Resumo: Em 2014 aprovou-se o Marco Civil da Internet. Lei principiológica que articula os direitos e garantias dos usuários da Internet. A liberdade, nela, é valor presente nos aspectos técnicos e jurídicos. O Marco Civil apresenta a neutralidade de rede como ferramenta que impede que as empresas de telecomunicações adotem técnicas discriminatórias em face dos dados utilizados por seus usuários. O artigo tem como problema a natureza da relação entre a Neutralidade de Rede e a Liberdade como direito dos usuários da Internet. O objetivo geral é investigar como se dá a articulação entre neutralidade de rede e liberdade. A metodologia utilizada é a revisão de literatura em um viés qualitativo realizando, em paralelo, a análise da base legal incidente sobre o problema. Como resultado viu-se que a Neutralidade de Rede é premissa para a Liberdade na Internet. Este artigo colabora para a investigação da tecnologia como um fenômeno social e político, em especial em face de suas normas reguladoras.
Palavras-chave:InternetInternet, Neutralidade Neutralidade, Rede Rede, Liberdade Liberdade, Direito Direito.
Abstract: In 2014, the Civil Internet Framework was approved. That law articulates the rights and guarantees of Internet users. Freedom in it is a present value in both technical and legal aspects. The Civil Framework presents net neutrality as a tool that prohibits telecommunications companies from adopting discriminatory techniques in face of the data used by their users. The article embraces the problem of the nature´s of the relation between Net Neutrality and Freedom as the rights of Internet users. The overall goal is to investigate how the link between net neutrality and freedom occurs. The methodology used is the literature review in a qualitative bias, performing, in parallel, the analysis of the legal basis of the problem. As a result, it has been seen that Net Neutrality is a premise for Internet Freedom. This article contributes to the investigation of technology as a social and political phenomenon, especially in view of its regulatory standards.
Keywords: Internet, Neutrality, Net, Freedom, Right.
Marco civil da internet, neutralidade de rede e sua relação com a liberdade como direito da personalidade
Internet civil framework, net neutrality and its relation with freedom as a right of personality
Recepção: 23 Agosto 2017
Aprovação: 08 Janeiro 2018
O presente artigo procura construir pontes entre o Direito Civil, no campo dos Direitos da Personalidade, e a regulação normativa que tem sido construída em face da Internet com seu respectivo Marco Civil. Adota-se, para tanto, a liberdade como valor de conexão entre esses dois campos na medida em que o princípio da neutralidade de rede, previsto no Marco Civil permite a convergência desses elementos.
Para cumprir com tal objeto o artigo encontra-se organizado em três momentos. No primeiro desenvolve-se a chegada da Internet no Brasil e o posterior estabelecimento do Marco Civil. Neste campo destaca-se que os projetos de lei, ou leis, criadas antes do Marco Civil dedicavam-se mais à definição de uma tipologia comercial, ou penal, para condutas na Internet. Não se tinha até o momento, portanto, a leitura normativa de que o usuário da Internet tivesse no uso desta uma extensão do seu agir em sociedade, e, por conseguinte, de garantia dos seus direitos. O Marco Civil, assim, não surge como forma de criar um aparato jurídico próprio para a Internet, mas sim para integrá-la de forma mais adequada às estruturas do ordenamento jurídico nacional já existente.
Na segunda etapa deste trabalho procura-se compreender o significado e o alcance da neutralidade de rede como princípio e garantia do Marco Civil. Para tanto se interpreta a Internet como sistema complexo e o que isso projeta sobre as suas possibilidades de abordagem. Vê-se, deste ponto, que a Liberdade, em função da aludida complexidade, é um valor que se faz presente na estrutura e na forma de utilização daquela. Tem-se, com isso, que a neutralidade de rede é a premissa para o exercício da liberdade na Internet, ao mesmo tempo em que apresenta os parâmetros para conformá-la em seus limites.
Na terceira e última etapa do artigo, investiga-se como os direitos da personalidade e as liberdades públicas podem ser articulados sob a perspectiva do bem comum. Consegue-se, com isso, registar a liberdade não somente como direito da personalidade, mas como lastro axiológico e normativo para o uso da Internet como ferramenta do desenvolvimento da personalidade e, portanto, de promoção da dignidade humana.
Para as finalidades propostas neste artigo, bem como em face do problema apresentado para análise, a metodologia adequada é a da revisão crítica da literatura.
Sob a perspectiva nacional o tema é considerado recente; ainda mais quando se considera a forma pela quais as inovações são, ou não, incorporadas pela cultura jurídica nacional (leis e decisões dos tribunais superiores).
Não há, assim, base estatística a ser explorada, ou ainda, conjunto relevante de decisões que possam ser objeto de análise quantitativa da estrutura da sua narrativa decisória.
Neste contexto demonstra-se que a presente revisão é adequada por ser o modo mais hábil de se construir uma “ponte” interpretativa entre os aspectos técnicos da Internet e a estrutura normativa que em face dela começa a ser desenvolvida no Brasil, com as consequências daí decorrentes.
A Lei 12.965 de 2014 tornou-se conhecida como Marco Civil da Internet. Trata-se de lei cujo conteúdo normativo é eminentemente principiológico e direciona-se à garantia dos direitos de todos os usuários da Internet no Brasil. Tal se dá, contudo, não por fatores aleatórios; pelo contrário, representa uma decisão de política pública do Estado brasileiro que, para ser devidamente compreendida deve ser interpretada à luz do contexto histórico de sua criação.
Nessa linha o Marco Civil, tal qual Jano (BULFINCH, 2002), projeta seus olhares em dois horizontes distintos. Jano, deus da mitologia romana, era considerado o guardião das portas, dos portais, dos inícios e dos fins. Sua representação se dá como um homem que, com uma única cabeça, tinha dois rostos: um virado para as costas, que vigiava e guardava o passado, e outro que, virado para frente, mira o futuro. Tal dualidade também se faz presente no Marco Civil.
Se por um lado aquele traz em si as marcas do contexto de sua criação, bem como das demandas existentes até então; de outro lado ele abraça o desafio de estabelecer critérios de conformação jurídica que permitam, aos usuários da Internet, a sua utilização de forma a preservar direitos e ampliar as possibilidades de realização de suas potencialidades na Rede. O contexto da criação daquele, contudo, não pode ser separado da própria origem da Internet no Brasil.
De uma perspectiva histórica a existência da Internet no Brasil data do final dos anos oitenta do século passado. Entende-se que ela teve seu início em setembro de 1988, em função de uma inciativa acadêmica entre a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) visando a comunicação de pesquisadores dessas instituições com os seus pares nos Estados Unidos e na Europa. Em seguida, em 1989, houve a criação da Rede Nacional de Pesquisas, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Já em 1994, graças a um projeto desenvolvido pela Embratel, teve-se o início da operação comercial da Internet da forma como ela é compreendida hoje - com as devidas atualizações tecnológicas, tais como dispositivos móveis e a banda larga, por exemplo (OLIVEIRA, 2011).
Percebe-se que houve importante lapso temporal, pouco mais de vinte anos, entre a chegada da Internet à realidade nacional e a criação do citado Marco Civil. Isso não significa, porém, que o tema não tivesse suscitado interesse dos legisladores. Teve-se, por exemplo, o Projeto de Lei nº 1.589 de 1999, de autoria do então Deputado Federal Luciano Pizzato. Tal projeto propunha-se a regular o comércio eletrônico e a validade dos documentos de igual natureza. A despeito da relevância do tema, entretanto, não chegou a ser votado para sua transformação em lei, até o momento.
Outro exemplo é a Lei 12.735 de 2012 (conhecida como Lei Carolina Dieckmann), cuja origem foi o Projeto de Lei nº 84 de 1999 e que promoveu alterações do Código Penal, e do Código Penal Militar, de forma a tipificar condutas ilícitas realizadas por meios eletrônicos, computadores e similares.
Nessa moldura o Marco Civil da Internet, portanto, torna-se relevante não pelo ineditismo do tema que abraça, mas sim em função do viés com que aquele é abordado. Vê-se, por exemplo, o entendimento de que a Internet constitui-se como um serviço de utilidade pública na forma art. 4º, I; bem como que o seu conteúdo seria um repositório de princípios, garantias, direitos e deveres dos diversos sujeitos articulados naquela rede.
O epíteto da referida lei como Marco Civil da Internet, portanto, apresenta-a como ferramenta para a promoção de valores, de interesses, de bens e de serviços articulados e disponibilizados pelos mais diversos agentes, particulares e públicos, da sociedade brasileira. Noutro olhar, indo além, mirando ao futuro tal Jano, pode-se entender que o Marco Civil sustenta aberto o portão pelo qual passarão as trajetórias de desenvolvimento tecnológico e as garantias normativas de promoção e defesa da dignidade humana.
É importante, em respeito à melhor técnica jurídica, destacar que não é adequado referir-se ao Marco Civil como sendo uma “Constituição da Internet no Brasil”. Entende-se que tal analogia nada explica e, pior, pode induzir a conclusões equivocadas sobre o uso da Internet pelos brasileiros.
A regulação do acesso e do uso da Internet não possui uma realidade ontologicamente distinta das demais hipóteses sobre as quais a jurisdição nacional se projeta. Ela (a Internet) tem, é verdade, circunstâncias que lhes podem ser particulares, mas sua interpretação jurídica no que tange, por exemplo, o conceito de relação jurídica, seus elementos constitutivos e vínculo jurídico dela decorrente permanecem inalterados mesmo diante deste novo meio.
A despeito da cyberprofecia de John P. Barlow (BARLOW, 1996), de que os usuários da Internet em todo o mundo estariam conformando uma nova e diferente realidade, o que se verifica é que os critérios sociais, jurídicos e econômicos do mundo “real” ainda são os grandes parâmetros e vetores de contextualização dos avanços daquela.
Diante do exposto, portanto, tem-se a síntese que emoldura o tema a ser desenvolvido na continuação deste texto: o Marco Civil da Internet é importante parâmetro normativo para a regulação principiológica da utilização da Internet por seus usuários, sejam eles agentes públicos, sejam eles agentes privados. Não se trata, portanto, de uma ruptura entre a ordem jurídica nacional, positivada, e um mundo virtual a bradar “independência”. Resgatando o mito de Jano e a alegoria que ele encerra: não se trata de escolher entre o presente e o passado, mas sim de visualizar o futuro sem perder de vista as referências históricas.
A Internet apresenta-se como uma rede de comunicação cujo crescimento quantitativo, em sua base de usuários, e sua ampliação, na área de alcance, pode ser explicado em função de suas premissas operacionais. Ela funciona em uma arquitetura aberta, ou seja, constitui-se como rede de comunicação descentralizada em que cada terminal de acesso (de smartphones aos supercomputadores) funciona de forma autônoma, podendo conectar-se livremente com qualquer outro terminal para a finalidade técnica pretendida, por exemplo: troca de dados em arquivos de áudio, de imagem, de vídeo ou, até mesmo, serviços de transmissão online de filmes e eventos.
A singularidade dela, contudo, não reside somente em ser uma nova forma de comunicação. Vai além. A internet é um sistema complexo. Tais sistemas se apresentam como sendo um novo campo de conhecimento em que a análise de um dos seus elementos constitutivos não é suficiente para a compreensão nem dele, nem do todo envolvido. Para compreendê-los, pois, mostra-se necessário investigar suas múltiplas e respectivas interações; daí a sua complexidade. Não por acaso, portanto, que a abordagem sistêmica se faz necessária para a compreensão dos sistemas complexos e, dentre eles, a Internet. É substantiva a análise de Pavlos Antoniou e Andreas Pitsillides (ANTONIOU, 2007):
The study of complex systems is about understanding indirect effects. Problems that are difficult to solve are often hard to understand because the causes and effects are not obviously related. Towards this direction, complexity theory studies how patterns emerge through the interaction of many elements. In this space, emergent patterns can be perceived but not predicted. Patterns may indeed repeat for a time, but we cannot be sure that they will continue to repeat, because the underlying sources of the patterns are not open to inspection (and observation of the system may itself disrupt the patterns).
Parece ser equivocado, assim, imaginar que o volume de dados, alternativas tecnológicas, de agentes e suas derivações criativas possam ser, com sucesso, reduzidas aos estreitos limites da narrativa normativa, própria do Direito. Eis o desafio, conseguir construir parâmetros próprios que permitam uma adequada leitura jurídica da citada complexidade e seus efeitos. Insiste-se, não se trada de traduzir a Internet para a realidade jurídica, mas sim, ser capaz de entender quais dinâmicas que lhes são próprias e podem ser relevantes para o Direito. Dito isso, pode-se compreender melhor os comandos normativos presentes no Marco Civil, por exemplo:
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I - internet: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes;
A comunicação entre agentes, de forma direta, em diferentes redes, em nível global e com uso público e irrestrito corrobora a complexidade sistêmica conforme acima exposta. É neste contexto que a liberdade pode ser compreendida como princípio-vetor para uma análise jurídica do Marco Civil.
A Internet, como reconhecida hoje, portanto, é fruto direto da liberdade enquanto valor-base para acesso à informação, à comunicação de ideias, à ideários políticos, às pesquisas científicas e à formulação de novas possibilidades de negócios entre seus agentes. Neste viés técnico entende-se que a estrutura aberta, interativa e complexa que dá lastro àquela possui uma importante premissa: a neutralidade de rede.
A ponte entre a liberdade e a neutralidade de rede, portanto, pode ser avaliada da forma que segue. A Internet, sistema complexo, em função da sua própria natureza, tem na liberdade o princípio que melhor se articula como chave de análise do problema. Esta, ao seu tempo, não pode ser condicionada por fatores técnicos. Neste sistema não há condicionalidades, se as houver não há liberdade. Por isso, é possível entender que a premissa técnica para o exercício da liberdade na Internet é, por definição, a neutralidade de rede.
Pode-se considerar que a neutralidade da rede corresponde ao tratamento isonômico dos dados transmitidos e recebidos por todos os usuários da Internet; para que todos, e cada um, de ponta a ponta, possam dela utilizar-se no exercício de suas liberdades individuais, comunicando-se por meio de qualquer dispositivo tecnicamente hábil e no uso dos programas e/ou aplicativos de sua predileção.
O conceito germinal de Neutralidade de Rede foi elaborado por Tim Wu (WU, 2003) no artigo Network Neutrality, Broadband Discrimination. Nele o autor sugere que a neutralidade de rede edifica-se sobre duas colunas dinâmicas, uma de matiz filosófico-política, outra, igualmente importante, de conteúdo técnico-econômico. A neutralidade de rede, portanto, não admite uma leitura rasa do seu significado, sob pena de tomar-se a parte pelo todo e, com isso, desviar-lhe o conteúdo; com resultados nocivos, para o exercício da liberdade na Internet, inclusive.
Enquanto perspectiva filosófico-política o tratamento isonômico dos dados corresponde a um ideário de inovação evolucionária, nas palavras do autor (WU, 2003):
The argument for network neutrality must be understood as a concrete expression of a system of belief about innovation, one that has gained significant popularity over last two decades. (…) The suspicion arises from the belief that the most promising path of development is difficult to predict in advance, and the argument that any single prospect holder will suffer from cognitive biases (such as a predisposition to continue with current ways of doing business) that make it unlikely to come to the right decisions, despite best intentions.
Significa dizer, portanto, que o tratamento isonômico de dados, de fato, reveste-se de premissa técnica para o exercício da Liberdade enquanto valor nuclear de qualquer processo criativo, quando mais no viés de inovação científica. Não por acaso, e à guisa de exemplo, a lei nº 9.610/98 (Lei dos Direitos Autorais) assim determina no seu art. 7º : “Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:...” É de se destacar, pois, que todo ato de criação, quanto mais quando envolvido em uma trajetória de inovação tecnológica, como no exemplo citado, é fruto do exercício da liberdade.
No eixo técnico-econômico o referido autor entende que a Neutralidade de Rede fomenta uma área de livre atuação econômica que não deve ser cooptada por nenhuma empresa, ou instância governamental (WU, 2003):
This account is simplistic; of interest is what the theory says for network design. A communications network like the Internet can be seen as a platform for a competition among application developers. Email, the web, and streaming applications are in a battle for the attention and interest of end-users. It is therefore important that the platform be neutral to ensure the competition remains meritocratic. For these reasons, Internet Darwinians argue that their innovation theory is embodied in the ‘‘end-to-end’’ design argument, which in essence suggests that networks should be neutral as among applications.
É importante, logo, destacar que o Marco Civil, traz consigo a perspectiva acima indicada acerca do conteúdo da neutralidade de rede. Não é surpresa, portanto, que tal diploma legal reconheça a liberdade como um dos seus princípios, ao mesmo tempo em que a articula com o conceito de Neutralidade de Rede, conforme se verifica da leitura dos seus artigos 2º e 3º a seguir:
Art. 2o A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:
I - o reconhecimento da escala mundial da rede;
II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais;
III - a pluralidade e a diversidade;
IV - a abertura e a colaboração;
V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VI - a finalidade social da rede.
Art. 3o A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:
I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II - proteção da privacidade;
III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;
VII - preservação da natureza participativa da rede;
VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.
Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Corrobora-se a neutralidade de rede revela-se como a premissa técnica da Liberdade na Internet, sem aquela, esta não se manifesta. É certo, entretanto, que nenhuma liberdade é absoluta, quanto mais em um contexto de sistema complexo como é a Internet. A liberdade dos usuários projeta-se na mesma razão em que se deve reforçar a própria existência da Internet em si e, mesmo diante desta complexidade, o conceito de neutralidade de rede apresenta-se como critério a ser observado. Veja-se, para tanto, o determinado no artigo 9º do Marco Civil da Internet:
Art. 9º - O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§ 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e
II - priorização de serviços de emergência.
§ 2o Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve:
I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;
II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e
IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
§ 3o Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.
Tem-se, pois, do caput do artigo acima citado, que a neutralidade de rede é uma garantia dos usuários da Internet no Brasil e, de tal arte, sua interpretação deve ser extensiva. Esta observação se faz relevante quando se sabe que em função do célere desenvolvimento tecnológico, e da morosa evolução normativa (não que isso seja necessariamente um mal em todos os casos), muitas lides e dilemas que surgirão nesta área, deverão ser decididas com base no melhor exercício interpretativo das normas já existentes.
Em face disso, portanto, as hipóteses presentes no §1º, I e II, acima, revelam-se normas que determinam critérios de exceção à garantia da Neutralidade de Rede e, por derivação lógica, devem ter interpretação estrita dos seus termos. Com isso confirma-se a leitura anterior: da mesma forma que a neutralidade de rede é o pressuposto técnico da Liberdade na Internet, nela mesma encontra-se os critérios de conformação daquela.
Diante do exposto pode-se realizar síntese que permitirá sedimentar o raciocínio construído até o momento de forma a encaminhar os próximos pontos deste artigo. Viu-se, em um primeiro momento, que a Internet teve seu início no Brasil vinculado às instituições acadêmicas e que, posteriormente, tornou-se acessível para uma parcela mais ampla da população. Embora tenha se constituído em uma ferramenta socialmente relevante somente em 2014 houve a aprovação de uma lei que pôde estabelecer parâmetros modulares de sua existência e utilização: o Marco Civil da Internet. Este traz em si a liberdade e a neutralidade de rede como princípios a serem observados.
O Marco Civil compatibiliza neutralidade e liberdade na medida em que entende a Internet como sistema complexo, em função do qual, em uma análise sistêmica, a liberdade é o fator determinante da sua utilização pelos usuários; o que constitui a neutralidade não só como premissa técnica, mas também como elemento conformador daquela.
Os direitos da personalidade estão vinculados à existência legal do sujeito de direito, ou seja, tais direitos possuem como lastro o próprio atributo da personalidade, o qual indica a aptidão mínima necessária para que o sujeito possa ser considerado titular de direitos próprios.
Tem-se, com isso, que o reconhecimento da personalidade em favor de um sujeito traz consigo, ao mesmo tempo e de forma incondicionada, o reconhecimento dos direitos que a ela estão vinculados.
A leitura acima apresentada ilustra, contudo, somente uma interpretação formal da estrutura lógico-jurídica dos direitos da personalidade: direitos vinculados à existência legal do indivíduo. Isso, entretanto, não é suficiente; em especial em função do objeto de análise deste artigo. Os direitos da personalidade tem em si potência maior do que aquela revelada nas narrativas legais do direito positivado.
Os direitos da personalidade, enraizados na própria existência do sujeito de direito, e na aptidão deste em ser titular de direitos próprios, traduzem, na dimensão normativa, importante aspecto do próprio conceito de bem comum. O bem comum revela-se como o conjunto de bens e direitos socialmente presentes que permitem a todos, e a cada um, em função de suas próprias ações, realizar as potencialidades de sua existência.
Os direitos da personalidade, de tal arte, encontram-se como uma das dimensões do bem comum na medida em que caracterizam um rol de direitos que, estando vinculados à existência legal do sujeito, instrumentalizam a realização se suas potencialidades. Daí a entender-se que tais direitos estejam desenhados na promoção e proteção da dignidade humana, pois sem ela não há existência que se viabilize na realização de suas potencialidades.
É nesta complexidade, portanto, que está situada a construção normativa e doutrinária dos direitos da personalidade que, da perspectiva do bem comum como um dos princípios gerais do direito, revela-se como sendo atributo vinculado ao indivíduo, mas que, ainda assim, e ao mesmo tempo, é de interesse coletivo. Não por acaso, pois, Silvio Venosa (VENOSA, 2012) escreve: “Os princípios dos direitos da personalidade estão expressos de forma genérica em dois níveis. Na Constituição Federal, que aponta a sua base, com complementação no Código Civil brasileiro, que os enuncia de forma mais específica.”.
Eis que os direitos da personalidade sejam a face mais visível de um processo civil-constitucional que requalifica, para o Direito Civil, o sujeito, a sua dignidade e as suas titularidades como núcleo fundamental daquele; fazendo das obrigações, dos contratos, e da propriedade (outros temas centrais do Direito Civil), não fins em si mesmos, mas, sobretudo, ferramentas de ampliação da liberdade humana e de emancipação da sua condição. É nesse sentido que também se manifestam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (GALIANO, 2008):
O homem não deve ser protegido somente em seu patrimônio, mas, principalmente, em sua essência.
Uma das principais inovações da Parte Geral do Novo Código Civil é, justamente, a existência de um capítulo próprio destinado aos direitos da personalidade.
Trata-se de um dos sintomas da modificação axiológica da codificação brasileira, que deixa de ter um perfil essencialmente patrimonial, característico do Código Civil de 1916, concebido para uma sociedade agrária, tradicionalista e conservadora, para se preocupar substancialmente com o indivíduo em perfeita sintonia com o espírito da Constituição Cidadã de 1988.
Somente por tais circunstâncias já se pode vislumbrar a importância da matéria: a previsão legal dos direitos da personalidade dignifica o homem.
Os direitos da personalidade, nessa perspectiva, não se podem restringir às relações entre particulares. Projetam suas normatividades, em verdade, tanto nas relações intersubjetivas particulares, como naquelas havidas junto ao poder público. Assim se manifesta Roberto Senise Lisboa (LISBOA, 2009): “A tutela ou defesa dos direitos da personalidade pode se dar mediante condutas positivas ou negativas das demais pessoas, destacando-se a atuação do poder público e o respeito das demais pessoas.”
Parece contraditório, portanto, que o citado autor trace distinção entre os direitos da personalidade e as liberdades públicas. O autor indica a diferença ao entender que os direitos da personalidade, como regra, estão assentados em condutas negativas, ou seja, sua observância estará pautada por obrigações de não fazer. De outro lado as liberdades públicas seriam garantias constitucionais em função das quais ter-se-ia uma obrigação de fazer do Estado. Nas palavras do autor (LISBOA, 2009):
Direitos da personalidade são direitos intrínsecos ao ser humano, considerado em si mesmo e em suas projeções ou exteriorizações para o mundo exterior.(...)
São direitos que devem ser respeitados, em princípio, mediante uma conduta negativa das demais pessoas, para que eles não sejam embaraçados.
Liberdades públicas são condutas individuais ou coletivas realizadas de forma autodeterminada, em face de autorização expressa ou implícita, conferida pelo Estado. (...)
Os direitos da personalidade são estudos à luz do direito privado, no qual é estabelecida a regra da obrigação de não fazer imposta à coletividade em geral, cuja finalidade é proporcionar que o titular dos direitos essenciais possa usufruí-los da melhor maneira.
As liberdades públicas se fundam na necessidade de uma obrigação de fazer do Estado, a fim de que tais direitos sejam efetivamente consagrados, garantidos e protegidos.
A proposta de que existe uma diferença de fundo entre direitos da personalidade e liberdades públicas reforça uma leitura dicotomizante e, neste aspecto, reducionista do Direito em esfera pública e esfera privada. Quando, contudo, observa-se que tanto os direitos da personalidade, quanto as liberdades públicas, sustentam-se e justificam-se na promoção e proteção da dignidade humana enquanto pressuposto da realização dos potenciais de todos, e de cada um, sob a égide do bem comum enquanto um dos princípios gerais do direito, a suposta diferença não se sustenta.
É nessa linha, portanto, que se faz compreensível a impossibilidade de se ter um rol taxativo de previsões normativas acerca dos direitos da personalidade. Tais direitos, afinal, como dito anteriormente, na realização do bem comum, se projetam na proteção e promoção da dignidade humana e esta, por imperativo lógico, atualiza-se em função das demandas sociais de cada sociedade em seu tempo histórico. Ou seja, se há na vida social uma atualização do que se entende por vida digna, haverá consequentemente a atualização normativa e axiológica dos direitos da personalidade e isso, por certo, supera eventual diferenciação (por melhores que sejam as intenções) entre estes e as liberdades públicas.
A liberdade, neste sentido, apresenta-se como decisivo direito da personalidade, mesmo não estando explicitamente determinada no rol dos artigos do Código Civil brasileiro dedicados ao tema (artigos 11 ao 21). A vida e a liberdade são as premissas estruturantes da realização digna do indivíduo em sociedade e, como tais, carregam não somente comandos normativos, mas também, a síntese de valores sociais e construções políticas que lhes são constituintes.
A liberdade, portanto, que já foi interpretada à luz de preceitos religiosos, econômicos, culturais e políticos, encontra-se agora em face de um novo ponto de inflexão: a Internet. Interpretar a liberdade, portanto, como direito da personalidade, é elemento decisivo para compreender como o Marco Civil da Internet pode atualizá-la para que seja ela, na Internet, também artífice da proteção e promoção da dignidade do usuário. Todas as liberdades são complementares entre si, e uma colabora na constituição das demais, como assinala Amartya Sen (SEN, 2000): “Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras”.
Não é pretensão deste texto, por certo, esgotar o conteúdo jurídico e filosófico da liberdade. Até porque tal missão é irrealizável. Mas é importante compreendê-la como sendo um direito da personalidade e, portanto, atributo irremediavelmente vinculado ao indivíduo que ao exercê-la na busca de suas potencialidades (mesmo individuais) contribuirá para a realização do todo.
Para o contexto deste trabalho entende-se que a liberdade pode ser adequadamente interpretada como sendo o exercício, pelo indivíduo, do poder, de fato e de direito, de agir deliberadamente na busca da satisfação de suas finalidades, contemplando suas potencialidades, sem lesão às pretensões dos demais que assim também procedem. Tem-se, na mesma linha, a definição de Roberto Senise Lisboa (LISBOA, 2009): “Liberdade é a autodeterminação de se conduzir nas relações sociais. Sua natureza é de poder, que se encontra limitado como forma de viabilização da coexistência social, ordenada e harmônica.”
Quando o Marco Civil da Internet articula, portanto, a liberdade de expressão com os direitos humanos e o desenvolvimento da personalidade (artigo 2º, II), nada mais faz do que destacar, para a dimensão da Internet, a liberdade enquanto direito da personalidade na proteção e promoção da dignidade humana. É o reconhecimento normativo da legislação brasileira de que na Sociedade da Informação, em que a Internet se faz àgora e mercado, a realização das potencialidades do sujeito, no ideário do bem comum, não deve ser diminuído.
Se a Internet, como dito anteriormente, é um sistema complexo, cuja indeterminação de cenários futuros se apresenta com constante de sua própria trajetória tecnológica, impedir que seus usuários exerçam suas liberdades de acesso e escolha de meios, é lesar uma das dimensões de consecução de suas personalidades e, portanto, de desenvolvimento de suas potencialidades e dignidade. A neutralidade de rede, assim, enquanto premissa técnica da liberdade, na Internet, é o elemento central para na constituição desta como uma das ferramentas de desenvolvimento da personalidade do indivíduo.
Neste horizonte, de tal arte, torna-se possível construir a convergência entre o Marco Civil, a neutralidade de rede e sua relação com a liberdade como direito da personalidade. O Marco Civil apresenta a moldura principiológica que habilita o exercício de direitos e garantias dos usuários, qualificando de forma específica a relação jurídica existente entre usuários, provedores de acesso e empresas de telecomunicação. É assim que o princípio da neutralidade de rede, enunciado no referido Marco Civil, impõe a isonomia no tratamento dos dados que transitam na Internet; constituindo-se como premissa da própria liberdade dos usuários daquela. A preservação desta liberdade, ao seu tempo, projeta-se como dimensão importante dos direitos da personalidade no ambiente virtual enquanto premissa jurídica e axiológica da realização das potencialidades do indivíduo.
O tema, como se pode observar é recente e, na perspectiva apresentada, não se tem no Brasil jurisprudência construída a respeito. O debate quanto à neutralidade de rede tem sido realizado, mas, até o momento, sob a leitura do direito concorrencial e em esferas administrativas e regulatórias, como o CADE (CONVERGENCIA DIGITAL 2017) - Conselho Administrativo de Defesa Econômica - no caso brasileiro. Isto não é pouco, por certo, mas é imperativo que a leitura jurídica da neutralidade de rede não fique restrita a tal linha, pois, em face da própria complexidade da Internet, se estará construindo soluções que podem ser exitosas em uma de suas perspectivas e deletéria nas demais. A defesa da liberdade, nunca foi vã. Espera-se que continue assim.
Como citar: DIONÍSIO, C. Marco civil da internet, neutralidade de
rede e sua relação com a liberdade como direito da personalidade. R. Tecnol. Soc., Curitiba, v. 14, n.
33, p. 16-30, jul./set. 2018. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/7109>.
Acesso em: XXX.