Resumo: O presente artigo buscou aproximar as temáticas Construção Social da Tecnologia e Tecnologia Social, mediante identificação e análise dos componentes da prática tecnológica em um projeto de Tecnologia Social. Para tanto, foi realizada uma pesquisa de caráter descritiva, com abordagem qualitativa, por meio de análise documental e entrevista. Como destaque metodológico foi utilizada como abordagem de análise a teoria da Construção Social da Tecnologia. Entre os resultados destaca-se que o uso dos componentes da prática tecnológica são um importante recurso teórico para análise do fenômeno desenvolvimento tecnológico, pois permite maior profundidade de julgamento, em especial à Tecnologia Social que se caracteriza em essência por um processo de construção social.
Palavras-chave:Tecnologia SocialTecnologia Social, Construção Social Construção Social, Desenvolvimento Tecnológico Desenvolvimento Tecnológico.
Abstract: The present article sought to approach the themes of Social Construction of Technology and Social Technology, by identifying and analyzing the components of technological practice in a Social Technology project. For that, a descriptive research was conducted, with a qualitative approach, through documentary analysis and interviews. As a methodological highlight, the theory of the Social Construction of Technology was used as the analysis approach. Among the results it is highlighted that the use of the components of technological practice is an important theoretical resource for the analysis of the technological development phenomenon, since it allows a greater depth of judgment, especially to Social Technology that is characterized in essence by a process of social construction.
Keywords: Social Technology, Social Construction, Technological Development.
Prática tecnológica e tecnologia social: um estudo a partir dos pressupostos teóricos da construção social da tecnologia
Technological Practice and Social Technology: a study based on the theoretical assumptions of the social construction of technology
Recepção: 21 Fevereiro 2017
Aprovação: 23 Junho 2017
A tecnologia consiste em uma atividade humana, socialmente condicionada, que reúne um conjunto de meios - procedimentos e instrumentos - para a obtenção de um fim almejado, que visa fundamentalmente ao domínio e ao controle da natureza, seja esta física ou social (TRIGUEIRO, 2009a).
Neste contexto, o desenvolvimento tecnológico é compreendido como um processo de construção social, pelo qual influencia a sociedade, assim como sofre influência desta. Contrariamente ao tratamento tradicional do assunto tecnologia, embasado na compreensão do modelo linear da Ciência e Tecnologia, o movimento da relação Ciência, Tecnologia e Sociedade (DAGNINO, 1977, 2011; TRIGUEIRO, 2009a, 2009b) defende o envolvimento da sociedade, em um debate político, sobre as escolhas tecnológicas para a coletividade.
Para tanto, é preciso compreender o processo de desenvolvimento tecnológico, sua prática e os elementos envolvidos, para que os atores sociais possam participar ativamente nas decisões. Neste ínterim existem as contribuições advindas da Teoria da Construção Social da Tecnologia ao apresentar os componentes da prática tecnológica.
Cabe destacar que a escolha entre uma Tecnologia Convencional e uma Tecnologia Social envolve diversos aspectos que vão além dos fatores técnicos de eficiência e racionalidade.
Como processo de construção social, voltado à transformação social, a Tecnologia Social é um fenômeno complexo que demanda meios específicos para análise de sua efetividade, assim como, tratamento adequado para sua reaplicação de um local a outro, o que leva ao seguinte questionamento: a Teoria da Construção Social da Tecnologia pode contribuir com a compreensão do processo de desenvolvimento de uma Tecnologia Social?
Provocado pelo questionamento apresentado foi realizado o presente artigo que buscou aproximar as temáticas, Construção Social da Tecnologia e Tecnologia Social, mediante identificação e análise dos componentes da prática tecnológica em um projeto de Tecnologia Social.
As informações apresentadas neste artigo são os resultados alcançados da análise do processo de construção social da Tecnologia Social denominada Oficinas Educativas aos Finais de Semana - Programa Comunidade Escola que tem se consolidado como importante política pública de desenvolvimento social do município de Curitiba, no Estado do Paraná.
Para tanto, foi realizada uma pesquisa descritiva que permitiu detalhar as características das ações socioeducativas promovidas por esta iniciativa, nas áreas de cultura, esporte, lazer e educação, cidadania, geração de renda e saúde e ainda as relações existentes entre estas, conforme classifica Gil (2003) este tipo de pesquisa.
Em relação aos procedimentos destaca-se o emprego da análise documental, caracterizada pela verificação dos fatos passados registrados que possam ser úteis, não apenas como um registro de memórias, mas também para ajudar no presente e vislumbrar tendências futuras (BEUREN, 2003). As fontes de informação consistiram em: dados do projeto registrado junto ao Banco de Tecnologia Sociais da Fundação Banco do Brasil (FBB, 2016); entrevista livre, via telefone, com os responsáveis pelo projeto; dados junto ao site do projeto Comunidade Escola (s/id); FIEP (2012) e informações da Prefeitura de Curitiba (PREFEITURA DE CURITIBA, 2010).
Para entender o processo de construção social do objeto de estudo, foi realizada a análise por meio dos componentes da prática tecnológica. A exposição dos dados foi realizada mediante o uso das categorias de análises baseada nos seguintes elementos: alternativas de escolhas humanas, base sócio-material, estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos, estrutura institucional, formas fenomenológicas de tecnologia e operador tecnológico.
A presente sessão, fundamentação teórica, estrutura-se em duas partes, de modo a dar subsídios teóricos para a compreensão dos fenômenos envolvidos no estudo. A primeira parte apresenta a construção de uma teoria da tecnologia e seu desdobramento na prática tecnológica, evidenciando seus componentes. A segunda destaca a Tecnologia Social, enfatizando suas características básicas.
O questionamento a respeito da natureza da tecnologia e do lugar que ela ocupa na sociedade tem proporcionado amplo debate na literatura, envolvendo diferentes enfoques, posições filosóficas e metodológicas (TRIGUEIRO, 2009a) e decorre de longa data a começar pelos estudos dos antigos gregos como Platão e Aristóteles, passando por Marx, Engels, Rousseau, Bacon, Comte e contemporaneamente por expoentes como: Dagnino (1977), Feenberg (1991), Sousa (1980), Trigueiro (2009a, 2009b), entre outros. Estes estudos constituem o arcabouço teórico da reflexão em torno da tecnologia e do papel que ela ocupa na sociedade.
De modo equivocado, o campo da ciência é considerado por muitos como essencialmente racional e isento de quaisquer interferências sociais, enquanto que, num plano secundário, a tecnologia é considerada como uma mera aplicação dos conhecimentos científicos (TRIGUEIRO, 2009a). Esta visão, tanto do fenômeno tecnológico como científico, reflete uma abordagem “ingênua” e “[...] caracteriza-se pela suposição de que a C&T avança contínua e inexoravelmente, seguindo um caminho próprio, podendo ou não influenciar a sociedade de alguma maneira” (DAGNINO, 2011, p. 1) preconizada pelo modelo linear da C&T (STOKES, 2005).
Em contradição à crença de que o desenvolvimento científico-tecnológico segue um processo de autodesenvolvimento endógeno, baseado em uma racionalidade técnica e neutra, os estudos da sociologia da tecnologia têm evidenciado que a ciência influencia a tecnologia, a tecnologia influencia a ciência, e estas influenciam e sofrem influência de seu meio, absorvendo os interesses e valores da sociedade em que são geradas mediante um processo político (DAGNINO, 2011; FEENBERG, 1991).
Para esclarecer o entendimento sobre o papel da ciência nas sociedades contemporâneas e o modo como ela se organiza e se constitui enquanto uma instituição social, a Sociologia da Ciência volta-se para a compreensão da dimensão social da atividade científica, correlacionando-a a outras esferas da vida social, como a ambiental, a política e a econômica (TRIGUEIRO, 2009b).
De modo análogo à Sociologia do Conhecimento, que se ocupa das relações entre o pensamento humano e o contexto social dentro do qual origina o conhecimento (BERGER; LUCKMAN, 2004), a Sociologia da Tecnologia ocupa-se do processo de construção do conhecimento tecnológico, desvelando o processo de seu desenvolvimento mediante múltiplas relações sociais. Contudo, seu afloramento tardio é explicado por Scharff e Dusek (2006) como sendo consequência de um “status secundário” atribuído à “filosofia da tecnologia”, ao longo da história do pensamento filosófico moderno. Trigueiro (2009a, p. 34) argumenta que se trata de um tratamento positivista resultante da “[…] reificação da ciência como um saber autodeterminado e autoexplicativo, e pelo esvaziamento de um espaço possível de crítica sobre esta forma científica, na medida em que ela é assumida como única forma válida de se fazer ciência”.
Esta valorização do teórico (científico), em detrimento do prático (tecnológico), explicaria porque a preocupação inicial da filosofia moderna era com a ciência e não com a técnica. Para Ihde (1979), a tecnologia era pensada como uma ciência aplicada - uma engenharia de conceitos - e não como uma forma de conhecimento própria, mais antiga que a ciência e sempre presente em toda história humana, na luta que essa espécie trava com a natureza (física e biológica), um conhecimento que surge da prática concreta dos indivíduos em sua vida diária.
Recentemente duas grandes tendências filosóficas tem se voltado mais atentamente para a tecnologia como um fenômeno próprio, ao invés de, meramente, um conhecimento derivado da ciência, secundário e subsidiário desta. Tais tendências se apresentam, por um lado, na Filosofia Analítica, incluindo o Positivismo Lógico, o Formalismo e o Construtivismo. Por outro lado, também se verifica na Fenomenologia, incluindo o Existencialismo e filosofias dialéticas (TRIGUEIRO, 2009a).
Pinch e Bijker (1987) explicam as razões que deram origem a Construção Social da Tecnologia:
[...] tanto a ciência como a tecnologia são socialmente construídas, e representam o “produto” de uma cultura, de cujos recursos se apropriam para os fins em causa. Desse modo, a fronteira entre a ciência e a tecnologia é uma questão de negociação social e não representa qualquer distinção subjacente. Sendo assim, não faz sentido tratar a relação ciência tecnologia de um modo geral como um caminho unidirecional (p. 21, tradução nossa).
Ciência e tecnologia complementam-se e são interconectadas. Em meio à literatura pertinente, o fato é que em todos os segmentos é possível verificar a presença da tecnologia e sua importância para a vida cotidiana, não sendo mais concebível seu tratamento como assunto secundário ou da esfera técnica, isolada do contexto social. Isso implica diretamente no debate político sobre o desenvolvimento tecnológico desejado para a nação.
A seguir é apresentada a estrutura desta prática tecnológica, assim como os componentes indispensáveis para que esta aconteça.
Definidos os limites estruturais num determinado contexto de muitas oportunidades tecnológicas, a combinação dinâmica entre a variação e a seleção de tecnologias é denominada como prática tecnológica (TRIGUEIRO, 2009a). A compreensão de tal prática implica em compreender o fenômeno tecnológico não como um mero instrumento ou mecanismo autojustificado, mas como processo aberto a inúmeras direções e trajetórias possíveis de desenvolvimento.
De modo abrangente, Althusser, Balibar e Ranciére (1980) concebem a prática como todo processo de transformação de uma matéria-prima determinada, efetuada por um dado trabalho humano, que utiliza meios (de produção) determinados. Assim, a prática tecnológica refere-se às atividades pertinentes à geração de tecnologia, partindo de um conhecimento sobre a natureza e de demandas ou necessidades provenientes da sociedade, objetivando o controle e o domínio sobre a natureza (TRIGUEIRO, 2009b).
Uma tecnologia ou o seu processo de produção pressupõe, necessariamente, uma escolha em que certas opções são privilegiadas em detrimento de outras, num permanente processo seletivo em que cada uma das possibilidades tecnológicas representa um interesse social específico, seja ele econômico, político, cultural, médico, alimentar, agropecuário ou educacional. Tais opções representam as necessidades e demandas por novas tecnologias (TRIGUEIRO, 2009a).
Segundo Duarte Junior (1994, p. 15), "[…] a questão da realidade (e da verdade) passa pela compreensão das diferentes maneiras de o homem se relacionar com o mundo", não diferente é o processo tecnológico, na relação homem versus tecnologia. A força de variação na produção de novas tecnologias é variável, no tempo e no espaço social, dependendo do tipo de tecnologia, do momento em que ela é demandada, de um estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos, e da própria disponibilidade de recursos físicos, humanos e financeiros. É nesse cenário que atuam os diferentes seletores: produtores, consumidores, legisladores, formuladores de políticas públicas (TRIGUEIRO, 2009a, 2009b).
O processo envolvido na prática tecnológica, em especial os elementos que fazem parte deste processo, tem sido alvo de estudiosos, como Sousa (1980) e Trigueiro (2009a, 2009b). Um dos resultados significativos de seus estudos é denominado estrutura da prática tecnológica. Dele fazem parte os seguintes componentes: base sócio material, estrutura institucional, estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos, alternativas de escolhas humanas, formas fenomenológicas de tecnologia e operador tecnológico.
A prática tecnológica, de acordo com Trigueiro (2009a, p. 63), “[...] consiste num conjunto articulado de componentes físicos e institucionais que se relacionam entre si mediante um vasto campo de conflitos, os mais diversos, o qual é resultado de determinadas ações intencionais, no processo de produção de tecnologias”. Desse modo, apesar de cada componente consistir em elemento específico, dotado de características singulares, cada qual possui “independência relativa” em relação aos demais, influenciando e sofrendo influência em um processo dinâmico que caracteriza a prática tecnológica.
No Quadro 1 é apresentada a definição de cada um destes componentes.
Destaca-se que, a priori, de acordo com os estudos de Sousa (1980), a estrutura institucional e o operador tecnológico não eram contemplados na descrição da prática tecnológica. Apenas com os estudos de Trigueiro (2009a) estes passam a fazer parte do conjunto teórico, justificado pela necessidade de esclarecer os seguintes questionamentos: Onde se dá a prática tecnológica? Como se dá o processo específico de criação ou desenvolvimento da tecnologia? Quem dá a partida no processo? Quem é responsável por mover o processo?
Para o primeiro questionamento tem se a estrutura institucional, que é o espaço físico no qual se realiza concretamente a tecnologia. Com relação às demais questões, Trigueiro (2009a) buscou a resposta no que chamou de operador tecnológico. O componente operador tecnológico é um conceito complexo, pois não se trata de uma pessoa, ou organização, ou produto, ou processo, mas sim de um conjunto de fatores ou elementos, definido como uma “engrenagem” que impulsiona (capta as demandas) e mantêm as atividades envolvidas com o desenvolvimento tecnológico propriamente dito (TRIGUEIRO, 2009a).
Assim, o operador tecnológico é formado, não por um fator, mas por três fatores relacionados: diretrizes governamentais e programas de financiamento e cooperação; demandas tecnológicas manifestas; e motivação dos pesquisadores (TRIGUEIRO, 2009a). O primeiro fator é responsável pelo financiamento do desenvolvimento tecnológico, como fornecimento de recursos materiais e financeiros as entidades de pesquisa e desenvolvimento. Diz respeito às políticas de incentivo tanto da esfera pública como privada que estimulam a pesquisa e o desenvolvimento científico-tecnológico. O segundo fator está relacionado às demandas tecnológicas manifestas resultantes de conflitos de interesses, os quais estão representados nas alternativas de escolhas humanas. O terceiro fator diz respeito às motivações dos pesquisadores envolvidos no processo de desenvolvimento, que são influenciados por diversos aspectos, tais como: origem socioeconômica, formação educacional e profissional, sistemas de premiação, punição ou coação, entre outros relacionados às suas histórias de vida.
Na Figura 1 é apresentada a estrutura da prática tecnológica, assim como todos os componentes indispensáveis à realização desta.
Como já descrito, cada componente dentro um processo dinâmico de conflitos (campo de conflitos) sofrerá influência e influenciará os demais, possibilitando uma gama de oportunidades para o desenvolvimento tecnológico, reflexo do processo político envolvido neste. Deste modo, a escolha entre diversas opções tecnológicas dependerá dos diversos componentes presentes em um dado contexto e momento.
A Tecnologia Social (TS) é uma criação brasileira, formalizada mediante projeto do Centro Brasileiro de Tecnologia Social e publicada, em 2004, pelo Instituto de Tecnologia Social (ITS, 2004). Constituir-se em uma política pública do governo federal, vinculada à Secretaria para Inclusão Social do Ministério da Ciência e Tecnologia, mas é um fenômeno ainda pouco conhecido (FREITAS; SEGATTO, 2013), que pode contribuir nas soluções para as demandas sociais, por constituir-se em uma proposta metodológica de intervenção coletiva, voltada às necessidades sociais. Diferentemente de outros tipos de tecnologia, a proposta da TS denota a participação coletiva de seus beneficiários em seu processo de desenvolvimento e aplicação, consistindo em uma inovadora forma de mediação entre a produção do conhecimento e a sociedade (BAUMGARTEN, 2008).
A TS caracteriza-se como um novo estilo de desenvolvimento capaz de atender às várias dimensões do desenvolvimento sustentável baseado em estratégias adaptativas a partir do uso de tecnologias alternativas. Trata-se de uma busca à construção de soluções coletivas voltadas à transformação social, valorizando a criatividade dos sujeitos e incrementando a geração de emprego e renda, aliada às dimensões da sustentabilidade (social, econômica e ambiental). A TS, portanto, pode ser entendida como um conjunto de práticas de intervenção social que se destacam pelo êxito na melhoria das condições de vida da população, construindo soluções participativas, estreitamente ligadas às realidades locais onde são aplicadas, por serem concebidas com o intuito de promover transformação social (ITS, 2004).
Para cumprir sua finalidade, a TS envolve a participação coletiva no processo de organização, formação humana e inclusão social. Isto remete para uma proposta inovadora de desenvolvimento tecnológico, na qual se discutem as possibilidades tecnológicas em termos de contribuição para resolver problemas e necessidades sociais, tais como: resolução de problemas de alimentação e nutrição, educação, energia, habitação, renda, recursos hídricos, saúde, meio ambiente, dentre outras (BAUMGARTEN, 2008)., ou seja, as demandas mais deficitárias das sociedades. Ressalta-se que a essência da TS não está no produto ou resultado final, mas sim no processo, ou seja, na prática desta tecnologia os indivíduos/beneficiários fazem parte do processo de transformação em busca de soluções para seus problemas, contribuindo para a redução do quadro de pobreza, analfabetismo, fome e exclusão social. Trata-se de uma tecnologia voltada a reduzir o abismo existente entre as classes mais ricas e as mais pobres. Nisto consiste o grande desafio de sua realização.
Com base nos pressupostos teóricos apresentados no referencial teórico, acreditamos que o estudo das Tecnologias Sociais encontra na abordagem da Construção Social da Tecnologia um aparato teórico fértil para sua compreensão, em especial no que se refere aos componentes da estrutura tecnológica. O uso deste recurso teórico permite desvelar a complexidade da práxis envolvida na TS, o que é pertinente ao esforço da democratização do conhecimento e da reaplicação das experiências. Ainda, serve este conhecimento para a capacitação de interessados e envolvidos em projetos de TS.
Neste sentido, segue a presente análise realizada sobre um projeto de TS que buscou evidenciar cada um dos componentes da prática tecnológica existente neste. A apresentação começa com a caracterização do projeto e segue com a descrição de seus componentes.
A Tecnologia Social Oficinas Educativas aos Finais de Semana – Programa Comunidade Escola promove as escolas municipais da cidade de Curitiba como espaços abertos de conhecimento e irradiação da vida da comunidade, ampliando a diversidade das ações e o tempo de utilização dessas escolas num compromisso com a continuidade, o aperfeiçoamento e as mudanças nas áreas de atendimento às demandas sociais, abrangendo o combate à violência, a ação social, a segurança alimentar e nutricional, a educação infantil, o ensino fundamental, a cultura, o esporte e lazer. Concebido no ano de 2005, mediante modelo de gestão de responsabilidade compartilhada, com atuação intersetorial, este projeto de inovação tecnológica foi certificado como Tecnologia Social pela Fundação Banco do Brasil, em 2011. Ele integra as políticas públicas do Município de Curitiba (PR), possuindo como público-alvo crianças e adolescentes. No decorrer de uma década de funcionamento, superou a marca de sete milhões de pessoas beneficiadas.
A seguir é analisado o processo de construção social desta tecnologia, por meio da descrição dos componentes da estrutura da prática tecnológica, sendo: alternativas de escolhas humanas, base sócio material, estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos, estrutura institucional, formas fenomenológicas de tecnologia e operador tecnológico.
As alternativas de escolhas humanas correspondem a oportunidades reconhecidas de desenvolvimento tecnológico, caracterizadas por necessidades ou demandas sociais não atendidas, em sua totalidade ou em parte. O reconhecimento da alternativa e escolha humana decorre do que se denomina crivo social. Considerando o significado da palavra crivo, como peneira ou utensílio de separação, este caracteriza-se pela percepção coletiva de uma necessidade, entre diversas, que perturba o sistema social, tornando seu atendimento prioritário (TRIGUEIRO, 2009b).
No caso em estudo, a alternativa de escolha humana identificada foi caracterizada por um conjunto de problemas sociais envolvendo os adolescentes e jovens, como: gravidez na adolescência, prática do aborto, violência doméstica, violência sexual e seus reflexos na evasão escolar e baixo desempenho. Problemas oriundos do entorno das escolas, mas que impactavam diretamente no ambiente escolar, prejudicando a efetividade das ações educativas do município.
A percepção dos atores envolvidos foi reforçada pelos dados da pesquisa nacional por amostras de domicílios (IBGE, 2003), que indicou a existência de 114 mil jovens da região metropolitana de Curitiba que não trabalhavam ou estudavam. Estes jovens tinham em média 20 anos de idade e 8 anos de estudo, sendo mais de 27% deles negros e de baixa renda. Ainda em relação à parcela mais jovem da população, era preocupante o número de adolescentes grávidas - em 2000 foram 1.328 partos realizados em menores de 17 anos de idade (4,5% dos partos) e 4.224 em jovens de 17 a 19 anos (14% dos partos) - e a prática do aborto era uma solução adotada para este problema.
Além disso, segundo uma pesquisa realizada por Sallas e Silva (1999), a respeito dos jovens de Curitiba, a gravidez na adolescência era a situação de violência de maior conhecimento dos professores, seguida da violência doméstica, aborto e violência sexual. Ainda, este cenário era agravado pela inexistência de espaços adequados de lazer aos adolescentes e jovens, que nos horários fora da escola ficavam ociosos.
A percepção dos atores, os fatos e os números foram suficientes para a passagem desta escolha humana pelo crivo social dos seletores e da definição de sua prioridade em detrimento de outras. Diante deste contexto, foi delineado a Tecnologia Social Oficinas Educativas aos Finais de Semana – Programa Comunidade Escola, no ano de 2005, com o intuito de realizar o enfrentamento das vulnerabilidades sociais existentes no entorno das escolas e da ausência ou de poucos espaços públicos que proporcionavam lazer para esta classe social.
Por traz da alternativa de escolha humana há uma história que a justifica e que deve ser considerada pelos responsáveis pela Tecnologia Social. A mudança efetiva de uma realidade social passa necessariamente pela compreensão desta de modo sistêmica (ITS, 2004).
A base sócio material é constituída pelas relações econômicas, sociais, políticas e ideológicas que caracterizam o contexto social envolvido com a prática tecnológica específica (TRIGUEIRO, 2009a). Para o fenômeno em estudo estavam relacionados os professores, os diretores das 169 escolas municipais existentes na época, representantes das secretarias e órgãos municipais, administradores regionais, chefes dos núcleos regionais, além dos alunos e seus pais.
O processo decisório escolhido foi o participativo, por permitir a apreciação de diversos posicionamentos na definição da escolha tecnologia a ser adotada. Por meio deste foi definido a missão do projeto de “valorizar a escola como espaço aberto de conhecimento, promovendo parcerias e ações integradas para o desenvolvimento da comunidade local”.
A ideologia base da proposta era de que contribuir para o desenvolvimento sociocultural e político dos cidadãos, possibilita às pessoas o acesso ao conhecimento nas diferentes áreas; estimula a participação ativa e consciente e reforça os princípios que embasam e estruturam o processo de gestão democrática da escola, previsto nas Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal de Curitiba (CURITIBA, 2012).
Os critérios utilizados para a escolha das escolas-piloto foram: vulnerabilidade social no entorno da escola; instalações físicas adequadas para realização de atividades de esporte, cultura e lazer entre outras; experiência da escola em trabalhos com a comunidade; comprometimento dos diretores, vice-diretores e equipes escolares com a implementação do projeto.
Inscreveram-se, na época, 35 escolas para participar do programa. Após análise, foram definidas as nove primeiras escolas para o projeto-piloto: Bairro Novo do CAIC Guilherme Lacerda Braga Sobrinho, Eny Caldeira, Bento Mossurunga, Maria Marli Piovezan, América da Costa Sabóia, Laís Peretti, Maria Clara Brandão Tesseroli, Jardim Santos Andrade e Caramuru. Em 13 de agosto de 2005 ocorreu o lançamento oficial do projeto.
Considerando que a transformação social se dá a partir da compreensão da realidade e do respeito às identidades locais (ITS, 2004), foi essencial a identificação dos atores que estão relacionados ao contexto da TS. Sua identificação e o estabelecimento participativo democrático de responsabilidades precisou ser compreendido como uma estratégia de atuação, diante da complexidade da intervenção social e o desenvolvimento de soluções que se iniciavam.
O estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos consiste no acervo de conhecimentos disponíveis, que podem ser utilizados no alcance de uma nova solução tecnológica frente ao desafio do atendimento da alternativa da escolha humana (TRIGUEIRO, 2009a). No caso do projeto Comunidade Escola, sua proposta foi fundamentada no papel social da escola, definido por Abramovay (2002) como um local privilegiado para a construção de uma cultura de paz, na medida em que congrega uma série de fatores que a coloca como polo irradiador para a comunidade e a sociedade. Por ser um lugar de encontro da diversidade cultural, a escola possui potencial para o estabelecimento de relações com a comunidade e exerce papel fundamental junto aos alunos para a formação de valores e a transmissão e produção de conhecimentos, constituindo-se em um espaço privilegiado para desenvolvimento local. Os programas que se utilizam da escola como meio irradiador da integração social e empoderamento da sociedade local desenvolvem ou fortalecem laços fortes entre as pessoas, transformando-as em uma comunidade (SABBAG; BOLSONI-SILVA, 2011).
Considerando o papel social da escola, foram definidos três princípios básicos de fundamento da proposta: Educação Integral; Capital Social; Cultura de Paz e Não Violência.
Educação Integral: entendida como o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, com equilíbrio entre os aspectos cognitivos, afetivos, psicomotores e sociais. Apresenta-se como ponto central do desenvolvimento social e econômico dos indivíduos e das comunidades, podendo ser promovida por meio de ações socioeducativas nas áreas da cultura, assistência social, esporte e lazer, geração de renda, saúde e meio ambiente.
Capital Social: entendido como a capacidade de interação dos indivíduos visando à formação de redes sociais de colaboração e reciprocidade com vistas à promoção de atividades de cooperação e à realização de ações coletivas. Esse capital não se esgota com o uso, pelo contrário, as relações sociais que o constituem tornam-se mais perenes quando são continuamente ativadas.
Cultura de Paz e Não Violência: considera o conflito no contexto dos sentimentos humanos e, antes de reprimi-los, busca soluções pacíficas, trabalhando os sentimentos como oportunidades de crescimento e aprendizagem. Apresenta-se na qualidade dos diálogos, na atitude de respeito, inclusão e construção coletiva de regras de convivência harmoniosa. Nesta perspectiva, a resolução dos conflitos pressupõe o exercício de uma cidadania proativa, alicerçada em direitos e deveres, com a participação da família, das organizações e da comunidade na construção de relações sociais de confiança.
A estrutura institucional corresponde ao local no qual se dá o desenvolvimento tecnológico ou a geração da tecnologia propriamente dita (TRIGUEIRO, 2009a). Tradicionalmente é compreendido pelo ambiente de uma organização, como um laboratório ou centro de pesquisa. Contudo, sua delimitação se dá pelo espaço ocupado pela geração do artefato ou processo tecnológico. No caso em estudo, uma tecnologia social consiste em um processo desenvolvido na interação com a comunidade. Diferente de um produto pronto (artefato tecnológico) que se pode produzir em um local e aplicar em outro, o processo tecnológico de uma TS caracteriza-se pelo fato conjunto entre aplicação e geração, não sendo possível desvincular os locais. Assim, para o projeto Comunidade Escola a estrutura institucional não está em uma única organização, mas em diversas organizações, ou seja, no conjunto de escolas participantes e em constante modificação pela adesão de novas escolas.
Em 2005, o projeto iniciou, após a realização do projeto piloto, com 31 escolas da Rede Municipal de Ensino. Os profissionais necessários para implementação da tecnologia eram: a equipe pedagógica administrativa da escola, contando com dois professores coordenadores, três agentes de leitura, dois agentes de informática, dois técnicos da Unidade Gestora e um coordenador de área. Quando o projeto foi certificado como Tecnologia Social, pela Fundação Banco do Brasil, em 2011, já contava com 92 escolas participantes.
As atividades socioeducativas gratuitas são desenvolvidas nas salas de aula, quadras esportivas, auditórios, bibliotecas e laboratórios de informática. O programa realiza cursos para geração de renda, atividades esportivas, culturais, de lazer e saúde. Quanto à divisão do trabalho e responsabilidades, o projeto foi concebido em um modelo de gestão com responsabilidades compartilhadas entre as secretarias e órgãos municipais, sob a coordenação da Secretaria Municipal da Educação. Está estruturado em quatro instâncias de gestão, com funções consultivas e deliberativas nos níveis central, regional e local.
Colegiado de Órgãos: constituído por representantes da Prefeitura de Curitiba, indicados pelos dirigentes das secretárias e órgãos, voluntários e representantes das instituições parceiras dos diversos segmentos da sociedade. Possui as funções consultiva e deliberativa, visando esclarecimento, definição e encaminhamento de ações estratégicas.
Unidade Gestora do Programa (UGP): constituída por técnicos da Secretaria Municipal da Educação e representantes da Prefeitura de Curitiba. Cabe à UGP a gestão executiva junto aos níveis central, regional e local da Prefeitura e aos parceiros externos.
Colegiado Regional (COR): constituído por representantes da Prefeitura no nível regional e pelos diretores das escolas participantes. Reúne-se periodicamente para avaliar o desenvolvimento das ações e os resultados do Programa em cada escola, propondo alternativas para seu aprimoramento.
Comitê Local (COL): constituído pelos diretores, professores e representantes da equipe pedagógico administrativa da escola, estudantes e pais, voluntários, lideranças locais e representantes da sociedade civil organizada local. Cabe ao COL gerenciar as ações do Programa na escola, tais como: decidir as atividades a serem desenvolvidas; identificar os interesses da comunidade e potenciais parceiros; gerenciar os recursos financeiros; acolher instrutores, voluntários, estagiários, demais agentes locais e avaliar o Programa.
O projeto também conta com parcerias de empresas, instituições religiosas, ONG´s, meios de comunicação, grupos culturais e esportivos, associação de moradores, clube de mães e instituições de ensino superior.
Quanto à formalização, que diz respeito às normas e procedimentos, os critérios utilizados para a escolha das escolas foram: vulnerabilidade social no entorno da escola; instalações físicas adequadas para realização de atividades de esporte, cultura e lazer entre outras; experiência da escola em trabalhos com a comunidade; comprometimento dos diretores, vice-diretores e equipes escolares com sua implementação.
Quanto à concepção, o projeto baseia-se numa perspectiva de monitoramento e avaliação continuada, realizada sistematicamente e com a efetiva participação dos diversos agentes, dos participantes e dos não participantes, o que possibilita seu aprimoramento continuado. A partir de 2006, passou-se a utilizar um Sistema Informatizado de Gestão (SIG), contando atualmente com avaliações sistemáticas pelas equipes locais, pesquisas de impacto e satisfação, parâmetros e indicadores de qualidade.
Visando a mobilização da comunidade para se integrar ao programa, as escolas integrantes do Comunidade Escola recebem materiais de divulgação e informação, como filipetas, revistas, jornais, banners, folders, balões, CDs e DVDs com o hino e filme institucional. Mensalmente, nos ônibus e mobiliários urbanos, são afixados cartazes com orientações sobre as escolas que integram o programa. Diversos eventos locais e regionais, como campeonatos, exposições e seminários são realizados visando divulgar os talentos locais, as ações do Programa e a troca de experiências. Outra mídia de divulgação é a página do programa, no site da Prefeitura Municipal de Curitiba <http://www.curitiba.pr.gov.br>.
A forma fenomenológica corresponde à tecnologia propriamente dita, ou seja, o resultado da prática tecnológica, assim como o conhecimento oriundo desta, que irá se somar-se ao estoque de conhecimento científico tecnológico já existente (TRIGUEIRO, 2009a). No caso em estudo a forma fenomenológica se manifesta, de modo geral, no processo como um todo. De modo específico, manifesta-se nas atividades socioeducativas oferecidas à comunidade, categorizadas em 5 eixos: Cultura, Educação e Cidadania, Esporte e Lazer, Geração de Renda e Saúde.
O eixo Cultura promove e dissemina atividades artísticas nas suas várias linguagens (literatura, música, dança cinema, teatro e artes visuais), possibilitando o acesso do cidadão às manifestações culturais tradicionais, bem como uma aprendizagem ampla e contínua. As atividades do Eixo Cultura permeiam de forma transversal os demais eixos do Programa Comunidade Escola, contribuindo com as ações socioeducativas nos eixos Educação e Cidadania, Esporte e Lazer e Saúde. Acontecem por meio de atividades de literatura, música, dança, cinema, teatro e artes visuais.
O eixo Educação e Cidadania promove ações educativas continuadas, que visam incentivar a participação ativa e consciente da comunidade, com foco na formação dos cidadãos, na inclusão social e digital, no desenvolvimento da iniciativa para a produção de soluções e na formação da cidadania. Visa o desenvolvimento sociocultural e político dos cidadãos. As atividades executadas incluem educação digital, língua estrangeira, socialização e desenvolvimento comunitário.
No eixo Esporte e Lazer são ofertadas oficinas de xadrez e artes marciais, jogos intelectivos, brinquedoteca, gincanas, torneios e campeonatos de diferentes modalidades esportivas, bailes, aulas de ginástica, recreação dirigida, caminhadas, passeios ciclísticos e ações que proporcionem qualidade de vida.
O eixo Geração de Renda oferece diferentes modalidades de oficinas e cursos de artesanato, gastronomia, prestação de serviços, informática e idiomas, além de orientações sobre profissões, mercado de trabalho e prestação de serviços, com o objetivo de desenvolver competências pessoais e empresariais que contribuam para a sustentabilidade da população.
No eixo Saúde o objetivo geral é estimular a criação de ambientes saudáveis, permitindo às pessoas adquirirem maior controle sobre sua saúde pela construção de contextos, comportamentos e relações sociais favoráveis à saúde e ao desenvolvimento humano. Estrutura, também, atividades de prevenção de doenças, alertando para a importância de exames preventivos, do autocuidado, dos cuidados com o ambiente (limpeza, separação de lixo, preservação dos rios, esgoto) e higiene bucal, o que compreende atendimentos preventivos e campanhas de vacinação. São organizadas rodas de conversa, esclarecimentos e atividades de educação alimentar e ambiental, mutirões de limpeza de espaços públicos, replantio de árvores, reciclagem de lixo, papel, vidro, plástico e orientações sobre guarda responsável de animais e hortas comunitárias.
Em relação ao conhecimento, enquanto forma fenomenológica de tecnologia, consideram-se os registros das informações pertinentes das atividades executas e os resultados alcançados pelo projeto. Isto o evidencia como alternativa efetiva para a cultura de paz e para o desenvolvimento sustentável local, uma vez que as atividades ofertadas envolvem múltiplas dimensões (econômica, social, educativa, de cidadania, saúde e esporte, cultural e ambiental). O programa também consolida o conceito de redes de colaboração, pois é crescente a adesão de diferentes parceiros, passando a representar um alicerce local para a articulação da sociedade. Isto contribui para que mais cidadãos e organizações passem a reconhecer a escola como espaço público democrático e acolhedor, no qual prevalece a solidariedade, o respeito e a resolução pacífica dos conflitos inerentes ao convívio humano.
Pode-se afirmar que o acesso às escolas pela população tem assegurado à comunidade espaços de convívio solidário, ético e de acesso à educação e ao lazer. As mudanças decorrem das oportunidades inerentes às relações sociais e de aprendizagem contínuas que acontecem nesses espaços, cujo êxito está relacionado à sua missão de valorizar a escola como espaço aberto de conhecimento, promovendo parcerias e ações para o desenvolvimento da comunidade local. Ao contribuir para o desenvolvimento sociocultural e político dos cidadãos, o projeto possibilita às pessoas o acesso ao conhecimento em diferentes áreas, estimula a participação ativa e consciente e reforça os princípios que embasam e estruturam o processo de gestão democrática da escola, compondo mais um componente básico da estrutura da prática tecnológica, ou seja, as formas fenomenológicas.
Os operadores tecnológicos consistem nos vetores estruturais que acionam, orientam e condicionam o processo de produção tecnológica (TRIGUEIRO, 2009a). Eles são compostos por três componentes básicos: diretrizes governamentais e dos programas de cooperação e financiamento; demanda manifesta de setores da sociedade; motivação do pesquisador.
Em relação às diretrizes governamentais, o projeto Comunidade Escola está inserido no eixo estratégico “Aprender em Curitiba”, do Plano de Governo Municipal. Ele contempla, além da escolaridade formal, a dinâmica da Sociedade do Conhecimento, na qual as pessoas necessitam aprender em todas as etapas da vida, a fim de iniciar-se na vida em sociedade, habilitar-se ao sustento autônomo, continuar inseridas no mundo economicamente produtivo, desenvolver potencialidades e talentos, vivenciar valores, aumentar a autoestima e alcançar uma vida digna e feliz.
O componente diretrizes dos programas de cooperação e financiamento compreende um elemento essencial na prática tecnológica, pois é onde se alojam as orientações às fontes responsáveis pelo financiamento do processo. Em relação ao projeto Comunidade Escola, este possui recursos oriundos do município, que são utilizados para a contratação de cursos e remuneração de pessoal, compra de materiais, monitoramento, avaliação e divulgação. As escolas também recebem, trimestralmente, recursos financeiros para compra de materiais. Um importante aporte foi obtido em 2008, com a avaliação do Programa pelo Ministério da Justiça, que direcionou mais de um milhão de reais, através do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), convênio n.º 172/2008, para a aquisição de diversos materiais esportivos, instrumentos musicais.
Quanto à demanda manifesta de setores da sociedade, a mesma já foi apresentada quando da análise das alternativas de escolha humana e pode ser resumida no conjunto dos seguintes problemas: gravidez na adolescência, violência doméstica e violência sexual contra adolescentes e jovens da região metropolitana de Curitiba. No entanto, vale salientar o rol de parceiros que caracterizam os setores da sociedade envolvidos na manifestação da demanda, conforme Figura 2.
Como último componente do operador tecnológico, tem-se o elemento motivacional, que explica os motivos do envolvimento dos pesquisadores no processo. Para o caso em estudo, os pesquisadores são os responsáveis pelo desenvolvimento das atividades: professores da prefeitura, instrutores contratados, acadêmicos, voluntários, colaboradores de instituições da sociedade civil organizada, servidores municipais.
Mais de mil pessoas estão envolvidas com o projeto. Os voluntários são mais de 800, de todas as idades, que trabalham para oferecer as atividades do programa. Considerando o grande número de pessoas envolvidas, os idealizadores do projeto sintetizam as motivações dos atores envolvidos na busca pela consecução do seguinte objetivo geral: ampliar o escopo da educação ofertando oportunidades de participação em atividades socioeducativas com foco nas demandas locais. Como objetivos específicos definiu-se: o esforço em contribuir para a melhoria da qualidade do ensino nas escolas municipais; o fortalecimento da capacidade de associação e organização dos membros da comunidade local, em torno da solução de seus problemas e da construção da sua prosperidade social e econômica; o fortalecimento da participação e corresponsabilidade da comunidade na escola; e da promoção da cultura de paz superando divergências e conflitos sem confronto de forças, sem violência e sem neutralização do diferente.
A teoria da Construção Social da Tecnologia contribui, de modo significativo, para a compreensão do desenvolvimento tecnológico, por desvelar o processo envolvido neste. Seus conhecimentos embasam os esforços para democratizar, e trazer do âmbito técnico para o político, as decisões acerca das escolhas tecnológicas para a sociedade.
Do mesmo modo, desmistifica o conhecimento científico-técnico que envolve o debate tecnológico, pois sendo este um processo de construção social “[...] não há nada epistemologicamente especial sobre a natureza do conhecimento, sendo apenas mais uma em uma série de culturas de conhecimento” (PINCH; BIJKER, 1987, p. 19).
Os componentes da prática tecnológica, contribuições de Sousa (1980) e Trigueiro (2009a; 2009b), permitem aos pesquisadores dos fenômenos sociais aprofundarem suas análises a partir de um tratamento particularizado e holístico dos diversos elementos envolvidos no processo e suas inter-relações. Portanto, o arcabouço teórico da Construção Social da Tecnologia pode servir como “ferramental”, tanto para a análise e validação dos projetos de Tecnologia Social, quanto para a proposição de novos projetos. No primeiro caso, permite, como já destacado, aprofundar a averiguação das experiências, evidenciando-se diversos aspectos que implicam diretamente ou indiretamente no sucesso dos projetos. No segundo caso, contribui para que os interessados em trabalhar com Tecnologia Social adquiram conhecimentos acerca dos elementos que envolvem uma prática tecnológica, permitindo uma abordagem crítica em relação ao fenômeno.
A percepção do todo e das suas partes é essencial ao estudo dos fenômenos sociais devido à sua complexidade. Isso evidencia a importância da Teoria da Construção Social da Tecnologia no que diz respeito ao fenômeno tecnológico e, em especial, à Tecnologia Social, que se caracteriza pelo seu processo e não pelo resultado final.
Por fim, considerando a pergunta de pesquisa, motivação deste estudo, a resposta é sim, a Teoria da Construção Social da Tecnologia contribui com a compreensão do processo de desenvolvimento de uma Tecnologia Social. Ao fornecer os elementos da prática tecnológica, esta Teoria indica aspectos para uma análise, concomitantemente, particularizada e holística do processo, possibilitando desvelar a prática envolvida e trazê-la para a discussão política do fenômeno. Assim, sua aplicação junto aos projetos de Tecnologia Social permitirá uma verificação mais profunda do cumprimento de seu conceito, princípios e parâmetros na validação das experiências.
Como citar: GAPINSKI, E. F. P.; et al. Prática tecnológica e tecnologia
social: um estudo a partir dos pressupostos teóricos da construção social da
tecnologia. R. Tecnol. Soc. v. 14,
n. 30, p. 83 -104, jan./abr. 2018. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/5585>.
Acesso em: XXX.