Resumo: O Povo Indígena Laklãnõ/Xokleng habitava o sul do Brasil até a chegada dos colonizadores portugueses que ocuparam as suas terras. O processo de colonização resultou na quase extinção dos indígenas que resistiam à submissão cultural. Os problemas se multiplicaram, mais recentemente, com processos de desenvolvimento que os invisibilizaram ainda mais. Para sobreviver, esse Povo precisou se apropriar da cultura dominante, utilizando a escola como instrumento. Nosso objetivo é problematizar algumas ações que visaram o desenvolvimento da região com a chegada dos europeus e identificar estratégias de sobrevivência, pressupondo que a escola indígena fortaleceu essas estratégias. Utilizamos pesquisa bibliográfica, documental e dados empíricos. Ao final, sinalizamos o resgate da história e da cultura indígena via processos educacionais interculturais, demonstrando a contribuição do Povo Indígena na constituição do que hoje é chamado Vale Europeu.
Palavras-chave: Desenvolvimento Desenvolvimento, Invisibilização Invisibilização, Povo Indígena Laklãnõ/ Xokleng Povo Indígena Laklãnõ/ Xokleng, Interculturalidade Interculturalidade, Educação Indígena Educação Indígena.
Abstract: Laklãnõ/Xokleng is an indigenous people in the South of Brazil long before the arrival of the Portuguese who occupied the fertile lands. The colonization process resulted in the near extinction of indigenous peoples who resisted cultural submission. The problems were multiplying in the face of development processes that making the indigenous people increasingly invisible. For the Laklãnõ/Xokleng it became a condition of survival understand the dominant culture. The indigenous school was instrumental in making this viable. This study aims to problematize the actions that aimed the development of the region with the arrival of Europeans and to identify indigenous survival strategies. We assume that these strategies were strengthened by the presence of the indigenous school. This study used bibliographic, documental and empirical data. All things considered we can conclude that libertarian educational processes can be configured as a possibility to rescue indigenous history and culture and demonstrate the contribution of this people in the constitution of the European Valley.
Keywords: Development, Invisibilization, Indigenous People Laklãnõ Xokleng, Interculturality, Indigenous Education.
Educação escolar indígena como possibilidade para romper processos de invisibilização
Indigenous school education as a possibility to break processes of invisibilization

Recepção: 19 Novembro 2016
Aprovação: 29 Novembro 2017
Romper processos de colonialidade e invisibilidade, social e historicamente imputados aos povos indígenas, tem sido um grande desafio. Estes processos utilizam os conceitos de desenvolvimento e progresso, bases de sustentação do sistema capitalista, para justificar o crescimento econômico ilimitado e o uso de quaisquer meios, inclusive a extinção física e cultural de povos cuja existência seja um entrave para este crescimento. Este cenário se repete em territórios onde o indígena resiste e insiste em manter modos de vida e sistemas de relações divergentes do padrão capitalista.
No Sul do Brasil, ações governamentais de incentivo à ocupação da região por colonos europeus, principalmente alemães e italianos, no início do século XIX, resultaram em um processo de colonização que submeteu o povo Laklãnõ/Xokleng à violência física e simbólica1. Esta ocupação transformou o território em propriedades privadas e confinou os indígenas a espaços cada vez mais reduzidos. Sua liberdade de circulação pela região e suas práticas culturais foram reduzidas com a justificativa de que era necessário civilizá-los.
O processo civilizatório implicou na incorporação da cultura europeia pelos indígenas, sendo a catequese e a escolarização utilizadas para este fim. Os modos de ser, estar e se relacionar no e com o mundo da cultura indígena, considerada inferior, foram invisibilizados. Além de aprender a cultivar a terra e contribuir para o desenvolvimento da região por meio do trabalho, era necessário deixar de ser indígena, assimilando a língua e os costumes europeus. Diante da resistência para incorporação da cultura dominante, a maioria dos indígenas foi caçada e morta e os que restaram ficaram limitados a viver no que hoje se convencionou chamar Terra Indígena Ibirama – TII, na região conhecida como Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina.
Com base neste contexto, o objetivo desta pesquisa é problematizar ações que visaram o desenvolvimento da região do Vale do Itajaí promovidas com a chegada dos europeus e que afetaram o povo Laklãnõ/Xokleng, identificando as estratégias de sobrevivência utilizadas por este povo. Isto implica em desvelar práticas colonizadoras que resultaram na invisibilização e negação de direitos e apontar ações que vêm se configurando como uma possibilidade de transformar esta realidade, a exemplo da presença da escola na TII. Como metodologia foram utilizadas pesquisas bibliográfica, documental e de dados empíricos – coletados junto ao povo indígena, em ações do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD). Dentre estas ações, destacam-se: estudos dirigidos na Escola Indígena de Ensino Fundamental Vanhecú Patté para jovens que desejam realizar a prova do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM; estudos, discussões e seminários sobre problemas causados pela construção da Barragem Norte; elaboração e execução de projetos de pesquisa e extensão com as temáticas indígenas. Estas bases permitem trazer as reflexões que se seguem.
A chegada dos europeus ao continente americano, em 1492, inaugurou um processo de conquista baseado na dominação e no controle, resultando no encobrimento do ‘outro’ que “[...] não foi ‘descoberto’ como outro, mas foi ‘en-coberto’ como o ‘si-mesmo’ [...]” (DUSSEL, 1993, p. 8). A América se constituiu a partir de um “[...] processo de colonização que resultou na globalização da cultura ocidental, sobrepondo-se às culturas de diferentes nações, em particular, sobre as culturas dos povos indígenas” (DALMOLIN, 2003, p. 12). A princípio, a ideia de trazer civilização e desenvolvimento poderia remeter a algo positivo e próspero. Uma mudança em um território rico, porém, na ótica do colonizador europeu, primitivo e que precisa da intervenção de uma nação mais desenvolvida. Trazer conhecimento, modernizar, explorar as riquezas naturais, ou seja, colonizar para desenvolver.
[...] na ótica do colonizador a ocupação e o consequente domínio que desempenhavam constituía-se em ação legítima, um serviço prestado a Deus e à humanidade, visto que estavam criando condições para que ‘terras selvagens’ e ‘povos primitivos’ ascendessem ao que consideravam civilização. (DALMOLIN, 2003, p. 13)
Dessa forma, “A cultura superior ocidental/europeia se impôs, implacavelmente, sobre a cultura inferior ameríndia” (THEIS, 2015, p. 45). A justificativa para colonização e dominação se pautou, primordialmente, na construção eurocêntrica da ideia de raça que colocou os dominados em situação de inferioridade cultural, tecnológica, social e política em relação aos dominantes. As populações originárias foram categorizadas como índios, independente das diferenças de cada etnia. Quijano (2005, p. 118) explica que “[...] raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papeis na estrutura de poder da nova sociedade.” O processo de colonização fortaleceu a cultura eurocêntrica e enriqueceu o colonizador, enquanto invisibilizou a história e a cultura dos povos originários.
Os primeiros trezentos anos de relação entre Brasil e Portugal foram de exploração e desenvolvimento de atividades lucrativas que integraram o Brasil à economia europeia (THEIS; BUTZKE, 2016). Porto-Gonçalves (2005, p. 3) esclarece que “A América teve um papel protagônico, subalternizado é certo, sem o qual a Europa não teria acumulado toda a riqueza e poder que concentrou”. Desenvolver o território passou a ser objetivo apenas com a vinda da corte para o Brasil no século XIX, tornando ainda mais imprescindível domesticar os indígenas, considerados empecilho para o progresso da nação.
Os povos indígenas, diante da força e do poder dos colonizadores, tiveram pouca chance de resistência. Santos (1978, p. 17) explica que, nos séculos XVII e XVIII, portugueses e espanhóis “[...] colocaram em prática nesta parte da América certas técnicas de envolvimento e aniquilação das populações tribais, típicas do exercício da dominação consciente.” Este processo resultou na quase extinção da presença indígena e dos seus meios de sobrevivência, como: caça, pesca, circulação livre, ritos, crenças e costumes. Pouco, ou nada, da forma de se relacionar com o mundo resistiu diante da lógica do europeu conquistador. Com a tomada da região sul pelos colonizadores, os Laklãnõ/Xokleng buscaram formas de resistir que geraram conflitos até o início do século XX, quando se deu o processo chamado de pacificação2.
Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), fez o primeiro contato considerado pacífico com os Laklãnõ/Xokleng em 1914. Utilizou índios Kaingang (do Paraná) como um instrumento para essa pacificação e juntou todos na TII no processo de aldeamento (OLIVEIRA, 2005). O povo, que antes circulava e dominava a floresta litorânea e o planalto entre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, teve que se adaptar ao sedentarismo, vivendo em um território delimitado, obrigado a se submeter às normas que impediam seus modos de vida tradicionais em relação à caça, ritos e expressões culturais. Esta submissão trouxe ainda outras formas de aniquilação como o “[...] contágio de doenças próprias da civilização e estranhas a tribo, aliado a mudanças drásticas na dieta alimentar [...]” (SANTOS, 1978, p. 33).
O depoimento de Hoerhann a Darcy Ribeiro revela a violência por traz da chamada pacificação: “[...] se pudesse prever que iria vê-los morrer tão miseravelmente, os teria deixado na mata, onde ao menos morreriam mais felizes e defendendo-se de armas na mão contra os bugreiros que os assaltavam” (SANTOS, 1978, p. 54). Os bugreiros, a quem se referiu Hoerhann, eram caboclos contratados por colonizadores e governantes para atacar e matar indígenas. O pagamento era calculado por par de orelhas cortadas. Em algumas ações traziam crianças e mulheres que poderiam ser acolhidas por famílias e congregações religiosas ou assassinadas logo após apresentadas aos patrões.
Os indígenas estavam aldeados e protegidos das ações de bugreiros, contudo, não estavam adaptados aos meios de produção rural. Vários conflitos ocorreram, pois ficavam contrariados com trabalhos agrícolas. Estavam acostumados a fabricar cestos, arcos, flechas e sair para a caça e a coleta. Conforme relatórios que Hoerhann mantinha para prestar contas ao Governo, os indígenas se envolviam com afinco em trabalhos de contato com a natureza como ir à mata buscar madeira e construir cercas, galpões e currais. Além da dificuldade de adaptação ao modo de vida do colonizador, os indígenas sofreram com enfermidades como gripe, malária, varíola e disenteria, devido ao clima e falta de medicação no posto. (WITTMANN, 2007)
A forma como os indígenas se relacionavam com o meio era inadequada para a perspectiva eurocêntrica de civilização e desenvolvimento – não estavam familiarizados com a ideia de propriedade ou acúmulo de bens e tinham seus próprios rituais e formas de se expressar. O processo civilizatório implicava em, além de cercear o território, domesticá-los e “[...] transformá-los em pequenos produtores rurais capazes de se auto-sustentarem” (WITTMANN, 2007, p. 168). Não importava se o que era imposto se contrapunha à cultura indígena. O comportamento esperado era o naturalizado nas relações estabelecidas pelos colonos europeus que imigraram para o sul do Brasil para promoverem o desenvolvimento. Nesta lógica, os diferentes processos de desenvolvimento que ocorreram no Vale do Itajaí foram tão fortemente impregnados pela cultura europeia que a identificação turística desta região passaria a nomeá-la como Vale Europeu, ressaltando traços, costumes e arquitetura relacionados à cultura do colonizador.
Cabe explicar que o termo desenvolvimento, a partir deste ponto, virá sempre em destaque no texto para que fique evidente o questionamento que nos acompanha no seu uso, envolvendo a ideia hegemônica entre governantes e especialistas de que “[...] não há povo, não importa onde viva, que não queira se desenvolver” (THEIS, 2014, p. 13). Autodenominados porta vozes de toda população, disseminam verdades e reservam às pessoas comuns o papel de expectadoras. Baseados na premissa de conhecer o que é melhor, tomam decisões, implementam políticas e fazem empreendimentos para promover um desenvolvimento correspondente aos interesses do capital.
Eis, portanto, o que governantes e acadêmicos têm entendido por desenvolvimento local e regional: unir os indivíduos que vivem nas mais diversas localidades e regiões, frequentemente, representadas por autoridades públicas, empresários nativos e algumas lideranças filantrópicas, em torno de projetos [...] que, em regra geral, tem no crescimento da economia regional seu principal, quando não único, ponto de chegada. (THEIS, 2014, p. 18)
Com este entendimento sobre desenvolvimento pelos atores políticos, não surpreende que as decisões desconsiderem, historicamente, anseios e necessidades dos indígenas. A ação dos bugreiros e a chamada pacificação, por exemplo, foram estratégias oficiais empreendidas pelo Governo para garantir segurança aos colonos europeus, pois “O índio era visto como o grande empecilho para o sucesso da colonização e a realização do sonho da modernidade.” (WITTMANN, 2007, p. 73). Foi o processo de pacificação que ampliou significativamente as extensões territoriais para logro da colonização em Santa Catarina. (SANTOS, 1978)
De 1914 a 1954, enquanto Hoerhann permaneceu no posto, havia a preocupação de “[...] resguardar a área indígena de Ibirama da exploração dos civilizados regionais” (SANTOS, 1978, p. 56). Depois disso, os recursos naturais passaram a ser explorados indiscriminadamente por indígenas e não indígenas, como no caso da extração da madeira, regulamentada somente em 1964. Em relação à situação na TII, em meados da década de 1970, Santos (1978, p. 57) destacou:
Sujeitos a situações de trabalho em que predomina a espoliação, a maioria dos Xokleng hoje sobrevive pela execução de atividades de extração de palmitos em áreas florestais localizadas fora do posto indígena. A agricultura é praticada de modo bastante precário, pois não há condição para os índios, isoladamente, dinamizarem a atividade. A exploração de madeiras que continuamente vem se fazendo na reserva, pela associação da FUNAI com madeireiros regionais, não utiliza em nenhum momento a mão de obra indígena. A prostituição não é desconhecida por muitos dos elementos do sexo feminino. A esperança de viver dias melhores já desapareceu para a maioria da população.
A construção da Barragem Norte, iniciada em 1976 e concluída em 1992, trouxe segurança e proteção para as cidades do Vale do Itajaí que sofriam com as enchentes. Já para a TII, que ficava do outro lado da barragem, a cheia de 1978 inundou e destruiu roças e casas e matou animais de criação. O povo, que vivia às margens do Rio Hercílio, foi obrigado a se dispersar em sete aldeias, distantes entre si e com difícil acesso entre uma e outra sendo esta dispersão “[...] um acelerador do processo de desintegração social da comunidade indígena [...]” (DAGNONI, 2014, p. 36). Em ação cível junto ao Ministério Público para reparação de danos, a representação indígena explica que na época de chuvas a barragem provoca a:
[...] acumulação de água justamente no interior da terra indígena, causando danos de ordem econômica e cultural, privando a comunidade indígena do usufruto da parte baixa do vale do Rio Hercílio, originariamente e tradicionalmente ocupada, degradando o meio ambiente e a paisagem, alienando e aniquilando a referência cultural daquele território e dos próprios Rios Hercílio e Platê, destinados à pesca, ao transporte e à consolidação cultural do grupo, além da remoção para as encostas do mesmo vale, concorrendo inclusive para a perda da identidade cultural daquela minoria étnica. (RODRIGUES, 2003, p. 2)
Os Laklãnõ/Xokleng compartilham, atualmente, um território de 14 mil hectares com indígenas Kaingang e Guarani. O modo de sobrevivência está baseado no cultivo de uma terra pouco produtiva, venda de mel e artesanato, assistência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), trabalho sazonal na zona urbana, aposentadoria, criação de animais. Algumas funções são desempenhadas dentro da aldeia como professor(a), motorista, enfermeiro(a) (OLIVEIRA, 2005). Além destas, uma atividade recente é a de guia para a Trilha da Sapopema que constitui uma atividade turística local. A luta por justiça social é contínua, pois, enquanto as cidades da região se desenvolvem economicamente, as decisões do governo continuam repercutindo negativamente na TII (DAGNONI, 2014).
Além de perderem autonomia sobre seus territórios e, como consequência, se distanciarem dos modos de vida e organização social, cultura e economia tradicionais, os índios, no sul do Brasil, foram impelidos às novas formas de vida (Posto Indígena) por meio da violência física e simbólica. As políticas indigenistas do governo ao longo século XX não foram menos violentas que no passado, mas conseguiram concretizar, de forma arbitrária e escusa, a ‘subordinação’ e a ‘integração’ dos povos indígenas no sul e em grande parte, no Brasil (ALMEIDA, 2013, p. 53).
A ideia de integração do indígena esteve presente desde a chegada dos portugueses, sendo promovida a partir da assimilação das formas de agir e pensar da cultura europeia para contribuir com o desenvolvimento do Brasil. Primeiro, com a catequese jesuíta, mais tarde, com a escolarização. Em Blumenau, a adoção de crianças indígenas por famílias de colonos e o ingresso de índias sobreviventes dos ataques dos bugreiros em ordens religiosas também fizeram parte das estratégias de integração. Esperava-se civilizá-las, iniciando pelo batismo como meio de salvação e aproximação da doutrina cristã, sendo que “A educação civilizatória que pretendeu eliminar práticas culturais foi uma forma sofisticada de exclusão. O sujeito indígena foi desvalorizado enquanto se tentava produzir outro através dos ensinamentos considerados civilizados” (WITTMANN, 2007, p. 152).
A escola formal chegou à aldeia em 1940. Os relatos apontam que, mesmo inserida na TII, a escola não tinha compromisso com a cultura Laklãnõ/Xokleng, mas sim com a proposta de sua integração à sociedade envolvente. Esta realidade permaneceu inquestionada até a década de 1970, quando passou a ser confrontada pelos movimentos indígenas que defendiam o ensino bilíngue. O direito a este tipo de ensino passou a vigorar com a Constituição Federal de 1988 – CF/1988, sendo ratificado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB/9394/96 (VIEIRA, 2004). A efetividade desta legislação, diante da colonização eurocêntrica que perdura por mais de cinco séculos, é ainda questão a ser enfrentada na maioria das escolas de educação indígena (PALADINO e ALMEIDA, 2012).
A partir da CF/1988, os documentos e marcos legais sobre educação escolar indígena têm se baseado na perspectiva da interculturalidade, em contraposição à ideia assimilacionista e integracionista presente desde o início da colonização europeia. Estes documentos respondem à pressão de movimentos sociais e organizações não governamentais indígenas e indigenistas que ganham força e visibilidade principalmente na década de 1970 (COLLET, 2006). Diferente da homogeneização cultural, a interculturalidade defende que um Estado se constitui no intercâmbio e no diálogo constante entre as culturas. Esta inter-relação torna possível conhecê-las em profundidade, de forma que contribuam reciprocamente para a história e a constituição das sociedades (BRASIL, 1994).
Paladino e Almeida (2012) definem as escolas indígenas como espaços interculturais de construção e debate de conhecimentos e aprendizagens voltadas às questões identitárias de cada povo. Essas escolas se caracterizam como comunitárias pela estreita articulação com questões territoriais locais. Nesta direção, a escola indígena deve ser bilíngue (ou mesmo multilíngue, dependendo do contexto), considerando a necessidade de valorização e fortalecimento da língua indígena, bem como o uso da língua portuguesa como estratégia de comunicação intercultural.
As Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas garantem que projetos políticos pedagógicos tenham organização de tempos, espaços e conteúdos próprios, contemplando também as Diretrizes Curriculares Nacionais de cada etapa da educação básica (BRASIL, 1999). A análise dos referenciais legais para a educação escolar indígena revela a valorização das diferenças entre as culturas, em contraposição à homogeneização das práticas assimilacionista e integracionista.
Os avanços das políticas educacionais desde a CF/1988 e, principalmente a partir de 2003, incluem o aumento da participação de representantes indígenas em instâncias de decisão política, como o Conselho Nacional de Educação; a criação de órgãos governamentais específicos para as questões indígenas, como a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena; a ampliação de programas de formação de professores indígenas por meio das licenciaturas interculturais e o aumento de materiais didáticos bilíngues específicos. (PALADINO e ALMEIDA, 2012)
No entanto, a execução das políticas educacionais nas escolas indígenas está longe do ideal da interculturalidade. As práticas ainda respondem a determinações que não são fruto da participação e anuência preconizada na legislação. Paladino e Almeida (2012) apontam como dificuldades (i) o preconceito da sociedade, mesmo em instâncias oficiais, que não respeitam direitos diferenciados dos povos indígenas, (ii) desarticulação entre políticas e órgãos que atuam com as populações indígenas, (iii) dificuldade de reconhecimento, regularização, funcionamento de escolas indígenas e de produção de materiais didáticos, principalmente nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio, (iv) má utilização de recursos e falta de transparência, entre outros.
Além das dificuldades acima, a escola e os sistemas educacionais, de forma geral, carregam muito da educação que Freire (1987) cunhou como bancária, ou seja, conhecimentos prontos depositados nas cabeças dos estudantes, que reproduz o sistema dominante. Educação pautada em uma realidade estática, acabada e alheia às experiências concretas dos educandos. Esta educação bancária fica evidenciada quando o governo impõe currículo e calendário que desconsideram realidade, cultura e peculiaridades de cada povo, limitando o caráter diferenciado das escolas indígenas à educação bilíngue. Em 2009, a Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena redigiu um documento que, em síntese, destaca a demanda por autonomia por meio da:
[...] criação de uma política que garanta a participação plena e a possibilidade efetiva de os próprios povos indígenas conduzirem e decidirem seus projetos educativos, com o apoio do Estado no que diz respeito ao financiamento e ao acompanhamento para o cumprimento da legislação e para a orientação dos gestores municipais e estaduais de educação envolvidos com a oferta à população indígena. (PALADINO e ALMEIDA, 2012, p. 97)
Nesta direção, a educação escolar indígena se configura como intercultural, diferenciada, crítica e libertária, em oposição à educação bancária na medida em que, a partir de condições concretas, tem a possibilidade de transformar a realidade, problematizar, questionar e agir com base no contexto dos sujeitos viventes. Cada povo indígena, em cada escola, deve participar da construção de projetos educativos que resistem à homogeneização promovida pelo monoculturalismo como se houvesse uma cultura indígena universal. Assim,
[...] povos vitimados pela colonização ocidental resistem ao projeto civilizatório ‘reprogramando’ suas antigas instituições, colocando-as a seu serviço. A escola, sob esta perspectiva, é incorporada pelos diferentes grupos sociais como instituição que reflete a complexidade das relações sociais e multiculturais e valorizada em seu papel decisivo na construção de novas formas de se elaborar o conhecimento. (DALMOLIN, 2003, p. 17)
É nesta luta que se encontra, historicamente, a população indígena e com a qual outras instituições, marcadamente universidades, precisam se unir. Mesmo com avanços e visualizando possibilidades, a luta dos povos indígenas é desigual. Não é simples romper com a construção eurocêntrica secular de um padrão de referência superior e universal que normatiza o ser, o fazer, o estar e o existir no mundo. Padrão que nega outras formas de organização que deixam de ser apenas diferentes e passam à categoria de carentes, incivilizadas, primitivas em contraponto ao que é considerado moderno e desenvolvido. (LANDER, 2005)
A reflexão sobre a colonização da América contribui para compreender o contexto dos Laklãnõ/Xokleng. A inferiorização racial imposta pelos colonizadores construiu e justificou os processos de colonização. A chegada de europeus ao Sul do Brasil, no século XIX, a pacificação no início do século XX e a construção da barragem na década de 1970 demarcam esta história. Neste período, as decisões se fundaram na questão da raça para definir e justificar quem dominava e quem seria dominado. Santos (1978) e Wittmann (2007) recuperam a história de luta e revelam fatos que desmentem a ideia do indígena inculto, pouco afeito ao trabalho, de fácil dominação e com necessidade de ser tutelado.
Os fatos revelam um povo que subverteu ordens impostas, lutou e manteve vivos muitos costumes. Um povo que se aproximou dos brancos, em um primeiro momento, pela curiosidade em conhecer e possuir objetos estranhos, como as ferramentas agrícolas. Depois, percebeu que a única forma de sobreviver seria estabelecer um contato na tentativa de, na visão indígena, pacificar o branco. Após três décadas da pacificação, os indígenas perceberam que na luta por direitos era preciso se apropriar da cultura não indígena e viram na escola a possibilidade dessa apropriação.
Em 1940 foi fundada a primeira escola junto ao Posto Indígena. A escola formal tanto distanciou as crianças das práticas e cultura indígenas quanto possibilitou o contato com a cultura do branco, contribuindo para que compreendessem os meandros e caminhos legais para solidificar lutas e reinvindicações.
Nos meados do século XX a educação indígena La Klã Nõ deixou de ser familiar e passou a ser realizada em escolas, por desejo e pedido dos próprios indígenas que esperavam dessa forma, entender melhor como pensavam e como agiam os não indígenas, que até pouco tempo antes do contato, perseguiam e matavam os que existiam nessas áreas há milênios. (NDILI, 2014, p. 123)
Após a enchente de 1978 em decorrência da construção da Barragem, a comunidade se dispersou em sete aldeias. A distância exigiu a construção de outras escolas. Cada escola foi reivindicada pela comunidade pressionando o poder público (NDILI, 2014). Esta luta dos Laklãnõ/Xokleng pelo direito à educação evidencia a crença na escola como possibilidade de espaço de aprendizagem e desenvolvimento da cidadania. A educação escolar indígena não se limita aos saberes prontos, hegemônicos e que pertencem à cultura dominante. É educação diferenciada e intercultural, a partir do contexto e realidade concreta, que pode ocorrer em espaços institucionalizados, mas não se limita a eles. É educação como prática de liberdade. (FREIRE, 1987)
A educação com base nos saberes ancestrais e atuais, indígenas e não indígenas, considera a realidade dinâmica e inclui experiências políticas, culturais e sociais protagonizadas por homens, mulheres, jovens, crianças e idosos. Ndilli (2014, p. 123) explica que “A escola era no início um processo de aculturação, mas pela resistência e enfrentamento organizado, conseguimos muitas mudanças.” Reinventar e fortalecer a escola como espaço intercultural para uma educação emancipatória e libertadora tem se apresentado como esperança, resistência, participação social e visibilidade para o povo Laklãnõ/Xokleng.
O resgate da história e cultura indígenas, articulado pela comunidade e escola, favorece a educação diferenciada e intercultural. O estudo linguístico iniciado por Gakran na década de 1980 registrou a estrutura morfológica e ortográfica da língua La Klã Nõ (GAKRAN, 2014). Deste estudo foi organizada a cartilha Nosso Idioma Reviveu ou Ag Ve Te Kaglel Mu com a participação de alunos e professores para servir de material didático. Desde então, o movimento de valorização e uso da língua Laklãnõ/Xokleng vem crescendo (VIEIRA, 2004). De espaço de silenciamento, negação de identidade e visão assimilacionista, a escola vem cumprido outro papel, sendo que,
[...] as comunidades originárias lutam para que a educação se caracterize como processo de integração das pessoas da comunidade, considerando que se apresente como um espaço para o exercício da autonomia e da identidade dessas populações indígenas conforme suas tradições ancestrais e sua cosmovisão. (PATTÉ, 2014, p. 103)
A construção da Barragem Norte desarticulou a comunidade, que passou a viver em aldeias separadas. O povo, como um todo, já não se reunia para discutir problemas e planejar ações para o bem comum na TII. O rompimento deste isolamento tem ocorrido com eventos realizados pelas escolas da TII em parceria com a comunidade para celebrar a cultura e os saberes milenares guardados com os membros mais antigos. O primeiro grande evento neste sentido foi em relação aos 100 anos da pacificação, em setembro de 2014, quando todas as aldeias se reuniram para celebrar a resistência do povo que sobreviveu. As escolas pesquisaram em livros e com os anciões e anciãs para resgatar a história da cultura, da coragem, das habilidades dos Laklãnõ/Xokleng. O evento trouxe para os mais velhos a esperança de ver a cultura resgatada e para os mais jovens um sentimento de orgulho e pertencimento que antes estava encoberto. A comemoração, agora, faz parte do calendário anual na TII.
A Semana dos Povos Indígenas, comemorada em abril, também articula saberes, envolvendo a comunidade indígena e não-indígena. As escolas e as lideranças da TII promovem festividades e encontros para fortalecer a identidade e valorizar os saberes milenares. Em abril de 2016, a Escola Vanhecu Patté, com o apoio do COMIN – Conselho de Missão entre Povos Indígenas, lançou o Caderno dos Povos Indígenas, escrito em língua Laklãnõ/Xokleng e em língua portuguesa, elaborado por professores/as e alunos/as e distribuído nas escolas de educação básica indígenas e não-indígenas.
A Trilha da Sapopema reúne escolas e grupos diversos que vão à TII para realizar uma caminhada no meio da mata, guiados por jovens indígenas que contam histórias e explicam a relação do indígena com este espaço. Os/as anciões/ãs contribuem recebendo os visitantes em uma tenda. Servem comida típica e contam histórias. Esta atividade dissemina entre os não-indígenas um contexto que não está nos livros e nem nos meios de comunicação. É o saber do/a indígena/a transmitido ao não-indígena, invertendo a lógica de propriedade do conhecimento. Na trilha, no contato com a mata e na apresentação dos saberes, o indígena é o protagonista. Além disso, ser trilheiro/a é profissão que pode ser exercida dentro da TII, apoiada no saber de quem vive ali.
Professor/a na TII é posição de status e garantia de trabalho, todavia exige formação fora da aldeia. Muitos que atuam na escola iniciaram sem a formação específica, com apoio em materiais didáticos e na experiência dos mais antigos. Existe um interesse crescente de cursar uma licenciatura. Alguns já se formaram e, recentemente, o professor Nanblá Gakran defendeu sua tese de doutorado na área da linguística.
Estas ações têm dado visibilidade para o povo indígena diante da sociedade de forma geral. Porém, possuem impacto pontual e não atingem uma escala significativa para resolver os problemas. Não se pode esperar que o povo indígena consiga, sozinho, transpor as barreiras e transformar sua realidade. Tampouco é possível fazer isso por eles. Antes, é uma ação a ser realizada pelos povos invisibilizados em conjunto com os que se solidarizam, sofrem com eles e com eles lutam. (FREIRE, 1987)
A apresentação do contexto de colonização a que os Laklãnõ/Xokleng foram submetidos reforça o questionamento dos mitos que justificaram e continuam legitimando processos de dominação justificados pela crença no desenvolvimento e progresso. Rever o processo permitiu questionar verdades naturalizadas de uma história não tão bem contada. As ações de sobrevivência ao padrão de dominação que incluíram a luta, a fuga e o contato, fizeram parte da estratégia dos Laklãnõ/Xokleng para continuarem existindo. É essa história que eles querem que todos conheçam.
Problematizar ações promovidas para o desenvolvimento da região a partir da chegada de imigrantes europeus possibilitou perceber que o Estado teve, historicamente, um papel marcante na invisibilização das populações indígenas. Os marcos legais a partir da CF/1988 reconhecem os direitos, mas têm sido insuficientes para romper com as práticas violentas do processo de colonização de 500 anos. As políticas de desenvolvimento conduzidas pelo Estado não deixaram de ser cruéis e ainda violam direitos básicos, como no caso da Barragem Norte. O valor da vida tem um peso étnico/racial e prevalece o padrão eurocêntrico.
A sobrevivência dos povos indígenas a este processo desafia a sociedade e o Estado a repensar padrões hegemônicos de existir e se relacionar no mundo e a reconhecer o direito à autonomia e à participação social. Nas questões educacionais, as políticas ainda não atendem a este direito de forma plena para que as populações indígenas conduzam seus projetos educacionais. Os direitos conquistados nem sempre são efetivados por falta de regulamentação, financiamento, estrutura e profissionais formados.
Diante disso, reforça-se a necessidade de efetivar políticas na perspectiva da interculturalidade e orientar a sociedade não indígena, principalmente dirigentes municipais e estaduais, em relação à implementação dessas políticas. Por fim, os relatos e as ações desenvolvidas na TII indicaram que a educação escolar indígena tem se configurado como possibilidade de reconhecer e legitimar as contribuições do povo Laklãnõ/Xokleng na constituição do Vale Europeu. Por isso, é essencial articular universidades, movimentos sociais, atores internos e externos para fortalecer processos educacionais interculturais libertários, ampliar a visibilidade social e possibilitar a construção de outra lógica de desenvolvimento, pautada na justiça social.
Como citar: BENTO, K., L. Educação escolar indígena como
possibilidade para romper processos de invisibilização. R. Tecnol. Soc.
v. 14, n. 31, p. 110-124, mai./ago. 2018. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/5037>.
Acesso em: XXX.