Relato de Experiência
Saúde mental de crianças e adolescentes na atenção primária durante pandemia de COVID 19: um relato de experiência
Mental health of children and adolescents in primary care during the COVID-19 pandemic: an experience report
Salud mental de niños y adolescentes en atención primaria durante la pandemia de COVID 19: un informe de experiencia
Saúde mental de crianças e adolescentes na atenção primária durante pandemia de COVID 19: um relato de experiência
Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, vol. 2, Sup., pp. 832-842, 2021
Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Recepción: 24 Septiembre 2020
Aprobación: 06 Marzo 2021
Resumo: Este é um relato de experiência com base teórica na Atenção Psicossocial, desenvolvidas numa região de Belo Horizonte - MG, durante o período de março a julho de 2020, com o objetivo de apresentar as estratégias de cuidado a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso e suas famílias, no período da pandemia de COVID-19. Dentre as ações desenvolvidas pela equipe, destaca-se a busca pelos usuários e familiares por diferentes meios de acesso, como WhatsApp®, videochamadas, teleatendimento, visitas domiciliares e articulações territoriais. As estratégias utilizadas foram apresentadas a partir dos conceitos-ferramentas: responsabilização, território, acolhimento, projeto de cuidado e rede intersetorial. Atualmente, os grupos online em versão business conta com a participação de aproximadamente 90 familiares. Nos quatro meses de utilização da estratégia, foi possível observar que as famílias têm aderido e utilizado o grupo para apresentar dúvidas, tais como: desfralde de suas crianças, sensibilidade oral para escovar os dentes, agitação e agressividade, baixa atenção, aumento compulsivo na alimentação e problemas para dormir. Por sua vez, foram observadas dificuldades de articulações intersetoriais e desenvolvimento de ações voltadas para o adolescente.
Palavras-chave: Infecções por coronavírus, Assistência à saúde mental, Criança, Adolescente.
Abstract: This is an experience report with a theoretical basis in Psychosocial Care, developed in a region of Belo Horizonte, in the state of Minas Gerais, from March to July 202. It aimed to present care strategies for children and adolescents in intense psychological distress and their families during the COVID-19 pandemic. Among the actions developed by the team, users and family members search for different means of access, such as WhatsApp®, video calls, teleservice, home visits and territorial articulations. The strategies used were presented from the tool-concepts: accountability, territory, reception, care project and intersectoral network. Currently, online groups in business version have approximately 90 family members participating. In the four months of using the strategy, it was possible to observe that families have joined and used the group to express doubts, such as: potty-training their children, oral sensitivity to brushing their teeth, agitation and aggressiveness, low attention, compulsive increase in feeding and trouble sleeping. In turn, difficulties in intersectorial articulation and the development of actions aimed at adolescents were observed.
Keywords: Coronavirus infections, Mental health assistance, Child, Adolescent.
Resumen: Este es un informe de experiencia con base teórica en Atención Psicosocial, desarrollado en una región de Belo Horizonte - MG, durante el período de marzo a julio de 2020, con el objetivo de presentar las estrategias de atención a niños y adolescentes en intenso sufrimiento psíquico y a sus familias, durante el período de la pandemia de COVID-19. Entre las acciones desarrolladas por el equipo está la búsqueda de usuarios y familias a través de diferentes medios de acceso, como WhatsApp®, videollamadas, llamadas telefónicas, visitas a domicilio y articulaciones territoriales. Las estrategias utilizadas se presentaron a partir de los conceptos-herramienta: responsabilización, territorio, acogida, proyecto de cuidado y red intersectorial. Actualmente, los grupos online en versión business, cuentan con la participación de unos 90 miembros de la familia. En los cuatro meses de uso de la estrategia, se pudo observar que las familias se han adherido y utilizado el grupo para presentar dudas, tales como: la quita de pañales de sus hijos, sensibilidad bucal para cepillarse los dientes, agitación y agresividad, baja capacidad de atención, aumento compulsivo de la alimentación y problemas de sueño. A su vez, se observaron dificultades en las articulaciones intersectoriales y en el desarrollo de acciones dirigidas al adolescente.
Palabras clave: Infecciones por coronavirus, Atención a la salud mental, Niño, Adolescente.
INTRODUÇÃO
Em 2020, o mundo foi acometido por um vírus (coronavírus) causador da doença denominada COVID-19, com uma alta taxa de letalidade. Acredita-se que sua primeira aparição tenha sido em Wuhan, na China, no final do ano de 2019. No entanto, em decorrência da rápida transmissão em março de 2020, a COVID-19 passou a ser classificada como uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde01.
A COVID-19 apresenta variabilidade quanto à manifestação dos sintomas, os quais podem expressar-se desde infecções assintomáticas até quadros graves ligados ao sistema respiratório01. Com isso, algumas medidas de prevenção e proteção passaram a ser implementadas pelos governantes nos diferentes níveis: municipal, estadual, federal e mundial; tais como, fechamento de serviços não essenciais, distanciamento social, orientação a frequente higienização das mãos, limpeza e desinfecção de ambientes, o uso de máscaras e cumprimento de etiqueta respiratória01.
Além dos impactos biológicos, os psicológicos e emocionais neste período também ficam em evidência, e podem emergir em decorrência das incertezas do momento, do medo, das informações imprecisas referente aos números de infectados, da escassez de testes e recursos de proteção e da necessidade de isolamento2-3. Dentre os quadros de sofrimento psíquico mais comuns, destacam-se: a ansiedade, estresse, prejuízos no sono, fadiga e raiva, que podem se intensificar e cronificar em transtornos depressivos e ansiosos, provocando crises de pânico ou transtorno de estresse pós-traumático2-3.
Além disso, considera-se que alguns grupos, como as crianças e adolescentes, estão mais expostos às situações de violência, abandono e exclusão em decorrência de contextos de maior vulnerabilidade social, podendo ser considerados em maior risco para desenvolverem problemas de saúde mental04, ainda que a possibilidade de contágio nesta faixa etária seja menor do que em outros grupos05.
As crianças e adolescentes que já apresentavam demandas relacionadas à saúde mental antes da pandemia podem apresentar uma intensificação do sofrimento durante esse período. Isso ocorre devido às mudanças bruscas de rotina, ruptura com contextos importantes para a criança, como a escola, familiares, amigos e atendimentos em saúde, além de situações de opressão e desigualdade5-6.
Diante desse cenário e das demandas emergentes, é fundamental a reestruturação das práticas em saúde, pois não existe uma previsibilidade quanto aos impactos na saúde mental ou comportamento populacional, e ainda não existem direcionamentos de atuação na assistência em situações desse tipo. Diante disso, evidencia-se a necessidade de investimentos em pesquisas e identificação de estratégias em saúde mental durante períodos de surtos infecciosos02. Especificamente quando se trata do cuidado em saúde mental infanto-juvenil, é fundamental repensá-lo para o contexto da pandemia da COVID-19 a partir das políticas que conduzem as práticas nesse campo.
A Rede de Atenção Psicossocial em Saúde Mental (RAPS) no Brasil é fundamentada pelos princípios da Atenção Psicossocial (AP), que surge como proposta paradigmática de ruptura ao modelo asilar de atenção à loucura, possibilitando um novo olhar e compreensão sobre a experiência humana no sofrimento psíquico, retirando o enfoque restrito à patologia para um englobamento de possibilidades e complexidades relacionadas ao próprio processo da vida07.
Sob a perspectiva de diferentes aportes teóricos, influências e investimentos a AP foi se constituindo no Brasil e orientando a política pública de saúde mental do Ministério da Saúde. Considera-se a AP como “[…] um campo de saberes e práticas atravessado por um ideário ético-político substitutivo ao da psiquiatria hospitalocêntrica e médico centrado, subordinada ideologicamente, mas ainda dominante nas práticas cotidianas”08.
No âmbito da infância e adolescência, as políticas de saúde mental que regem o cuidado destinado a esse público têm sido propostas estabelecidas através um modelo institucional fundamentado nos princípios e diretrizes do SUS, operacionalizado principalmente por meio da RAPS, a partir das proposições pensadas para adultos. Além disso, cabe refletir que, para além de pontos de atenção, a RAPS preconiza dimensões que dizem respeito ao acesso, ao vínculo e à articulação da rede de cuidados. Nesse sentido, os espaços e equipamento precisam ser produtores de relações sociais, alicerçadas em princípios e valores que tenham como horizonte a transformação social09.
Implementar um modelo de assistência para a infância, pautado nos princípios e diretrizes da AP, ainda apresenta diversas fragilidades, uma vez que o investimento e os esforços que respondam a toda especificidade necessária são recentes. Considera-se que é através dessa transformação (viabilizar o acesso, vínculo, articulação da rede e corresponsabilização pelo cuidado) que começará a ser possível vislumbrar um modelo de assistência, de forma que pilares de sustentação dessa transformação como - o exercício de direitos de cidadania e a inclusão social- possam realmente ser vivenciados pelas crianças e adolescentes09.
Em 2014, o Ministério da Saúde lançou um documento intitulado “Atenção Psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: tecendo redes para garantir o cuidado”. Este aponta uma série de diretrizes para a construção do cuidado em saúde mental infanto-juvenil. Além disso, ressalta aspectos específicos no que tange o cuidado a essa população, como a garantia à saúde como direito fundamental, a constituição da RAPS, o papel da educação, a problemática do uso de álcool e outras drogas, a proteção social integral, entre outros10.
A partir da implementação das políticas de cuidado em saúde mental a crianças e adolescentes nos diferentes contextos brasileiros, é possível delinear particularidades relacionadas às características histórico-culturais de cada região no processo de cuidado em saúde mental11.
Minas Gerais destaca-se pelas construções políticas engajadas por movimentos sociais. Especificamente em Belo Horizonte, é possível identificar movimentos, determinações de ações locais e serviços que ocorrem unicamente na capital mineira. Essas estruturações surgem de importantes movimentos de resistência e constante crítica pelos direitos humanos, desenvolvida pelos profissionais, familiares e usuários, promovendo, desta maneira, uma prática emancipatória e politicamente envolvida11.
Neste contexto, foi criado em Belo Horizonte a Equipe Complementar (EC), que recebe este nome por atuar em complementariedade à Equipe de Saúde da Família, na Atenção Primária. Assim, cada regional da capital mineira possui uma sede da EC, totalizando 9 equipes que assistem crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso, a partir de estratégias grupais ou individuais, bem como intervenções em conjunto com a equipe da saúde da família, de crianças de 0 a 3 anos com sinais de sofrimento psíquico e suas famílias. As EC são compostas por psiquiatras, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos.
Durante o período de pandemia, as EC de Belo Horizonte, seguindo as determinações municipais n.º009/202012, suspenderam atendimentos presenciais de crianças e adolescentes que apresentavam algum tipo de sofrimento psíquico intenso, sendo autorizados somente em casos específicos como: risco de vida ou autolesão pelas criança e adolescente e/ou ao outro, violência intrafamiliar, uso prejudicial de álcool e outras drogas, egressos do serviço de urgência, depressão grave e persistência dos sintomas de sofrimento psíquico com impacto significativo no cotidiano e intervenção à tempo (modalidade de cuidado que atende crianças até 3 anos com sinais de sofrimento psíquico).
Foi normatizado, ainda, que mães, pais e/ou responsáveis devem ser acompanhados pelos profissionais, preferencialmente por telefone, além de favorecer o fornecimento de medicamentos adequado, estando disponíveis às famílias e revendo, sempre que necessário, as condutas. Com isso, houve a necessidade de uma total reorganização das dinâmicas do trabalho das equipes.
Diante disso, este estudo tem como objetivo apresentar as estratégias de cuidado a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso e suas famílias, no período da pandemia de COVID-19.
MÉTODO
Este é um relato de experiência de cuidado em saúde mental infantojuvenil com base teórica na Atenção Psicossocial(AP)5,7, desenvolvidas na EC de uma região de Belo Horizonte, durante o período de março a julho de 2020.
Os dados para este relato de experiência foram obtidos através de discussões e construções de alternativas em equipe, retorno dos usuários e familiares, através de aplicativos de trocas de mensagens online, videochamadas, teleatendimentos, e discussões com outros pontos da RAPS.
RESULTADOS
Atualmente, a EC foco deste relato, é referência de 17 Unidades Básicas de Saúde, sendo composta por duas fonoaudiólogas e duas terapeutas ocupacionais. Apresenta uma dinâmica de trabalho que contemplava, antes da pandemia, atendimentos individuais multiprofissionais, em grupo e de acompanhamento familiar, além de articulações intersetoriais de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico intenso. No contexto atual de pandemia, a equipe reformulou suas estratégias de cuidado para continuar promovendo assistência durante este período atípico.
As crianças e adolescentes acompanhadas pela EC apresentam quadros de sofrimento psíquico intenso, em sua grande maioria casos de autismo, psicose, depressão, ansiedade, mas também transtornos não especificados. Além disso, a equipe promove um cuidado também às famílias desses usuários. Atualmente a EC é referência para cerca de 200 famílias de crianças e adolescentes.
Dentre as ações realizadas pela EC durante o período de pandemia destacam-se: 1) as articulações online por meio de aplicativo de troca de mensagens virtuais WhatsApp® em sua versão business, videochamadas, e teleatendimentos, como novas possibilidades de acompanhamento; 2) Promoção de encontros online entre os familiares em territórios coletivos virtuais, como o dia da Luta Antimanicomial 18 de maio; 3) Visitas domiciliares com entrega de Kits de estimulação, promovendo acolhimento e orientações em saúde; 4) Articulações com outros pontos da RAPS como os Centros de Saúde, serviços de urgência psiquiátrica e Arte da Saúde; 5) Reuniões na modalidade virtual entre a equipe, outros serviços e setores.
DISCUSSÃO
As ações serão apresentadas e articuladas com os conceitos-ferramentas da AP, a saber: responsabilização, território, acolhimento, projeto de cuidado e a diversidade de estratégias e rede intersetorial, porém enfatiza-se que esses conceitos, na prática, muitas vezes apresentaram-se de maneira simultânea e se sobrepuseram em relação ao tempo de desenvolvimento (Figura 1).
Em um primeiro momento, as profissionais tiveram dificuldade com o planejamento das ações em decorrência da não previsibilidade das suspensões dos atendimentos. Com isso, a equipe organizou-se, a partir das demandas consideradas mais urgentes no território, seja pelo fato da maior vulnerabilidade social, situação pandêmica ou gravidade, visando o levantamento dos casos prioritários e a elaboração de estratégias de cuidado ao público13.
Com isso, foram realizados os contatos e a busca ativa aos familiares das crianças e adolescentes no território. A princípio, as tentativas de busca foram por telefone e por meio da disponibilização do contato do serviço às famílias na modalidade de teleatendimento. No entanto, a procura pelos responsáveis foi abaixo do esperado. Neste mesmo período, foi realizada também uma tentativa frustrada de contato e envio de materiais por e-mail, que apresentavam possibilidades de atividades a serem realizadas com as crianças e adolescentes no ambiente domiciliar a um baixo custo e/ou ainda que pudessem ser realizadas em ambientes restritos, porém muitos e-mails retornaram e os familiares pareciam não acessar com frequência este recurso.

A busca ativa e a necessidade de construir novas possibilidades de escutas das demandas dos usuários, que não as usuais, representam um dos direcionadores da Atenção Psicossocial, e partem do princípio de responsabilização dos profissionais. Segundo esse princípio, cabe ao profissional da saúde mental ter um papel ativo na promoção e criação de recursos que permitam a assumir todo o alcance social daquele território e demanda de uma região13-14.
Quando os profissionais conseguiam contato com as famílias eram possíveis, por meio dessas diferentes modalidades de contato, a realização de orientações específicas direcionadas à criança ou adolescente, além de acolhimento do sofrimento das crianças, adolescentes e da própria família promovendo uma escuta qualificada e contextualizada para o momento. Assim, a hipótese construída a partir da “não procura” do serviço pelos familiares não estaria correlacionada a falta de demandas, mas principalmente à dificuldade de acesso e a não compreensão de que seria possível a manutenção do cuidado mesmo diante da pandemia.
Além disso, a pandemia apresentou-se como um contexto novo para todos, profissionais e usuários, bem como, o uso de tecnologia para intervenções em saúde, principalmente para este público, que vive em contexto marcado por diversos tipos de vulnerabilidades e não acessos. Com isso, a equipe se viu diante da necessidade de se apropriar de outros modos de aproximação e cuidado aos usuários e também de fomentar a informação e instrumentalização das famílias sobre novas modalidades de busca e cuidado.
A partir de um primeiro mapeamento e contato com os familiares responsáveis pelas crianças e adolescentes, identificou-se que estes tinham acesso a um aplicativo de troca de mensagens e comunicação online, WhatsApp.. Diante disso, as profissionais realizaram um grupo de mensagens online por meio do aplicativo em sua versão “business”. Em equipe, foi discutida a melhor forma desse modo de acesso aos usuários, como as regras e organização do grupo via aplicativo, considerando a preservação dos dados pessoais e horários de trabalho e descanso dos profissionais13.
A sugestão do vídeo, tanto para a apresentação das regras quanto das respostas as dúvidas dos familiares, foram as profissionais de fonoaudiologia que sugeriram que tivessem outros elementos da comunicação presentes para diminuição de prejuízos na interpretação das informações, além de proporcionar a continuidade do vínculo, considerando que existiam profissionais novas na equipe. O “vínculo” é uma variável importante na construção da prática clínica, pois possibilita além de uma melhor eficácia das intervenções em saúde, a instrumentalização do usuário, possibilitando um maior controle social sobre o cuidado ofertado14.
Contudo, logo foi perceptível um problema pragmático com esta tentativa já que os dados de internet de alguns familiares são limitados, não sendo possível baixar os vídeos. Com isso, a equipe passou a transformar os vídeos em áudio formato MP3 de modo a ser o mais acessível e democrático o acesso às informações.
No contexto da AP, o usuário deve ser sempre o centro da atenção, o Projeto Terapêutico Individual (PTI) é sempre singularizado e considera o contexto neste cálculo. Com isso, cabe a equipe considerar as especificidades de cada usuário e contexto e promover subjetivações de maneira autônoma, proporcionando “lugares” de articulação desse particular e singular e, com isso, viabilizando possibilidades terapêuticas e projetos de cuidado que sejam condizentes com as realidades locais14.
As ligações telefônicas não pararam de ocorrer, elas aconteciam de maneira concomitante a oferta da possibilidade de grupos online, além da própria correspondência direta pelo aplicativo, sendo também mais uma possibilidade de contato.
A forma com que um serviço se organiza para receber uma demanda e articular as possibilidades em rede pode ser um facilitador, dificultador ou impeditivo do acesso do usuário14. Esse hiato entre a demanda e o potencial de cuidador da equipe pode ser permeado por inúmeros impeditivos burocráticos e de acesso. Portanto, existe um entrelaçamento entre os conceitos de território, responsabilização e a própria qualidade do serviço e que necessariamente atravessam as possibilidades de acesso dos usuários ao serviço de saúde mental14. Com isso, oferecer diferentes formas de contato entre a equipe e os usuários permite o acolhimento e o cuidado na sua diversidade.
Outra ação que se manteve no âmbito do acolhimento, porém teve sua prática reformulada foi as “intervenções a tempo”, as quais são direcionadas a crianças de 0 a 3 anos que demonstravam sinais precoces de sofrimento psíquico, como uma baixa interação mãe-bebê, atrasos na linguagem e pouca exploração do ambiente. Neste momento de pandemia as entrevistas iniciais com as famílias destas crianças, que antes eram realizadas somente de forma presencial, passaram a ser realizadas também via teleatendimento e/ou chamadas de vídeo, com o intuito de agilizar o acompanhamento do desenvolvimento, além de diminuir o risco de exposição ao vírus durante este período com idas ao serviço. Os responsáveis eram solicitados a enviar vídeos da criança para complementar a avaliação e auxiliar nas orientações.
O acolhimento é regido pela lógica da tecnologia leve que se caracteriza pelas relações do tipo produção de vínculo, autonomização ou ainda de gerenciamento que passam por uma valorização da subjetividade e cuidado humanizado e se dá no encontro desses dois indivíduos, usuário e profissional da saúde, nesse “espaço intercessor”, e fundamenta-se na dimensão das relações e do território e diz de uma possibilidade de acesso. A equipe avalia que alguns desses recursos utilizados em tempos de pandemia devem se estender após esse período por terem contribuído de maneira direta com a prática14.
A equipe identificou ainda, que com essas diferentes tentativas de aproximação foi possível um melhor acolhimento e cuidado, tanto das crianças e adolescentes acompanhadas quanto dos responsáveis. O cuidar está justamente neste encontro entre a demanda do usuário e um trabalhador preparado14. A acolhida acontece na micropolítica do trabalho e está ligada as possibilidades de acesso e a plasticidade do modelo de atenção. A esta flexibilização em relação às mudanças, adaptação de ordem técnica e a associação de diversas atividades, bem como das incertezas de recursos e inconstâncias socioeconômica e cultural é que se consegue se reinventar para a assistência à diversidade de problemas em saúde.
Quanto a proposição dos grupos online em versão business, desenvolvido pela EC, atualmente conta com aproximadamente 90 familiares participando. Durante os quatro meses de utilização dessa estratégia, foi possível observar que as famílias têm aderido e utilizado o grupo para apresentar dúvidas, tais como relacionadas ao desfralde de suas crianças, sensibilidade oral para escovar os dentes, agitação e agressividade, baixa atenção, aumento compulsivo na alimentação e problemas para dormir tiveram aparições constantes, resultados esses semelhantes com o material desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (CEPEDES/ FIOCRUZ)05.
Com isso, a EC apresentou como eixo direcionador no grupo online orientações que sensibilizassem os responsáveis em relação à importância da comunicação e da valorização da subjetividade e desejo dessas crianças e adolescentes, além de sugestão de estratégias práticas de estimulações e manejos. Ou seja, a EC direcionou sua prática pela valorização da subjetividade com o objetivo de promoção a autonomia e cidadania, pilares norteadores da AP14.
No entanto, por volta de 10 responsáveis optaram em não continuar no grupo de mensagens online por motivos diversos, como não conseguir acompanhar as mensagens, não ter tempo para redes sociais, incompatibilidades no aparelho de celular, como pouco espaço de memória e celular aquém da possibilidade de baixar aplicativos. Nesses casos, foram mantidas outras formas de cuidado, como as ligações e as visitas domiciliares, além de outros tipos de articulação na rede, como o acionamento e acompanhamento pela Equipe de Saúde da Família na Unidade Básica de Saúde (UBS).
Em relação aos responsáveis e usuários que ainda permaneciam inacessíveis pelo serviço, foram divididos em dois grupos, a) os que não tinham o contato atualizado no sistema de gestão da prefeitura, impedindo a comunicação dos profissionais, e b) os que vivenciam um contexto de maior vulnerabilidade, sem recursos para seguir as orientações.
Seguindo então o princípio de responsabilização e cuidado em rede, a EC realizou a elaboração de uma lista das crianças e adolescentes que se encontravam na primeira situação e passou a entrar em contato com a UBS para verificar a possibilidade de outros profissionais da Equipe da Saúde da Família realizarem a busca ativa e conseguirem um novo contato.
Para o segundo caso, foi pensado em conjunto com outras equipes complementares, de outras regionais de Belo Horizonte, a construção de kits com recursos mais “coringas”, como tinta, lápis de cor, giz de cera, massinha, quebra-cabeças, entre outros. Esses kits seriam comprados com o valor disponibilizado mensalmente pela prefeitura para a compra de recursos locais. Associado aos Kits, foi disponibilizado pela equipe uma cartilha em fotos, com pouco conteúdo escrito, com possibilidades de exploração dos recursos e de outras possibilidades de atividades a baixo custo.
A identificação das famílias para o recebimento do Kits foi realizada por meio de reuniões de equipes e através dos relatos dos responsáveis quando estavam em atendimento, além de informações dadas pela Equipe de Saúde da Família. Foi proposto ainda em equipe, a utilização do transporte do Centro de Saúde para a entrega desses materiais de maneira presencial pelas profissionais de modo a qualificar a entrega, além de poder realizar orientações pontuais e presenciais diante das demandas encontradas em território.
Esta ação, em específico foi bastante positiva na avaliação da equipe que percebeu que o acolhimento e escuta durante a ida ao contexto familiar promovia um efeito nessas famílias que por vezes eram tão beneficiadas quanto as próprias crianças e adolescentes. Ainda segundo a avaliação da equipe, foi possível reconhecer por meio das visitas as barreiras e facilitadores do território e diante disso, optou-se por manter essas visitas com o transporte do Centro de Saúde, mesmo sem Kits a serem entregues, apenas com o objetivo de acolhimento e escuta das famílias, crianças e adolescentes.
Observa-se que o cuidado nessa clínica inventiva vai para além do isolamento terapêutico, constituindo-se em um território vivo com fronteiras dinâmicas e produzindo cidadanias: “Não há como pensar a construção do cuidado em saúde mental, sem pensar no tempo e no lugar em que este cuidado se constitui, tecido como estratégia em rede. Ou seja, o cuidado se faz em rede e em um lugar”07.
Outra ação que foi possível ser construída de maneira remota foi a celebração do Dia da Luta Antimanicomial, em 18 de maio. As construções políticas que visam a emancipação política fazem parte do desenvolvimento das ações em Saúde Mental. Dentre essas, encontram-se os movimentos sociais que permitiram de maneira inigualável as discussões e construções de políticas de saúde públicas voltadas para a saúde mental e AP7,14.
Promover organizações de eventos como o 18 de maio ou qualquer outro tipo de celebração, viabilizar exposições, intervenções culturais, apresentação de todo tipo de arte representam a potencialidade existente neste “cenário de encontros” que é o território14, ainda que neste momento ele seja virtual. O serviço, ao provocar ações e encontros locais, digitais, produzem atos de cuidado e contribuem com a quebra da lógica da racionalidade e promovem outro local social para a loucura e seu sofrimento14.
Ao longo da história da saúde mental, a participação familiar apresentou mudanças importantes em relação ao nível de participação nos planos de tratamento. Em momentos da história ignorada e retirada de cena, a família de portadores de sofrimento psíquico atualmente é vista como protagonista e importante personagem nas conquistas, e devem ser incluídos dentro das estratégias dos trabalhadores de saúde mental. O envolvimento dos familiares também deve ter um enfoque de escuta e acolhimento14.
Pode-se se afirmar que houve uma reinvenção das reuniões da rede de AP na modalidade online de toda regional de saúde mental que contempla as UBS, serviços de urgência, equipe complementar, Arte da Saúde, Centro de Convivência, Serviços Residenciais Terapêuticos e das discussões de micro, que são reuniões organizadas a partir da localização do Centro de Saúde para discussão de casos e encaminhamentos.
As instâncias governamentais apresentam um papel importante no direcionamento das ações nesse momento e discussões desse tipo favorecem ações alinhadas. Dentre as responsabilidades previstas para os serviços que prestam assistência em saúde mental neste momento, encontra-se também o acolhimento do profissional fornecendo suporte e supervisão que pode ser realizada de maneira grupal02.
Outros serviços que compõe a rede de saúde mental, como o projeto Arte da Saúde, outra invenção de Belo Horizonte, também passaram a contribuir na modalidade online e enviar vídeos com atividades e brincadeiras a serem realizadas pelas crianças e adolescentes. O Arte da Saúde acolhe crianças e adolescentes que, em geral, carregam o estigma de “crianças-problema”. Ali são oferecidos espaços de expressividade, socialização e troca, utilizando para isso de um recurso tão primitivo quanto atual, a arte15.
Com a pandemia, o serviço Arte da Saúde, grande parceiro da atenção primária de Belo Horizonte, também passou por reinvenções da prática e dimensionaram suas oficinas presenciais para vídeos de brincadeiras, música, capoeira, desenho, entre outros, que foram encaminhados para usuários específicos e no grupo geral.
A criação de uma rede intersetorial de cuidados visa justamente essa criação ativa de proposições de soluções e produções de respostas à problemas de ordem complexa, tentando transcender fragmentações e ações de naturezas isoladas. Unindo potências com enfoque na melhoria da qualidade de vida do usuário, inclusão e sua cidadania14. No entanto, diante da dificuldade com setores da Assistência Social e Educação, considera-se a produção de cuidado durante esse período foi limitada ao setor saúde.
Durante todo o período de existência do Sistema Único de Saúde (SUS), os profissionais de saúde nunca foram tensionados há uma pandemia dessa magnitude, ainda mais na recente política de assistência à saúde mental, que teve que ser refletida e repensada. Ainda que não se saiba os impactos a longo prazo desse atravessamento histórico, está em construção uma das melhores alternativas.
A equipe considera que a divulgação dessas ações pode contribuir com outros serviços para além deste período de pandemia, podendo se tornar estratégias de otimização do trabalho mesmo após este momento.
CONCLUSÃO
A falta de materiais científicos que respaldem a assistência em saúde mental em contexto de pandemia provocou nos profissionais uma necessidade de reinvenção, o que tem sido possível a partir do respaldo teórico-prático da atenção psicossocial e os seus conceitos-ferramentas.
Tendo como diretriz da prática o território, a responsabilização, o acolhimento, o projeto de cuidado e a rede intersetorial, as ações desenvolvidas pela equipe reforçaram a importância da busca pelos usuários e familiares por diferentes meios de comunicação, como o WhatsApp. em sua versão business, videochamadas, teleatendimentos e busca dessas famílias no território, por meio das articulações dentro da Rede de Atenção Psicossocial e das visitas domiciliares.
A EC considerou como dificultador a não articulação com os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), já que em um primeiro momento houve o fechamento desses dispositivos. Em decorrência dessa não parceria, as famílias acompanhadas pela EC tiveram maior dificuldade de acesso a direitos.
Ainda como fragilidade das ações, considera-se que as articulações com o setor de educação mostraram-se incipiente. Além disso, a equipe pensa sobre as dificuldades de produzir ações que provocassem a participação dos adolescentes neste período de uma maneira mais ativa.
Evidenciou-se a necessidade de articulações mais próximas à coordenação e reuniões de profissionais neste período, tanto para articulações da prática mais alinhadas quanto para o acolhimento e escuta de dificuldades na assistência. Os serviços permanecem neste período de adaptação que já direcionam também para novas formas de trabalho pós período de pandemia. Como limitação, foram identificadas dificuldades de articulação com o setor social e educação, e do desenvolvimento de ações voltadas para o público adolescente.
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