Artigos Originais

Pensar sobre o passado: o pensamento contrafactual na depressão e na vitimização

Thinking about the past: counterfactual thinking in depression and victimization

Pensar en el pasado: el pensamiento contrafactual en la depresión y victimización

Florença Lúcia Coelho Justino 1
Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento, Brasil
Patrícia Waltz Schelini 2
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Brasil
Juliana Sarantopoulos Faccioli 3
Brasil
Alex Bacadini França 4
UFSCAR, Brasil
Denise Casatti 5
UFSCAR, Brasil
Emanuelle dos Passos Foresto 6
UFSCAR, Brasil

Pensar sobre o passado: o pensamento contrafactual na depressão e na vitimização

Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, vol. 9, núm. 1, pp. 62-75, 2021

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Recepción: 14 Septiembre 2020

Aprobación: 28 Noviembre 2020

Resumo: Esta é uma pesquisa quantitativa, realizada em 2018 em duas cidades do interior de São Paulo, com o objetivo de caracterizar contrafactos de dois grupos de mulheres. O material utilizado no método foi a Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos, que inclui cinco histórias a serem modificadas pelas participantes. Participaram 18 mulheres com indicativos de depressão e 16 vítimas de violência intrafamiliar. Pensamentos produzidos a partir da primeira questão do material foram classificados como: Contrafactuais Espontâneos, entendidos como elaborações que modificavam o enredo; e Livres, constatações sobre o enredo sem modificá-lo. Foram denominados Pensamentos Contrafactuais sob Escolha de Alternativa Pré-Definida as alternativas de modificação escolhidas na terceira questão do material. Constatou-se frequência maior de contrafactuais espontâneos no grupo de vitimizadas. Os pensamentos dos dois grupos foram, em maioria, ascendentes, subtrativos, autorreferentes e relativos às categorias ação e obrigação. Os pensamentos contrafactuais sob escolha de alternativa foram similares entre os grupos.

Palavras-chave: Pensamento, Depressão, Violência.

Abstract: This is a quantitative research. It was carried out in 2018 in two cities in the interior of the state of São Paulo. It aimed to characterize counterfeits from two groups of women. The material used in the method was the Counterfactual Thought Assessment Technique in Adults, which includes five stories to be modified by the participants. 18 women with indications of depression and 16 victims of domestic violence participated. Thoughts produced from the first question of the material were classified as: Spontaneous Counterfactuals, consisting of elaborations that modified the plot; and Free, conclusions drawn from the plot without modifying it. Counterfactual Thoughts under Choice of Predefined Alternative were the modification alternatives chosen in the third question of the material. A higher frequency of spontaneous counterfactuals was found in the victimized group. The thoughts of the two groups were mostly upward, subtractive, self-referential and related to the categories of action and obligation. Counterfactual thoughts under choice of alternative were similar between groups.

Keywords: Thinking, Depression, Violence.

Resumen: Este es un estudio cuantitativo, realizado en 2018 en dos ciudades del interior de São Paulo, con el objetivo de caracterizar contrafactuales de dos grupos de mujeres. El material utilizado en el método fue la Técnica de Evaluación del Pensamiento Contrafactual en Adultos, que incluye cinco historias para ser modificadas por las participantes. Participaron 18 mujeres con signos de depresión y 16 víctimas de violencia intrafamiliar. Los pensamientos producidos a partir de la primera pregunta del material se clasificaron como: Contrafactuales Espontáneos, comprendidos como elaboraciones que modificaban la trama; y Libres, conclusiones sobre la trama sin modificarla. Se denominaron Pensamientos Contrafactuales bajo Elección de Alternativa Predefinida las alternativas de modificación elegidas en la tercera pregunta del material. Se encontró una mayor frecuencia de contrafactuales espontáneos en el grupo de víctimas. Los pensamientos de los dos grupos fueron en su mayoría ascendentes, sustractivos, autorreferentes y relacionados con las categorías acción y obligación. Los pensamientos contrafactuales bajo elección de alternativa fueron similares entre los grupos.

Palabras clave: Pensamiento, Depresión, Violencia.

INTRODUÇÃO

A cognição humana permite que inferências sejam feitas sobre eventos e situações sem que seja necessário experiênciá-los diretamente. Pensar sobre experiências faz com que eventos marcantes no decorrer da vida passem a ter significado quando reavaliados e reconsiderados01.

Ao considerar alternativas à realidade com foco no que já aconteceu, faz-se referência ao pensamento contrafactual (counterfactual thinking). A tradução literal da expressão em língua inglesa counterfactual thinking poderia ser pensamento contrário aos fatos.

Os pensamentos contrafactuais são cognições ou elaborações alternativas aos eventos passados buscando produzir desfechos diferentes daqueles que de fato ocorreram2-4. As cognições sobre eventos passados são ativadas quando emoções negativas são experienciadas e relacionam-se, por exemplo, à violação de expectativas e motivações, e a falhas para atingir objetivos05.

Para construir uma elaboração contrafactual, elementos chave das experiências precisam ser relembrados e alguns deles precisam ser recombinados para que um novo cenário imaginado possa ser construído. Pensar contrafactualmente envolve a consideração de eventos opostos de forma concomitante, a busca de um caminho apropriado para alterar uma ação passada e predizer como a alteração dessa ação poderá afetar outros aspectos do evento considerado. Todo esse processo requer um controle executivo adicional além da simples reformulação do passado06.

As consequências de todo esse processamento dão suporte a comportamentos adaptativos e têm como efeitos: um processamento expansivo e criativo; o aprendizado a partir da consideração de experiências passadas e a formação de intenções para comportamentos futuros4,6; um suporte para o planejamento futuro01; expressão de emoções e atribuições sociais que são centrais para o manejo e regulação do comportamento social do indivíduo. Dessa forma, o pensamento contrafactual se denota como um aspecto fundamental da cognição, dada a sua associação com uma série de processos, ficando firmada sua relevância para um número de fenômenos desenvolvimentais e da saúde04.

Em levantamento bibliográfico07 relativo ao período entre 2005 e 2015, observou-se que diferentes são as técnicas de avaliação do pensamento contrafactual. Dos 99 artigos recuperados, 11 eram artigos teóricos e não mencionaram métodos de avaliação do pensamento contrafactual. Os 88 demais se dividiram em relação a oito técnicas de avaliação desse tipo de cognição, quais sejam cenários hipotéticos (43 artigos), relatos autobiográficos (21 artigos), desempenho em tarefa (12 artigos), listagem de pensamentos (cinco artigos), Spontaneous CT Test (três artigos), CounterfactualThinking for Negative Events Scale - CTNES (um artigo), transcrição e notícia (um artigo cada). Apenas um artigo não mencionou a forma de avaliação do pensamento contrafactual. Observou-se que as técnicas são usadas de forma combinada, ou seja, mais de um tipo de avaliação é utilizado.

As principais formas de avaliação do pensamento contrafactual são: listagem de pensamentos a partir de um evento negativo; solicitar aos participantes que pensem como os eventos poderiam ser diferentes; pensar alto como forma de detectar pensamentos contrafactuais; o uso de cenários, combinado com a avaliação dos sentimentos dos personagens ou combinados com uma avaliação emocional, e a leitura de vinhetas enquanto se responde escalas do tipo Likert ou escalas diferenciais semânticas que acessam respostas emocionais08.

Apesar de essas formas de avaliação serem úteis, há limitações. O uso de questões abertas para evocar pensamentos contrafactuais e o processo de codificação dos dados pode ser bem trabalhoso e exaustivo. E, mesmo que esse método produza dados acerca do número e tipo de pensamentos contrafactuais, não fornece informações sobre a frequência de cada pensamento. A informação sobre a frequência de cada tipo de pensamento é importante, pois indivíduos podem elaborar os mesmos tipos de pensamento, mas podem experienciar resultados diferentes a depender da frequência das elaborações. Questões em formato aberto evocam um pequeno número de elaborações contrafactuais08.

O uso de cenários artificiais e hipotéticos, como a apresentação de histórias, também evoca pensamentos contrafactuais e tem sido o método mais frequente para a avaliação desse tipo de cognição. O uso de cenários minimiza a influência de variáveis intervenientes durante a elaboração de pensamentos contrafactuais09.

Observa-se que, no contexto internacional, há esforços para a elaboração de materiais para acesso ao pensamento contrafactual. Por outro lado, há escassez de pesquisas com a temática do pensamento contrafactual em âmbito nacional, mas os primeiros passos têm sido dados.

A elaboração da Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos10-12 representa um desses passos. A técnica é composta por cinco histórias a partir das quais os participantes deveriam: relatar os pensamentos que vieram à mente enquanto o enredo das histórias era lido (Questão 1), elaborar modificações para o enredo da história a partir de uma solicitação explícita para a consideração de pensamentos contrafactuais (Questão 2) e escolher uma alternativa de modificação para o enredo a partir de uma alternativa pré-definida (Questão 3)10-12.

As histórias foram compostas por relatos que continham elementos que possibilitariam a elaboração de modificações a partir do que era vivido pelos personagens. As duas primeiras foram adaptadas da literatura09, contendo situações difíceis e finais negativos, e as três últimas foram adaptadas de notícias de jornais e revistas, também com descrições de situações difíceis, mas em finais positivos12.

As perguntas propostas após a leitura dos enredos das histórias tinham proposições específicas. A primeira pergunta procurava acessar os pensamentos evocados de forma livre, verificando se haveria a ocorrência dos pensamentos contrafactuais (PCs) sem solicitação explícita; e a segunda solicitava explicitamente a elaboração de modificações a partir do enredo da história e possibilitava o acesso aos PCs10,12.

A terceira pergunta, que fazia referência à escolha de alternativas, tinha o intuito de verificar qual seria o conteúdo da modificação/elaboração contrafactual, de modo que cada uma das perguntas permitiu um tipo de classificação dos pensamentos contrafactuais, quais sejam pensamento contrafactual espontâneo, pensamento contrafactual direcionado e pensamento contrafactual sob escolha de alternativa pré-definida10,12.

Foi acrescentada uma modificação à Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos: os participantes deveriam relatar uma experiência pessoal e elaborar alternativas de modificação para esses eventos antes de responderem às histórias componentes da Técnica13. As temáticas dos relatos pessoais variaram, sendo as mais frequentes os relacionamentos afetivos e situações acadêmicas. Os dados obtidos sugerem uma tendência dos participantes com indicativos de depressão a elaborarem mais pensamentos contrafactuais a partir dos relatos pessoais. Assim, diferentes tipos de atividades para o acesso das elaborações contrafactuais propiciam diferentes frequências de pensamentos contrafactuais e diferentes conteúdos, com os relatos pessoais se destacando13.

Uma meta-análise sobre pensamentos contrafactuais ascendentes e depressão sugeriu que o tipo de medida utilizada para acessar o pensamento contrafactual merece ser levado em consideração, visto que é um importante moderador das elaborações contrafactuais. Estudos que se utilizam de escalas de autorrelato produziram um tamanho do efeito maior do que aqueles estudos que se utilizaram da listagem de pensamentos14.

Considerando os diferentes métodos de avaliação do pensamento contrafactual, o presente estudo teve como objetivo caracterizar as elaborações contrafactuais de dois grupos mulheres com indicativos de depressão e mulheres vítimas de violência intrafamiliar.

MÉTODO

Esta é uma pesquisa quantitativa, realizada em 2018 em duas cidades do interior de São Paulo: Campinas e São Carlos. Participaram mulheres com indicativos de depressão (grupo DEP) e mulheres vítimas de violência intrafamiliar (grupo VIT).

Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: para o grupo DEP, sintomas indicativos de depressão e para o grupo VIT, a ocorrência de pelo menos um episódio de violência intrafamiliar, independente do tipo ou gravidade da violência. Todas as participantes frequentavam instituições de atendimento psicológico no interior do estado de São Paulo.

Todas as participantes responderam os Inventários Beck de Ansiedade (BAI) e Depressão (BDI)14, os quais foram utilizados para avaliar sintomas indicativos de ansiedade e depressão, ambos com evidências de validade e precisão e com normas brasileiras. O BAI é composto por 21 itens que apresentam informações descritivas dos sintomas de ansiedade. Todos os itens são avaliados pelo participante em referência a ele mesmo, considerando a gravidade e frequência de cada item numa escala de 0 a 3 pontos. O BDI é formado por 21 itens referentes a sintomas de depressão, sendo que o participante deve assinalar entre 0 e 3 pontos em razão da frequência de ocorrência dos sintomas.

A avaliação do pensamento contrafactual foi realizada por meio da Técnica para Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos12. Para a elaboração da técnica, foram utilizadas cinco histórias, três adaptadas de jornais e revistas16-18 e duas de cenários hipotéticos adaptados de produções da área9,15, uma vez que a riqueza de detalhes das narrativas poderiam permitir algumas possibilidades de modificação. As cinco histórias são apresentadas nos quadros 1 a 5.

A partir das cinco histórias, as participantes deveriam: listar os pensamentos que haviam ocorrido a partir da leitura da história (questão 1), listar os pensamentos elaborados a partir da solicitação de que mudanças fossem realizadas para alterar o desfecho de cada um dos enredos (questão 2) e escolher uma dentre cinco alternativas pré-definidas de modificação para cada uma das cinco histórias. Os enredos das histórias continham elementos que possibilitavam a alteração de diferentes aspectos que poderiam produzir desfechos diferentes do que estava narrado. A Tabela 1 apresenta as classificações gerais das elaborações produzidas a partir de cada uma das questões.

Os pensamentos contrafactuais espontâneos foram entendidos nesse estudo como elaborações resultantes da questão: Enquanto você lia a estória, ocorreu algum pensamento sobre o que estava lendo? Se sim, escreva-os abaixo, apresentada na Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual.

Quadro 1
HISTÓRIA 1 - A tentação
Uma grande amiga sua, que é um pouco tímida com rapazes, te convida para ir com ela e com um rapaz, o João, a uma festa. Como de costume, você aceita o convite. Ultimamente, sua amiga e João estão passando muito tempo juntos, porém, esta foi a primeira vez que eles combinaram de sair à noite. Antes de saírem, sua amiga te conta que está perdidamente apaixonada por ele. Durante a festa, você percebe que João é muito atraente e, além disso, está interessado em você, e isso te agrada muito. No fim da noite, sem pensar, você passa o seu número de telefone para ele. Quando chega o fim de semana, João telefona e te convida para jantar. Você acaba aceitando o convite. Pouco antes de você sair de casa, sua amiga telefona e conta chorando que João evitou falar com ela durante toda a semana e cancelou a ida ao cinema que haviam combinado antes da festa porque tinha muita coisa para fazer. (Adaptada de Juhos C, Quelhas AC, Senos J. 2003)09.

Quadro 2
HISTÓRIA 2 - No caminho de casa
Ao sair do trabalho, pelo caminho de sempre, Daniel chega muito tarde em casa por conta de uma série de eventos que acontecem em seu caminho. Primeiro, encontra uma árvore muito grande que havia caído e bloqueado a rua que levava até sua casa. Vendo a rua bloqueada, Daniel resolve mudar o caminho e vira a esquina para fugir do trânsito. Ao mudar sua rota, Daniel encontra um amigo indo para um bar e resolve parar para tomar uma cerveja. Após 20 minutos, Daniel volta a seguir o caminho de casa. Quando finalmente está indo para casa, é surpreendido por um ataque de asma e tem que parar por mais tempo até voltar a respirar normalmente. Quando chega em casa, encontra sua filha desesperada dizendo que sua esposa foi levada ao hospital pelos vizinhos porque tinha sofrido um ataque cardíaco há alguns minutos atrás. (Adaptada de McCloy e Byrne R. 2000)15.

Quadro 3
HISTÓRIA 3 - Dilema da montanha
Até o quarto dia de escalada de Luiz e Marcos, estava tudo bem. Os colegas estavam amarrados um ao outro por uma corda, que, em caso de queda, podia ajudar a salvar a vida do parceiro. Após enfrentar avalanches, nevascas, frio intenso e queda da temperatura corporal nos dois primeiros dias, o terceiro dia de escalada amanheceu com o tempo bom e eles conseguiram alcançar o topo da montanha. Só faltava descer e, em um ou dois dias, estariam de volta ao acampamento. Quando desciam de volta, nuvens começaram a se aproximar rapidamente, era uma avalanche enorme se aproximando. Tudo o que enxergavam era um branco sem fim e em menos de uma hora, estavam perdidos. Escureceu, e o plano de descer no mesmo dia não deu certo. Quando voltaram a tentar descer, Luiz caiu e o impacto quebrou sua perna. Marcos devia deixar o amigo para trás, ou morreria junto, mas ele ficou e tentou salvar o amigo. Sentava-se num buraco na neve enquanto esperava que Luiz descesse pela corda. E de corda em corda continuaram a descida. Foi então que Luiz sem perceber caiu em um precipício, numa fenda gigante que dava para um abismo. Ficou preso pela corda que estava amarrada a Marcos e, numa tentativa de se salvar, tentou subir pela corda que o prendia, mas não conseguiu. Marcos começava a se desesperar lá do alto, pensava que se Luiz caísse ele cairia junto. Ficou mais de uma hora sem saber o que fazer e temendo que fosse arrastado pelo amigo. Foi então que Marcos resolveu cortar a corda, deixando Luiz cair no abismo e, por achar que o amigo estava morto, foi embora. Luiz havia sobrevivido, mas com a perna quebrada era impossível subir pela corda. Então tomou uma decisão corajosa: desceu mais para dentro da fenda, na esperança de encontrar outra saída. Ali encontrou uma espécie de rampa, que levava a outra saída. Ao sair, Luiz viu as pegadas deixadas por Marcos e começou uma jornada de quase 3 dias, rastejando até o acampamento, desidratado, sem comida e com a pele queimada do sol e do gelo. Quando conseguiu chegar ao acampamento, Marcos ainda estava lá. Passados 2 anos e 6 cirurgias, voltou a escalar e não parou mais. (Adaptada de Miranda, 2012)16.

Quadro 4
HISTÓRIA 4 – Renascido para viver
“Foi a melhor coisa que aconteceu”, vive dizendo Lauro. Ele não se refere aos prêmios que o tornaram recordista no ciclismo, mas ao câncer que descobriu quando tinha 25 anos. O câncer nos testículos chegou ao pulmão e ao cérebro e o forçou a se aposentar do esporte que já era parte de sua rotina. As chances de recuperação eram de 50% e, as chances de voltar a ser atleta, nulas. Foi então que ele se agarrou a uma ideia: “a dor que sinto é temporária. Pode ser um minuto, uma hora, um dia, um ano e, no final das contas, vai acabar e dar lugar a outra coisa. Já, se eu desistir, durará para sempre”. Seu corpo já era uma máquina – enquanto os melhores maratonistas conseguem usar em média 70 mililitros de oxigênio por segundo a cada quilo de massa corporal, Lauro usava 85. Mas um atleta não é pura genética, sobreviver trouxe a ele o que faltava: disciplina e obstinação. Dois anos depois, Lauro mostrou que não costuma desanimar frente aos desafios e voltou a pedalar. Bastou mais um ano para vencer os 6630 quilômetros da Volta da França, principal prova de ciclismo mundial. De 2000 a 2005, tornou-se o principal vencedor dessa competição. Durante esses anos, outro fantasma pairou na sua vida, além do câncer já superado, um ex-colega afirmou que ele usava hormônio do crescimento, testosterona e uma droga que melhora o transporte de oxigênio. Porém, os exames deram negativo e mesmo após as acusações de doping, Lauro participou da corrida mais importante da França, ganhando o prêmio por sete vezes consecutivas. Em 2005 resolveu se aposentar para se dedicar aos 5 filhos – 3 por inseminação artificial, com o sêmen congelado antes da quimioterapia e dois que vieram naturalmente, apesar de isso ser considerado raro em quem faz esse tipo de tratamento. Em 2009, com 37 anos, disputou a volta da França novamente, ficando em 3º lugar. Só em 2011, quase aos 40, decidiu se aposentar de vez, feliz com o modo como sua carreira começou e terminou. (Adaptada de Miranda, 2012)17

Quadro 5
HISTÓRIA 5 - Celular e elevador salvaram ajudante de obras de desabamento no Rio
“Foi esse telefone que me salvou”, disse o ajudante de obras Alexandre, mostrando o celular que tocou assim que ele saiu do hospital, após receber alta. Alexandre é um dos sobreviventes do desabamento de três edifícios no centro do Rio de Janeiro. “Quando olhei pela janela, comecei a ver o reboco caindo. A primeira coisa que pensei foi em entrar no elevador”, contou o moço, que trabalhava em uma obra no 9º andar do Edifício. “Quando entrei, o elevador despencou. Só pensava na minha família e que iria morrer”, diz. De dentro do elevador, Alexandre conta que ligava para um amigo, que estava fora do prédio. “De dez em dez minutos eu falava com ele”, lembra. “Até que ele me colocou para falar com um dos bombeiros”, diz. O ajudante de obras levou duas horas até ser resgatado, sem nenhum arranhão. “Os bombeiros gritavam: ‘Tem alguém aí?’ E eu respondia, de dentro do elevador: ‘Estou aqui!’”, conta. Ao ouvir a resposta de Alexandre os bombeiros se empenharam ainda mais para tirá-lo de lá. “Quando me acharam, cortaram um ferro na parte de cima do elevador. É diferente usar a passagem dos cabos do elevador como saída, mas eu, que sou magrinho, consegui sair por ali”, recorda. “Quando me pegaram, já me deram uma máscara para eu respirar melhor. Eu estava calmo”, complementa. Alexandre afirmou que não sentiu cheiro de gás em nenhum momento durante o tempo em que participou da obra no 9º andar. “Também não ouvi nenhuma explosão, somente o barulho do prédio caindo”, acrescentou. “É difícil explicar o que aconteceu”, disse. “Eu pedi muito a Deus. Orei muito. Tenho quatro filhos e minha esposa, e agora só quero abraçá-los. Além do meu aniversário, agora tenho que comemorar o dia de ontem, quando nasci de novo”, concluiu com um sorriso. (Adaptada de Tabak, 2012)18.

Tabela 1
Classificações do Pensamento Contrafactual a partir das questões da Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos.
QuestãoClassificação do pensamento
1) Enquanto você lia a história ocorreu algum pensamento sobre o que estava lendo? 2) Imagine se essa situação acontecesse com você. As pessoas após passarem por situações como essas têm, frequentemente, pensamentos sobre como as coisas poderiam ter acontecido de outra maneira. Pense o que poderia ser diferente para que a história tenha um fim diferente. Se você pudesse mudar alguma coisa nessa situação, o que mudaria? 3) Se colocando no lugar da narradora, qual das alternativas seria mais próxima com aquilo que você mudaria? Escolha apenas uma alternativaPensamento contrafactual espontâneo Pensamento contrafactual direcionado Pensamento contrafactual sob escolha de alternativa pré-definida
Faccioli & Schelini10, p.208.

Para esse trabalho, foram analisadas a primeira e a terceira questões da Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos. Os pensamentos ou elaborações produzidas a partir da primeira questão do material foram classificados de duas formas: elaborações que apresentavam modificações de aspectos do enredo que produziram desfechos diferentes foram classificadas como Pensamentos Contrafactuais Espontâneos (PCe).

Elaborações que apresentavam constatações sobre aspectos do enredo e não descreviam modificações foram classificadas como Pensamentos Livres. Foram denominados Pensamento Contrafactual sob Escolha de Alternativa Pré-definida as alternativas de modificação escolhidas por cada uma das participantes na terceira questão do material. As alternativas elaboradas pelas autoras descreviam diferentes tipos de modificações para cada um dos enredos da história12.

Os PCe ainda foram classificados, de acordo com seu conteúdo, em subtipos: direção da comparação (ascendente e descendente), estrutura (aditivo, subtrativo e substitutivo), alvo da modificação (auto e heterorreferente) e o conteúdo baseado nas linhas de falha da realidade (ação/inação, tempo, evento não usual, obrigação)12.

A terceira questão da Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos solicitava que os participantes escolhessem uma dentre cinco alternativas pré-definidas de modificação de aspectos do enredo das histórias. Para esse dado, as frequências para cada alternativa pré-definida foram contabilizadas.

A escolha da alternativa resultante dessa questão do material foi classificada como Pensamento Contrafactual sob escolha de alternativa pré-definida. Os pensamentos contrafactuais sob escolha de alternativa pré-definida referem-se às escolhas dos participantes a partir de alternativas elaboradas e que fazem referência às categorias indicadas como as mais frequentemente mutáveis2-3.

Para a classificação dos pensamentos contrafactuais espontâneos, levou-se em consideração as dimensões de categorização descritas: direção da comparação (ascendente ou descendente); estrutura (aditivo, subtrativo ou substitutivo); alvo da modificação ou conforme denominado por Faccioli13 - referência (autorreferente ou heterorreferente) e aspectos da realidade (ação/inação, obrigação, tempo e evento não usual).

Após as classificações e a contabilização das frequências de elaborações contrafactuais para cada um dos cinco enredos por grupo e da contabilização das frequências de cada alternativa pré-definida, foi conduzido o teste de normalidade dos dados de Kolmorov-Sminorv (KS) para cada uma das variáveis.

O critério para a normalidade dos dados foi valores de significância maiores que 0,05 para todas as variáveis testadas foram obtidos valores menores que 0,05, indicando que os dados não apresentavam uma distribuição normal. Assim, foi usado o teste não paramétrico de Mann-Whitney para a comparação dos PCs dos grupos. Também se considerou para o tamanho do efeito, os critérios de Cohen19.

Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CAAE 0176.0.135.00-11 e CAAE 04658812.7.0000.5504) houve contato com as responsáveis técnicas de duas instituições de atendimento psicológico. A primeira era uma unidade saúde escola e a segunda um centro de atendimento a mulheres vítimas de violência.

As responsáveis técnicas de cada uma das instituições, após autorização prévia das participantes, realizaram indicações de possíveis participantes. Com as indicações em mãos, foi feito um contato com cada uma das indicadas para agendamento da coleta de dados. As entrevistas foram realizadas individualmente e tiveram duração média de uma hora.

Os objetivos da pesquisa eram esclarecidos e em seguida era solicitado que as participantes lessem e assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em seguida, eram apresentados os BAI e BDI e, depois, a Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos. Os enredos e as questões eram lidos em voz alta para as participantes e as respostas registradas. A coleta de dados ocorreu em um período total de seis meses.

RESULTADOS

Características das Participantes

Participaram 34 mulheres, sendo 18 delas com indicativos de depressão (grupo DEP) e 16 delas vítimas de violência intrafamiliar (grupo VIT). A média de idade das participantes foi de 38,5 anos (DP=5,25).

Para o grupo DEP, o escore médio obtido no BAI foi de 23,7 (DP=10,09, Mínimo=8, Máximo=44); e, no BDI, o escore médio obtido foi 25,9 (DP=9, Mínimo=16, Máximo=48). As médias dos escores obtidos em ambas as escalas caracterizando níveis moderados de indicativos de ansiedade e depressão, respectivamente. Das 18 participantes, nenhuma pontuou no escore mínimo (0 a 11), três pontuaram escores moderados (12 a 19), 13 pontuaram escores moderados (20 a 35) e duas pontuaram escores graves (36 a 63).

Os escores médios obtidos pelo grupo VIT foram 17,19 no BAI (DP=4,45, Mínimo=1, Máximo=45) e 17 no BDI (DP=7,7, Mínimo=3, Máximo=30), que sugerem níveis mínimos de ansiedade e de depressão. Quatro participantes obtiveram escores mínimos, seis leves, seis moderados e nenhum grave.

Pensamentos Contrafactuais Espontâneos

Os pensamentos contrafactuais espontâneos se referem às elaborações resultantes da questão: Enquanto você lia a estória, ocorreu algum pensamento sobre o que estava lendo? Se sim, escreva-os abaixo, a primeira da Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos. As elaborações resultantes dessa questão foram analisadas e divididas em Pensamento Espontâneo e Pensamento Contrafactual Espontâneo.

- Pensamento Espontâneo

Esta categoria contemplou elaborações que não descreviam alterações em aspectos dos enredos das histórias, descrevendo apenas constatações, reflexões e comentários sobre o enredo.

O total de elaborações contrafactuais para a categoria Pensamento Espontâneo foi: 35 para a História 1, 30 para a História 2, 28 para a História 3, 32 para a História 4 e 32 para História 5, considerando que uma mesma participante poderia optar por mais de uma história.

- Pensamento Contrafactual Espontâneo

Nesta categoria, contemplou-se elaborações que descreviam modificações em aspectos dos enredos da história, mesmo sem solicitação explícita.

Os totais foram 27 para a História 1, 12 para a História 2, 16 para a História 3, dois para a História 4 e sete para a História 5; observando-se que todas as histórias da Técnica de Avaliação do Pensamento Contrafactual em Adultos propiciaram a elaboração de pensamentos contrafactuais.

As frequências totais de pensamentos contrafactuais espontâneos elaboradas pelo grupo VIT foram 18 para a História 1, sete para a História 2, nove para a História 3, um para a História 4 e sete para a História 5. Para o grupo DEP (depressivas), o total de elaborações contrafactuais foi de nove para a História 1, cinco para a História 2, sete para a História 3, um para a História 4 e nenhum para a História 5. Observa-se que o grupo VIT elaborou mais pensamentos do que o DEP em quatro das cinco histórias que compuseram o material de acesso ao pensamento contrafactual.

Na Tabela 2 são apresentadas por grupo as frequências de pensamentos contrafactuais espontâneos para cada uma das categorias de classificação.

Tabela 2. Pensamentos Contrafactuais Espontâneos por categorias de classificação. Campinas e São Carlos, 2018.

Tabela 2
Pensamentos Contrafactuais Espontâneos por categorias de classificação. Campinas e São Carlos, 2018.
História 1História 2História 3História 4História 5
DEPVITDEPVITDEPVITDEPVITDEPVIT
Tipo de Pensamento
Espontâneo21142010181017151913
Contrafactual91857791107
Direção da comparação
Ascendente91757780002
Descendente0100011105
Estrutura
Aditiva1801130104
Subtrativa81056661001
Substitutiva0000000002
Alvo da modificação
Autorreferente91855791105
Heterorreferente0002000002
Conteúdo das alternativas
Ação/inação91756791107
Obrigação5433560001
Tempo0201000000
Evento não usual0400000000
Nota DEP: participantes com indicativos de depressão; VIT: participantes vítimas de violência intrafamiliar

Os pensamentos contrafactuais espontâneos foram em sua maioria ascendentes, subtrativos, autorreferentes e fizeram referência em termos de conteúdo à categoria ação seguida da categoria obrigação. Os valores de significância obtidos para os conjuntos de dados dos grupos VIT e DEP foram . < 0,05, rejeitando-se a hipótese de normalidade.

Foram observadas diferenças estatisticamente significativas a partir do teste de Mann-Whittney para as Histórias 1 e 5, duas das cinco histórias. Para a História 1 as diferenças foram encontradas nas dimensões estrutura e em uma das linhas de falha da realidade.

O teste U de Mann-Whittney revelou diferenças significativas entre os grupos VIT (n =16) e DEP (n=18) na condição “Aditiva” (U=106, Z= -1,97, .=0,048), da dimensão e estrutura, sendo a maior mediana para o grupo VIT. O tamanho do efeito (r=0,33) encontrada foi mediano. Diferenças também foram encontradas entre os grupos para as linhas de falha da realidade na categoria Evento Não Usual (U=108, Z = -2,22, .=0,026) e tamanho do efeito mediano (r=0,38). A maior mediana para esta categoria também foi obtida pelo grupo VIT.

Para a História 5, foram encontradas diferenças significativas entre os grupos VIT e DEP nos pensamentos contrafactuais espontâneos (U=99, Z=-2,52, .=0,012) com tamanho do efeito (r=0,43) entre médio e grande.

Diferenças estatisticamente significativas também foram encontradas a partir do teste U de Mann- Whittney para a categoria Descendente (U=108, Z=-2,22, .=0,026) com tamanho do efeito médio (r=0,38); para a categoria Aditivo (U = 108, Z= -2,22, . = 0,026) com tamanho do efeito médio (r=0,38).

Na categoria Autorreferente do aspecto alvo da modificação, o teste de Mann-Whitnney revelou diferença estatisticamente significativa entre os grupos DEP e VIT (U=117, Z=-1,89, .=0,058) com tamanho do efeito mediano (r=0,32). Para o aspecto de conteúdo referente às linhas de falha na realidade foram encontradas diferenças significativas para a categoria “Ação” (U=99, Z=-2,52, .=0,012) com tamanho do efeito de mediano a alto (r=0,43).

- Pensamentos contrafactuais sob escolha de alternativas pré-definidas

Os participantes deveriam escolher uma dentre cinco alternativas depois da leitura de cada história: (a) alternativa referente à modificação pela ação/inação, (b) tempo, (c) obrigação, (d) evento não usual e (e) nenhum, quando achassem que nenhuma das modificações pré-definidas se adequassem à sua proposta de modificação. O Quadro 6 apresenta as alternativas para cada uma das histórias com as suas respectivas classificações e a Tabela 3 sumariza a frequência de escolhas de alternativas para cada uma das histórias.

Tabela 3
Alternativas para cada um dos grupos a partir dos cinco enredos. Campinas e São Carlos, 2018.
História 1História 2História 3História 4História 5
DEPVITDEPVITDEPVITDEPVITDEPVIT
Ação/inação430145 1497 13
Obrigação97 11 14000000
Tempo3230 1281130
Evento não usual4351422083
Nenhum0120113620
Nota DEP: participantes com indicativos de depressão; VIT: participantes vítimas de violência intrafamiliar.

Observa-se que, para a História 1, houve uma tendência de ambos os grupos para escolha do aspecto obrigação seguido pelo aspecto ação/inação. Para a História 2, a alternativa frequentemente escolhida por ambos os grupos foi aquela que também fazia referência à obrigação. Para a História 3, ambos os grupos optaram pela alternativa cujo conteúdo se caracterizava pelo aspecto tempo. O aspecto ação/inação foi o mais escolhido para a História 4 seguido pela ausência de escolha de modificações e para a História 5 o aspecto ação/inação foi o mais escolhido seguido pelo evento não usual.

Os dados obtidos a partir da terceira questão da Técnica para Avaliação do Pensamento Contrafactual sugerem uma tendência dos grupos VIT e DEP para a escolha de alternativas com o mesmo conteúdo. Ainda com relação ao conteúdo, foi observada diferença apenas na História 5, na qual o grupo DEP optou com maior frequência pela categoria “Evento Não Usual” e o grupo VIT pela categoria “Ação/Inação”.

O teste U de Mann-Whittney revelou diferenças estatisticamente significativas entre os grupos VIT e DEP em duas das cinco histórias. Para a História 2, diferenças significativas foram encontradas na categoria “Obrigação” (U=98, Z=-2,01, .=0,044) com tamanho do efeito (r=0,34). Na História 5, foram encontradas diferenças estatisticamente significativas na categoria “Ação” (U=83, Z=-2,46, .=0,014) com tamanho do efeito (r=0,42) de médio a grande. Os dados juntamente com a análise dos enredos das histórias sugerem que algumas condições podem ser mais favoráveis para a elaboração de tipos específicos de pensamentos contrafactuais.

O Quadro 6 apresenta as alternativas respondidas na perspectiva das histórias a partir das perguntas e dos pensamentos confractuais.

Quadro 6
Alternativas para cada uma das histórias. Campinas e São Carlos, 2018.
AlternativasClassificação
História 1 – A Tentação
a) Eu não teria ido à festa e nem conheceria o João. b) Eu não teria dado meu número de telefone para o colega da minha amiga. c) João me convidaria para sair antes da minha amiga me contar que estava apaixonada por ele. d) Eu não teria saído com a minha amiga, como sempre fazia, e não teria conhecido o João. e) Nenhuma das anterioresAção/Inação Obrigação Tempo Evento não usual ------
História 2 – No caminho de casa
a) Daniel sairia uma hora antes do trabalho. b) Daniel não pararia para tomar cerveja e chegaria em casa a tempo de levar a esposa para o hospital. c) Daniel resolveria pegar um caminho diferente do habitual naquele dia e não chegaria tarde em casa. d) Daniel não pararia o carro por causa do ataque de asma. e) Nenhuma das anterioresTempo Obrigação Evento não usual Ação/Inação ------
História 3 – Dilema da montanha
a) Mesmo caindo na fenda, Luiz não quebraria a perna e chegaria mais rápido no acampamento. b) Marcos não cortaria a corda que o ligava a Luiz e acabaria caindo junto com o amigo. c) Marcos não ficaria para salvar Luiz quando ele quebrasse a perna e, assim, Luiz não conseguiria sobreviver. d) A avalanche aconteceria logo no primeiro dia e os dois amigos desistiriam de escalar o pico. e) Nenhuma das anterioresEvento não usual Ação/Inação Obrigação Tempo ------
História 4- Renascido para viver
a) O ex-colega de Lauro não teria feito a denúncia de doping e ele não teria que enfrentar mais esse problema na sua vida. b) Logo no início da sua carreira Lauro descobriria o câncer e não conseguiria enfrentar a doença com tanta determinação. c) Os exames de doping teriam dado positivo e, desobedecendo às ordens do comitê esportivo, Lauro continuaria a correr. d) Diferentemente do que costumava acontecer na vida de Lauro, ele teria resolvido desistir do esporte e não teria participado de corridas na França. e) Nenhuma das anterioresAção/Inação Tempo Obrigação Evento não usual ------
História 5 – Celular e elevador salvaram ajudante de obras de desabamento no Rio
a) Alexandre chegaria ao prédio 10 minutos depois do desabamento e não sofreria o acidente. b) Alguém teria visto, conferido e corrigido o erro na construção e o desabamento não teria ocorrido. c) Os bombeiros, mesmo ouvindo os gritos vindos do elevador, ignorariam o chamado de Alexandre. d) Apesar de inúmeros erros na obra, o prédio não desabaria. e) Nenhuma das anterioresTempo Ação/Inação Obrigação Evento não usual ------

DISCUSSÃO

A frequência maior de elaborações contrafactuais espontâneas foi realizada pelas mulheres vitimizadas, resultado que vai de encontro aos achados de outro estudo18, que observou maior frequência desta elaboração em pessoas sem indicativos de depressão. No entanto, quando a consideração de alternativas contrafactuais faz referência a situações negativas experienciadas pelos próprios indivíduos, verifica-se tendência de participantes com indicativos de depressão para a elaboração de uma quantidade maior de pensamentos contrafactuais quando comparados com aqueles sem indicativos de depressão.

Noutra investigação04 observou-se que a solicitação explícita para a elaboração desse tipo de cognição facilita o acesso a alternativas contrafactuais, o que sugere que o pensamento contrafactual espontâneo foi prevalente em ambos os grupos mesmo sem a solicitação direta para a sua elaboração.

Os pensamentos contrafactuais espontâneos, corroborando outros trabalhos, foram em sua maioria ascendentes9,11,18 subtrativos, autorreferentes11e fizeram referência em termos de conteúdo à categoria ação seguida da categoria obrigação. Pensamentos contrafactuais são cognições sobre ações e causas2-3. Esta afirmação justifica a predominância da categoria ação/inação quando se considera o conteúdo das alternativas contrafactuais.

Foram observadas diferenças estatisticamente significativas para as Histórias 1 e 5. Para a História 1, as diferenças foram encontradas na condição Aditiva, da dimensão estrutura, sendo a maior mediana para o grupo de vitimizadas. Diferenças também foram encontradas entre os grupos para as linhas de falha da realidade na categoria Evento Não Usual, sendo a maior mediana também obtida pelo grupo de vitimizadas.

Para a História 5, foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos. É importante salientar que, para a História 5, as participantes do grupo depressivas (DEP) não elaboraram pensamentos contrafactuais espontâneos, apenas pensamentos espontâneos tais como: Sortudo, cara de sorte. Os anjos estavam com ele. (P17 – DEP); O telefone teve utilidade. Ele ter mantido a calma e ter tido a iniciativa de ligar para alguém para pedir socorro. (P19 – DEP) e Alexandre acreditou que poderia ser salvo. (P20 – DEP).

Nota-se que as elaborações apresentaram uma tendência para constatações, reflexões e inclusive relato de sentimentos de apreensão em relação a situações. Portanto, diante de um enredo com desfecho positivo, as participantes do grupo DEP apresentaram dificuldades de propor alternativas contrafactuais para diferentes aspectos do enredo, evidenciando que os indivíduos com depressão apresentam um padrão de crenças de que tem pouco controle sobre os acontecimentos.

Em contrapartida, exemplos das elaborações do grupo vitimizadas (VIT) são: Eu iria pela escada. (P9 – VIT); O prédio poderia não ter desabado se responsáveis por ele percebessem algo errado antes. (P14 – VIT); Se eu tivesse entrado seria difícil de sair porque ele era magrinho e eu não. (P15 – VIT). Observa-se que as participantes do grupo VIT levaram em consideração aspectos do enredo que poderiam ter sido alterados, mesmo que em algumas elaborações o desfecho tenha sido alterado para um pior do que de fato aconteceu.

Diferenças estatisticamente significativas entre os grupos também foram encontradas para as categorias Descendente, Aditivo e Autorreferente. Para o aspecto de conteúdo referente às linhas de falha na realidade foram encontradas diferenças significativas para a categoria Ação. Os exemplos de elaborações do grupo vitimizadas (VIT) ilustram a direção e a variedade de aspectos considerados, mesmo o enredo tendo um desfecho bem sucedido: Não entraria no elevador. No desespero, eu não sei o que ia fazer. Nem sei se eu sairia, porque ele era magrinho. Acho que perderia a força. (P2); Bombeiros me resgatariam mais rápido (P3); Não teria ido ao trabalho aquele dia (P8).

Os pensamentos contrafactuais sob escolha de alternativa pré-definida nesse estudo são referentes às escolhas dos participantes de uma dentre cinco alternativas para as histórias: alternativa representativa de ação/inação, tempo, obrigação, evento não usual e nenhum, quando achassem que nenhuma das modificações pré-definidas se adequassem à sua proposta de modificação.

Na História 1, houve uma tendência de ambos os grupos para escolha do aspecto obrigação, seguido pelo aspecto ação/inação. Para a História 2, a alternativa frequentemente escolhida por ambos os grupos foi a referente à obrigação. Para a História 3, ambos os grupos optaram pela alternativa relacionado ao tempo. O aspecto ação/inação foi o mais escolhido para a História 4 seguido pela ausência de escolha de modificações e para a História 5 o aspecto ação/inação foi o mais escolhido seguido pelo evento não usual.

Os dados sugerem uma tendência dos dois grupos para a escolha de alternativas com o mesmo conteúdo, com diferença apenas na História 5, na qual o grupo de depressivas optou com maior frequência pela categoria Evento Não Usual e o grupo vitimizadas pela categoria Ação/Inação. As alterações em eventos que saem da rotina indiretamente se relacionam com alterações em aspectos heterorreferentes do enredo, ou seja, com a alteração de aspectos que não necessariamente estão sob o controle do próprio indivíduo.

Quando se consideram representações mentais do que poderia ter sido, as ações são facilmente modificadas uma vez que apagar uma ação desse tipo de representação mental requer menos esforço cognitivo do que adicionar outra a partir de diversas possibilidades.. Em adição, quando se pensa em uma ação, as pessoas mantêm em mente a ação e a negação dessa ação, portanto, uma ação leva a possibilidades duais. Alternativas contrafactuais são elaboradas mais facilmente a partir de mais de uma possibilidade e não a partir de uma única03.

As alternativas contrafactuais tendem a ser imaginadas com mais frequência para eventos e situações que estão sob controle dos indivíduos. No entanto, a partir dos dados, nota-se que esta afirmação se aplicou apenas ao grupo vitimizadas e não ao grupo depressivas. A dificuldade do grupo depressivas em imaginar alternativas contrafactuais para eventos que estejam sob o seu próprio controle reflete uma característica relacionada ao quadro de depressão em que os indivíduos experienciam sentimentos de desesperança e de desamparo diante das adversidades. A escolha do conteúdo que sai da normalidade (evento não usual) para modificação também sugere o excesso de contemplação de aspectos negativos por parte de pessoas com indicativos de depressão a partir das situações vividas e imaginadas20, além disso, aquelas com indicativos de depressão, têm menor motivação para imaginar como as situações podem ser melhoradas20-21.

CONCLUSÃO

Na classificação dos pensamentos contrafactuais espontâneos, os dados obtidos sugerem que há uma tendência dos grupos para considerar conteúdos similares quando consideram alternativas contrafactuais. Observou-se, portanto, que os pensamentos foram, em sua maioria, ascendentes, subtrativos, autorreferentes e fizeram referência em termos de conteúdo à categoria ação seguida da categoria obrigação.

Os pensamentos resultantes da escolha de alternativas pré-definidas também apresentaram uma tendência para conteúdos similares entre os grupos com diferença entre os grupos sendo observada apenas na História 5.

Quando a frequência de elaborações é considerada, tanto a questão que resultava em pensamentos espontâneos quanto a que resultava em pensamentos sob escolha de alternativa pré-definida possibilitaram a ativação dos pensamentos contrafactuais. O grupo de vitimizadas apresentou maior frequência de pensamentos contrafactuais espontâneos em relação ao grupo depressivas, o que sugere que a depressão influencia no processo cognitivo de consideração de alternativas para eventos passados.

Os métodos para avaliação do pensamento contrafactual, apesar de levarem a uma variedade de resultados, são escolhidos na maioria das vezes a partir dos interesses do pesquisador. Apesar da dificuldade de generalizar os resultados diante de sua variedade, como é o caso do presente estudo, considera-se que essas pesquisas têm possibilitado um primeiro olhar para esse tipo de cognições dentro do contexto brasileiro e podem contribuir sobremaneira para o avanço da área.

O pensamento contrafactual pode ser uma via a partir da qual diferentes fenômenos psicológicos e cognitivos podem ser observados. Para tanto, limitações deste estudo, para além da baixa quantidade de participantes poderiam ser superadas em outras pesquisas, dentre elas aquelas que incluíssem: o acesso ao pensamento contrafactual por meio de outras técnicas, como escalas e relato pessoal, em que o participante descreveria uma situação ocorrida e elaboraria os pensamentos contrafactuais; e a associação entre a elaboração de contrafactos e capacidades cognitivas como a de memória de trabalho.

Notas de autor

1 Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica Comportamental. Mestre e Doutora em Psicologia. Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento, Campinas, SP
2 Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Professora Associada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), São Carlos, SP
3 Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. São Carlos, SP
4 Publicitário. Especialista em Gestão Estratégica de Negócios. Mestre e Doutor em Psicologia. Pós Doutorando em Métodos Quantitativos Aplicados à Psicologia pela UFSCAR, São Carlos
5 Jornalista. Mestre em Ciências da Comunicação. Doutoranda em Psicologia pela UFSCAR, São Carlos
6 Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela UFSCAR, São Carlos, SP
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