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Deu bode no museu: os diversos significados atribuídos à insólita presença do bode Ioiô no Museu do Ceará de 1935 aos dias atuais
Francisco Secundo Silva Neto; Marcio Acselrad
Francisco Secundo Silva Neto; Marcio Acselrad
Deu bode no museu: os diversos significados atribuídos à insólita presença do bode Ioiô no Museu do Ceará de 1935 aos dias atuais
The goat and the museum: different meanings of the strange presence of Bode Ioiô in the Museum of Ceará from 1935 to present days
Interin, vol. 21, núm. 1, pp. 22-41, 2016
Universidade Tuiuti do Paraná
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Resumo: Entre os anos de 1915 e 1931 viveu, na cidade de Fortaleza, um bode chamado Ioiô. Um tipo popular daqueles tempos, rico em personagens insólitos, ao falecer ele teve necrológico publicado em jornais, foi empalhado e, em 1935, doado para o então recém-criado Museu do Estado. O artigo pretende analisar a partir, principalmente, de textos jornalísticos os diferentes significados sobre o bode, cobrindo um período que se estende desde que o empalhado caprino se tornou peça museológica até os inícios do século XXI. Pretende-se mostrar como, graças à uma mudança no olhar lançado sobre ele pela imprensa, o bode, que já fora encarado como simples curiosidade e como sintoma de falta de civilidade passa a ser visto como símbolo da irreverência rebelde e do espírito moleque do povo. A pesquisa teve como fontes principais dois compêndios de matérias jornalísticas publicados pelo Museu do Ceará. Pôde-se concluir que o papel que o bode ocupa no espaço museológico mudou ao longo do tempo, deixando de ser algo meramente pitoresco ou curioso e vindo a se tornar o símbolo de uma cultura cearense moleque e transgressora.

Palavras-chave:HumorHumor,MuseuMuseu,BodeBode,JornalJornal,Ceará molequeCeará moleque.

Abstract: Between the years 1915 and 1931, a goat named Ioiô lived freely in the streets of Fortaleza. Being a popular type of those days, filled with unusual characters, when he died he had his obituary published in newspapers. He was then stuffed and, in 1935, donated to the newly created State Museum. The present article analyzes from mainly journalistic texts the different meanings that this character had inside the museum since then, from simple curiosity to a symptom of lack of civility to a symbol of the irreverence of the people. This research had as main sources two catalogs of new stories published by the Museum itself. We arrived to the conclusion that the role that the goat occupies in the museological space has changed over time, from a merely picturesque curiosity to a symbol of a transgressive and humorous society.

Keywords: Humor, Museum, Goat, Newspaper, Ceará moleque.

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Deu bode no museu: os diversos significados atribuídos à insólita presença do bode Ioiô no Museu do Ceará de 1935 aos dias atuais

The goat and the museum: different meanings of the strange presence of Bode Ioiô in the Museum of Ceará from 1935 to present days

Francisco Secundo Silva Neto1
Marcio Acselrad2
Universidade de Fortaleza, Brasil
Interin, vol. 21, núm. 1, pp. 22-41, 2016
Universidade Tuiuti do Paraná

Recepção: 05/03/2016

Aprovação: 22/03/2016

Início da travessia: mundos de luz e sombra

O bode, caprino comum da caatinga nordestina brasileira, é cientificamente classificado como da espécie capra aegarus ou capra hircus, a fêmea é popularmente chamada de cabra. Trata-se de um animal comum do criatório sertanejo do Nordeste desde a época da colonização. A espécie se adaptou à região da caatinga e ao clima quente e foi domesticado pelos habitantes do sertão, tornando-se animal comum ainda hoje na vida e na paisagem do sertão nordestino. Mas o que tem de mais um bode para além de sua animalidade e funcionalidade para o ser humano? Para as ciências humanas, como tudo mais que diz respeito ao mundo humano, um bode pode significar muito mais do que sua própria animalidade ou uso. No caso aqui abordado, pretendemos compreender como um bode empalhado e que é peça de museu foi alçado a símbolo de irreverência e humor, e como passou a ser, ao longo dos últimos vinte anos, apontado como representante de uma cultura cearense.

Antes de prosseguirmos, é preciso ressaltar que não é incomum na história humana animais serem mote para metáforas, simbolizações e representações sobre situações e acontecimentos diversos do mundo social. Em São Paulo, o rinoceronte Cacareco obteve expressiva votação nas eleições para vereador no ano de 1959 e no Rio de Janeiro, em 1988, o macaco Tião foi lançado candidato não oficial à prefeitura da cidade pelo grupo humorístico Casseta e Planeta, tendo recebido cerca de 400 mil votos, o que lhe garantiria um honroso terceiro lugar no pleito.

No nordeste brasileiro, a insatisfação com os desmandos e corrupções do universo da política já transformaram bodes em candidatos a vereador e prefeitos como foram, respectivamente, os casos do bode Cheiroso em Jaboatão-PE nos anos 1960 e do bode Frederico em Pilar-AL no ano de 1996 (FREITAS, 2003). Frederico foi lançado como candidato à prefeitura da sua cidade numa alusão debochada à situação de descontentamento com a política local. No episódio, narrado no livro Ecos da Violência (2003), de Geovani Jacó de Freitas, a candidatura do bode Frederico fora postulada por funcionários públicos do município que, dentre outras razões de insatisfação com a situação do governo municipal, não recebiam salários havia sete meses. O vice da chapa do bode foi outra figura popular da região, o travesti Juliete Maria, e ambos estavam concorrendo ao pleito eleitoral pelo PBB, sigla para o Partido dos Bodes e das Bichas, com o número 24 – numeração para o grupo das dezenas do veado no popular e ilegal jogo do bicho no Brasil. O escárnio e o deboche para com os políticos da situação fizeram com que o bode e seu vice sofressem um atentado a bala, o que impediu que os dois participassem do programa de entrevistas Jô Soares Onze e Meia. Eis o final trágico desta cômica história:

Maior comoção, no entanto, que redundou em protestos, tanto na imprensa quanto de muitas pessoas na cidade, em especial, deu-se quando Frederico foi assassinado, uma semana após o atentado a tiros. No dia 13 de setembro, o bode apareceu em praça pública, espumando e cambaleante, morrendo em seguida. Causa da morte: envenenamento com um poderoso raticida, conhecido como 1080. Inúmeras pessoas reagiram ao atentado no Município, através de atos de protestos. Dentre eles, a improvisação do velório do bode, muitas pessoas chorando e, o de maior visibilidade, a preparação e realização de uma carreata na cidade, contando mais de 50 automóveis, com vendas de camisetas alusivas ao bode. O dono do bode, em entrevista à imprensa, classificou o ato como uma covardia de gente safada (O Jornal, 14/09/1996). Um juiz da cidade quis proibir a carreata. Não o fez, mas não permitiu o uso das camisas com o retrato do bode. (FREITAS, 2003, p. 124-125).

Conforme reflexão de Geovani Jacó de Freitas (2003), o episódio significa um experimento compartilhado de um clima lúdico, mesmo que motivado pela revolta e pelo descrédito na política local. E o elemento característico do caso, continua o autor, foi a capacidade de simbolização dos seus agentes e a ironia cortante que deles brotaram. Simbolização irreverente de uma situação-limite experimentada pelos grupos envolvidos: um modo possível de protestar, denunciar e desqualificar a situação de desgoverno do município de Pilar-AL à época. A irreverência, o deboche e o escárnio representados pelo bode Frederico de Alagoas certamente demonstra a humana inventividade crítica para com situações-limite como a dos desmandos e descasos de maus políticos. Todavia, no caso do Bode Ioiô, que será aqui analisado e que nos últimos anos se tornou símbolo de cearensidade e foi elencado como uma das peças mais importantes do museu do Estado, a motivação da irreverência e do humor passa por interpretações e significados variados conforme os contextos sociais e históricos e os interesses em jogo (SILVA NETO, 2015).

As fontes principais de pesquisa deste trabalho são matérias jornalísticas que lançam luz sobre a relação entre o bode Ioiô e o Museu do Ceará (MC). As matérias são de dois catálogos organizados pelo próprio Museu que as publicou em ordem cronológica, desde a fundação oficial nos anos de 1930 até o ano de 2007, quando esta instituição completou 75 anos de existência. A análise centrouse na busca dos diversos significados que, ao longo do tempo, a imprensa local concedeu ao empalhado bode do Museu do Ceará. Quanto ao papel da imprensa na construção da realidade, mais do que meramente no relato transparente da mesma, cabe lembrar Pierre Bourdieu (1997), que afirma operarem os jornais uma seleção e uma construção do que é selecionado. As notícias podem funcionar como efeitos de real, podem fazem ver e crer naquilo que fazem ver. Seguindo o raciocínio de Bourdieu, as matérias jornalísticas dotam a realidade de significados e, assim, contribuem para a construção dessa própria realidade. Moretzsohn (2007) corrobora este ponto de vista ao rever o mito do 'quarto poder' atribuído à imprensa:

“Tratemos do que aflora como a categoria principal que perpassa essas considerações: a de mediação – a desta mediação em particular – e seu ocultamento ou 'naturalização', que assegura a eficácia ideológica do discurso legitimador do jornalismo como 'quarto poder'”. (MORETZSOHN, 2007, 114).

Era uma vez um bode

Terra da Luz e Ceará Moleque, que história é essa? foi o título escolhido para uma exposição do Museu do Ceará criada no ano de 1996. A responsável pela criação dessa exposição, a arquiteta e designer, Gisela Magalhaes, fora, à época, auxiliada pelo professor de história da Universidade Federal do Ceará (UFC), Sebastião Rogério Ponte. “Terra da Luz” é a expressão dada ao Ceará por ter sido a primeira Província no Brasil Imperial a abolir oficialmente a escravidão, no ano de 1884. Já a expressão “Ceará moleque” deveu-se, principalmente, à presença do empalhado bode Ioiô, um bicho que ali, naquela exposição, representava uma “histórica rebeldia irreverente do povo cearense” (PONTE, 2001). Este caprino habitou a cidade de Fortaleza entre os anos de 1915 e 1931, sendo um tipo popular daqueles tempos no meio urbano fortalezense. Ele perambulava pela cidade percorrendo cotidianamente um caminho de ida e volta entre a Praia do Peixe (atual Praia de Iracema) e a Praça do Ferreira, daí o nome de Ioiô. Devido à popularidade do animal, quando faleceu em 1931, teve necrológico publicado em jornais, fora embalsamado, empalhado e, anos mais tarde, em 1935, doado para o então recém-criado Museu do Estado (GIRÃO, 2000; LEITÃO, 2002).


Figura 1
O bode Ioiô no Museu do Ceará
Fonte: imagem capturada na rede3

No jornal Gazeta de Notícias, em edição de 9 de julho de 1935, lê-se que o Museu Histórico do Estado saiu da “norma costumeira, com a interessante documentação histórica” ao apresentar o “Bode Yôyô”, referido no jornal como “uma das curiosidades de Fortaleza” (BOLETIM DO MUSEU HISTÓRICO DO ESTADO DO CEARÁ, 2006). Ressalte-se: “curiosidade”, nada se mencionava, então, sobre alguma ideia ligada a uma “irreverência rebelde” dos fortalezenses de então ou que o bode representasse um comportamento coletivo local. O bicho era uma curiosidade daquela Fortaleza de então. A reportagem informava ainda que o dramaturgo e escritor maranhense Viriato Correa (1884-1967), ao passar por Fortaleza em outubro de 1924, “a frente de uma companhia de operetas”, “achou muito interessante a situação daquele caprino que perambulava na via pública sem ser incomodado como se fosse gente e imortalizou-o numa crônica”.

Outro cronista que imortalizou o bode Ioiô foi Raimundo de Menezes (1903-1984). Este memorialista escrevia causos sobre acontecimentos e personalidades que eram publicadas no jornal Gazeta de Notícias, em meados dos anos 1930, sobre uma Fortaleza de um passado que ficava para trás com o avançar das reformas urbanas. Logo depois, estas crônicas sobre a capital cearense foram lidas pelo próprio Raimundo de Menezes – ele também fora speaker da primeira rádio do estado – na PRE-9 Ceará Rádio Clube no seu programa Coisas que o tempo levou e, em 1938, as reúne e publica um livro com o mesmo título do programa radiofônico. Em uma dessas crônicas sobre Fortaleza, Raimundo de Menezes (2000) aponta o referido animal como “um dos tipos mais populares e queridos da Fortaleza de outrora” e conta alguns detalhes de sua vida como o fato de ter sido trazido para a capital por um flagelado da seca de 1915 e que fora “vendido, por qualquer coisa, à firma Rossbach Brazil Company”, a qual se tornou assim proprietária do bode. Ioiô, ainda de acordo com Raimundo de Menezes (2000, p. 184), passeava pela cidade sem ser incomodado pelos fiscais municipais “com a sua barbicha descuidada e com o seu cheirinho acentuadamente característico”. Quando falecido, seus donos resolveram embalsama-lo e, mais tarde, o doaram ao Museu do Estado. Foi provavelmente Raimundo de Menezes, naqueles anos de 1930, o primeiro a associar o bode à imagem de uma “irreverência cearense”:

Ouvinte amigo: quando fordes em visita ao nosso Museu Histórico, procurai rever o Bode Yoyô, que ali se encontra empalhado, colecionado entre as recordações que o tempo levou. O Bode Yoyô é bem a imagem do espírito irreverente e profundamente irônico dos filhos desta gleba heroica do sofrimento! É um símbolo que fica perpetuado, em boa hora, entre as paredes do nosso Arquivo, como a crônica alegre e galante da nossa gente, cuja mocidade de espírito constitui um apanágio encantador. (MENEZES, 2000, p. 185).

E, assim, o popular caprino, nos anos 1930, começa a ser encarado como símbolo de uma “irreverência cearense”; vista, desse modo, como algo de positivo e exaltado, um “apanágio encantador”.

O bode rebelde

Sebastião Rogério Ponte (2001), o mesmo historiador que ajudou a montar a exposição “Terra da Luz e Ceará Moleque” no Museu do Ceará em 1996, dedicou-se antes desse trabalho, a compreender o processo de reformulação urbana e afrancesamento dos costumes locais que propuseram as classes dirigentes para o Ceará no século XIX. Tal pesquisa resultou no livro Fortaleza Belle Époque, publicado na década de 1990. No último capítulo desta obra, intitulado “Mundanismo Chique x Irreverência Chocante”, o autor aponta como foram frequentes as referências de cronistas a um “comportamento amolecado” dos cearenses vindo na direção contrária do chiquismo afrancesado e burguês que se tentava implementar. A inserção da Belle Époque – daquele cosmopolitismo identificado com a vida parisiense – foi compulsória em todas as capitais brasileiras do período (SEVCENKO, 2003; SALIBA, 2002) e tudo que destoasse desse projeto podia causar choque e aversão. Ponte (2001) indica como o epíteto “Ceará moleque” foi tomado como sinônimo de “conduta pouco civilizada” para uma sofisticada revista de atualidades, arte e literatura dos anos 1920 de Fortaleza. Em duas ocasiões, A Jandaia, destratava a alcunha lançada sobre os cearenses:

Não sabemos quem, estudando a psicologia dos brasileiros, assinalou em cada Estado, de maneira interessante, um símbolo. Coube ao Ceará a mais forte característica – a de „moleque‟! Não sabemos se pela rebeldia de sua gente, se pela irreverência de seu povo, o certo é que o cognome de „moleque‟ vem se aplicando a todas as notas dissonantes que, de quando em quando, o Ceará, pelos seus representantes, comete irrefletidamente. (PONTE, 2001, p. 175).

O espírito moleque que nos domina, acha-se traumatizando todo o Brasil e, quem sabe, por outras paragens longínquas, como uma característica cearense […]. Nos bondes, nas festas, em tudo por fim notamos o grande defeito que nos pesa, maltratando os nossos foros de gente culta. (PONTE, 2001, p. 175).

Para o redator da Jandaia essa característica cearense traumatizava todo o país sendo um “grande defeito” que pesava, maltratando “os foros de gente civilizada” do Ceará. Seja “símbolo do estado” ou “característica forte”, esse rótulo colado à “irreverência popular” foi, para a Jandaia, contrário à ideia de civilização, ou seja, não era um símbolo de que se pudesse sentir orgulho, mas desprezo. Para Ponte (2001), de outro modo, tais comportamentos irreverentes seriam sinal, como sugeriu a Jandaia, de “rebeldia de sua gente”, a qual cultivava uma “irreverência chocante” como uma maneira de se contrapor ao “mundanismo chique” das pretensões civilizatórias da Fortaleza Belle Époque. Ponte (2001), neste sentido, elenca como alguns tipos populares, que deambulavam pela cidade que se modernizava, serviram como indicadores desse choque proporcionado pelas transformações urbanas:

Os tipos populares, indivíduos empobrecidos e enlouquecidos, faziam parte daquele contingente de miseráveis produzido ou intensificado pela velocidade das relações capitalistas em desenvolvimento no país. Suas esquisitices, manias ou distúrbios psíquicos de alguma forma foram provocados pelo impacto das transformações frenéticas nas ruas, nas casas e na vida das pessoas. (PONTE, 2001, p. 177).

Dentre os tipos populares elencados por Ponte (2001) estão o Chaga dos Carneiros, o Tertuliano, o Tostão, o De Rancho, o Pilombeta e, é claro, o Bode Ioiô, figuras que destoavam do cenário do chiquismo que então se tentava a custo implementar na cidade. Neste sentido, para esta leitura historiográfica, a molecagem que Ioiô encarnava se torna uma espécie de estratégia inconsciente de resistência da população mais empobrecida e miserável que era constrangida pela inadequação às mudanças urbanas da capital cearense da época. As fontes utilizadas pelo historiador foram às obras de três cronistas ou memorialistas: Coisas que o tempo levou... (1938) de Raimundo de Menezes (MENEZES, 2000); Imagens do Ceará (1959) de Herman Lima (1897-1981) (LIMA, 1997); e Fortaleza descalça: reminiscências de Otacílio de Azevedo (1892-1978) (AZEVEDO, 1992), esta última escrita por volta dos anos 1970 e publicada pela primeira vez no ano de 1980. De maneira geral, as memórias apontadas por eles se reportam à capital cearense justamente quando esta passava pelas transformações urbano-espaciais de que trata Ponte (2001).

O cronista João do Rio – pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-1921) – na obra Alma Encantadora das Ruas: crônicas (2008), coletânea de textos publicados em jornais do Rio de Janeiro entre 1904 a 1907, apontava também os tipos populares que circulavam pelas ruas do Ouvidor, Frei Caneca e outros logradouros na então capital federal do Brasil, a qual também passava pela reformulação urbana nos moldes da civilização europeia e na imitação afetada dos comportamentos afrancesados (SEVCENKO, 2003). João do Rio cita, por exemplo, O Pai da Criança e a Perereca como os tipos que exteriorizavam “a influência psicológica da rua”. Tipos que, segundo o cronista carioca, “são o riso das ruas” (RIO, 2008).

Ponte (2001) indaga acerca da extrema simpatia conquistada por esses tipos populares entre aquela população que passava por um “período de maior intensificação de medidas disciplinares impostas pelos poderes e saberes comprometidos com a ordenação sócio-urbana”. O historiador responde que “tanto os tipos populares como o „espírito amolecado‟ do povo são na verdade uma coisa só: a propensão popular à irreverência”. Deviam-se, principalmente, a uma prática contestatória, uma tentativa de chocar e ferir “os padrões e regras do mundo ordenado e tedioso do trabalho, da assepsia e da normalidade” (PONTE, 2001, p. 183). O espírito amolecado do povo representa aqui um símbolo de contestação e rebeldia popular contra os poderes constituídos. No referido capítulo “Mundanismo chique x Irreverência chocante”, Ponte (2001, p. 160) afirma:

A resistência das camadas populares ante os variados mecanismos disciplinadores que lhes penetravam cotidianamente tanto nos espaços públicos como privados, expressou-se sob as mais diversas formas: [...], houve a relutância em se deixar vacinar, a conservação de certas crenças, ritos e posturas, a bilontragem, o desapego ao trabalho sistematizado, a fuga, o „se fazer de louco para melhor passar‟, o escárnio, a irreverência, o riso e a vaia. Esta compulsão dos populares pelo deboche e pela ironia pública foi tão notória que, já na época, cunhou-se o epíteto de Ceará Moleque para caracterizá-la. (PONTE, 2001, p. 160).

Essa perspectiva do “Ceará moleque” ou da “irreverência cearense” como prática contestatória naquela Fortaleza Belle Époque, mesmo que se considere o peso de uma leitura científica, metodicamente construída e de opinião controlada, não deixa de exaltar positivamente uma “pulsão moleque do povo” (PONTE, 2001, p. 183), positividade contrária ao modo pejorativo como a revista Jandaia tratava o referido epíteto em meados dos anos de 1920. Assim, mesmo que a leitura do cronista Raimundo de Menezes, feita nos anos de 1930, e a leitura do atual historiador sobre o bode Ioiô ou os tipos populares guardem diferenças, ambas corroboram ao exaltar de modo positivo um “Ceará moleque” (SILVA, 2003). Seja o “espírito irreverente cearense” um apanágio encantador, seja o “espírito amolecado cearense” um sinal de rebeldia ou contestação popular, ambos os significados ai remetem ao quão positiva foi essa molecagem historicamente registrada. Podemos aqui perceber com clareza como uma tradição não é algo natural, mas um fenômeno construído historicamente (HOBSBAWM; RANGER, 1997).

O bode no museu

Retomando a relação entre o bode Ioiô e o Museu do Ceará, é interessante notar que a associação entre esse histórico e popular animal e a tradicional irreverência cearense não foi realizada pelo Museu antes daquela exposição de 1996. A exposição “Terra da Luz e Ceará Moleque, que história é essa?”, ao elencar o dito bode, reforçava o estereótipo, segundo Marcos Uchoa Passos (2011), que atrela o cearense a um perfil irreverente, bem-humorado e gaiato, “através da exaltação de histórias populares referentes ao bicho, sendo sua presença no espaço expositivo mais um fator de „excentricidade‟”. O empalhado bode Ioiô passa assim a ser oficialmente alçado pelo Museu como o símbolo de uma cearensidade moleque com o significado de contestação e rebeldia.

Sebastião Rogério Ponte, que auxiliou na montagem da referida exposição, faz assim a mesma leitura expositiva do bode que havia sido realizada pelo historiador no seu Fortaleza Belle Époque. Em reportagem de O Povo, Caderno Vida & Arte, de 15 de agosto de 1998, intitulada “Aulas no Museu”, é informado que 30 vagas do curso “Fortaleza, Ceará: temas em exposição”, promovido pelo Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura, foram destinadas para funcionários do Museu do Ceará. Segundo a matéria esse curso, ministrado pelos professores de história Sebastião Rogério Ponte e Berenice Abreu de Castro Neves, ocorreria entre os dias 17 e 26 de agosto de 1998 e, dentre os temas que seriam debatidos, estariam “os tipos populares e a resistência típica do Ceará Moleque” (MUSEU DO CEARÁ 75 ANOS, 2007, p. 272-273). Vemos aqui claramente como a imprensa tem papel preponderante na percepção social dos fatos relatados, desfazendo a visão do senso comum de que ao jornal cabe meramente representar ou re-apresentar a realidade tal qual ela é (MORETZSOHN, 2007).

O bode Ioiô compôs, todavia, diferentes narrativas expositivas ao longo dos anos no Museu do Ceará, mas, nenhuma antes desta de 1996 interpretou Ioiô como símbolo de um “Ceará moleque rebelde”. O jornal Gazeta de Notícias publicou reportagem intitulada “Museu: patrimônio cultural de um povo”, de 9 de julho de 1958, na qual menciona o “célebre bode Ioiô” como objeto “d‟A Sala do Sertão” (MUSEU DO CEARÁ 75 ANOS, 2007, p. 155). No ano de 1978, por exemplo, Ioiô integrou a Sala do Vaqueiro e vinculava-se sua imagem ao cotidiano do homem sertanejo, claramente por conta de ser animal comum da caatinga nordestina e do criatório da região (PASSOS, 2011), mas nada sobre ser símbolo de uma cearensidade moleque rebelde. Nos anos 1980, ele esteve na Sala Eusébio de Souza – nome do primeiro diretor do Museu do Estado, em cuja gestão Ioiô se tornou mais uma peça do acervo –, a qual reunia, junto ao empalhado bode, memórias distintas como as do Padre Cícero Romão Batista, do beato José Lourenço e do literato Rodolfo Teófilo.

É significativo, entretanto, para se perceber a maneira como o Museu do Ceará tratou Ioiô como peça de seu acervo antes daquela exposição de 1996, o que disse em 1989, ou seja, alguns anos antes, o seu então diretor, Osimírio Barreto, em entrevista ao jornal O Povo. O diretor, que desde 1971 esteve à frente da instituição, reclamava da presença de Ioiô como peça museológica e afirmava, como historiador de formação, não saber muito sobre a história do caprino por escrever “sobre coisas sérias”. Osimírio Barreto não via importância histórica no bode e disse que a popularidade do animal no passado deveu-se “apenas à gozação, uma espécie de brincadeira das pessoas” e indagava: “como igualar um bode às personalidades históricas que temos aqui?” (MUSEU DO CEARÁ 75 ANOS, Vol. 2, 2007, p. 232).

Poucos anos à frente da declaração do ex-diretor Osimirio Barreto, o tratamento dispensado pelo Museu ao bode vai colocá-lo como mais um símbolo dessa identidade moleque cearense. Foi na gestão de Valéria Laena Rolim que o Museu do Estado passou a integrar o bode ao discurso oficial da instituição. “No material publicitário do Museu do Ceará, a imagem do bode foi bastante veiculada, denotando que a peça era considerada um elemento de atração de público e que fazia parte das histórias do Museu e do povo cearense” (PASSOS, 2011).

Outra indicação significativa dessa diferença de tratamento dispensado pelo Museu do Ceará ao bode antes dos anos 1990 foram as matérias jornalísticas da imprensa local ao longo do tempo. Investigando algumas reportagens sobre o bode entre 1935, ano que Ioiô fora doado à instituição, até os anos 1990, não encontramos nenhuma que atrelasse a imagem do animal à irreverência cearense. Tal fato é curioso pois o cronista Raimundo de Menezes já o fizera nos anos 1930. Contudo não foi possível encontrar nenhuma associação entre o bode Ioiô e as ideias de irreverência, gaiatice cearense ou de Ceará moleque no referido período nas reportagens a que tivemos acesso.

Na edição do jornal O Povo de 31 de dezembro de 1941, na reportagem “O Mais Célebre Boêmio da Cidade”, o bode Ioiô é descrito com as seguintes palavras: “inefável cidadão de longas barbas e olhar tranquilo”; “Indivíduo dotado de um refinado sentimento de cavalheirismo, ele era igualmente respeitado e querido em toda cidade”; “muito pacato caprino”; “o mais célebre vagabundo da história de Fortaleza”. Em matéria do jornal Nordeste, intitulada “Vendo e ouvindo coisas que o tempo levou”, publicada em 1º de junho de 1944, o bode Ioiô é dito como “uma das mais notáveis reminiscências” conservadas no “Arquivo Público” (sic); “uma das curiosidades de Fortaleza”; “um tipo nobre”. Em matéria da Revista Contemporânea, edição de julho de 1945, Ioiô é citado como um “grande símbolo popular do Museu Histórico do Ceará”. Em artigo assinado por Eduardo Campos e publicado pelo Correio do Ceará, em 1º de março de 1948, o autor afirma que outro dia cerca de 106 pessoas visitaram o Museu, em poucas horas, porque, num descuido, deixaram que da rua se visse a figura venerada do famoso bode Ioiô, “uma atração de rua nos tempos passados”. Sobre matéria acerca de uma das reinaugurações do Museu que se daria em 4 de julho de 1955, o jornal O Povo relatava o bode Ioiô como uma “velharia [...] que vivia nas ruas de Fortaleza, ameaçando todo o mundo”. O jornal O Povo de 14 de abril de 1967 apontou o bode Ioiô como uma “curiosidade” no meio das raridades históricas do Museu.

Enfim, os significados atrelados ao bode Ioiô foram vários: “célebre boêmio”, “célebre vagabundo”, “notável reminiscência”, “atração de rua”, “figura venerada”, “curiosidade”, “tipo nobre”, “grande símbolo popular”, “velharia ameaçadora”. Significados sugeridos por essas matérias jornalísticas entre os anos 1940 a 1960, mesmo que algumas, sob o viço da ironia ou da galhofa, em momento algum indicam uma possível ligação do caprino com a irreverência ou molecagem cearense. Pelo contrário, o bode Ioiô no museu podia evocar algo ruim para alguns, já que podia servir para achincalhar a história do Ceará e de Fortaleza. A mais significativa das reportagens que sublinha a diferença de tratamento interpretativo em relação ao que foi dado nos anos de 1990 ao bode pelo Museu, fora a matéria assinada por Raimundo Eufrásio Oliveira, publicada no jornal O Correio do Ceará em 14 de setembro de 1974. Este jornalista relatou um acontecimento de desrespeito à “cultura histórica” – título da reportagem – do Ceará que envolveu o empalhado bode Ioiô:

Em face de constantes e grosseiras distorções de fatos notáveis de nosso passado, não podemos aceitar, em absoluto, que a nossa história tão gloriosa seja depreciada e menosprezada através de falsas interpretações ou deduções fúteis e ilógicas, como as que são geralmente transmitidas aos nossos visitantes, por simples desconhecimento dos fatos ou por motivos que não podemos adivinhar. [...]. Outra barbaridade que tive de destruir, em sinal de respeito à nossa cultura histórica. Outro moço, com ares de sabido e „enxerido‟, foi mostrar o empalhado bode Ioiô aos seus companheiros, e falando alto proclamou: „Este foi o bode que foi prefeito de Fortaleza, no tempo do boticário Ferreira‟. Ao ouvir o achincalhe, logo corri a desfazê-lo, pelo respeito que me merece a edilidade de uma capital com mais de um milhão e meio de habitantes. (MUSEU DO CEARÁ 75 ANOS, 2007, p. 198).

O bode Ioiô eleito prefeito no tempo do boticário Ferreira? O boticário Ferreira, que deu nome à Praça do Ferreira, tinha morrido uns 60 anos antes do aparecimento de Ioiô por Fortaleza, e o que existe há um tempo são boatos, os quais não conseguimos confirmar nesta pesquisa, de que o bode teria sido bem votado para vereador em uma eleição no período em que esteve vivo, o que provavelmente está na origem da desinformação confusa do sujeito.

Sobre o fato de Ioiô ter sido bem votado para vereador em Fortaleza no passado, O Povo, em um caderno especial (Caderno Clubinho) de 22 de março de 2003, apresentava o trabalho pedagógico do Museu do Ceará com as crianças e deixou na capa desse encarte especial, no canto superior direito, a seguinte pergunta: “Você sabia...que um bode foi eleito vereador?” No Diário do Nordeste, Caderno 3, de 24 de maio de 2003, em um artigo assinado por Délio Rocha, intitulado “Quem matou bode Ioiô”, no qual se discorre sobre algumas histórias que povoam o imaginário em torno da figura do bode, é dito que: “Se dependesse de voto, Ioiô poderia ter se tornado, na década de 1920, vereador de Fortaleza. Em uma eleição municipal, segundo contam, sua votação foi maior do que a de qualquer candidato da época”. Em uma nota a parte do artigo, intitulada “Estórias que o povo conta”, Régis Lopes, então diretor do Museu, afirmava Ioiô como a peça mais importante da instituição e que o bode colocava “em pauta a diversidade do acervo e da cultura cearense, que é séria e irreverente ao mesmo tempo”, mas alertava ao fim que a maioria das histórias sobre Ioiô não passava de lenda.

Importa retomar e salientar aqui os sentimentos de afronta e desrespeito que o jornalista Raimundo Eufrásio Oliveira, em 1974, sentiu perante a confusão feita pelo desinformado visitante. O bode assim, pelo enxerimento e desinformação de alguns, poderia achincalhar e desrespeitar a história gloriosa do Estado. Com que espanto este jornalista não deve ter reagido, se vivo ainda estava, ao saber que o Museu elevara para símbolo da identidade cearense o empalhado caprino?

As interpretações dadas pelas reportagens que mencionam o bode a partir da década de 1990 salientam uma valorização dessa peça do museu como nunca anteriormente. Em matéria de O Povo, de 4 de setembro de 1995, intitulada “O museu mostra as armas”, assinada por Christiane Viana, quando se apresenta ao leitor o Museu do Ceará, é mencionado que no “hall de entrada o visitante deparase com a figura empalhada e curiosa do bode Ioiô (sic), um dos símbolos de irreverência popular e do espírito gozador do povo cearense”.

O Povo de 19 de dezembro de 1996 traz matéria intitulada “Museu do Ceará Moleque”, na qual demonstra detalhes da exposição permanente “Terra da Luz e Ceará Moleque” e aponta que a trilha construída pelos idealizadores da exposição para os visitantes termina na ala Ceará Moleque: “O final não poderia ser mais significativo da gaiatice cearense. Com o seu olhar enigmático e eterno, o bode Ioiô dá adeus aos visitantes”. Em reportagem de O Povo, Caderno Vida & Arte, 10 de dezembro de 1997, intitulada “Deu bode na cabeça”, assinada por Janaína de Paula, fala-se sobre a restauração do empalhado bode, que teve sua cauda arrancada e roubada em 1996: “O célebre bode Ioiô, a peça mais polêmica do Museu do Ceará, foi completamente restaurado. Símbolo máximo da molecagem cearense, ele ganhou pelo novo, recebeu um outro rabo e recuperou até mesmo o seu „cheirinho‟ original”.

Em reportagem do Diário do Nordeste, Caderno 3, de 25 de março de 1998, intitulada “Um passeio pela história: Museu do Ceará é reaberto dentro do Projeto Estação Ceará Terra da Luz”, é indicado que o empalhado bode Ioiô é a mais peculiar e preferida entre as atrações expostas e diz que o animal tornou-se “o símbolo de um povo moleque e irreverente”. Em reportagem de O Povo, de 30 de dezembro de 2002, intitulada “Ceará-Moleque”, é informado que o bode Ioiô fora homenageado pela curadoria do humor do Festival Vida & Arte e para receber o Prêmio Albanisa Sarasate, em nome do homenageado, fora convidado o diretor do Museu, Francisco Régis Lopes Ramos. O prêmio, até então, era concedido a personalidades do Estado como ex-governadores, reitores de universidades e empresários. Na ocasião da premiação, o então diretor Régis Lopes, em entrevista ao jornal Diário do Nordeste de 20 de maio de 2007, disse: “Eu considero o bode Ioiô como nossa peça mais importante. [...]. O bode Ioiô representa a rebeldia, a ironia e o espírito irreverente que estão muito presentes em nossa cultura” (apud MUSEU DO CEARÁ 75 anos, 2007, p. 431).

O número de reportagens e artigos que demonstram esta mudança de perspectiva a partir dos anos 1990 é extenso. E todas elas indicam como o empalhado bode no museu passou a sugerir uma leitura positiva sobre sua figura histórica. O bode ali, no espaço museológico, se tornou o símbolo de uma cultura cearense, uma cultura moleque especificamente, e não mais fora visto como algo pitoresco ou curioso. E para a certeza daqueles que assim o leram desde então ainda se pode evocar Raimundo de Menezes, o cronista contemporâneo do bode, que nos anos 1930 já o chamava de símbolo da irreverência dos filhos desta “gleba heroica de sofrimento”. O bode, assim, tem feito parte dos registros legítimos do passado histórico do Ceará – passado não necessariamente glorioso, mas moleque, conforme dizem.

Considerações finais

Um bode certamente pode significar mais do que sua animalidade e uso. Clifford Geertz (1989), o antropólogo americano da corrente teórica da interpretação cultural, seguindo o que afirmara antes dele o clássico da sociologia, Max Weber, sublinha que o homem é um animal amarrado à teia de significados tecidos por ele mesmo, significados que orientam ações, práticas e relações sociais. Ainda segundo Geertz (1989), a cultura é um “documento de atuação” e é pública pois os seus significados são coletivamente compartilhados e o que se deve indagar dela (da cultura) é qual a sua importância para os grupos e sociedades humanas em dados tempos e lugares. O empalhado bode Ioiô no Museu do Ceará fora tecido com variados significados ao longo do tempo, compondo diferentes propostas expositivas até que, nos últimos vinte anos, passou a ser significado como símbolo da irreverência de um povo.

Devemos atribuir ao trabalho de Sebastião Rogério Ponte (2001) a leitura contemporânea de que o bode é a imagem da molecagem como sinônimo de rebeldia ou resistência, leitura esta que passou a ser adotada pelo Museu do Ceará a partir de 1996 com a exposição “Terra da Luz e Ceará Moleque”. Ponte (2001) se tornou aqui um mediador simbólico (ORTIZ, 1994) na construção de sua interpretação histórica. Influenciado pela força interpretativa de outros trabalhos, como o de Michel Foucault sobre as relações entre disciplina, saber e poder na história ocidental e o de Nicolau Sevcenko sobre a reforma urbana do Rio de Janeiro dos 1900, Sebastião Rogério Ponte construiu a sua reinterpretação simbólica de um Ceará moleque no seu Fortaleza Belle Époque. Mesmo entendendo que um dos trabalhos importantes do historiador é o de fazer a sua própria interpretação dos fatos históricos, momento no qual reside o valor de um trabalho historiográfico, essa interpretação não se deu gratuitamente para a comunidade que a recebeu.

A interpretação do bode como representante da cultura cearense foi adotada no contexto social e histórico dos anos 1990, em que os governos locais e os agentes comunicativos em conjunto buscavam a valorização da identidade local na intenção de promover imagens turístico-culturais para o Estado, tema de que tratamos em outra publicação (ACSELRAD; SILVA NETO, 2009). A dita molecagem cearense e seu representante histórico, o empalhado bode Ioiô como peça de museu, se tornavam, a partir principalmente da década de 1990, quando há maior investimento em imagens promocionais turísticas para o estado do Ceará, produtos de um turismo cultural (BENEVIDES, 1998; GONDIM, 2004; LIMA, 2010; MACIEL, 2010). A imagem exótica de um bode no museu estadual como símbolo de uma cultura cearense refletia um esforço feito pelos agentes da comunicação e dos governos locais à época na promoção turística do Ceará e, mais especificamente, de Fortaleza.

Em segundo lugar, a valorização de um popular bode que fez parte da história do cotidiano daquela Fortaleza de outrora só pôde mesmo ocorrer depois da influência das modernas tendências historiográficas baseadas na história cultural e das mentalidades, influências que remontam no tempo aos anos 1960 com Philippe Ariès, Peter Burke e outros historiadores europeus. Antes disso, o tratamento historiográfico dispensado ao bode no museu só podia coadunar com a historiografia tradicional que valorizava primordialmente eventos, datas e vultos célebres do passado. Apenas a partir de meados do século XX os novos estudos históricos, baseados em metodologias como a da história oral, privilegiaram os grupos minoritários, os oprimidos ou esquecidos pela história tradicional. A história das mentalidades abordou o cotidiano, os comportamentos, as crenças e os valores daqueles que, na antiga história, foram suprimidos ou completamente esquecidos. E tanto o trabalho de Sebastião Rogério Ponte, Fortaleza Belle Époque dos anos 1990, como os do ex-diretor do Museu do Ceará e historiador, Francisco Régis Lopes Ramos, foram influenciados por essas novas correntes teóricas na história.

Enfim, citamos aqui Michel Polak (1992) quando aponta que há uma estreita ligação fenomenológica entre a memória e a identidade, esta entendida no sentido da imagem de si, para si e para os outros. A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, e se constitui em fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (HALBWACHS, 1990). Um museu trabalha com memória e é sempre preciso ressaltar que a memória é também um objeto de luta pelo poder de dizer, de fazer ver e de reconhecer qual é a memória legítima – ou reconhecida como legítima – dos grupos ou das classes sociais (BOURDIEU, 1996, 1998, 2005). Um museu não é somente um lugar de preservação da memória, é, antes de tudo, um espaço de escolha, de forças que, em certas circunstâncias, seleciona artefatos, exatamente aqueles que assumiram a condição de objetos de memória. Não há museu inocente da mesma forma que não existe memória espontânea.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
3 Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Bode_Ioi%C3%B4>;. Acesso em: 05/03/2016.
Autor notes
1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: fcosecundo@hotmail.com
2 Graduado em Psicologia, mestre e doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Professor do Centro Universitário

Unichristus. E-mail: macselrad@gmail.com


Figura 1
O bode Ioiô no Museu do Ceará
Fonte: imagem capturada na rede3
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