A imparcialidade da ciência e suas possibilidades para educação CTS

The impartiality of science and its possibilities for STS education

Aline Portella Biscaino 1
Universidade Federal da Fronteira Sul , Brasil

A imparcialidade da ciência e suas possibilidades para educação CTS

Revista Tecnologia e Sociedade, vol. 14, núm. 31, pp. 28-40, 2018

Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Recepção: 06 Agosto 2017

Aprovação: 28 Novembro 2017

Resumo: O presente artigo busca discutir a perspectiva de Hugh Lacey a respeito da neutralidade da Ciência e, principalmente, a tese da imparcialidade defendida pelo autor. Para isso, faz-se uma abordagem acerca dos valores envolvidos na atividade científica e mais detalhadamente sobre os valores cognitivos no intuito de refletir sobre a Ciência. Defendendo-se que o ensino de Ciências deve ir além de ensinar teorias e procedimentos científicos, versa-se sobre o enfoque CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) na educação científica a fim de problematizar a relação destes com o contexto histórico, social, político e econômico. Por último, os objetivos da educação científica são tratados a partir dessa perspectiva, discutindo a possibilidade de se utilizar as ideias de Lacey para trabalhar a não-neutralidade da Ciência, os valores envolvidos na produção do conhecimento científico, sem, no entanto, recair numa postura relativista da Ciência. O pensamento de Lacey mostra-se como uma alternativa para problematizar a visão do desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia na Educação Básica a fim de promover um ensino com uma abordagem crítica sem recair numa perspectiva relativista ou distante da história da Ciência.

Palavras-chave: Neutralidade da ciência, Hugh Lacey, Imparcialidade, Valores cognitivos, Enfoque CTS.

Abstract: The present article aims to discusss Hugh Lacey's perspective about science’s neutrality and, mainly, the thesis of impartiality defended by author. Therefore, it is an approach about values involved in scientific activity and more specifically, on cognitive values in order to think over Science. Defending that Science Teaching should go beyond teaching theories and scientific procedures, it is more about the STS approach (Science, Technology and Society), in scientific education in order to problematize the relation of these with historical, social, political and economic contexts. Finally, the goals of scientific education are treated from this perspective, discussing the possibility of using Lacey’s ideas to work non-neutrality of Science, the values involved in scientific knowledge production, without, however, falling into a Relativistic posture of Science. Lacey's thinking appears as an alternative to problematize the vision of the development of Science and Technology in Basic Education in order to promote a teaching with a critical approach without falling into a relativistic or distant perspective of the history of Science.

Keywords: Neutrality of science, Hugh Lacey, Impartiality, Cognitive values, STS approach.

INTRODUÇÃO

De tempos em tempos, somo expostos a questionamentos a respeito do conhecimento científico ou da prática de cientistas, principalmente, quando pesquisas que envolvem a vida humana são divulgadas. Algumas pessoas, por exemplo, são contrárias ao uso de embriões para o estudo com células-tronco; outras manifestam apoio por acreditarem que estas investigações podem representar a cura para doenças como Alzheimer, Parkinson, entre outras. Também, acompanha-se há alguns anos o desenvolvimento de sementes transgênicas e atualmente, as prateleiras dos supermercados e feiras estão repletas de alimentos geneticamente modificados. Se por um lado, a produção agrícola se modificou, por outro, algumas pessoas questionam o que os alimentos transgênicos podem fazer com a saúde humana. Em meio a debates econômicos, políticos e sociais relativos ao desenvolvimento do conhecimento e da tecnologia, pouco se sabe da participação da sociedade (entendida aqui como pessoas em geral, não especializadas nas áreas científicas) nas decisões referentes ao desenvolvimento destes conhecimentos científicos e tecnológicos, mesmo que seja a consumidora final destes produtos. Diante disso, quem determina quais pesquisas serão feitas e que conhecimento científico e tecnológico será desenvolvido? Por que se faz pesquisa neste assunto e não em um outro? Quem tem o direito de fazer uso do conhecimento e tecnologia produzidos? De quem serão os lucros? Algumas questões como essas e inúmeras outras foram levantadas por estudiosos que se dedicaram a discutir a neutralidade da ciência e a relação do conhecimento científico com interesses sociais, políticos ou econômicos.

A Ciência era entendida como neutra até surgirem os primeiros trabalhos de epistemólogos como Karl Popper, Imre Lakatos e Thomas Kuhn na segunda metade do século XX. Dessa forma, acreditava-se que ela visava apenas o bem-estar social e o controle do homem sobre a natureza. O conhecimento científico era desenvolvido com base no método empírico-indutivista e assim, produziam-se leis e teorias para descrever a natureza. Com a problematização do “método científico” e a busca por explicar como se desenvolvia a Ciência, põe-se em dúvida também a neutralidade científica.

Epistemólogos como Thomas Kuhn, Larry Laudan, Helen Longino, Ernan McMullin, entre outros, debruçaram-se sobre o estudo dos valores envolvidos na atividade científica e defenderam ou atacaram o aspecto objetivo da Ciência. Neste artigo, tratar-se-á mais detalhadamente do pensamento de Hugh Lacey, filósofo da ciência e professor no Swarthmore College (Pensilvânia, E.U.A). Tem-se como objetivo discutir a perspectiva desse filósofo a respeito da neutralidade da Ciência e, principalmente, a tese da imparcialidade defendida por ele, refletindo sobre as implicações dessa visão no Ensino de Ciências.

O IDEAL DE IMPARCIALIDADE

Hugh Lacey é um filósofo da ciência que tem se dedicado a discutir, assim como outros, os valores envolvidos na atividade científica. Enquanto a Ciência era pensada como neutra, aceitava-se o fato das teorias apresentarem alguns valores como coerência empírica, precisão e simplicidade. Porém, valores externos, de natureza social, ideológica ou estética eram mal vistos pela comunidade científica (CORDEIRO; PEDUZZI, 2014). Os cientistas eram entendidos como sujeitos capazes de fazer Ciência independentemente de suas crenças e interesses, culminando em um saber neutro e objetivo.

Com as críticas desenvolvidas principalmente a partir de 1960, problematiza-se a construção da Ciência por sujeitos que se encontram em contextos históricos e ideológicos e, portanto, que carregam em seu fazer as respectivas filiações. Segundo Delizoicov e Auler (2011, p. 248)

“A atemporalidade das teorias científicas, que representaria uma das dimensões da suposta neutralidade, é abalada quando se analisa a sua historicidade. Os casos das teorias científicas que foram superadas, ao longo do tempo e que, portanto, têm uma limitação temporal, põem em evidência que o pressuposto da atemporalidade dos critérios adotados pelo sujeito, quais sejam os da lógica e da matemática, no tratamento de dados empíricos, e que balizaria a produção científica, mostrou ser inconsistente”.

Dessa forma, para alguns autores citados anteriormente, a Ciência não se constrói apenas com disputas teóricas que envolvem certos tipos de valores, mas também implica interesses variados. Lacey (2008) afirma que nos últimos anos, a ideia de uma Ciência livre de valores tem sido criticada por diversas correntes, desde religiosos fundamentalistas a feministas e militantes de movimentos sociais. A partir dessas críticas, as teorias científicas são entendidas como “construções sociais” e, em uma corrente mais extremista, não existe diferença entre Ciência e ideologia (LACEY, 2008).

Para discutir a neutralidade científica e entender o pensamento de Lacey é fundamental fazer uma distinção entre imparcialidade e neutralidade. Segundo Barbosa de Oliveira (2003, p. 166)

1 O conceito de neutralidade da ciência, num sentido amplo, deve ser analisado em alguns componentes, um dos quais é a imparcialidade.

2 Outro dos componentes da neutralidade no sentido amplo é a neutralidade no sentido estricto, que por sua vez é formada pela neutralidade aplicada e a neutralidade cognitiva.

De acordo com Lacey (2008), a neutralidade da Ciência é uma das teses existentes que compõem a perspectiva de que a Ciência é livre de valores. As demais teses são chamadas pelo autor de imparcialidade e autonomia, essa última descrita acima em termos da neutralidade cognitiva e aplicada e que se refere a condução da prática científica. A neutralidade está associada às consequências do conhecimento científico e quando defendida, assume-se que uma teoria pode ser aplicada independentemente de quaisquer juízos de valor, ou seja, não atende a nenhum valor particular. Ao defender a tese da imparcialidade da Ciência, Hugh Lacey se afasta do relativismo, fortemente criticado por filósofos como Mário Bunge (1991), principalmente por sua incoerência e auto-destruição. Por outro lado, Lacey mantém uma postura crítica ao afirmar que a Ciência não apresenta o que foi chamado por BARBOSA DE OLIVEIRA (2003) de neutralidade aplicada e a neutralidade cognitiva. Um exemplo da falta de neutralidade científica é, para o autor, a chamada “revolução verde”cujo objetivo principal era aumentar a produção agrícola a partir de modificação de sementes, uso de fertilizantes e a mecanização da agricultura (LEWONTIN, 1991 apud LACEY 2008). Se por um lado houve, de fato, aumento de produtividade, de outro promoveu o desemprego, a poluição e degradação do ambiente e a migração do campo para cidade. Para Lacey (2008), a Ciência agiu em função de alguns valores específicos em detrimento de outros, como é o caso do combate à fome.

Voltando ao pensamento de Lacey, a imparcialidade, no entanto, está relacionada às razões pelas quais se aceita ou não uma determinada teoria. E o filósofo a define como

Concepção de que as teorias são corretamente aceitas apenas em virtude de manifestarem os valores cognitivos em alto grau, segundo os mais rigorosos padrões de avaliação e com respeito a uma série apropriada de dados empíricos [...] a imparcialidade implica que servir a determinados valores ou ser consistente com as pressuposições do esquema de algum valor particular é irrelevante para a legítima aceitação de uma teoria. (LACEY, 2008, p. 179)

Desta forma, tão necessário quanto explorar a defesa do autor para a imparcialidade da Ciência, é trabalhar a noção de valor cognitivo. Mas antes, faz-se preciso entender a perspectiva do autor a respeito de teoria científica. Para Lacey (2008) as teorias científicas representam o “entendimento” por parte da Ciência a respeito do mundo. Assim, as teorias são desenvolvidas e comprovadas mediante estratégias que não só restringem o tipo de teoria a ser considerada, como também determina os dados empíricos importantes para a comprovação dessa. Neste sentido, as teorias estão diretamente associadas às leis da natureza que, por sua vez, relacionam quantidades. Então,

Nelas [as teorias] os fenômenos são abstraídos de qualquer inserção na experiência humana e nas atividades práticas, além de qualquer relação com questões relativas a valores sociais. O lugar que um fenômeno ocupa no domínio de valores é irrelevante para a sua representação teórica. (LACEY, 2008, p. 24)

Com a função de possibilitar a comprovação da teoria, os dados empíricos (constituídos por observação e experimentação) são submetidos a critérios de intersubjetividade e replicabilidade. E, portanto, aceitar uma teoria com imparcialidade implica assumir que esta se relaciona aos dados empíricos selecionados e também com as demais teorias aceitas (LACEY, 2008, 2011).

A determinação de quais são os valores cognitivos é, para Lacey (2008), um assunto controverso e o autor dedica um capítulo do seu livro “Valores e atividade científica 1”, de 2008, para discutir esse tema. Os valores, de modo geral, podem assumir inúmeros significados no uso cotidiano. Por mais que se entenda que alguns valores são pessoais e subjetivos, eles também se relacionam de forma coletiva, ou seja,

As ações de uma pessoa pressupõem condições sociais, e que as outras estejam agindo em concordância com certos valores. A expressão dos valores de uma pessoa pressupõe que outras pessoas relevantes estejam expressando determinados (frequentemente diversos) valores, de tal forma que se torna difícil abstrair a desejabilidade e a legitimidade dos valores próprios daqueles dos outros. (LACEY, 2008, p. 51)

Nesta perspectiva, os valores pessoais podem ser também incorporados à sociedade ou a instituições sociais como a universidade, tornando-se públicos. A publicização de valores envolve a articulação, modalidade fundamental e que ocorre por meio da linguagem limitada de acordo com a sociedade. Outrossim, há um tipo de controle de quais valores serão incorporados ou não a uma instituição social em determinado momento histórico.

A análise da racionalidade a partir de valores cognitivos é, no pensamento de Lacey, uma alternativa à analise em termos de um conjunto de regras ou método científico. Durante vários anos, buscou-se estabelecer regras para o trabalho científico, porém quanto mais complexo tornava-se esse conjunto de regras, mais distante ficava da prática científica real. Ou seja, era difícil explicar o progresso do conhecimento a partir de normas, frequentemente, rígidas. De acordo com Sokal e Bricmont (1999, p. 66)

[...] a experiência acumulada durante três séculos de prática científica proporcionou-nos uma série de princípios metodológicos mais ou menos gerais – por exemplo, repetir os experimentos, usar controles, testar os medicamentos segundo protocolos absolutamente imparciais – que podem ser justificados por argumentos racionais. No entanto, não afirmamos que esses princípios possam ser codificados em definitivo nem que esta lista seja completa. Em outras palavras, não existe (pelo menos até o presente) uma codificação acabada da racionalidade científica; e duvidamos seriamente de que possa vir a existir. Afinal de contas, o futuro é, por sua própria natureza, imprevisível; a racionalidade é sempre uma adaptação a situações novas.

Assim, Lacey (2008), ao abandonar a análise da racionalidade científica a partir de regras e fazê-la em termos de valores, afirma que o juízo científico é feito por meio do diálogo entre os cientistas sobre a manifestação dos valores cognitivos por uma teoria ou teorias rivais. Dessa forma, é natural questionar quais são os valores cognitivos? Como foi dito anteriormente, alguns filósofos como McMullin, Longino e Kuhn também manifestaram suas ideias a respeito de valores. Para McMullin, os valores cognitivos eram caracterizados como valores epistêmicos. Já Longino os trata como valores constitutivos e refere-se aos demais valores como contextuais (LACEY, 2008). Segundo Lacey (2008) as teorias científicas são desenvolvidas nas práticas científicas que envolvem diferentes valores, inclusive valores não cognitivos. A questão, porém, é a defesa de que uma boa teoria científica manifesta um alto grau de valores cognitivos quando do seu processo de escolha e aceite em detrimento de uma outra. O autor elenca como valores cognitivos, com base em fontes variadas: (1) adequação empírica, ou seja, a teoria comtempla um número grande e variado de dados empíricos e se adéqua às teorias anteriormente aceitas; (2) consistência, não só no interior da própria teoria científica, mas também com as outras teorias aceitas e com as concepções dominantes sobre os objetos de investigação; (3) simplicidade que reflete harmonia, elegância, clareza conceitual e inteligibilidade; (4) fecundidade ou fertilidade, isto é, é capaz de desencadear novas questões e a descoberta de novos fenômenos; (5) poder explicativo que implica a explicação de fenômenos em uma ampla variedade, profundidade e, por fim (6) verdade ou certeza, que diz respeito às verdades conhecidas acerca dos princípios fundamentais (LACEY, 2008).

Essa lista de valores cognitivos apontada pelo autor, apesar de incompleta, é elencada a partir dos valores manifestados na história da Ciência. Também, assume-se a inevitável existência de controvérsias quando se analisa a Ciência a partir de valores cognitivos devida tanto a disposição hierárquica que os valores assumem quanto pela manifestação em maior ou menor grau. Essa hierarquia dos valores cognitivos, assim como a manifestação ou ausência de alguns deles apresenta variabilidade de acordo com as disciplinas científicas. Hugh Lacey defende que, para um valor ser incluído na lista de valores cognitivos, ele precisa satisfazer duas condições: a) que seja necessário para explicar as escolhas teóricas já realizadas pela comunidade científica e b) que sua significação cognitiva seja bem sustentada (LACEY, 2008). Assim, no desenvolvimento da lista de valores cognitivos é preciso revisitar racionalmente os episódios da Ciência e o momento de escolha de teorias científicas.

Lacey (2008) critica a neutralidade da Ciência ao questionar o pensamento que ele designa como filosofia do “materialismo científico”. Tal pensamento fundamenta-se na defesa de que o objetivo de uma teoria científica é representar o mundo tal como ele é. Para o autor, porém, é impossível comparar as teorias com o mundo, pois elas são representações e, portanto, construções históricas do homem. Logo, não há como saber se as representações criadas, de fato, correspondem ao mundo tal como ele é. Além disso, as práticas científicas que dão origem as representações também empregam métodos que são produto humano, ou seja, envolvem categorias teóricas desenvolvidas na interação do homem com o mundo. A saída para esse problema, de acordo com Lacey (2008) está em abandonar o objetivo de representar o mundo tal como ele é e assumir o objetivo de obter teorias segundo a imparcialidade.

Hugh Lacey não nega as críticas “pós-modernas” à imparcialidade. Nestas, do ponto de vista epistemológico, a imparcialidade não se sustenta por não ser um ideal realizável e tem como base três teses principais, a saber: a) subdeterminação que assume que os dados definem e sustentam a teoria; b) invulnerabilidade que defende que sempre é possível adicionar hipóteses auxiliares que permitem a adequação de uma teoria aos dados que antes não eram contemplados implicando a não possibilidade de falseamento de uma teoria; c) incomensurabilidade, defendida por Thomas Kuhn e que afirma que teorias formuladas em paradigmas diferentes são incomensuráveis, pois não apresentam categorias comuns e, portanto, não podem ser inconsistentes entre si.

O que Lacey faz para rebater as críticas pós-modernas à imparcialidade do conhecimento científico é se basear no sucesso da Ciência moderna. Para ele, se a Ciência e a Tecnologia têm sucesso, este é resultado de um conhecimento desenvolvido de forma imparcial e distinto de algo que está relacionado a valores sociais. Nas palavras do autor, “o sucesso material da tecnologia não pode ser opiniões, ideologias, dogmas ou juízos de valor” (LACEY, 2008, p. 38). Lacey (2008) entende a Ciência e a Tecnologia sob uma relação dialética, ou seja, os desenvolvimentos teóricos e tecnológicos se estimulam mutuamente. Frequentemente, a evolução tecnológica promove condições para o estudo de novos fenômenos e a possibilidade de comprovação de teorias. Foi assim com o telescópio utilizado por Galileu no século XVII e é em aceleradores de partículas no século XXI. Também, ocorre o sentido inverso no qual o desenvolvimento teórico possibilita o desenvolvimento de novas tecnologias. O fato de Lacey entender a Ciência e Tecnologia nessa relação estreita faz com que a não-neutralidade da Tecnologia implique a não-neutralidade científica. Nos termos que se colocou anteriormente, a ausência da neutralidade aplicada (relativa à Tecnologia) resulta na não-neutralidade da Ciência. Segundo Cupani (2013, p. 95), “para produção técnica ou tecnológica, os elementos naturais são vistos como recursos, não sendo apreciados apenas pelas suas qualidades inerentes. Técnica e tecnologia implicam, portanto, valores (na forma genérica de: “tal coisa é útil ou adequada para tal outra”)”. Bunge, filósofo já citado anteriormente, também adverte que os produtos tecnológicos, ou seja, resultantes de uma atividade com fins práticos, não são e nem podem ser neutros (CUPANI, 2013).

Para Lacey (2008), assim como para filósofos como McMullin, uma boa teoria científica é aquela que manifesta os valores cognitivos em grau elevado e essa análise refere-se ao momento de escolha entre duas teorias. Portanto, independe da manifestação de outros valores nas práticas que produzem o conhecimento. Assim, a imparcialidade representa um ideal a ser perseguido no momento de escolha de teorias científicas e que pode ocorrer na realidade em maior ou menor grau. O autor defende que mesmo que a imparcialidade não seja conquistada não se deve abandoná-la enquanto ideal da mesma forma que não se abandona o ideal de um corpo são ainda que, muitas vezes, esteja-se enfermo.

IMPLICAÇÕES PARA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS

Observando que a educação científica tem a finalidade de promover não só o entendimento acerca de fenômenos, teorias e procedimentos científicos, mas também promover uma consciência crítica do estudante, Lacey (2008) defende que suas ideias têm papel importante na educação em Ciências. Para ele, o desenvolvimento dessa consciência crítica exige: (1) estudar o papel da Ciência na sociedade; (2) entender os fatores que influenciam a atividade científica; (3) avaliar a relação da Ciência com outros valores significativos para a sociedade; (4) analisar de forma crítica a interação entre os valores cognitivos e os valores sociais e sua ocorrência na atividade científica; (5) entender o que pode ou não ser promovido pela Ciência e em quais contextos e (6) buscar estabelecer uma avaliação crítica das perspectivas diferentes sobre essas questões.

Apesar das discussões acerca da não-neutralidade da Ciência terem se fortalecido na segunda metade do século XX, a compreensão da Ciência como neutra, ainda permanece em alguns espaços da universidade, de laboratórios de pesquisa e da educação científica básica (DELIZOICOV; AULER, 2011). Porém, o combate a essa visão tem sido amplamente discutido em documentos importantes para a Educação como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) os quais afirmam a tese da não-neutralidade da Ciência e da Tecnologia (BARBOSA DE OLIVEIRA, 2003). Os PCN adotam a premissa de que a educação deve objetivar a formação de um cidadão, capaz de refletir e participar da vida pública. E, assumindo a relevância da Ciência e da Tecnologia atualmente, argumentam que o ensino da ciência não deve se limitar a aspectos internos, mas também propiciar o entendimento acerca do papel desse conhecimento na sociedade (BARBOSA DE OLIVEIRA, 2003).

Como possibilidade para atingir alguns dos objetivos desejados atualmente para formação de um cidadão bem informado, crítico e participante na vida em sociedade, fala-se com frequência da perspectiva ou enfoque CTS (sigla para Ciência, Tecnologia e Sociedade) para a educação. O movimento CTS, fortalecido na década de 1970 a partir de correntes de investigação em filosofia e sociologia da Ciência, influenciou a construção de muitos currículos em diversos países, principalmente na educação científica (PINHEIRO et al., 2007).

Auler (2007, p. 1) apresenta uma síntese dos objetivos presentes na educação CTS, a saber,

Promover o interesse dos estudantes em relacionar a ciência com aspectos tecnológicos e sociais, discutir as implicações sociais e éticas relacionadas ao uso da ciência e da tecnologia (CT), adquirir uma compreensão da ciência e do trabalho científico, formar cidadãos científica e tecnologicamente alfabetizados capazes de tomar decisões informadas e desenvolver o pensamento crítico e a independência intelectual.

Tais objetivos vêm ao encontro da perspectiva de problematização dos valores envolvidos na prática dos cientistas e no conhecimento científico. A necessidade de incorporar na educação em ciências, discussões sobre os avanços da Ciência e da Tecnologia de forma contextualizada está relacionada ao entendimento da Ciência como construção humana e permeada, consequentemente, por valores cognitivos e não-cognitivos. O enfoque CTS entende o ensino-aprendizagem como uma possibilidade de promover nos estudantes a curiosidade e um espírito de criticidade e transformador da realidade. Segundo (PINHEIRO et al., 2007, p. 77) “emerge daí a necessidade de buscar elementos para a resolução de problemas que fazem parte do cotidiano do aluno, ampliando-se esse conhecimento para utilizá-lo nas soluções dos problemas coletivos de sua comunidade e sociedade”.

Do ponto de vista pedagógico, o enfoque CTS estabelece uma nova dinâmica na sala de aula. O conhecimento científico deixa de ser considerado como um produto acabado e professor e alunos podem reconstruir o conhecimento a partir de pesquisa e resolução de problemas. Dessa forma, estabelece-se uma maneira diferente de entender a produção da Ciência e desmitifica-se a neutralidade do conhecimento científico. Os alunos podem, então, desenvolver uma atitude mais proativa, questionadora e reflexiva em vez de esperarem passivamente para que o professor transmita o saber científico (PINHEIRO et al., 2007).

Nesse sentido, mais do que conhecer conceitos e teorias da Ciência, o CTS também promove uma visão mais ampla da relação dos conhecimentos científicos com o meio social, político e econômico o que implica inclusive um conhecimento sobre Filosofia e História da Ciência. Ao defender o enfoque CTS na educação científica, Bazzo (1998, p. 142)

É inegável a contribuição que a ciência e a tecnologia trouxeram nos últimos anos. Porém, apesar desta constatação, não podemos confiar excessivamente nelas, tornando-nos cegos pelo conforto que nos proporcionam cotidianamente seus aparatos e dispositivos técnicos. Isso pode resultar perigoso porque, nesta anestesia que o deslumbramento da modernidade tecnológica nos oferece, podemos nos esquecer que a ciência e a tecnologia incorporam questões sociais, éticas e políticas.

A educação em ciências deve dar conta de problematizar o conhecimento científico, tecnológico e promover nos estudantes a capacidade de entender e participar das decisões que implicam o seu modo de vida. Por exemplo, opinando no caso da chamada “revolução verde” que se utilizou de variedades de sementes que apresentavam baixo rendimento para produzir outras espécies híbridas dando origem a plantas de alto rendimento. Apesar do aumento da produção, Lacey (2008) afirma que pela necessidade de grandes extensões de terra para cultivo, mecanização, elevado consumo de água e emprego de grande quantidade de fertilizantes, ocorreram movimentos migratórios do campo para as cidades, poluição, desemprego e deterioração do meio ambiente. A partir do uso dessas sementes, o chamado Terceiro Mundo pode se inserir no comércio internacional e alguns proprietários de terra, indústrias e empresas agrícolas foram beneficiadas. Se por um lado, com o aumento da produção, mais pessoas puderam ter acesso aos alimentos, por outro, houve uma redistribuição da fome. Este é um exemplo no qual alguns valores foram favorecidos e outros negligenciados, pois havia uma impossibilidade de sustentar simultaneamente a produção com sementes modificadas e a agroecologia. Portanto, mais do que diferentes, a pesquisa para desenvolver sementes modificadas e a pesquisa vinculada a adaptação com o meio eram “incomensuráveis” (FERNANDEZ, 2003). Para Lacey (2008) esse é um exemplo da falta de neutralidade na Ciência e que trouxe diversas consequências para a sociedade.

Quando se pensa na não-neutralidade da Ciência e entende-se como são mobilizados os valores na produção do conhecimento científico e tecnológico, é possível desenvolver uma visão crítica, porém sem recair numa postura relativista e que coloque dúvidas sobre a importância da ciência e da Tecnologia para a vida humana. Segundo Pinheiro et al. (2007, p. 75)

A importância de discutir com os alunos os avanços da ciência e tecnologia, suas causas, consequências, os interesses econômicos e políticos, de forma contextualizada, está no fato de que devemos conceber a ciência como fruto da criação humana. Por isso, ela está intimamente ligada à evolução do ser humano, desenvolvendo-se permeada pela ação reflexiva de quem sofre/age as diversas crises inerentes a esse processo de desenvolvimento.

Trata-se de reconhecer a Ciência como construção humana e que, portanto, manifesta valores em diferentes níveis durante seu desenvolvimento, porém também perceber a relevância do conhecimento científico como parte da nossa cultura e suas implicações para o cotidiano que refletem mudanças sociais, políticas e econômicas. Não se nega que, em muitos momentos, estão envolvidos na Ciência valores não-cognitivos, mas que se deve perseguir o ideal da imparcialidade no fazer científico defendendo o conhecimento que manifestar em maior nível os valores cognitivos.

Para o ensino de Ciências na Educação Básica, abandonar a ideia de que a Ciência segue um método científico único e infalível constitui um objetivo a ser perseguido. Neste sentido, a visão de Lacey para explicar como os cientistas escolhem uma teoria em detrimento de outra a partir da manifestação de valores cognitivos é não só útil, como também coerente e consistente.

Em suma, a partir das ideias de Hugh Lacey a respeito da neutralidade da Ciência e da tese da imparcialidade é possível caracterizar o ensino de Ciências de modo a promover a criticidade necessária à formação do cidadão, sem recair na promoção de uma concepção relativista da Ciência. Deseja-se uma perspectiva não ingênua a respeito da Ciência e da Tecnologia para o estudante da Educação Básica, porém consistente com os processos de desenvolvimento científico e tecnológico que apresentam relativo sucesso e estão relacionados com o modo de vida humano atual. O pensamento de Lacey parece cumprir este papel, pois se baseia em aspectos históricos da Ciência para sua fundamentação, sem abandonar a problematização necessária para a neutralidade da Ciência.

REFERÊNCIAS

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CORDEIRO, M. D.; PEDUZZI, L. O. Q. A relação entre ciência e valores constitutivos como um novo horizonte para as pesquisas em educação científica. In: International History, Philosophy, and Science Teaching Group Latinoamerican Conference, 2014, Santiago. III International History, Philosophy, and Science Teaching Group Latinoamerican Conference. 2014.

CUPANI, A. Filosofia da tecnologia: um convite. 2ª Edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.

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FERNANDEZ, B. P. M. Isenção ou inserção de valores na ciência? A posição crítica de Hugh Lacey. Cadernos de pesquisa interdisciplinar em ciências humanas. n. 49, 2003.

LACEY, H. A imparcialidade da ciência e as responsabilidades dos cientistas. Scientia e studia. v. 9, n. 3, p. 487-500, 2011.

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PINHEIRO, N. A. M., SILVEIRA, R. M. C. F., BAZZO, W. A. Ciência, tecnologia e sociedade: a relevância do enfoque CTS para o contexto do ensino médio. Ciência e Educação. v. 13, n. 1. 2007.

SOKAL, A.; BRICMONT, J. Imposturas intelectuais. Editora Record. 1999

Autor notes

1 Professora na Universidade Federal da Fronteira Sul. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina. Apoio financeiro: Capes.

Informação adicional

Como citar: A imparcialidade da ciência e suas possibilidades para educação CTS. R. Tecnol. Soc. v. 14, n. 31, p. 28-40, mai./ago. 2018. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/6895>. Acesso em: XXX.

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