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A construção do ethos do biógrafo em biografias escritas por historiadores e jornalistas
The construction of the ethos of the biographer in biographies written by historians and
Interin, vol. 21, núm. 1, pp. 42-64, 2016
Universidade Tuiuti do Paraná

Artigos Livres



Recepção: 14/04/2015

Aprovação: 04/08/2015

Resumo: Neste artigo, propomos observar como biógrafos-jornalistas e biógrafoshistoriadores apresentam em seu discurso os campos História e Jornalismo. Valemo-nos do conceito de ethos, sob uma perspectiva retórico-discursiva, para ancorar, teoricamente, a discussão a respeito das imagens de si projetadas por tais biógrafos na escrita biográfica de outrem. Por meio de uma análise do discurso, foi possível perceber que, caracterizar o campo no qual uma determinada produção se insere e demonstrar que dele traz marcas, pode ser uma estratégia de conferir credibilidade à narrativa construída. Essa estratégia resultará, pois, na projeção de uma imagem positiva para este campo e para o próprio biógrafo.

Palavras-chave: Biografia, História, Jornalismo, Ethos, Análise do discurso.

Abstract: In this paper, we propose to observe how biographers journalists and biographers historians present in their discourse History and Journalism. We have used the concept of ethos, in a discursive perspective, to support the discussion of images of themselves projected by such biographers. Through our analysis, it was revealed that characterize the field where that production occurs and demonstrate that it brings brands, can be a strategy to lend credibility to the narrative constructed. This strategy will result therefore in projecting a positive image for this course and own biographer.

Keywords: Biography, History, Journalism, Ethos, Discourse Analysis.

1 A conflituosa relação entre historiadores e jornalistas no terreno das biografias

A relação entre jornalismo e história é marcada por aproximações e afastamentos. Ambos se constituem enquanto campos de produções discursivas narrativas e portadoras de um estatuto de verdade, segundo o qual historiadores e jornalistas desenvolverão suas atividades de apuração, investigação, pesquisa, interpretação, contextualização, etc., para a construção de um discurso crível acerca dos fatos narrados. Todavia, existe nesse terreno acusações de todos os lados para desqualificar ou ao menos menosprezar o trabalho do outro, no que concerne à revelação da realidade e dos instrumentos adotados para essa revelação. Conforme ponderações de Schmidt (1997) e Vicente (2009), historiadores acusam jornalistas de falta de rigor metodológico e de descuido com a apresentação das fontes e com o cumprimento de algumas regras de referencialidade. Jornalistas acusam historiadores de não realizarem uma contextualização atualizada de suas informações, de um rigor com as normas, mas pouca acuidade com a fluidez textual, e de uma tendência a conferir um caráter hermético às suas produções a fim de preservar uma aura de cientificidade.

Esse conflito entre as áreas alcança a produção biográfica. Durante algum tempo, nem Jornalismo nem História quiseram “assumir a paternidade” das biografias. No jornalismo tradicional, não havia espaço para biografias. No máximo, alguns perfis jornalísticos produzidos e veiculados principalmente pelos veículos impressos em ocasiões de morte de determinada personalidade (VILAS BOAS, 2002). No caso da história, procurou-se romper com a história dos grandes homens, uma tendência antiga de vinculação biográfica. A historiografia moderna, sobretudo aquela que se vinculou aos Annales2, procurava desenvolver uma história “não acontecimental”, mas mais relacionada ao mundo durável. Além disso, a ênfase não se faz na investigação dos homens excepcionais, heroicos, singulares, mas na análise do homem comum, médio, anônimo, massivo, que pertence a um universo mental coletivo. (BURKE, 1997).

Nesse cenário de um aparente descaso com as biografias, alguns jornalistas aproveitaram esse vácuo e passaram a comandar a escrita biográfica nacional. Prova disso é o estudo exploratório por nós realizado em nossa tese de doutorado3 (PROCÓPIO-XAVIER, 2012). Tanto no site das maiores livrarias do país quanto no rol das obras vencedoras do Prêmio Jabuti, pudemos verificar um número maior de biografias escritas por jornalistas do que por historiadores.

Entretanto, a (re)ascensão biográfica provocada pelo jornalismo bem como direcionamentos sobre a valorização da narrativa e dos indivíduos preconizados pela terceira fase dos Annales, fez com que os historiadores revissem seus conceitos sobre a produção de biografias. Na virada do século XX para o XXI, os historiadores nacionais, ainda de maneira tímida, voltaram a se interessar pela produção biográfica. De acordo com José Murilo de Carvalho, em entrevista4 concedida ao Diário do Nordeste, em 10/08/2009:

Os historiadores brasileiros não se aventuram muito a escrever biografias. Olham de uma maneira meio atravessada. Como se o gênero não estivesse à altura deles. Sempre foram os jornalistas que exploraram o gênero biográfico. E com muito sucesso. [...] Agora, os jornalistas escrevem bem, com clareza, elegância, atributos que faltam aos historiadores. Parte dos historiadores são muito rigorosos na pesquisa, mais do que os jornalistas. Principalmente, com relação às fontes. Aliás, muitos deles chegam a interpretar e criticar suas fontes de pesquisa. Não colocamos nada em nossos livros sem uma ampla pesquisa e uma documentação precisa. Quando se trabalha assim, o historiador termina por colocar uma multidão de notas de rodapés nas páginas. A leitura é muitas vezes cansativa. Atualmente, existe uma maior preocupação dos historiadores com relação à escrita, ao estilo. Isso é que atrai o leitor. (CARVALHO, 2009).

Assim, podemos encontrar no mercado editorial nacional biografias vinculadas a ambas as áreas, mas com um volume maior dos gêneros produzidos por jornalistas.

Considerando que as biografias nacionais tendem a ser fruto de vozes enunciativas tanto relacionadas ao jornalismo quanto à história, acreditamos que, para que possamos compreendê-las, deveremos tentar compreender os campos discursivos jornalísticos e historiográficos. Esses campos passam a funcionar como uma espécie de ancoragem de referência, que acreditamos influenciar na caracterização do próprio biógrafo, por meio da apresentação de seu estatuto profissional. Nesse sentido, somos levados a crer que os profissionais biógrafos além de se filiarem a determinados campos, tentam construir para si, em seus discursos, imagens que estejam a esses campos vinculados.

O analista do discurso Maingueneau (2009) retomou o conceito de campo de Bourdieu (1989) e a ele atribuiu contornos de discursividade. Podemos dizer que o campo discursivo seria o local no qual interagem as diversas vozes, as diversas fontes enunciativas de um mesmo domínio ou tema. O campo surge como local no qual se configuram as disputas, cada grupo tentando legitimar seus próprios valores. No caso do campo discursivo filosófico, por exemplo, encontraríamos as diversas correntes filosóficas; no caso do discurso da literatura, os diferentes movimentos literários e assim, por diante.

Por esse prisma, podemos dizer que nosso objetivo é observar de que maneira apontamentos a respeito do campo de ancoragem de uma biografia são ancorados em sua estruturação discursiva. Queremos perceber como os biógrafos, por possuírem também o estatuto profissional de jornalistas ou historiadores, retomam e registram informações referentes a esse estatuto nas biografias por eles produzidas, por meio da construção da imagem de si, isto é, do ethos.

Importante ressaltar que procuramos observar a construção do ethos não em produções discursivas destinadas a falar de si – no caso os biógrafos – mas em produções referentes à apresentação de outrem – os personagens biografados. No caso, procuramos ficar atentos aos momentos em que o biógrafo deixa de falar de seus personagens e abre espaço para a sua autoconstrução ou para que falem dele. Como aporte teórico de auxílio para essa investigação, adotamos o conceito de ethos desenvolvido em uma perspectiva retórico-discursiva, a partir dos trabalhos de Amossy (2005; 2006). Em termos metodológicos, adotamos a análise do discurso de orientação francesa, sobretudo a partir dos trabalhos da referida autora.

Importante destacar que a análise do discurso, como metodologia qualitativa, permite que sejam investigados objetos discursivos extremamente diversificados. A análise do discurso:

[...] visa a apreender a estrutura dos enunciados através da atividade social que os carrega. Ela relaciona as palavras a lugares. Através da multiplicidade das situações de comunicação, o discurso eclode numa multiplicidade de gêneros, cujas condições de possibilidades, rituais e efeitos se devem analisar. (MAINGUENEAU, 2001, p. 17).

Para fins de análise optamos por observar a construção do ethos em três biografias: Joaquim Callado: o pai do choro, Olga e Mauá: empresário do Império. Optamos por biografias que fossem escritas por biógrafos brasileiros sobre personagens nacionais. Escolhemos títulos cujos biógrafos tenham o ofício de historiador – André Diniz, autor da biografia de Joaquim Callado – e ofício de jornalista – Fernando Morais, autor da biografia Olga e Jorge Caldeira, biógrafo de Mauá. Importante destacar também que a escolha das biografias foi marcada por uma contrastividade externa, que diz respeito ao recorte temporal e contexto histórico das histórias analisadas, no caso, biografias construídas por historiadores e jornalistas brasileiros, publicadas entre os anos de 1985 a 2010.

2 O ethos sob uma perspectiva discursiva

Para falarmos de ethos, é necessário recorrermos à Retórica de Aristóteles. Segundo o filósofo, a retórica se caracteriza como técnica de produção discursiva que visa a garantir a persuasão. Aristóteles (2005) propõe três meios de persuasão ou provas do discurso: o ethos (caráter do orador), o pathos (disposições criadas no auditório) e o logos (discurso em si ou a razão persuasiva que ele representa). A preponderância de uma prova vai depender do gênero, da finalidade e do contexto sócio-histórico no qual o discurso está inserido.

O enunciador, ainda de acordo com o pensamento aristotélico, quando enuncia algo, e, consequentemente, apresenta uma imagem de si (ethos), para persuadir seu auditório, pode empregar a phrônesis (prudência, sabedoria, razão prática), a areté (virtude, sinceridade, caráter) e a eúnoia (benevolência, solidariedade, disposição ativa). São essas as principais características para a projeção de imagens de si favoráveis e positivas.

Apesar de uma aparente simplicidade, o emprego do ethosé variado e pode acarretar problemas de compreensão diante da diversidade de usos e concepções teóricas. De acordo com Auchlin,

Através de alguns de seus empregos, em retórica, em pragmática, em estilística, até mesmo em didática, o ethos é concebido como mais ou menos dialogal (Vs. monologal), mais ou menos focal (Vs. enquadrante), mais ou menos moral (Vs. técnico), mais ou menos convencionalizado (Vs. emergente), mais ou menos intradiscursivo (Vs. mundano), mais ou menos abstrato (Vs. concreto, carnal). (AUCHLIN, 2001, p. 201).

Segundo Amossy (2005), todo momento em que se toma a palavra, numa interação verbal, estabelece-se a construção de uma imagem de si, portanto, do ethos. Neste sentido, é possível dizer que essa construção da imagem de si é constituída no e pelo discurso. Sobre seu livro Imagens de si no discurso – a construção do ethos, Amossy salienta:

A abordagem proposta nesse trabalho se funda em um estudo da enunciação que considera que a instância do locutor compreende: a posição assumida de forma implícita pelo ser empírico no campo; a imagem preexistente do locutor ou ethos prévio (pré-discursivo); a imagem construída no discurso ou ethos propriamente dito. Ao trabalhar com estereótipo, isto é, com esquemas coletivos e representações sociais que pertençam à doxa, o ethos se torna sóciohistórico. (AMOSSY, 2005, p. 142).

A constituição do ethos, portanto, será realizada a partir de uma relação entre as escolhas do locutor (de acordo com suas visadas) e o seu ethos prévio, que é composto pela representação coletiva e pelos estereótipos que o auditório produz a respeito deste. O ethos prévio precede a projeção de uma imagem através do discurso a cada situação de comunicação e se apoia em elementos exteriores, como os imaginários sociodiscursivos resultantes do evento enunciativo e de discursos anteriores, além dos elementos dóxicos relacionados àquele orador (posição social, papel social, estereótipos, etc.).

Para que as imagens projetadas pelo locutor sejam legitimadas pelo auditório, é preciso que haja uma adequação, isto é, que essas imagens sejam partilhadas pelos interlocutores e sejam admitidas como representações ancoradas socialmente. De acordo com Amossy (2006), se o discurso se apoiar em crenças não compartilhadas pelo auditório, ele tende a ser rejeitado.

A noção de ethos, vista sob uma perspectiva discursiva, deve contemplar suas características dinâmicas e dialogais, entendendo-o como parte integrante da troca comunicativa e constituído pela construção discursiva, pelo imaginário social e pela autoridade institucional. Amossy (2005) relembra que, conforme propõe Benveniste, ao produzir um enunciado, isto é, ao colocar a língua em funcionamento, o locutor se coloca como sujeito e inscreve sua subjetividade. É por se apresentar enquanto materialidade linguística que o ethos está relacionado às marcas de enunciação: para que este possa ser compreendido enquanto imagem apresentada no e pelo discurso, deve-se recorrer às tais circunstâncias enunciativas.

3 O ethos dos biógrafos: imagens de jornalista e historiador

Para essa discussão, a respeito da construção da imagem de si que os biógrafos fazem em suas produções, apoiamo-nos nas orientações de LysardoDias, para quem:

[...] qualquer relato biográfico, independente da sua extensão e da sua natureza (jornalístico, literário, histórico etc.) é elaborado a partir de um ponto de vista. Revela-se o biógrafo, o biografado e o espaço social no qual se inscrevem: são identidades em movimento e subjetividades que se manifestam muitas vezes por meio do que é silenciado. (LYSARDO-DIAS, 2010, p. 10).

Para demonstrarmos como se dá a construção da imagem de si pelos biógrafos na escrita de uma biografia, recorremos a três biografias: Joaquim Callado: o pai do choro, Olga e Mauá: empresário do Império. Acreditamos que, mesmo em gêneros como as biografias, nos quais o objetivo maior é construir a imagem de outrem, seja possível encontrar elementos capazes de nos permitir construir a imagem daquele que enuncia.

Ressaltamos que não se trata aqui de realizar uma análise discursiva exaustiva de biografias variadas, mas, sobretudo identificar marcas retóricodiscursivas dos biógrafos para a apresentação de si na escrita da biografia de outrem. Inicialmente, realizamos a leitura de todas as biografias a fim de identificar em quais espaços/momentos da narrativa poderíamos encontrar, de modo mais explícito, as marcas retórico-discursivas do sujeito biógrafo. Nossas análises iniciais nos revelaram que, nos espaços paratextuais, o biógrafo, ou alguém por ele autorizado, deixava suas marcas e pistas para decifrarmos a imagem que (d)ele pretende projetar.

Conforme pontua Genette (2009, p. 9) a paratextualidade é “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público”. Ainda segundo Genette, os elementos constitutivos do paratexto são:

Título, subtítulos, intertítulos; prefácios, preâmbulos, apresentação, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim; epígrafes; ilustrações; dedicatórias, tira, jaqueta [cobertura], e vários outros tipos de sinais acessórios, [...], que propiciam ao texto um encontro (variável) e às vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor mais purista e o menos inclinado à erudição externa nem sempre pode dispor tão facilmente quanto ele gostaria e pretende. (GENETTE, 1982, p. 10, tradução nossa).

Assim sendo, nossa análise centrou-se em espaços paratextuais nos quais essas marcas retórico-discursivas estiveram mais presentes: contracapa, orelha e apresentação5.

No caso das biografias, a contracapa se constitui em uma espécie de resumo ou de apresentação da narrativa e/ou do autor, escrita por uma instância editorial ou por outra instância dotada de autoridade e legitimidade para apresentar e recomendar obra e autor.

A orelha de uma biografia é um desdobramento de sua capa e contracapa, composta geralmente por dois blocos textuais: um que apresenta uma espécie de sinopse do livro e outro que se configura enquanto uma mini nota biográfica sobre o autor da obra. Ainda, pode figurar na orelha uma fotografia do autor da obra em questão. O primeiro bloco textual parece, além de resumir a obra, cumprir a função de despertar a atenção do leitor para determinados aspectos da obra ou da vida do personagem, auxiliando também na construção da imagem desse personagem biografado. O segundo bloco textual tem como característica o fornecimento de informações a respeito do autor, biógrafo.

Já a apresentação – que pode ser também chamada de outras formas – podem ser escritos pelo próprio biógrafo ou por alguma pessoa convidada, que no caso deverá ser dotada de autoridade e legitimidade para apresentar a obra e seu autor. Quando escrito pelo próprio biógrafo esse paratexto costuma desempenhar algumas das seguintes funções: (i) Enumerar as etapas do trabalho biográfico: o autor apresenta as principais atividades realizadas, bem como o encadeamento entre elas, por meio de construções e expressões como logo que iniciei a investigação, minha primeira e óbvia investida, o passo seguinte, etc. (ii) Apresentar as principais dificuldades vivenciadas no processo: ao apresentar as dificuldades, o biógrafo se isenta de possíveis esquecimentos e negligências quanto a informações não abordadas.

Procuramos, pois, encontrar nesses espaços paratextuais – contracapa, orelha e apresentação ou capítulos explicativos da obra – marcas retóricodiscursivas do biógrafo, capazes de nos auxiliar a construir a imagem dos biógrafos. Estivemos atentos, sobretudo, à seleção lexical e à tematização escolhida para referenciar o autor e o campo (história ou jornalismo) em que ele se ancora. A seleção lexical e os temas abordados foram reveladores de imaginários sociodiscursivos a respeito dos campos História e Jornalismo, elementos esses fundamentais para a construção do ethos.

Antes de passarmos para as considerações analíticas a respeito de cada uma das biografias em separado, devemos lembrar que, o próprio nome do autor, também é um mobilizador de informações para a construção do ethos do biógrafo. O nome do autor, pois, figurado na capa e na lombada de uma biografia, pode indicar pista para a identificação daquela obra como pertencente ao gênero em questão. A presença, por exemplo, do nome Fernando Morais em suas referidas obras já predispõe o leitor a acreditar que aquela narrativa é uma biografia, pois esse autor é reconhecido no cenário editorial brasileiro como biógrafo. É claro que esse autor poderia e pode escrever produções pertencentes a outros gêneros; mas ao nos depararmos com seu nome em obras narrativas, mobilizamos nossa memória discursiva que resgata essas informações disponíveis no arcabouço cultural social – informações sobre outros livros que ele já escreveu, prêmios que já ganhou, etc. – e nos indica ser possível estarmos diante de uma biografia. O nome do autor, nesse caso, funciona como aquilo que Amossy (2005) chama de ethos prévio.

Algumas vezes, entretanto, a presença do nome do biógrafo nas capas e lombadas não é suficiente para a indicação do gênero tampouco para nos auxiliar na construção do ethos do biógrafo. Isso acontece, sobretudo quando o biógrafo em questão é desconhecido. Esse parece ser o caso das biografias Joaquim Callado: o pai do choro . Mauá: empresário do império, escritas respectivamente pelo historiador André Diniz e pelo jornalista Jorge Caldeira. Salvo um contexto muito específico – o universo jornalístico ou historiográfico, ou o contexto acadêmico do qual aquela biografia é fruto – somos levados a crer que a maioria dos leitores6 não reconheceria a obra como biografia a partir da indicação do nome do autor. O mesmo pode se dizer em relação ao ethos prévio: o nome, por si, só, não mobilizaria informações capaz de antecipar representações acerca do autor-biógrafo.

3.1 Joaquim Callado: o pai do choro

Já no início da biografia Joaquim Callado: o pai do choro encontramos especificado o estatuto social do biógrafo – historiador – o que permite a identificação da biografia com esse campo do saber. Lembremo-nos que, ao que tudo indica, o nome do biógrafo – André Diniz – não seria suficiente para mobilizar informações para a construção do ethos do biógrafo, sendo, pois necessário outros elementos. Vejamos um trecho da orelha da obra:

Escrito pelo historiador André Diniz em linguagem saborosa, Joaquim Callado: o pai do choro não se limita a narrar a quase desconhecida história de vida do flautista. Reconstitui também o ambiente social e político do Rio de Janeiro na época em que a música autoral se firmava no país. (DINIZ, 2008, grifo nosso).

Essa demarcação sobre o estatuto profissional de André Diniz pode mobilizar algumas imagens, sobretudo aquela da hermeticidade do texto dos historiadores, indicada no item 1 desse artigo. A fim de evitar essa associação, o sujeito enunciador do trecho em questão apresenta uma característica da narrativa – a linguagem saborosa. Assim, ao destacar uma qualidade da biografia de Joaquim Callado, a imagem da biografia é realocada de um possível texto acadêmico e monótono – tradicionalmente associado aos historiadores – para um texto com qualidades estéticas, em virtude do uso de uma linguagem mais agradável.

Para auxiliar na identificação das imagens construídas na narrativa sobre o campo discursivo de ancoragem (no caso, a História) e sobre o próprio biógrafo, recorremos a um fragmento do paratexto apresentação:

Quando, em 2002, terminei minha dissertação de mestrado no Departamento de Memória Social da UNIRIO, nunca poderia imaginar que aquela paixão cultivada pelas rodas de choro em minhas andanças pelo Rio de Janeiro, e não raro pelo Brasil, e que virou meu objeto de estudo, acabasse me lançando como aspirante a escritor na literatura de nossa música popular. (DINIZ, 2008, p. 14, grifo nosso).

No fragmento acima, já estamos diante de um texto em que o sujeito biógrafo é o enunciador e apresenta informações a respeito de si. O biógrafo também tenta demarcar seu estatuto profissional de historiador ou, no mínimo, ligado à História, ao referir-se ao Departamento de Memória Social. Ainda, novas informações são acrescidas: o trabalho é fruto de uma dissertação de mestrado, o que induz a uma ideia de se tratar de uma investigação mais profunda, procedida por rigor metodológico e por auxílio a aportes teóricos. Ao ancorar seu trabalho ao campo acadêmico da História, o biógrafo relaciona o seu trabalho a um saber de conhecimento científico, que pode ser comprovado e verificado. Tais informações podem a contribuir para a construção de um ethos de erudição ao biógrafo.

Todavia, dizer que a obra é fruto de uma dissertação de mestrado, pode ancorar a biografia novamente ao imaginário da hermeticidade. O biógrafo relata que o mesmo objeto de estudo – portanto as rodas de choro e a vida de Joaquim Callado – o condicionara como aspirante a escritor. Esse novo estatuto assumido pelo biógrafo pode ser relacionado à informação encontrada na orelha, que caracteriza a biografia como portadora de uma linguagem saborosa. Se a acuidade com a linguagem e as qualidades estéticas de um texto são tradicionalmente atribuídas ao texto literário, o biógrafo permite que vinculemos sua biografia a um novo campo: o da Literatura. Assim, a biografia passa a ser caracterizada tanto por característica do campo da História quanto pelo da Literatura. Assim, o biógrafo tenta projetar para si a imagem literato, de bom escritor.

Essa preocupação com a plasticidade e a forma do texto não serão comprometedoras do estatuto de verdade da biografia: este estatuto será garantido pelos preceitos ontológicos do ofício do historiador. Para que não haja dúvidas, o biógrafo comenta:

Por isso, o livro que ora o leitor tem em mãos traz a esperança de que o esforço empreendido para compor a vida do flautista esteja o mais próximo possível da realidade, daquela realidade tão cara aos historiadores, mas tão negociada, nos últimos tempos, diante da narrativa dos escritores e jornalistas. (DINIZ, 2008, p. 14).

O compromisso com a verdade é assumido como baliza de extrema importância para o trabalho do historiador. Ao afirmá-lo, o biógrafo pretende demonstrar que esse também é um traço característico de seu trabalho, ou seja, as informações apresentadas na narrativa correspondem à realidade que foi resgata pela investigação e pela reconstituição histórica advindas de sua atuação como historiador e pesquisador. Esse trecho evidencia, pois, o compromisso do biógrafo-historiador com a busca da verdade e parece ser indicador de uma possível imagem de dedicado – esforço empreendido – e de verdadeiro e crível.

No mesmo fragmento, o biógrafo aproveita para demarcar a diferença entre o seu campo de ancoragem – a História – e os campos do Jornalismo e da Literatura. Essa diferenciação traz uma caracterização positiva para o campo do biógrafo, o compromisso com a verdade, e pressupõe uma falta de compromisso dos demais campos com esse mesmo preceito. Ao dizer que a aproximação com a realidade nas narrativas construídas por escritores e jornalistas é negociada, ele insinua que as informações trazidas por biografias produzidas por tais sujeitos podem não ser efetivamente comprometidas com a realidade. Assim, ao questionar a credibilidade das biografias de outras áreas o biógrafo tenta construir, pela comparação dos campos, a credibilidade de sua própria narrativa biográfica.

Em síntese, acreditamos que os trechos destacados podem ser reveladores de uma tentativa de projeção da imagem do biógrafo André Diniz com todas as qualidades de um historiador – dedicado, verdadeiro, rigoroso, erudito – e acrescido de habilidades artísticas, como as habilidades linguístico-textuais.

3.2 Olga

Tratemos agora da projeção de imagens para um outro campo discursivo, o do Jornalismo. Utilizaremos com exemplo, a biografia de Olga, escrita pelo jornalista Fernando Morais. Como já destacado, é bem provável que o nome do autor já seja mobilizador de informações sobre o biógrafo, no mínimo projeta-se que o nome seja suficiente para provocar o reconhecimento do autor como biógrafo e/ou jornalista. Destacamos um fragmento do texto disponível na contracapa, atribuído a Jorge Amado:

Nos últimos anos, poucas obras alcançaram no Brasil sucesso tão estrondoso quanto esta biografia de Olga Benário Prestes. Jornalista renomado, Fernando Morais revelou-se também um pesquisador competente, e escritor dotado de sensibilidade e talento. Com simplicidade, sabedoria e grandeza, ele soube recriar um drama profundamente humano de nossa época. (MORAIS, 1994).

O fragmento em questão procura demarcar o estatuto social ocupado pelo biógrafo: o de jornalista, acrescido pelo adjetivo renomado, que indica a notoriedade do biógrafo. Todavia, a caracterização do biógrafo não se limita ao reconhecimento de sua fama como jornalista. O sujeito enunciador Jorge Amado apresenta novos atributos para o biógrafo: o de pesquisador competente e o de escritor sensível e talentoso. O uso do verbo revelar denota que tais atributos não eram esperados ou não eram conhecidos. Assim, a narrativa sobre Olga permite que os leitores conheçam algumas qualidades de seu biógrafo.

Sobre esses atributos, algumas considerações podem ser feitas. A primeira questão é sobre os atributos: se Jorge Amado enumera separadamente os estatutos de jornalista, pesquisador e escritor, é porque considera haver distinções entre eles. E por serem distintos, a vinculação a cada um desses campos irá trazer características diferenciadas para o trabalho do biógrafo e para a narrativa produzida.

Em segundo lugar, devemos notar a presença de um qualificador para cada estatuto: jornalista com fama, notoriedade; pesquisador com competência; escritor com sensibilidade e talento. De certa maneira, podemos considerar que aqui ele mobiliza as três provas retóricas: o ethos, ao referir-se a uma imagem acerca do profissional jornalista e a competência por ele possuída como pesquisador; ao logos, pois a competência na pesquisa indica uma preocupação com o discurso em si, isto é com a narrativa a ser produzida e com as informações que ela pretende revelar; com o pathos, em função da mobilização de disposições afetivas relacionadas ao processo de escrita. Indiretamente, essas informações também podem ser associadas aos três campos possíveis de serem associados aos três estatutos: do Jornalismo, da História e da Literatura, respectivamente. É como se o Jornalismo estivesse mais relacionado à construção da imagem do próprio biógrafo; o pesquisador (aqui entendido como historiador) com o discurso em si e com a autenticidade do mesmo; e o escritor com a projeção de emoções por meio de sua narrativa.

Jorge Amado ainda atribui três características para a narrativa produzida por Morais: simplicidade, sabedoria e grandeza. Somos novamente levados a crer que esses adjetivos devem associar-se aos estatutos sociais ocupados pelo biógrafo e aos campos que eles se ancoram. Ao Jornalismo, é associada à ideia de simplicidade que repercute nas orientações teóricas de Bahia (1990), segundo as quais o jornalista deve facilitar o acesso da informação ao seu público, por meio de, dentre outras coisas, uma linguagem precisa e simples. Charaudeau (2006) complementa essa ideia, dizendo que o jornalista busca ser o educador da opinião pública. À História, relacionamos o qualificador sabedoria. Numa interpretação tradicionalista e pautada em elementos dóxicos, podemos dizer que o conhecimento científico tende a ser um forte indicador de sapiência, de sabedoria. Se a atividade do historiador se caracteriza pela primazia da pesquisa e da investigação de acordo com preceitos metodológicos e teóricos mais rígidos, o resultado dessa atividade se configura como conhecimento científico e, por conseguinte em sabedoria. Por fim, a grandeza atribuída à narrativa pode ser entendida como referente ao processo de recriação da história e de delineamento de uma personagem tão complexa. Assim, a grandeza é vista como uma qualidade do potencial narrativo da biografia, qualidade está tradicionalmente atribuída a trabalhos que se vinculam ao rol da Literatura.

Por esse prisma, ao indicar que o biógrafo Fernando Morais possui os três estatutos – o de jornalista, o de historiador e de escritor, o sujeito enunciador Jorge Amado permite que projetemos na biografia características das três áreas. Por conseguinte, somos levados a crer que a biografia tende a ser completa, profunda, e que o biógrafo também desempenhou com maestria o seu trabalho.

Ainda na biografia de Olga, encontramos outros elementos capazes de caracterizar o campo do jornalismo. Um exemplo é o paratexto Sobre Olga, uma seção que destaca alguns aforismos7 midiáticos sobre a biografia em questão. Destacamos a seguir um desses aforismos, referente ao jornal alemão Süddeutsche Zeitung: “Este romance-documentário é uma obra jornalística de mestre, que prende o leitor da primeira à última palavra”. (MORAIS, 1994, p. 261).

O aforismo revelado pelo fragmento acima apresentado identifica a biografia Olga como pertencente ao Jornalismo e a qualifica como sendo uma produção de mestre. Essa expressão conota que a obra em questão é caracterizada como de grande qualidade, como merecedora de destaque, resultado de um trabalho de um profissional. Ainda, o enunciado nos permite caracterizar a biografia como romance-documentário, o que indica a mobilização de gêneros proveniente do Jornalismo – o documentário – e da Literatura – o romance. Sendo assim, encontram-se mobilizados imaginários reveladores de uma caracterização dupla da obra: a preocupação com o estatuto de verdade, mas também com a literalidade, com a construção de uma narrativa envolvente e de qualidade estética.

3.3 Mauá: empresário do Império

Conforme pontua Amossy (2005), ainda que a imagem ethótica seja resultado da apresentação de si que o locutor revela em sua fala, ela é estruturada também em função de dados prévios circulantes na sociedade acerca desse locutor. No caso em questão, o sujeito comunicante que instaura um enunciador é o biógrafo Jorge Caldeira. Se o interlocutor não souber nenhuma referência prévia sobre este sujeito, estas poderão ser facilmente coletadas na orelha da biografia:

Jorge Caldeira nasceu em 1955, em São Paulo. Jornalista, é doutor em ciência política e mestre em sociologia. Publicou a biografia de Noel Rosa, De costas para o mar, pela editora brasiliense. Em 1997, pela Companhia das Letras, publicou Viagem pela História do Brasil. (CALDEIRA, 1995, trecho disponível na orelha da biografia).

As informações acima reveladas permitem que já conheçamos algumas informações referentes ao estatuto socioprofissional ocupado pelo biógrafo: além de jornalista, ele também é um acadêmico, um pesquisador. Outra informação importante diz respeito ao tipo de obras já escritas por ele: o autor já escrevera um livro de História e também outra biografia. Essas informações nos permitem projetar algumas características para esse biógrafo, que poderão ser ou não confirmadas pela narrativa:

  1. (i) Por ocupar estatutos socioprofissionais variados – de jornalista e de pesquisador – vislumbramos uma tendência de mescla de características desses dois ofícios no fazer-biográfico de Jorge Caldeira. Assim, ele poderá, a depender de suas intenções, apresentar-se como jornalista – se julgar serem as características desse profissional as mais importantes para a qualificação de um biógrafo; ora apresentar-se como um pesquisador, se o objetivo for evidenciar as qualidades desse ofício.

  2. (ii) O biógrafo poderá valer-se de sua experiência anterior na escrita de livros e apresentar-se como alguém experiente e dotado de legitimidade para a escrita de uma nova biografia.

Tendo em mente as possibilidades acima mencionadas, passemos, pois a análise de alguns trechos do paratexto de apresentação do livro:

Aos poucos, o que era apenas curiosidade foi se tornando problema. Trabalhando como jornalista de economia – na Folha de S. Paulo, IstoÉ e Exame – num país em convulsão monetária permanente, comecei a perceber que muitos problemas atuais não o eram tanto assim, e me senti tentado a olhar mais para a figura de Mauá, buscando futuro no conhecimento do passado. (CALDEIRA, 1995, p. 543, grifo nosso).

O fragmento acima permite que façamos algumas ponderações. O uso do substantivo curiosidade já mobiliza um imaginário acerca do profissional jornalista. Essa característica é necessária e esperada daqueles que se propõe a atuar no jornalismo em suas mais variadas áreas. Logo, Caldeira se projeta como um jornalista dotado dos requisitos demandados por sua profissão.

A imagem de jornalista projetada no discurso ganha contornos mais significativos quando ele revela as empresas de comunicação nas quais trabalhou. Independente de julgamentos acerca da política editorial de tais empresas, estamos diante de três grandes importantes veículos de comunicação no país, o que contribui como um qualificador positivo de seu estatuto profissional – no mínimo, ele pode ser visto com um repórter com experiência.

Além da experiência profissional, o biógrafo indica uma experiência, uma familiaridade com o tema economia, em virtude dessa sua atuação profissional. Assim, ele já se projeta como alguém legítimo para falar de uma personalidade econômica, como classificamos o personagem por ele escolhido para biografar. Trata-se de alguém que, por conhecer a fundo a economia, notadamente a brasileira, saberá revelar os imbricamentos entre a vida de seu personagem e a história econômica do país.

Interessante notar que ainda que o fragmento esteja marcado pela projeção de uma imagem de jornalista experiente, é possível perceber uma indicação para a imagem do biógrafo pesquisador. Ao dizer que a curiosidade se tornou problema, já antevemos essa mudança de estatuto: mais do que o jornalista, quem entrará em cena, muito em breve, será o pesquisador. Vejamos:

Em 1990, a tentação se tornou compulsão. Levado por Sérgio Góes de Paula, visitei pela primeira vez um arquivo – o do Museu Imperial de Petrópolis – em busca de documentos do visconde. Nesta altura já tinha lido várias biografias, mas nunca pensando em ir além do diletantismo. Aos poucos, a ideia de um trabalho maior foi ganhando fôlego. O entusiasmo de Sérgio sobre o período foi um poderoso estimulante e, guiado por ele, comecei a me embrenhar na bibliografia sobre o Império. A partir daí, o destino me empurrou na direção do livro. (CALDEIRA, 1995, p. 543-544, grifo nosso).

O substantivo compulsão denota o nível de envolvimento do biógrafo com seu tema e, por conseguinte, com seu trabalho. Pesquisar o império, a economia brasileira e a vida de Mauá havia se tornado quase um vício, algo que ele não conseguia deixar de fazer. Se em muitos casos, um comportamento compulsivo pode ser negativo, no caso do fazer-biográfico, essa atitude pode ser vista com uma conotação positiva: o vício da pesquisa permite uma imersão maior e mais profunda do biógrafo, o que tende a materializar em uma narrativa mais confiável e mais completa.

Ainda no trecho acima, o biógrafo relata algumas etapas de seu processo de pesquisa: a vista ao arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, a leitura de várias biografias e de material bibliográfico sobre o Império. A enumeração dessas atividades também permite que se projete uma imagem favorável para o biógrafo e para a biografia que resultará de seu trabalho. Afinal, ele demonstra ser alguém que leu, estudou a fundo o tema antes de escrever sobre ele. Percebe-se a projeção de um ethos de estudioso, de seriedade, além da imagem ethótica de experiente já projetada anteriormente.

É necessário pontuar ainda que, o enunciador biógrafo, parece querer indicar que a biografia não havia sido planejada. Já comentamos sobre indicação de um vício, de uma necessidade, instaurados pelo substantivo compaixão. Essa necessidade parece ter/ sido construída pouco a pouco, na medida em que ele próprio se enveredava pelo tema. O que resultava de sua curiosidade e de seu diletantismo se tornava agora uma necessidade: ele se sentia na obrigação de revelar aquela vida. Nas palavras do biógrafo, aos poucos, a ideia de um trabalho maior foi ganhando fôlego, o que quer dizer que ela não foi totalmente planejada. Essa inexistência de um plano, a priori, também é assumida novamente por Jorge Caldeira quando ele diz que:

Quando tomei a decisão de estudar a fundo a vida de Mauá, tinha apenas uns vagos planos traçados. As coisas só começaram a tomar forma algum tempo depois, graças à ajuda de dois amigos: de novo Sérgio Góes, e agora Luiz Marcos Suplicy Haffers. (CALDEIRA, 1995, p. 544).

O trecho acima também nos permite perceber a existência de alguns atores coadjuvantes nesse processo de composição biográfica de Mauá. Ao revelar e reconhecer a ajuda de outras pessoas, o biógrafo além oferecer o crédito a quem de direito, projeta uma imagem de si calcada na humildade: ele não quer colher o sucesso sozinho; ele reconhece a ajuda recebida e faz questão de compartilhá-la com seus leitores. Mais do que a simples revelação de fontes, preceito tão em voga tanto no ofício historiográfico quanto no jornalístico, o biógrafo quer dividir os méritos de seu trabalho.

Por fim, retomamos um último trecho dessa seção paratextual, para coletarmos alguns elementos finais necessários para a (re)construção da imagem de si empreendida por Caldeira. Ele relata que tomara uma decisão:

[...] deixar um posto de trabalho bem pago num momento de recessão aguda e me atirar no vazio da investigação. [...] Nesse ritmo, consumi as reservas financeiras de uma vida de trabalho, e só cheguei a uma ideia precisa do que queria no momento em que o dinheiro estava para acabar. Antes que eu desistisse de tudo, no entanto, duas outras figuras se encarregaram de me manter no caminho. Primeiro meu pai, o sisudo professor de oftalmologia Jorge Alberto Fonseca Caldeira, que mesmo não gostando nada do que estava vendo incentivou-se a continuar e ajudou nos momentos em que a falência estava próxima. Depois foi a vez de Candido Bracher. Bom conhecedor de história bancária e de história do Brasil, forneceu o caminho das pedras para muitos assuntos, ajudando a organizar o que estava disperso. Das conversas, nasceu um projeto mais claro, mas que colocava um problema prático, o de realizar mais pesquisas na Inglaterra, no Uruguai e na Argentina. Nesse momento fui brindado com um apoio definitivo uma bolsa do banco BBA Creditanstalt, que tornou viável a execução do projeto. (CALDEIRA, 1995, p. 544).

A compulsão por revelar a vida de Mauá atingira limites inimagináveis: o biógrafo abdicara de seu emprego, mesmo em tempos de recessão econômica, para se dedicar exclusivamente à investigação da biografia. Se por um lado, essa atitude pode ser vista como imaturidade e irresponsabilidade, por outro, elas demonstram um grande compromisso do biógrafo com seu fazer-biográfico: este se tornara seu ofício mais importante. As dificuldades parecem ter sido grandes: a iminência da falência poderia ter interrompido o trabalho.

Contudo, a solução emerge mais uma vez pela ajuda de pessoas amigas e dessa vez, em definitivo, pelo financiamento da pesquisa através de uma bolsa de uma instituição bancária. Nota-se que podemos perceber os contornos da imagem de um grande vencedor: enfrentou os maiores desafios para conseguir concluir seu trabalho. Nesse sentido, a imagem projetada do biógrafo reflete algumas nuances da imagem construída para o próprio personagem: alguém que superou os desafios de sua época para se tornar um grande empresário. Caldeira atravessou os percalços de seu contexto – dificuldade financeira, temáticas herméticas para serem contadas busca por fontes espalhadas e desconhecidas, etc. – para se projetar como um grande biógrafo. Alguém que se desafiou e venceu.

Interessante notar que uma das características que esperávamos ser mobilizada pelo biógrafo na construção da imagem de si – a indicação da experiência na escrita de livros – não foi por ele utilizada. O biógrafo ancora-se em seu saber de jornalista, adquirido pela experiência e no seu saber de pesquisador, mobilizador de um saber de conhecimento científico. As imagens projetadas, a de um biógrafo engajado e comprometido com o trabalho, que enfrenta os maiores desafios para a revelação de sua história, estão fixadas principalmente a partir desses tipos de saber.

4 Algumas palavras para concluir

Em síntese, podemos dizer que nas biografias estudadas neste artigo, foi possível notar uma recorrência na construção da imagem de biógrafo entrelaçada ao estatuto profissional por ele ocupado. As informações referentes a esse estatuto, isto é, a caracterização do biógrafo como jornalista ou como historiador, tende a auxiliar na composição da imagem do biógrafo, mas esta não será essencializada em função deste estatuto profissional.

Por meio de nossas análises, pudemos notar que o ethos do biógrafohistoriador (André Diniz) esteve associado a um saber de conhecimento teórico, em função da caracterização tradicional e dóxica da História como atividade essencialmente de pesquisa, acadêmica. Todavia, os contornos negativos que tal associação poderia projetar foram minimizados pela revelação de habilidades e características mais “artísticas” do biógrafo, como as habilidades narrativotextuais.

Por outro lado, ao ethos dos jornalistas (Fernando Morais e Jorge Caldeira), encontramos informações vinculadas a um saber de conhecimento pela experiência: o jornalista aprende a investigar e a narrar a vida de personagens e o contexto no qual ele vive, em função de sua atividade rotineira de narração de acontecimentos. Ainda o jornalista se caracteriza por um compromisso com a inteligibilidade das informações e da própria narrativa, graças às suas habilidades textuais decorrentes do exercício da profissão.

Em um cenário de concorrência e de proliferação dos títulos nas livrarias, a projeção de uma imagem positiva do biógrafo (e não apenas do biografado) pode funcionar como estratégia discursiva. Charaudeau (2008) propõe:

A noção de estratégia repousa na hipótese de que o sujeito comunicante (EUc) concebe, organiza e encena suas intenções de forma a produzir determinados efeitos – de persuasão ou de sedução – sobre o sujeito interpretante (TUi), para levá-lo a se identificar – de modo consciente ou não – com o sujeito destinatário ideal (TUd) construído por EUc. (CHARAUDEAU, 2008, p. 56).

A partir de nossas análises, podemos dizer que a estratégia consiste em operacionalizar os meios de persuadir ou seduzir o interlocutor, a partir da instauração de alguns procedimentos discursivos. Acreditamos que a projeção do ethos funciona para conferir credibilidade às narrativas. O procedimento discursivo principal parece ser caracterizar o campo no qual aquela produção se insere e demonstrar que dele traz marcas.

Em relação à estratégia de credibilidade, de acordo com Charaudeau (1995), o sujeito que comunica deve ser percebido como alguém que diz a verdade, que comprove um “saber dizer”. Para a credibilidade ser instaurada, é preciso que sejam evidenciados alguns elementos discursivos indicadores da posição de verdade do sujeito. A partir deles, este sujeito poderá ser julgado como verdadeiro e credível. Tais elementos devem comprovar a autenticidade das informações reveladas bem como indicar as provas e razões para tal julgamento.

REFERÊNCIAS

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Notas

2 Somente na terceira fase dos Annales que a história narrativa e a biografia voltam a ganhar destaque.
3 Este trabalho contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Bolsa de doutorado e bolsa de doutorado sanduíche).
4 Disponível em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=660548 >. Acesso em: 03/04/2011.
5 Vale ressaltar que outros paratextos podem ser reveladores de marcas retórico-discursivas dos sujeitos biógrafos.
6 Estamos considerando a maioria dos leitores como os sujeitos destinatários das biografias, conforme conceituação de Charaudeau (2010). No caso em questão, acreditamos que os sujeitos destinatários seriam pessoas interessadas na vida dos biografados e não especificamente nos biógrafos.
7 Com base em Maingueneau (2010), podemos caracterizar o aforismo como uma citação deslocada, geralmente marcada por aspas, de um discurso através da intervenção de um terceiro com o objetivo de criar um efeito de autoridade. Este enunciado é dirigido a um auditório indeterminado e tem como enunciador um sujeito majestoso.

Autor notes

1 Doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: mariana.procopio@ufv.br


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