Nesse ínterim, o europeísmo, considerado anteriormente como um núcleo importante da produção intelectual de Ingenieros foi rompido a partir da crise instaurada naquele continente desde o início da guerra[7].

Em contrapartida ao rompimento com o europeísmo, surgia a necessidade de gerar uma alternativa nacional e, assim como ocorreu com Bunge e outros intelectuais argentinos, José Ingenieros voltou seu olhar para aquilo que considerava genuinamente argentino e, com o objetivo de organizar a cultura nacional, criou no país dois órgãos intelectuais nos quais expressou suas novas preocupações: a Revista de Filosofia, Culura, Ciencias y Educación e La Cultura Argentina, uma editora através da qual Ingenieros publicava as mais importantes obras da cultura nacional a preços baixos com o intuito de atrair maior público leitor.

Luis Rossi argumenta que outros intelectuais argentinos seguiram, naquele período, o mesmo caminho aberto por Ingenieros: Ricardo Rojas anunciava a criação da Biblioteca Argentina, que publicava as mesmas obras que La Cultura Argentina, mas em edições críticas e David Peña informava sobre a criação das Ediciones de Obras Nacionales, editora criada pelo Ateneo Nacional cujo propósito era imprimir as obras completas de Mariano Moreno, Juan Bautista Alberdi, Juan María Gutiérez, Vicente Fidel López e Bernardo de Irigoyen[8]. Segundo Aníbal Ponce, em pouco tempo, os títulos publicados pela editora de Ingenieros se espalharam pela América, invadiram as livrarias e encheram as bibliotecas. Autores até então quase desconhecidos alcançaram, rapidamente, uma popularidade inesperada. As páginas profundas de Ameghino, os repiques vibrantes de Augustín Alvarez, os sábios estudos de Alberdi e Sarmiento, as meditações apaixonadas de Echeverría, foram definitivamente incorporadas ao acervo da cultura geral e La Cultura Argentina tornou-se a mais eficaz obra da cultura coletiva já realizada no país (Ponce, 1949: 101).

Outro resultado do afã de Ingenieros de organizar a cultura nacional foi a Revista de Filosofia, Culura, Ciencias y Educación ou apenas Revista de Filosofia, como ficou mais conhecida. Fundada e dirigida por José Ingenieros entre os anos de 1915 e 1925, sua importância reside no fato de ser considerada como a principal representante do projeto cultural de seu fundador, principalmente porque estabelecia, ao longo de suas páginas, a existência de uma tradição cultural própria que deveria ser resgatada através do passado argentino, a qual, em linhas gerais, dialogava com aquela proposta pelos intelectuais do Centenário. Seu valor intelectual deve ser assinalado, ainda, por desempenhar o papel de porta-voz de Ingenieros que, a essa altura, atingia o auge de sua consagração acadêmica e intelectual agrupando, a seu redor, um conjunto de pares que compartilhavam dos mesmos interesses filosóficos, dentre os quais, podemos elencar: Carlos Octavio Bunge e seu irmão, Augusto Bunge, Alfredo Coimos, Ricardo Rojas, Victor Mercante, Ernesto Quesada, Rodolfo Senet, Raúl Orgaz, Maximio S. Vitoria, dentre outros[9].

Para Ponce, a Revista de Filosofia representava o desejo de imprimir uma unidade ao nascente pensamento argentino mirando-se na orientação cultural de Rivadavia, Echeverría, Alberdi e Sarmiento; além disso, procurava contribuir com a renovação dos gêneros clássicos da filosofia mediantes as conclusões da experiência científica (1949: 102). Cabe destacar que Anibal Ponce foi discípulo de Ingenieros e dirigiu, a seu lado, a referida revista, o que explica o caráter apaixonado deste intelectual ao descrever o projeto elaborado por José Ingenieros.

Nas páginas da Revista de Filosofia, bem como nos escritos de Ingenieros a partir da década de 1910, encontramos uma expressão até então inédita: “argentinidade”. Para ele, a reformulação da problemática nacional estava centrada na definição da noção de “argentinidade”, como explicava em “Para una filosofia argentina”, artigo de abertura da revista: “(...) concebimos la “argentinidad” como el sentido nuevo que la raza naciente en esta parte del mundo podrá imprimir a la experiencia y a los ideales humanos”(1915a: 2).

Na edição seguinte, Ingenieros discutia de que forma se havia originado a “raça argentina”, à qual atribuía o caráter conformador da “argentinidade”. O autor concebia a história das raças na América, a partir do século XVI, como “uma progressiva substituição das raças indígenas pelas raças brancas europeias”, mas advertia que tal substituição não ocorreria uniformemente em todas as regiões do continente americano: “[e]n el Norte la substitución es neta, sin mestización; en el Sur, grandes masas de mestizos retardan por un siglo la formación de nacionalidades euro-americanas. En la zona intertropical súmanse varios factores para impedir el acceso y la difusión de las razas blancas” (1915d: 464).

Um ponto interessante é que, apesar deste texto ser datado de 1915, podemos encontrar afinidades entre o pensamento deste período e aquele defendido pelo “jovem Ingenieros” no final do século XIX como, por exemplo, a utilização do determinismo geográfico como fonte de explicações para as diferenças étnicas entre as porções do continente americano e o retorno da cultura européia enquanto parâmetro civilizatório.

Ingenieros definia a nação a partir do momento em que um grupo de homens que viviam em uma região qualquer da superfície da Terra, adaptando-se às peculiaridades de sua natureza e à prática de determinados costumes, adquiria modos homogêneos de viver e pensar, dos quais resultaria o sentimento coletivo de solidariedade material e moral, consideradas pelo autor como características sociológicas da nação. Seguindo essa perspectiva, argumenta que apenas a partir da homogeneidade social e cultural poderia se constituir uma nação e através do conceito de “raça argentina” referia-se a uma sociedade homogênea, tantos nos costumes, quanto nos ideais.

Com o intuito de compreender o processo de formação da “raça argentina”, Ingenieros considerou três variedades étnicas: os euro-argentinos, os mestiços hispano-indígenas e os indígenas propriamente ditos. Os primeiros eram considerados puramente europeus pois, de acordo com Ingenieros, além de o serem pela raça, também o eram por sua mentalidade; estes eram considerados responsáveis pela independência e pela nacionalidade política argentina. A segunda variedade corresponderia ao gaúcho. Produto da mescla entre o espanhol e o indígena, cuja principal característica eram os hábitos coloniais, este mestiço foi tomado por Ingenieros como essencialmente distinto da porção da sociedade argentina que possuía sangue europeu, não apenas pelos aspectos físicos, mas, principalmente, por sua mentalidade. O terceiro elemento era o autóctone, isto é, as massas indígenas que teriam se mantido totalmente alheias à nova nacionalidade argentina. Para concluir, comemorava que o censo de 1914 havia assinalado um crescimento esmagador da raça branca, que os índios deixavam apenas traços exíguos e que em Buenos Aires um negro argentino constituía-se num objeto de curiosidade (1915d: 481).

A partir desse balanço, o autor retomou um tema recorrente em suas obras publicadas no final do século XIX e início do XX: a função civilizatória da imigração europeia. Para Ingenieros, a imigração foi responsável pela afirmação do predomínio da raça branca e da civilização europeia na região do Prata, pois supunha que os núcleos “euro-argentinos” haviam recebido um reforço de raças européias, o que acabaria por concretizar, à época do Centenário, o sonho de Moreno, Rivadavia, Echeverría, Alberdi e Sarmiento.

No momento em que escreveu o texto, em 1915, José Ingenieros afirmava identificar alguns elementos da nacionalidade que se formava

Hay ya elementos inequívocos de juicio para apreciar este advenimiento de uma raza blanca argentina –rápidamente acentuado en los últimos diez años y destinado a producir más sensibles resultados sociales en los veinte años próximos– y que pronto nos permitirá borrar el estigma de inferioridad con que han marcado siempre los europeos a los sudamericanos (Ingenieros, 1915d: 481)[10]

A nacionalidade argentina implicava, de acordo com a visão de Ingenieros, na constituição de uma “raça argentina” -branca– a qual prosperaria e se consolidaria de forma proporcional ao crescimento do sentimento coletivo de nacionalidade. Nesse ínterim, o autor chamava a atenção para a existência de uma tradição argentina, a qual não julgava ser encontrada na herança indígena ou tampouco na colonial

Nació con la nacionalidad misma, en pugna franca con las rutinas coloniales; se enriqueció por obra de nuestros pensadores; aletea sobre las nuevas generaciones. Será el punto de partida para la germinación de ideales ulteriores. Todos los que sentieron y pensaron la “argentinidad” hablaron del porvenir. Ningún pensador argentino tuvo los ojos en la espalda ni pronunció la palabra “ayer”; todos miraron al frente y repitieron sin descanso: “mañana”.

Nesse ponto, podemos notar a diferença no discurso nacionalista de Bunge e Ingenieros a partir da primeira década do século XX. Enquanto o primeiro identificava o imigrante europeu como um elemento que poderia causar a desintegração do caráter nacional que àquela época se buscava solidificar, o segundo entendia a influência do elemento civilizador, portador de cultura, representado pelo imigrante europeu, como um dos traços constituintes de tal caráter nacional. Portanto, em seu esforço pela construção da nacionalidade argentina, ambos os intelectuais se voltaram ao passado, mas o fizeram de formas distintas. Para Carlos O. Bunge as raízes do ser essencialmente argentino seriam identificadas na figura do gaúcho, habitante dos campos do interior do país, pois a nova ameaça seriam os imigrantes que não haviam adotado os costumes e a cultura do país, isto é, não haviam se integrado ao mesmo. Já Ingenieros recorreu ao passado colonial com o objetivo de enunciar a formação de uma “raça argentina”, a partir da qual se conformaria a “argentinidade”.

A “argentinidade” consistia, seguindo o pensamento de Ingenieros, no sentido novo que a “raça nascente” imprimiria à sabedoria comum dos homens da época; pois acreditava que, dentro do conjunto de ideais produzidos pela atividade dos cientistas e dos artistas, a experiência diferenciada dos argentinos constituiria uma filosofia argentina. A construção da nação estaria, dessa forma, associada à reorganização da cultura argentina, o que somente seria possível a partir do trabalho dos intelectuais. Neste ponto é importante destacarmos que a criação da editora La Cultura Argentina e da Revista de Filosofía situam Ingenieros e os colaboradores da revista entre os intelectuais que tinham como missão construir a nação, uma vez que contribuíam para a organização de sua cultura. Carlos Octavio Bunge, no discurso proferido ao receber Ángel de Estrada na Academia de Filosofia e Letras, corroborava a necessidade de organizar e fomentar a cultura nacional

Si necesitamos, pues, poetas y prosistas, obra la más sana y patriótica será estimular su fecundísima labor. Sus hermanos en las letras y artes han de ayudarlos, sin torpes rivalidades (...). El Estado ha de protegerlos, y no con menor constancia, eficacia y aun sacrificio que a las industrias nacionales, puesto que no son menos útiles. En fin, el pueblo ha de amarlos y respetarlos (...) hora es de que comencemos a apreciar nuestros positivos valores culturales, si no queremos vivir siempre de la imitación estéril y deprimente. La intelectualidad argentina es felizmente rica y poderosa. Sólo la falta para ser grande un factor indispensable: el estímulo social (1915: 324).

Rossi destaca que o desejo de atestar a existência da “argentinidade” e de elucidar os valores que a constituíam estava expresso em forma de manifesto tanto no primeiro número da Revista de Filosofía quanto na atividade pública de Ingenieros. De acordo com Hector Agosti, durante os anos que passou na Europa, sempre que trabalhava sobre a mesa de algum café em Lausana, José Ingenieros colocava sobre ela uma bandeirinha argentina (1947: 135) e, ao agradecer a seus anfitriões em universidades estrangeiras ou ao responder a comentários de publicações do exterior sobre alguma de suas obras, enfatizava sua nacionalidade argentina deixando claro que quem recebia as homenagens não era apenas a sua pessoa, mas um destacado representante da cultura argentina, membro de sua elite intelectual: “(...) es como si en mi persona se quisiera honrar a mi patria, por sus grandes pensadores, Sarmiento, Alberdi y Ameghino, o por mis maestros, inmediatos en la ciencia psiquiátrica, Ramos Mejía y De Veyga” (Ingenieros, 1915b: 270).

A visão positiva de Ingenieros com relação à contribuição do elemento imigratório para a construção da nacionalidade argentina, evidenciada desde seus primeiros escritos até os textos publicados na Revista de Filosofía, nos remete à hipótese de que este pensamento se sustentou, por tanto tempo, em decorrência de suas origens. Diferentemente de Bunge, que pertencia uma tradicional família argentina criadora de gado, Ingenieros chegou ao país, ainda pequeno, na condição de imigrante, o que acreditamos ter contribuído para definição do caráter otimista da imigração em suas obras. Sempre que exaltou a figura do imigrante, Ingenieros o fez partindo de um viés positivo fosse no final do século XIX, momento em que se preocupava em romper com as tradições hispânicas e gaúchas, ou a partir da década de 1915, quando ressaltava a importância da “argentinidade” e da formação de uma “raça tipicamente argentina” enquanto símbolos da nacionalidade.

Um ponto coincidente entre a produção de Ingenieros e Bunge reside sobre a questão educacional. Carlos Bunge havia se mostrado, durante sua trajetória intelectual, preocupado com a função da educação diante da construção da nação argentina; Ingenieros, por sua vez, acena nessa direção, mas o faz alguns anos depois e de um outro patamar, pois se o alvo de Bunge eram as escolas primárias, para Ingenieros importavam as universidades. Assim, em 1916 apresentou, durante o II Congreso Científico Panamericano, um relatório sobre “La filosofia científica en la organización de las universidades”, o qual mais tarde deu origem à obra La universidad del porvenir. Segundo Terán, “esse escrito, autêntico precursor teórico da Reforma Universitária, expressava nitidamente o modo como a universidade era concebida, como uma engrenagem vital dentro do projeto nacional” (1979: 93). Partindo dessa perspectiva, Ingenieros constatava que, àquela época, as universidades constituíam-se em espaços enclausurados e alheios à sociedade global e propunha que estas deveriam se estender a toda sociedade, o que possibilitaria elevar a cultura da sociedade argentina

(...) la educación superior no debe verse como un privilegio para crear diferencias en favor de pocos elegidos, sino como el instrumento colectivo más apropiado para aumentar la capacidad humana frente a la naturaleza, contribuyendo al bienestar de todos los hombres (Ingenieros, 1917: 289).

La universidad del porvenir completava o esquema proposto por seu autor desde 1915, segundo o qual o desenvolvimento cultural era concebido como um requisito para a nacionalidade. Outro componente que complementava o ideal de nacionalidade expresso por Ingenieros rumo aos anos vinte era a moralidade. Em Hacia una moral sin dogmas, o autor evoca uma moral diferente daquela enunciada em El hombre mediocre, pois se outrora sua preocupação estava voltada para a moral individualista, nesse momento a temática concentra-se na ética social. Segundo Terán, a partir de então, o ideal não era mais defendido como um patrimônio exclusivo das minorias, uma vez que, ao menos parcialmente, estaria sendo gerado no horizonte de uma moralidade social (1979: 85).

Se comparadas, a produção intelectual de Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros, evidenciam grande afinidade temática apesar do segundo ter produzido em maior volume que o primeiro, dado ao fato de que viveu mais. Nos últimos anos, o discurso de Ingenieros –agora um intelectual já maduro, com ideias bem definidas- enunciava uma transferência, ainda que lenta, “do europeísmo para um novo modelo europeizado”, porém instalado na América. Ademais, a questão nacional mostrou-se marcada não apenas pelos elementos raciais, como ocorrera no início de seus escritos, mas também pela cultura e pela moral. Nesse sentido, como argumenta Terán

Ingenieros via a necessidade de publicar livros a preços acessíveis e com a impressão de muitos exemplares, de ilustrar as camadas intelectuais mediante a criação de uma revista teórica mas, sobretudo, queria ocupar o coração cultural das classes privilegiadas com o fomento às universidades (1979: 96).

A partir de tudo isso, podemos afirmar que existiu, de fato, uma necessidade, ao menos por parte da elite intelectual, de reelaborar, a partir de 1910, os traços que compunham a nação argentina. No entanto, tal processo não foi unívoco, pois como procuramos demonstrar a partir da análise da produção intelectual de Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros, ao menos duas perspectivas foram apresentadas. A primeira delas, evidenciada em Bunge, retomava as propostas do criollismo, exaltando um nacionalismo autóctone centrado no exemplo do gaúcho. Já a segunda, enunciada por José Ingenieros, baseava-se nos ideais difundidos pelo cientificismo, os quais previam a superioridade da “raça branca” e mantinha-se focada na figura do imigrante. Nesse sentido, para formar a “raça argentina”, considerava necessária a fusão entre os elementos civilizatórios europeus –como a cultura e a disposição para o trabalho– e os argentinos. Não obstante, existiu um ponto coincidente em ambas as propostas nacionais: a exclusão do elemento indígena.

Bibliografía

Agosti, H. (1947) José Ingenieros: cidadão da juventude. São Paulo: Brasiliense.

Bunge, C. O. (1910a) “La educación y la disciplina social”. En El Monitor de la Educación Común. Buenos Aires.

Bunge, C. O. (1910b) “Teoría de un libro de lectura escolar”. En El Monitor de la Educación Común. Buenos Aires.

Bunge, C. O. (1910c) Nuestra Patria. Libro de lectura para la educación nacional. Buenos Aires: Ángel Estrada.

Bunge, C. O. (1915) “Los valores culturales”. En Revista de Filosofia, Cultura, Ciencias y Educación. Año 1, vol. 1, no 3. Buenos Aires.

Ingenieros, J. (s. d.) “El suicidio de los bárbaros”. En Os tempos novos: reflexões otimistas sobre a Grande Guerra e a Revolução Russa. América Latina.

Ingenieros, J. (1915a) “Para una filosofia argentina”. En Revista de Filosofia, Cultura, Ciencias y Educación. Año 1, vol. 1, no 1. Buenos Aires.

Ingenieros, J. (1915b) “Las ciencias nuevas y las leyes viejas”. En Revista de Filosofia, Cultura, Ciencias y Educación. Año 1, vol. 1, no 2. Buenos Aires.

Ingenieros, J. (1915c) “Historia de una biblioteca”. En Revista de Filosofia, Cultura, Ciencias y Educación. Año 1, vol. 2, no 5. Buenos Aires.

Ingenieros, J. (1915d) “La formación de uma raza argentina”. En Revista de Filosofia, Cultura, Ciencias y Educación. Año 1, vol. 2, no 6. Buenos Aires.

Ingenieros, J. (1917) La universidade del porvenir. Buenos Aires.

Pellegrino Soares, G. (2007) A semear horizontes: leituras literárias na formação da infância. Argentina e Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP.

Ponce, A. (1949) José Ingenieros: su vida y su obra. Buenos Aires: Iglesias y Matera.

Rojas, R. (1971) La Restauración nacionalista. Buenos Aires: Peña Lilo.

Romero, J. L. (1956) El desarrollo de las ideas en la sociedad argentina del siglo XX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.

Rossi, L. A. (1999) Revista de Filosofia, Cultura, Ciencias y Educación (1915-1929). Quilmes: Universidad Nacional de Quilmes.

Shumway, N. (2000) La invención de la Argentina. Historia de una idea. Buenos Aires: Emecé.

Terán, O. (1986) José Ingenieros: pensar la nación. Buenos Aires: Alianza Bolsillo.

Terán, O. (1979) José Ingenieros. Antimperialismo y nación. Buenos Aires: Siglo Veinteuno.

Terán, O. (2000) Vida intelectual en el Buenos Aires fin-de-siglo (1880 – 1910). Derivas de la “cultura científica”. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.

Notas

[1] Promulgada em 1910, a Lei de Defesa Social se diferenciava da já existente Lei de Residência pelo fato de incluir suas sanções aos anarquistas nativos e não apenas aos imigrantes.
[2] Vários festejos marcaram a comemoração como a realização, no hipódromo de Buenos Aires, do Gran Premio Centenario, o desfile militar pela rua Florida, espetáculos de cinema e teatro grátis e a presença ilustre da Infanta Isabel, representando o rei espanhol, do presidente do Chile, Pedro Montt e de representantes da Alemanha, Paraguai, Japão, Estados Unidos, dentre outros.
[3] A Revista de Derecho, Historia y Letras publicou, por várias vezes durante os anos que antecederam o Centenário, discussões de seus colaboradores acerca de quais monumentos deveriam ser erguidos em homenagem à história nacional.
[4] De acordo com a historiadora Gabriela Pellegrino Soares (2007), já no final do século XIX, o governo argentino incentivou, ainda que em segundo plano, a construção de uma rede de bibliotecas comunitárias, pois partia da premissa de que a melhor maneira para se levantar o nível intelectual da nação era fomentar o hábito da leitura até convertê-lo numa característica do caráter ou dos costumes nacionais.
[5] A cultura indígena é recuperada ao ponto de Bunge afirmar que “... en lo que ahora es la Argentina, más que sus ideas y sus conocimientos, los indios aportaron generosamente su preciosa sangre de pueblos libres”. Do mesmo modo, o negro e o mestiço também são exaltados, pois, segundo Bunge, estes formaram heróicas infantarias nos exércitos da pátria. E completa “... cualesquiera que fuesen su color y su origen, los argentinos se amaron siempre como hermanos”
[6] Esta obra se constitui numa crítica velada ao governo de Roque Sáenz Peña.
[7] Oscar Terán chama a atenção para a curta duração desse rompimento que ficou restrito ao texto de 1914 pois, logo em seguida foram retomados os conceitos que identificavam a civilização à cultura europeia (1979: 88).
[8] Ingenieros (1915c) explicou que havia proposto a Ricardo Rojas que publicassem as obras conjuntamente o que acabou não acontecendo devido a diferenças de critério editorial: Rojas queria fazer edições críticas e Ingenieros edições populares.
[9] Luis Rossi ressalta que intelectuais mais próximos ao conservadorismo também colaboraram com a Revista, este foi o caso de Alfredo Ferreira que naquele momento exercia o cargo de vice-presidente do Conselho Nacional de Educação, e Rodolfo Rivarola, fundador e diretor da Revista Argentina de Ciencias Políticas (1999: 16).
[10] Tais elementos seriam o exército nacional, composto por cidadãos brancos que sabiam ler, diante dos quais Ingenieros afirmava sentir-se como se assistisse a um desfile de tropas europeu, e o eleitorado nacional que era comparado à distribuição das raças no território argentino: os partidos democráticos de esquerda (como o Radical e o Socialista) teriam maior influência sobre as zonas europeizadas do país, enquanto os partidos oligárquicos de direita teriam sua base nas zonas fronteiriças com a América tropical e a Cordilheira dos Andes.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por