Resumo: Este artigo se propõe a refletir sobre a relação entre universidade e sociedade a partir da atuação das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP). A questão que orienta o artigo é: a partir da experiência das ITCPs, é possível potencializar a construção de alternativas sociotécnicas coerentes com os valores da economia solidária, como a autogestão e a solidariedade? Com intuito de refletir sobre essas questões este artigo apresenta as contribuições dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT). A partir desse referencial teórico, analisa-se as visões de ciência e tecnologia na atuação das incubadoras. Nas considerações finais, apontamos algumas reflexões sobre a construção de alternativas sociotécnicas a partir da atuação das ITCPs e a necessidade de superar uma visão da ciência e da tecnologia como algo acabado, neutro e intrinsecamente positivo.
Palavras-chave:Incubadora Tecnológica de Cooperativas PopularesIncubadora Tecnológica de Cooperativas Populares,Transferência de tecnologiaTransferência de tecnologia,Estudos Sociais da Ciência e da TecnologiaEstudos Sociais da Ciência e da Tecnologia.
Abstract: This article proposes to reflect on the relationship between university and society based on the work of the Technological Incubators of Popular Cooperatives (ITCP). The question that guides the article is: based on the experience of ITCPs, is it possible to promote the construction of sociotechnical alternatives aligned with the values of solidarity economy, such as self-management and solidarity? Intending to reflect on these questions, this article presents the contributions from the Social Studies of Science and Technology. Based on this theoretical reference, the visions of science and technology in the incubator's performance are analyzed. Lastly, in the final considerations, we point out some reflections on the constructing of sociotechnical alternatives based on the performance of ITCPs and the need to overcome a vision of science and technology as something finished, neutral and intrinsically positive.
Keywords: Technological Incubator of Popular Cooperatives, Technology transfer, Social Studies of Science and Technology.
As incubadoras tecnológicas de cooperativas populares e as relações entre ciência, tecnologia e sociedade
The technological incubators of popular cooperatives and the relationship between science, technology and society

Recepção: 20 Abril 2017
Aprovação: 19 Agosto 2017
Este artigo se propõe a refletir sobre a relação universidade e grupos populares a partir da atuação das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP). Dessa relação, emerge uma questão central para as incubadoras é: a relação entre universidade e grupos populares pode contribuir para a reorientação da produção de conhecimento científico e tecnológico? A partir dessa reorientação, é possível criar alternativas sociotécnicas coerentes com a autogestão, a solidariedade e com o diálogo com as classes populares?
As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP) surgem a partir de 1995, em diversas universidades públicas e privadas, em uma conjuntura bastante particular do Brasil, quando parte da extensão universitária, diante de um contexto de altos índices de desemprego, se volta para o mundo do trabalho. Passadas duas décadas, o fenômeno cresceu significativamente e, atualmente, existem mais de uma centena de incubadoras pelo país.
De maneira simplificada, as ITCPs são grupos de extensão comunitária que atuam com grupos populares, organizados juridicamente em cooperativas, associações ou grupos informais, geralmente inseridos na Economia Solidária, com intuito de assessorá-los em suas atividades de produção, comercialização e de organização política.
Para a reflexão acerca das incubadoras, realizamos duas formas de coleta de informações: revisão da literatura e análise documental. Primeiramente analisamos a bibliografia que incluiu publicações elaboradas pelas incubadoras, textos disponibilizados pelas mesmas em seus sites, teses e dissertações produzidas por seus formadores e artigos apresentados nos Congressos da Rede de ITCPs. A seleção dos materiais utilizados seguiu o critério de serem textos que buscavam refletir sobre as próprias incubadoras, a partir de temas como histórico, metodologia, limites e possibilidades. Além disso, foram analisadas as duas avaliações encomendadas pelo Comitê Gestor do Programa Nacional de Incubadoras (PRONINC) em 2007 e 2011 e os documentos produzidos pelas duas redes de incubadoras (Rede Universitária de ITCPs e Unitrabalho).
Reconhecidamente, a primeira ITCP surge derivada da ideia das incubadoras de empresas. Porém, as novas incubadoras se conformam a partir da reorganização da extensão incentivada pelo processo de redemocratização pelo qual passou o país, da mobilização de uma parcela da universidade diante do desemprego e da miséria e, por fim, do aumento do financiamento no governo do Partido dos Trabalhadores para a extensão (FRAGA, 2012). Esses três fatores levam parte da extensão a um novo caminho que tem como centro a geração de trabalho e renda e a utopia da autogestão. Ainda assim, a influência das incubadoras de empresas parece manter-se, principalmente, no seu caráter ofertista em relação ao conhecimento.
Com intuito de refletir sobre questões que conectam as ITCPs com a produção de ciência e tecnologia, este artigo percorre as contribuições dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT) a partir dos quais é construída a fundamentação teórico metodológica para compreender a atuação das incubadoras na construção de alternativas sociotécnicas. Alternativas sociotécnicas são teorias e experiências de desenvolvimento científico e tecnológico contra-hegemônicas desenvolvidas ao longo da história a partir de preocupações sociais, políticas e ambientais. Em consonância com essa ideia, Andrew Feenberg (2010) afirma que a “Tecnologia é um campo de luta social, uma espécie de parlamento das coisas, onde concorrem as alternativas civilizatórias” (FEENBERG, 2010, p. 76).
Esse artigo almeja, portanto, apresentar o campo dos ESCT e buscar elementos e reflexões para a compreensão e para a crítica de uma visão ofertista da ciência e da tecnologia (C&T). A partir dos elementos apresentados na terceira seção, analisamos as visões de ciência e tecnologia das incubadoras. Dessa análise decorre a constatação da presença de uma visão ofertista de C&T na atuação das ITCPs, principalmente, através da ideia de transferência de conhecimento e de tecnologia. Nas considerações finais, apontamos caminhos possíveis para a construção de alternativas sociotécnicas a partir da atuação das ITCPs.
Talvez a principal contribuição dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT) seja desarmar algumas armadilhas naturalizadas que têm como fundamento uma visão da ciência e da tecnologia (C&T) como algo acabado, neutro e intrinsecamente positivo e de um usuário da C&T como um sujeito passivo. Se essa visão é verdadeira não há o que questionar na produção da C&T e, mesmo na atuação de uma ITCP, nos bastaria fazer atividades de divulgação científica ou de transferência de conhecimento e de tecnologia. Como não estamos de acordo com essa visão, esta primeira seção do artigo tem como objetivo evidenciar o caráter complexo, dinâmico e sistêmico da produção da C&T.
A reflexão que trazemos se apoia em três ideias-força que organizam esta seção. São elas: a não neutralidade do conhecimento científico e tecnológico; o questionamento da ideia de benefício infinito atribuído à C&T e; por fim, a ideia de que conhecimento e tecnologia não se transferem.
Para refletir sobre a atuação das incubadoras a partir das reflexões dos ESCT, a primeira ideia que julgamos fundamental explorar é a não neutralidade do conhecimento tecnocientífico. Esta, porém, não é uma afirmação trivial e dela decorre a percepção da ciência como uma verdade que não é passível de questionamento, uma verdade única e universal. A partir dessa visão, a ciência seria o progressivo desvelamento da realidade, uma contínua descoberta da verdade e ensinaria as pessoas a pensar racionalmente e agir de acordo com um comportamento racional, livre da política, substituindo as paixões e a emoção pelo domínio da lógica da razão (DAGNINO, 2008).
O primeiro argumento que evidencia a não neutralidade do conhecimento, é a assertiva de que a ciência é uma construção social. Diversos autores argumentam que ideias e valores subjetivos permeiam a produção e reprodução da ciência e da tecnologia e que estes podem ser percebidos nos processos de disputa e negociação entre diversos grupos sociais. Especialmente o construtivismo, uma das correntes dos ESCT, contribuiu com essa ideia ao evidenciar, principalmente através de estudos de caso, a influência das relações sociais e econômicas no desenvolvimento da ciência e da tecnologia (DAGNINO, 2008; FEENBERG, 2010).
Dagnino (2008) explora as críticas marxistas dentro do campo do ESCT que refutam a neutralidade da ciência a partir de um argumento de classe. O central dessa argumentação é a caracterização da relação entre ciência e o sistema capitalista como uma forma específica de produção da C&T. Estas, a partir da Segunda Revolução Industrial, teriam intrínseca relação com o processo de expansão do capital e da emergência de novas potências econômicas internacionais e de um novo padrão de acumulação do capital em escala mundial. O autor busca fortalecer o argumento da não-neutralidade a partir da ideia de que as necessidades da produção conformam um modo específico de fazer ciência crescentemente funcional à acumulação capitalista. A partir dessa perspectiva, a busca pelo conhecimento passa a se dar por caminhos planejados e a pesquisa, ao contrário do que é comumente percebido, não poderia mais ser entendida como a simples busca pelo conhecimento, mas sim crescentemente influenciada pelas prioridades da produção e “financiada, ainda que com recursos públicos, em função das possibilidades de aplicação rentável de seus resultados” (DAGNINO, 2008, p. 146).
Hugh Lacey (2008) desenvolve a argumentação, a partir da filosofia da ciência, afirmando que valores subjetivos permeiam a produção e reprodução da ciência. Segundo este autor, os valores desempenham um papel central na definição das teorias científicas, mas seria necessário distinguir valores cognitivos e não cognitivos para compreender a relação entre valores e ciência. Os valores cognitivos seriam tais como a adequação empírica, consistência interna e poder explicativo, enquanto valores não cognitivos seriam aqueles sociais e morais. Esse autor afirma que perceber a ciência como neutra resulta da ideia de que a mesma é livre de valores. Nos últimos anos, argumenta, essa ideia tem sido fortemente criticada por pessoas de variadas correntes intelectuais como feministas, militantes de movimentos sociais e ecologistas que afirmam que a ciência moderna é ocidentalizada, patriarcal, dominada pelo homem branco capitalista, racista e imperialista. Nessa perspectiva, aborda as possibilidades de relacionar valores e atividade científica num sentido propositivo e não apenas descritivo (LACEY, 2010). Para além da crítica da ciência entendida como neutra, o autor aponta a possibilidade de engajamento a partir de valores alternativos.
Da não neutralidade do conhecimento tecnocientífico deriva uma necessária reflexão acerca da atuação das incubadoras: quais são as consequências da visão de C&T que possuem? Além disso, diante da constatação da não neutralidade do conhecimento tecnocientífico, as incubadoras são colocadas diante de um desafio: como fazer ciência e tecnologia a partir de valores e interesses da economia solidária? Essas são questões que retomaremos ao longo do artigo.
A segunda contribuição dos ESCT que destacamos é a negação da ideia de que o desenvolvimento da C&T gera apenas, e necessariamente, efeitos positivos para a sociedade. Essa ideia tem como fundamento a cadeia linear de inovação, isto é, de que o conhecimento gerado pela pesquisa básica percorre uma trajetória linear e inexorável até culminar na inovação tecnológica que resultaria em desenvolvimento social.
O relatório elaborado por Vannevar Bush em 1945 para o então presidente dos EUA segue sendo referência fundamental para essa ideia (SISMONDO, 2004). Segundo sua argumentação, o conhecimento científico seria suficiente para atingir o desenvolvimento social, que justifica, em grande medida, a sua divulgação ou transferência. Esse modelo tem um forte caráter determinista, isto é, afirma que o avanço científico resulta em progresso social.
Para Sarewitz (1996) o fundamento da argumentação do Relatório Bush é de que se a ciência e a tecnologia são importantes para o bem-estar da sociedade, então quanto mais ciência e mais tecnologia uma sociedade tiver melhor ela será, ou, em outras palavras, quanto maior investimento em ciência e tecnologia, melhor a nossa qualidade de vida. Este seria o mito do benefício infinito. Segundo o autor, essa ideia isola a pesquisa, fornecedora de benefícios, do resto da sociedade, a fonte de nossos males.
Em suma, diversos autores buscaram complexificar a relação existente entre ciência, tecnologia, desenvolvimento econômico e desenvolvimento social, negando uma cadeia linear que explicasse a dinâmica entre eles e negando, portanto, que seria possível por um simples fluxo de conhecimentos chegar ao desenvolvimento econômico ou social.
A terceira contribuição dos ESCT parte, principalmente, da Economia da Inovação e diz respeito à negação da ideia de oferta e demanda de conhecimento. A argumentação que apresentaremos a seguir busca evidenciar a complexidade inerente do processo de mudança tecnológica em oposição ao modelo linear de inovação.
É preciso destacar que essa corrente do ESCT compreende o desenvolvimento tecnológico como um fenômeno econômico e que o fundamento de suas reflexões é a inovação no âmbito da firma (empresa capitalista) tendo como referência o contexto dos países de capitalismo central. Dagnino e Thomas (2001) argumentam que é necessário não perder de vista “o fato de toda a trajetória da 'economia da inovação' estar praticamente baseada na análise de fenômenos de inovação em empresas, mesmo que desse fato não seja legítimo deduzir a impossibilidade de existirem loci e dinâmicas de inovação alternativos” (DAGNINO e THOMAS, 2001, p. 208).
Nathan Rosenberg é um dos autores que trazem elementos relevantes para a argumentação proposta. O autor, dando ênfase à natureza descontínua e ao alto grau de complexidade sistêmica do processo inovativo, aborda a relação entre desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento científico, explorando as diversas possibilidades de interação. A partir dessa abordagem, refuta a sequência linear entre os mesmos e a ideia decorrente de que a tecnologia é a aplicação da ciência no setor produtivo. Uma das principais contribuições desse autor reside na afirmação de que a inovação tecnológica é um processo de aprendizagem. Somado ao conceito de aprendizado pela prática (learning by doing), destaca o que chama de aprendizado pelo uso (ou learning by using), isto é, o aprendizado existente na utilização pelo usuário final de uma tecnologia. Além desse tipo de aprendizado, Dias e Novaes (2009) destacam o de learning by interacting.
Para desconstruir a ideia de transferência (de conhecimento e de tecnologia) o processo de aprendizado inerente à inovação é essencial. Especialmente o conceito de learning by interacting, baseado na interação entre usuário e produtor, gerou a perspectiva de usuário ativo nos processos de mudança tecnológica.
Nesse sentido, retomamos Thomas e Fressoli (2009) que afirmam que a sociologia da tecnologia e a economia da mudança tecnológica superam “las limitaciones de concepciones lineales en términos de 'transferencia y difusión' mediante la percepción de dinámicas de integración en sistemas socio-técnicos y procesos de resignificación de tecnologías” (THOMAS e FRESSOLI, 2009, p. 224).
Nesse sentido, estamos de acordo quando Dagnino e Thomas (2001) advertem que é conveniente
desfazer a unidade aparentemente monolítica subjacente aos conceitos de “transferência” e de “difusão”. Isso pode, por um lado, levar a ferramentas descritivas úteis para reconstruções racionais simplificadas, e, por outro, ocultar processos que respondam a causalidades complexas. Os processos de “transferência” de objetos aparecem como operações simples, automáticas, sem dar espaço para a subjetividade e os interesses dos atores intervenientes. Tendem a gerar, em particular, uma sensação de identidade permanente e universal do objeto transferido (DAGNINO e THOMAS, 2001, p. 207).
Os autores ainda afirmam que o termo transferência “outorga ao processo um quê de transparência e de linearidade – e, ainda, em outro plano, de operatória '‘desinteressada’, asséptica – que, na realidade, não existe” (DAGNINO e THOMAS, 2001, p. 208).
Portanto, fundamentalmente, o conhecimento precisa ser compreendido dentro de um processo dinâmico de aprendizado que inclui diversas possibilidades de conversão (entre conhecimento tácito e codificado, entre coletivo e individual) e de construção a partir da interação entre indivíduos e organizações. Com isso, pode-se inferir que a oferta de C&T é uma ideia não apenas inadequada mas também inviável. A partir dessas considerações, se faz conveniente considerar todos os processos que envolvem C&T como processos complexos, não lineares e que envolvem etapas de construção e negociação dos mesmos. Nessa perspectiva, o ofertismo da C&T contribui para uma inadequada simplificação do papel e do potencial que a C&T tem ou pode ter dentro de processos nos quais a universidade se empenha em buscar alternativas para os problemas enfrentados pela sociedade.
A crítica à transferência de C&T está largamente presente nos trabalhos acadêmicos produzido pelas e sobre as incubadoras. A avaliação das incubadoras realizada pelo IADH em 2011 cita como pressupostos da metodologia das incubadoras a construção coletiva do conhecimento e as ideias de Paulo Freire. Ainda assim, não foram poucas as referências que encontramos à transferência de C&T como fundamento do processo de incubação.
De acordo com o estatuto da Rede de ITCP, em seu artigo 1°, a rede “é constituída por um conjunto de incubadoras vinculadas de forma interativa e dinâmica favorecendo a transferência de tecnologias e de conhecimentos”.
Major (2001) traz essa visão explicitamente ao afirmar que “a razão fundamental da existência da Incubadora reside no fato da Universidade Federal, desempenhar suas funções de preservar, gerar e transmitir conhecimentos, proporcionando desenvolvimento cultural, social e econômico da sociedade” (MAJOR, 2001, p. 86). E vai além ao dizer que “fatores desencadeados a partir da dimensão social do processo de transferência de tecnologia, condicionam o sucesso ou não das experiências de incubação” (MAJOR, 2001, p. 80).
Outro exemplo no qual essa ideia aparece como fundamental é Culti (2007). A autora afirma que “o envolvimento das universidades tem sido importante no apoio às iniciativas da economia solidária em vista da sua capacidade de pesquisa, extensão e transferência de tecnologia (…) por meio das ações desenvolvidas nas Incubadoras Universitárias” (CULTI, 2007, p. 20). E ela ainda argumenta que os trabalhadores,
ao adquirirem o status de cooperados ou associados, com autonomia para exercer a autogestão, esses trabalhadores ganham visibilidade. Passam a dispor de cidadania, elevam a autoestima e resgatam a esperança, além de ter acesso e adquirir conhecimentos e tecnologias que as universidades, por meio de seus professores, pesquisadores, técnicos e acadêmicos, podem dispor. Tudo isso leva, indiscutivelmente, à melhoria na qualidade de vida desses trabalhadores (CULTI, 2007, p. 21).
Essa mesma autora, no entanto, em sua tese de doutorado, busca aprofundar a relação entre saber popular e saber acadêmico e afirma que o processo prático de incubação é um processo de produção de conhecimento, no qual o saber popular e os conhecimentos científicos são utilizados como matéria prima para educadores e educandos com a finalidade de produzir “saberes aplicáveis ou mais adequados à natureza do empreendimento e do trabalhador cooperativo” (CULTI, 2006, p. 75).
No entanto, no mesmo trabalho afirma que “a relação entre educandos e educadores não é impositiva; mais do que isso, que os educadores, apesar de saberem mais, também aprendem com eles” (CULTI, 2006, p. 153). Ainda segundo a autora, fazendo referência a trabalhadores oriundos do lixão,
em razão de sua própria origem, trouxeram a experiência de trabalhos anteriores à cooperativa, atividades muito pouco qualificadas e sem organização de tipo empresarial, como já demonstrado anteriormente. Portanto, o conhecimento de que eram portadores (...) não se confunde com o que se considera necessário à autogestão dos empreendimentos cooperativos (CULTI, 2006, p. 165).
O trecho anterior explicita uma qualificação hierárquica entre saber acadêmico e saber popular. Para além das diferenças de origem, a autora evidencia uma suposta superioridade do saber acadêmico. O acesso a esse saber, ainda segundo Culti (2006), qualifica os educadores que seriam capazes de ver a realidade que os cerca para além do censo comum. Por isso, “quando os educadores, de forma adequada, transmitem o conhecimento que já adquiriram durante sua vida acadêmica, é possível que a compreensão por parte dos cooperados aconteça” (CULTI, 2006, p. 193).
A tese da autora explora os limites da educação popular e tenta buscar as contradições na relação entre universidade e sociedade. No entanto, diversas vezes fica evidente a maneira como trata os trabalhadores e trabalhadoras como portadores de um conhecimento que não é válido para a autogestão e para a viabilidade do grupo e, por outro lado, apresenta o conhecimento científico como algo valioso em si e que geraria, inevitavelmente, melhoria na qualidade de vida desses trabalhadores. Nesse sentido, perpetua a desigualdade entre os saberes, não pelas suas especificidades, mas pela sua validade e utilidade para viabilizar a luta de um coletivo de trabalhadores por trabalho e renda.
A lista de exemplos dessa visão é bastante grande. Apesar de alguns autores darem por superada, essa ideia aparece novamente, no qual as incubadoras “parten de la idea de que la universidad es un centro productor de conocimientos que necesitan ser puestos a disposición de la sociedad en general, especialmente para las personas que no disponen de recursos o apoyo” (DUBEUX et al, 2011, p. 23).
Guimarães (2008) é ainda mais explícito ao propor que
o trabalho dos institutos de tecnologia rural é uma forma de democratizar o conhecimento da tecnologia. O extensionista rural é um técnico que leva tecnologia, conhecimento e qualificação ao produtor rural. Por que não existe um extensionista urbano, que leve a tecnologia e o conhecimento ao empreendimento urbano? (GUIMARÃES, 2008, p. 111).
Uma das explicações para a manutenção da ideia de transferência de conhecimento e tecnologia pode ser a herança das incubadoras de empresas. Souza et al (2003) ao comparar as incubadoras de empresas e as de cooperativas populares argumentam que “apesar de ambas as incubadoras terem como objetivo promover o desenvolvimento da economia brasileira, os seus públicos são polares, o que faz com que o tipo de conhecimento transferido seja também diferenciado” (SOUZA et al, 2003, p. 9).
No entanto, uma conclusão precipitada sobre o tema não nos levaria muito longe. O que parece ser possível inferir é que sobre o tema do desenvolvimento da C&T, as reflexões aparecem de maneira contraditória em diversos textos, como o de Santos e Garcia (2012) que diz que adota a visão freiriana de extensão para logo a seguir dizer que “a academia exerce papel de fundamental, conduzindo o conhecimento às classes desfavorecidas” (SANTOS; GARCIA, 2012, p. 2).
Embora, seja corrente a visão ofertista da C&T na maioria dos materiais lidos. É bem verdade que isso vem sendo paulatinamente questionado. Mas discordamos de Cruz e Guerra (2009) que tratam essa questão como superada
Inicialmente, prevalecia entre as ITCPs a ideia (...) de transferência tecnológica. Isto é: o meio universitário, portador do saber científico acumulado, solidariamente (e 'bancariamente', no sentido freireano do termo), disponibilizaria as tecnologias reconhecidas (de produção e de gestão) aos empreendimentos solidários, como forma de contribuir para o combate ao desemprego e a precarização das condições materiais de vida. Não levou muito tempo para que a crítica a esta concepção de relação entre universidade e sociedade se fizesse sentir, com pressões de dentro (dos próprios pesquisadores e extensionistas) e de fora da academia (dos grupos populares e das organizações a eles vinculados). Havia uma contradição flagrante entre os princípios autogestionários defendidos para/pela economia solidária e o processo proposto para a incubação de cooperativas (CRUZ; GUERRA, 2009, p. 8).
Os autores ao reconhecerem a contradição flagrante entre a metodologia de incubação fundamentada na transferência de conhecimento e os princípios da economia solidária e da autogestão. E nos parece que essa contradição ainda existe. Outros autores e incubadoras questionam essa visão e, em oposição a essa ideia, há aqueles que acreditam que é preciso, no processo educativo envolvido na incubação, uma troca de saberes que resulte na produção de novos conhecimentos.
Singer (2005) contribui com esse debate ao argumentar que as pessoas que foram formadas no capitalismo precisam ser reeducadas e que “essa reeducação tem que ser coletiva, pois ela deve ser de todos os que efetuam em conjunto a transição, do modo competitivo ao cooperativo de produção e distribuição” (SINGER, 2005, p.16). Cunha (2002) também explicita a discordância com essa ideia.
Os conhecimentos que o programa pode levar aos cidadãos que em geral não dispõem de acesso ou recursos não podem se destinar à reprodução de padrões técnicos ou relações políticas segundo modelos dominantes. A incubação de cooperativas exige uma difícil tarefa de reapropriação do conhecimento, e por isso a experiência dos grupos e cooperativas é vital – mas quase sempre a cultura que prevalece é a das relações fortemente dominadoras (...), e tudo isso vem relacionado a uma dimensão mais ampla, que é política (CUNHA, 2002, p. 153).
A ITCP/Unicamp, em seu caderno de metodologia Empírica afirma que:
O conhecimento produzido a partir (e com) os empreendimentos de Economia Solidária carrega elementos diferentes do conhecimento científico convencional que são necessários à transformação social. Entendemos que o conhecimento carrega os valores e interesses predominantes no contexto no qual foi desenvolvido e, por isso, não é neutro. Os trabalhadores e trabalhadoras dos EES podem ser considerados(as) personagens historicamente excluídos da produção de conhecimento, o que nos permite dizer que é pouco provável que seus valores e interesses entejam presentes na produção acadêmica convencional. Além disso, a economia solidária tem como fundamento a autogestão (...) que pressupõe não apenas uma maneira alternativa de produzir o sustento, mas também, quando ligada à universidade, de produzir conhecimento. Essa reflexão nos conduz, necessariamente, a uma metodologia de incubação que seja capaz de questionar o conhecimento disponível e reprojetá-lo com a participação direta desses trabalhadores e dessas trabalhadoras (ITCP/UNICAMP, 2009, p. 8).
Por isso, após a análise de diversos materiais produzidos sobre e pelas incubadoras, pode-se considerar que as reflexões trazidas pelos ESCT ainda são de extrema importância. Embora a crítica à transferência de C&T esteja colocada, especialmente através das contribuições de Paulo Freire e da Educação Popular (FRAGA, 2012), o que nos parece ausente é a crítica da C&T como uma construção social e sua consequente não neutralidade. O referencial teórico metodológico dos ESCT pode contribuir para uma aproximação das críticas já existentes à transferência de C&T com as práticas das incubadoras em construir alternativas sociotécnicas.
A compreensão da C&T como algo socialmente construído é o ponto de partida deste artigo. A ideia da C&T como algo dinâmico, influenciadas não apenas por quem o produz, mas também por quem as utiliza (mesmo que potencialmente) e modificadas nos processos de conversão e apropriação é fundamental para pensar a ação das ITCPs. Se somarmos a esta, a noção de que a C&T carrega os valores e interesses predominantes no contexto no qual é gerado, se torna evidente sua não neutralidade. Desses argumentos, decorre a constatação da inadequação do ofertismo de C&T no âmbito do processo de incubação.
Este artigo buscou aproximar a atuação das incubadoras com o campo dos ESCT. É preciso destacar que esta análise não buscou ser totalizante uma vez que analisamos apenas aquelas que produziram materiais reflexivos sobre suas práticas. Nesse sentido, a análise realizada apresenta limites por não avaliar a prática cotidiana das incubações e por não representar uma análise de todas as incubadoras. Portanto, consideramos que este artigo reflete parcialmente sobre a realidade das incubadoras. Ainda assim, se mostra como uma análise pertinente, uma vez que busca por contradições, por ambivalências, pelos limites e potencialidades da experiência analisada. Nessa perspectiva, este artigo não tem o intuito de encerrar o debate, mas sim de colocar o tema da relação entre ITCPs, ciência e tecnologia, ou da extensão e dos estudos sociais da ciência e tecnologia, em evidência.
Nesse sentido, uma primeira consideração que pode ser feita, a partir das seções anteriores e considerando que para as ITCPs a ideia de transferência de conhecimento tem servido mais para obscurecer questionamentos mais amplos sobre o que a universidade tem feito e para quem tem feito, julgamos pertinente também, aprofundar a compreensão da inadequação da ideia de transferência de conhecimento para as ITCPs a partir de duas vias. Em primeiro lugar, pelo conhecimento não ser neutro, a ideia de transferência não apenas escamoteia como também reforça as desigualdades estruturantes do nosso capitalismo periférico. Em segundo lugar, por ser tido como superior diante de outros tipos de saber, o conhecimento tecnocientífico exerce sobre os grupos populares, através de sua aparente neutralidade, um tipo de autoridade específica que mesmo em ações educativas que se pretendem transformadoras, os grupos populares são mantidos sob a tutela da universidade.
O caminho para enfrentar essa inadequação, contudo, não deve se resumir apenas à valorização do saber popular. Isto porque, essa ideia pode resultar em uma visão romântica do mesmo, ignorando que também as classes populares constroem seu saber sob a lógica do capital. Pedro Benjamim Garcia afirma, nesse sentido, que o educador não deve ignorar “a ideologia dominante que, de forma diferenciada, perpassa tanto o saber popular quanto o saber do agente [educativo]”. Mas ao contrário, “levando em conta essa evidência, busca o que no saber popular se revela como resistência à dominação” (GARCIA, 1984, p. 92).
Oscar Varsavsky (1972), preocupado com a ação daqueles que estavam na universidade e se propuseram a trabalhar com os setores populares, apresenta um dilema clássico para os cientistas rebeldes. Esse cientista, segundo o autor, são aqueles cuja sensibilidade política os leva a rechaçar o sistema social vigente em seu país e em toda a América Latina por considerá-lo injusto e por não acreditarem que reformas ou o desenvolvimento possam curar os seus males, mas apenas dissimular seus sintomas mais visíveis. São aqueles que por não aceitarem as normas e os valores desse sistema, não aceitam o papel que lhes é dado – de cegos provedores de instrumentos para uso de qualquer um que possa pagar e até suspeitam da pureza e da neutralidade da ciência.
Esses cientistas enfrentam, segundo o autor, o seguinte dilema: seguir funcionando como engrenagens do sistema – dando aulas e fazendo pesquisa ortodoxa – ou abandonar seu ofício e dedicar-se a preparar a mudança do sistema social como qualquer militante político? O compromisso usual diante de tal dilema é dedicar parte do tempo a cada atividade, com a conseguinte inoperância em ambas. O autor argumenta, contudo, que há outra possibilidade que é fazer ciência politizada, isto é “estudiar com toda seriedad y usando todas las armas de la ciencia, los problemas del cambio de sistema social, em todas sus etapas y em todos sus aspectos, teóricos y practicos. Esto es, hacer ciencia politizada” (VARSAVSKY, 1972, p. 11).
Destacamos essa contribuição de Varsavsky por considerarmos que, no âmbito dos ESCT, oferece uma perspectiva para atuação das incubadoras. Entre militar ao lado dos grupos populares e cumprir as obrigações da academia, muitos seguem as escolhas colocadas pelo autor de abandonar a militância ou a academia ou de fazer as duas coisas de maneira ineficaz. O grande desafio daqueles e daquelas que estão nas incubadoras parece ser exatamente fazer ciência (e tecnologia) politizada, fundir militância e academia, modificando ambos. Isso só é possível, no entanto, a partir da constatação de que o fazer acadêmico é político e que a C&T são também um campo de luta.
É nesse sentido que, a partir da negação da visão ofertista da C&T, retomamos a ideia de desviar a rota do desenvolvimento tecnocientífico a partir de novos valores e interesses. Em outras palavras, o engajamento da universidade precisa ser capaz de co-construir C&T adequadas aos grupos populares.
Como alternativa à transferência ou difusão da C&T, se apresenta o caminho de produzir conhecimento com os grupos populares e não para eles. Justificar o insucesso dos grupos populares pela sua falta de capacidade é uma das facetas dessa relação de tutela entre universidade e sociedade. Um exemplo clássico é justificar a dificuldade dos grupos em acessar mercados pela falta de qualidade de seu produto ou a incapacidade de cumprir prazos. As dificuldades que enfrentam os grupos populares podem ter relação com o desconhecimento de técnicas de organização e planejamento, mas, sem sombra de dúvidas, enfrentam outras dificuldades fundantes em relação à falta de direitos básicos, inclusive ao de uma educação pública e de qualidade. Geralmente, são as mesmas pessoas que não têm acesso à moradia digna, serviço de saúde, transporte público entre tantas outras carências. Com isso, o dia a dia de um grupo popular é não apenas gerar o seu sustento, mas também, lidar individualmente ou coletivamente com essas carências. O outro lado da moeda é acreditar que aqueles que têm acesso ao mercado o fazem por mérito próprio. As duas faces juntas nos levam a naturalizar as desigualdades sociais fundamentais pra explicar nossa sociedade.
Isso porque, essa ideia parte em um tipo específico de tutela que historicamente a academia exerceu sobre os não acadêmicos, os leigos, ou as classes populares de diferentes maneiras tanto via extensão, quanto via ensino e pesquisa. Dessa tutela decorrem dois fundamentos. O primeiro é o entendimento de que, mesmo sendo portadores de saberes, os trabalhadores não são capazes de gerir a produção do seu sustento e mais ainda sua própria vida. Levado ao extremo, esse fundamento justifica a pobreza, a miséria e a desigualdade pela incapacidade dos próprios pobres. Os ricos, portanto, são ricos por mérito. Tendo os pobres acesso ao conhecimento, poderiam eles superar sua condição subordinada na qual se encontram. A perversidade dessa ideia está em um tipo de colonização cultural que leva não apenas os ricos (e escolarizados) comodamente a acreditar nela como também os pobres de baixa escolaridade a se resignar em sua suposta incapacidade.
Mudar os rumos da universidade, buscando colocar em prática a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, demanda, uma reflexão profunda sobre a produção de C&T e sobre a maneira como as incubadoras têm se relacionado com esse complexo processo de produção de conhecimento.
Como citar: FRAGA, L. As incubadoras tecnológicas de cooperativas
populares e as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. R. Tecnol. Soc. v. 14, n. 31, p. 140-155,
mai./ago. 2018. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/5811>.
Acesso em: XXX.