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Um conto de Natal e a fé no consumo

A Christmas tale and faith in consumption

João Anzanello Carrascoza
Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil

Um conto de Natal e a fé no consumo

Interin, vol. 21, núm. 1, pp. 129-144, 2016

Universidade Tuiuti do Paraná

Recepção: 26/11/2015

Aprovação: 31/03/2016

Resumo: Por meio de narrativas imaginárias que visam fazer o consumidor crer nos benefícios de um produto ou serviço, a publicidade se vale de elementos do realismo literário, como a verossimilhança, o narrador observador e o detalhe expressivo, entre outros. O intuito aqui, dando sequência a nosso projeto de discutir a poética publicitária e as práticas de consumo na sociedade contemporânea por meio de obras de ficção, é demonstrar como esse fazer crer se revela, metaforicamente, no enredo do conto Natal na barca, da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, e nos possibilita estudar aspectos ontológicos da publicidade. Para isso, vamos entrelaçar conceitos da teoria literária e da linguagem publicitária junto a estudos sobre o consumo.

Palavras-chave: Consumo, Literatura Brasileira, Publicidade.

Abstract: By means of imaginary narratives, which aim to make the consumer believe in the benefits of a product or service, advertising uses elements of literary realism, such as verisimilitude, the narrator-observer and the expressive detail, among others. As a sequence of our project, which involves discussing the poetics of advertising and the consumption practices in contemporary society by means of works of fiction, our purpose is to demonstrate how this making believe reveals itself, metaphorically, in the plot of the tale “Natal” - “Christmas” on the ferryboat, by the Brazilian writer Lygia Fagundes Telles, and how it enables us to study ontological aspects of advertising. Therefore we will intertwine concepts of literary theory and of the language of advertising with studies on consumption.

Keywords: Consumption, Brazilian Literature, Advertising.

Início da travessia: mundos de luz e sombra

Não são poucas as críticas feitas à publicidade, sobretudo aquelas, vindas de seu próprio habitat, como a do “publicitário” Oliviero Toscani (1995), que a acusa de construir um mundo unicamente solar, no qual não há morte, nem dor, e onde tudo é lindo e maravilhoso. Torres i Prat (2005) afirma que esse mundo, artificial e fascinante, é a autêntica Matrix do nosso tempo, em alusão ao filme de ficção científica dos irmãos Wachowski. Levy (2003), por sua vez, relativizando o vetor positivo da publicidade – o fomento ao consumo –, enfatiza o seu lado negativo, o de operar contra a própria imagem das marcas anunciantes, gerando consumidores insatisfeitos, já que a experiência do público com os produtos e serviços não corresponde à “realidade” luminosa das mensagens.

Rocha (1990) argumenta que as mazelas no domínio da produção dos bens, onde avulta a desumanização, “desaparece” quando o discurso das empresas passa por uma ponte – a publicidade –, para o lado do consumo, território onde as mercadorias se humanizam. Podemos dizer, assim, que o mundo das sombras, lastreado no real, digladia com o mundo do sol, o idílio do consumo, e, à semelhança dos homens que na mitologia grega desciam às terras dos mortos, o discurso corporativo, passando pelas águas transformadoras do rio Letes (a criação publicitária), “esquece” o lado negro ao alcançar o lado da luz.

O conto Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles, que aqui vamos retextualizar para discutir aspectos da poética publicitária, começa justamente com a narradora enunciando “não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca”, frase que se aproxima do início do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes Saavedra (1993, p. 29), obra que também registra uma “trajetória” de transformação: “num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me...”

A protagonista-narradora de Natal na barca abre a história quando a barca já havia saído de uma margem e singrava o rio em direção à outra: “Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher, uma criança e eu” (TELLES, 1996, p. 67). Eis aí, delineados, os dois mundos – um, como veremos, obscuro e do qual ela se afasta; e o outro, que a receberá “transformada”.

O conto vai partindo, como a barca, de um território sombroso, que a narradora quer esquecer, em direção à outro, uma cidade, não por acaso maior – já que uma metamorfose pressupõe alargamento do ser. Pelas suas primeiras linhas, sabemos que a viagem está no fim, é noite – e a ela se associa o passado –, mas não noite a caminho de ser noite ainda mais funda e, sim, noite que ruma para chegar à luz, ao futuro: “ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal” (TELLES, 1996, p. 68). Se a noite (morte) é o reino sombrio, o Natal (vida) é a nova existência que vem à luz.

A protagonista-narradora não faz nenhuma descrição do barqueiro, que, como o universo, é indiferente às alegrias e às dores das criaturas e segue fluindo no rio da História. O velho é apenas um “bêbado esfarrapado”, que conversa com um “vizinho invisível” e, depois, dorme. A mulher apertava nos braços a criança enrolada em panos e, “o longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga”. Essa demarcação de traços caracterizadores dos personagens nos possibilita uma imediata e produtiva aproximação com a publicidade.

Bizzocchi (2003, p. 92-95), apoiando-se na semiótica modal de Greimas (o querer e o dever), afirma que o discurso apresenta várias funções hedônicas (o querer), entre as quais a estética (o querer saber) e a mística (o querer crer). Por outro lado, como já apontado por Carrascoza (2007), a publicidade apresenta duas linhas de forças criativas – a apolínea, que se vale de argumentos lógicos (razão); e a dionisíaca, que visa influenciar o público através de narrativas (emoção). Percebemos de saída, no conto em questão, a dominância da variante dionisíaca no discurso publicitário, pois, como veremos, a história dessa mulher com uma criança é que vai fazer a personagem-narradora, então incrédula, efetivamente crer.

Assim, podemos dizer que o barqueiro é a entidade maior, o sistema produtivo. O velho representa o consumidor inatingível, aquele que, apesar das tentações do discurso, não pode nem vai consumir o produto. A mulher, a figura antiga – sua descrição no contexto, por isotopia, remete a Nossa Senhora –, cumpre o papel da linguagem publicitária.

Mas, para a linguagem assumir a sua função hedônica mística, ou seja, para que a narradora possa querer crer, é preciso que ela, a linguagem, “aconteça”, que ela entre em curso, passando para a condição de discurso – coisa que se dará por meio da palavra. A narradora delimita o tempo e espaço cênico – a travessia da barca – apresenta os personagens, realçando a “mulher jovem e pálida”, e comenta que, até então, não lhe ocorrera dizer a ela qualquer palavra. Enfatiza, inclusive, que “nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo” (TELLES, 1996, p. 68).

É sabido, contudo, que a publicidade, desde suas origens, mesmo com a ubiquidade midiática contemporânea, opera por meio de uma lógica de interrupção, ainda que não unicamente – as peças publicitárias “quebram” a sequência de notícias (numa publicação impressa, como jornal e/ou revista), ou a programação do rádio e da tevê (ocupando o “intervalo” comercial), em especial (mais no passado e menos atualmente) quando o público desfruta de seu tempo livre.

Para ocupar essa pausa, a narradora do conto mergulha a ponta dos dedos na água do rio; esse seu gesto vai romper o silêncio – ela comentará que a água está gelada – e iniciará a passagem definitiva do mundo das sombras para o mundo da luz. Isso porque a mulher, no ato, dirá em resposta “mas de manhã é quente”, e completará, já desdobrando a argumentação por meio da narrativa, “de manhã esse rio é quente... quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada” (TELLES, 1996, p. 68).

O “verde” foi atirado, o discurso publicitário foi posto em operação a fim de levar a narradora a querer crer. A “esperança” da publicidade é, pois, que se acredite na sua narrativa.

A narrativa de um dano e a fé em sua reparação

Quando investe no fazer crer, portanto, por meio da ênfase em “argumentos” emocionais, o discurso publicitário mimetiza formatos literários, em especial a narrativa breve, quase sempre episódica.

Piglia (1994, p. 37-40) afirma que um conto carrega invariavelmente duas histórias – uma aparente e outra oculta –, e, apoiando-se em sua teoria, Carrascoza (2007, p. 82-83) demonstrou que as peças publicitárias, quando elaboradas à moda das short stories, trazem também duas histórias – uma, variável, que plasma, por meio do enredo, uma situação vivenciada pelos personagens; e outra, fixa, que tangibiliza a sua razão de ser, o diferencial do produto anunciado (o seu consumo simbólico, discursivo, e o convite para o seu consumo material).

No conto “literário”, como diz Piglia, a segunda história, cifrada, no final vem à superfície, onde se encontra com a primeira, e então se revela plenamente, aos menos aos olhos do “leitor semiótico”, para usar uma conceituação de Eco (2003, p. 208). Leitor esse que, diferente do “leitor semântico”, não deseja apenas saber o que acontece, mas, sobretudo, como é narrado o que acontece na história. O mesmo ocorre com a narrativa da publicidade, de curta duração, seja ela expressa num anúncio ou num filme. No anúncio de Aspirina C (fig. 1), por exemplo, a imagem no canto superior esquerdo nos mostra células do vírus da gripe, apresentando a primeira história por meio do seguinte diálogo:

– E o Gracie?

– Já derrubei.

– Mike Tyson?

– Também.

– Maguila?

– Uma quatro vezes.

Anúncio Aspirina C.
Figura 1
Anúncio Aspirina C.
Fonte: 25o Anuário do Clube de Criação de São Paulo, 2000, p. 115.

Essa história (primeira) nos lembra, portanto, que, independentemente de sermos fortes, como os campeões de boxe (Mike Tyson e Maguila) ou de outras modalidades de luta (Gracie), o vírus da gripe vai nos derrubar. No canto inferior esquerdo do anúncio, a segunda história, então oculta nas entrelinhas da primeira, se materializa, com a imagem de dois envelopes de Aspirina C e a seguinte frase, que enuncia a moral da peça publicitária: “O vírus da gripe não perdoa ninguém. Fique prevenido, tome Aspirina C”.

Outro anúncio, de Loções Dove (fig. 2), traz o testemunho de uma mãe, com seu filho ao colo, em cujo ventre se pode notar, visivelmente, a marca de cirurgia cesariana. Vejamos o seu depoimento:

Ser mãe é uma experiência única. Algo tão extraordinário que só quem passa por isso pode compreender plenamente. O nascimento da minha filha é um marco na minha história. Esta cicatriz não poderia me deixar mais feliz. Para mim, ela significa nascimento. Como eu poderia sentir vergonha de algo que só me dá alegria? Por isso eu acho esta campanha das loções Dove tão importante. Não importam as diferenças de cor de pele, de marcas, porque toda mulher tem sua beleza. E estava mais do que na hora da gente poder sentir orgulho disso. Beijos, Paula.

Anúncio Loções Dove.
Figura 2
Anúncio Loções Dove.
Fonte: Revista Caras, novembro, 2004.

Na primeira história, Paula, a protagonista, em discurso direto, conta a sua experiência de ser mãe e a cicatriz que o nascimento de seu filho deixou em seu corpo, da qual ela não se envergonha. Então, emerge a segunda história, que é, como vimos, na publicidade, sempre relacionada ao consumo: ela usa loções Dove e concorda que a campanha “explore” criativamente as diferenças – sobretudo, as marcas – entre as mulheres, que, em verdade, deveriam, como no caso dela, se orgulhar de tê-las. Daí o slogan da campanha “Toda mulher é bonita se sua pele é bem nutrida”. Não importa se ela tem alguma cicatriz, sua pele, se tratada com loções Dove, será bonita.

Retornemos, agora, à trama de Natal na barca, à sua história aparente, que, para o leitor semiótico já insinua a ponta do fio que desenovela a história cifrada, o fazer crer que a mulher, com a criança no colo, uma vez iniciado o diálogo, fatidicamente, pelo comentário da narradora sobre a temperatura da água, irá operacionalizar, contando a sua vida.

A linguagem, como uma rede, está na mão de ambas, a narradora e a personagem feminina, e essa, questionada se “mora aqui por perto”, responde que mora em Lucena – palavra que remete, não sem intenção, à “luz” – e diz, ao contrário de sua interlocutora ao iniciar a história, o motivo pelo qual está ali, naquela barca, o seu filho está doente: “vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem, mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar” (TELLES, 1996, p. 69).

Estabelecido o diálogo, a história aparente desse conto vai se desdobrando, com a delimitação sólida, a partir dos fatos narrados pela mulher – assim como entre o anunciante e o público por meio da publicidade –, do mundo da luz, da crença em seu ponto de vista (esperançoso ante os trechos escuros da vida).

Se a narrativa literária é a exposição de um dano e sua tentativa de reparação – senão na “realidade” da ficção, ao menos no “percurso” da leitura –, eis que ela aparece aqui, logo em seguida, quando, indagada se esse menino febril é seu filho caçula, a figura feminina responde: “É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos” (TELLES, 1996, p. 69).

A narradora-protagonista, que fumava um cigarro – uma pequena luminosidade na escuridão –, apaga-o e se vê obrigada a mudar de assunto, o melhor era desviá-lo para àquele filho ali, doente, mas vivo, e, então, ela pergunta a idade do bebê. A mulher, depois de responder, “vai completar um ano”, continua a contar o seu dano, a perda do outro filho: “Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! Disse abrindo os braços. E voou” (TELLES, 1996, p. 69).

Se as mágicas desse menino falharam, as da publicidade alcançam melhor resultado. Por meio da linguagem, a publicidade transforma o mundo desumano da produção dos bens no mundo glamoroso do consumo. Como afirma Rocha (1990, p. 128): “nada mais mágico que o anúncio publicitário”.

Mas, ainda que a narradora queira “ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade”, ou seja, se manter no mundo das sombras, os “laços humanos”, atirados como uma rede pela mulher sobre ela, a envolvem e a levam a seguir a conversa, abrindo-se definitivamente para a concretização do fazer crer. A conversa segue com a pergunta “seu marido está à sua espera?”, ao que, imediatamente, a mulher responde “meu marido me abandonou”, revelando um alargamento do dano e sua ramificação em outra perda.

A narradora, sem ter como fugir da história, como o público ante a presença da publicidade nos mass media, se emaranha ainda mais, pois pergunta, em seguida, se faz tempo que a mulher foi abandonada pelo marido – e, assim, acaba por manter vivo o pretexto para que ela desdobre a sua história, e, então, a faça acreditar nas “vantagens” de seu mundo (de luz). Tanto é assim, que, depois de contar, com detalhes expressivos, que o marido a trocou por uma antiga namorada, a mulher aproveita para dizer a sua profissão, que reforça, como traço isotópico, seu papel persuasivo: “fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora” (TELLES, 1996, p. 70).

Se, no âmbito da história aparente de Natal na barca, há pouca importância nesse fato, de que a mulher é uma professora, na história oculta ela ganha dimensão vital, pois professor é aquele que professa, que faz alguém crer, que vai ensinar a narradora alguma lição – no nosso caso, o “benefício” do consumo. Sabe-se, curiosamente, que, desde seus primórdios, a publicidade carreia uma função pedagógica, de apresentar e incentivar o público em direção às novas formas e práticas de consumo. Os cartazes da Belle Époque, por exemplo, mostravam, didaticamente, “como” os novos produtos deveriam ser consumidos pelo público. Nesse afiche, pintado por Alphonse Mucha, para “bières de la Meuse”, não temos a ênfase no produto em si (a garrafa), mas o flagrante, que ocupa o centro do quadro, de uma cena de consumo – uma bela mulher bebendo cerveja (fig. 3).

Afiche Bières de la Meuse.
Figura 3
Afiche Bières de la Meuse.
Fonte: imagem capturada na rede2

Outro afiche, de Steinler, para a Compagnie Française des Chocolats et des Thés, apresenta, numa situação doméstica, o consumo de chocolate entre família (fig. 4).

Afiche Compagnie Française des Chocolats et des Thés.
Figura 4
Afiche Compagnie Française des Chocolats et des Thés.
Fonte: imagem capturada na rede3

Vale lembrar, também, que um dos recursos retóricos recorrentes no discurso publicitário é o “apelo à autoridade”, o testemunho de “personalidades” que detêm algum conhecimento, os mestres no assunto, que, então, “recomendam” ao consumidor esse ou aquele produto. E, se esse procedimento suasório, no passado, se assentava unicamente no uso de especialistas, ou figuras célebres, na atualidade, com espetacularização da vida cotidiana, a “autoridade” que protagoniza certas peças publicitárias pode ser um representante do povo, “gente como a gente”, desconhecida, até mesmo anônima, como a mulher do conto.

Em plano mais amplo, as próprias agências de publicidade, nos anos 1950, num dos períodos de grande crescimento do negócio publicitário no Brasil, em virtude do modelo desenvolvimentista de JK, como se, refém de um discurso de uma nota só, se posicionavam como “conselheiras” dos anunciantes (CARRASCOZA; HOFF, 2011). A elas cabia ensinar às empresas como estabelecer uma comunicação eficiente com o seu público, para gerar mais vendas.

De volta novamente à trama do conto, sabemos, agora, que aquela figura feminina ali está para professar a sua fé no mundo da luz – o consumo, em nossa analogia –, mas é preciso testar a sua “autoridade”, assim como a descrença da narradora vinha sendo colocada à prova desde que se iniciou o diálogo entre ambas. Assim ela expressa o estilo narrativo da mulher:

Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas (TELLES, 1996, p. 70).

A narradora diz, então, à mulher que ela é conformada, e ouve, em resposta: “Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou”. Em seguida, a mulher lhe pergunta se ela acredita em Deus. A narradora responde que sim, mas, ouvindo a própria voz, não suficientemente forte para desafiar o silêncio e a escuridão da noite, compreende que daí vem a segurança e a calma dessa mulher – a sua fé.

Fé que faz o milagre, a transformação, fé que foi capaz de levá-la de um mundo morto para um mundo vivo, como, imediatamente, ela faz questão de provar para a narradora, com o seguinte relato: logo depois da morte de seu menino, acordou uma noite desesperada, saiu descalça pela rua, chorando, feito louca, chamando por ele: “Sentei num banco do jardim, onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez” (TELLES, 1996, p. 71). Então, já sem lágrimas, ela encosta a cabeça no banco e dorme – e aí se dará, não por acaso, a “realização” de seu sonho, a transposição para a luz:

Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com a sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijo tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim”. (TELLES, 1996, p. 71).

Eis aí a felicidade que se consubstancia na esfera do consumo, na sua fruição, material ou simbólica – deixando para trás o lado escuro da produção. A vontade da mulher, de rever o filho morto, em Natal na barca, realiza-se por meio do sonho, elemento mágico, transformador, como a publicidade. Rocha (1990, p. 139) afirma que “o anúncio, como moldura de acontecimentos mágicos, faz do produto um objeto que convive e intervém no universo humano. O anúncio projeta um estilo de ser, uma realidade, uma imagem das necessidades humanas que encaixa o produto na vida cotidiana”.

O território publicitário, à diferença da realidade, é onde tudo se resolve, é a narrativa não de nossa vida, mas de uma “outra vida” possível e bem mais favorável. O mundo dentro dos anúncios elimina a dor, “a solidão, a exploração entre os homens, a doença, as minorias oprimidas”. (ROCHA, 1990, p. 140).

Em outras palavras, um conjunto de feitos mágicos são viabilizados no universo ficcional da publicidade. Mas, no conto em questão, a mágica principal, catalisadora definitiva da fé, então vacilante da narradora-protagonista, ainda não foi realizada. E o será, ato contínuo, quando ela, sem saber o que dizer depois de ouvir da mulher aquela façanha, levanta a ponta do xale que cobria a cabeça da criança doente: “O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto”. (TELLES, 1996, p. 71).

É o momento da “transformação”, quando a noite é mais noite, quando a treva é tão treva que dela brotará a luz. Como vimos, a água do rio, verde e quente, é símbolo da esperança – então, a narradora se debruça na grade da barca, respira penosamente se sente “como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água”. Nesse momento, a embarcação (e a primeira história) está justamente chegando ao outro lado, que não é, como pensa ela, o lado da realidade, mas, sim, o do sonho, e, para nós, o mundo luminoso do consumo.

A narradora, na iminência da ancoragem ao plano real, deseja fugir antes que a mãe descubra o filho morto, precisa se afastar ao máximo dali. É aí que, de fato, chegamos, nitidamente, ao clímax do conto – à semelhança do que ocorre na narrativa publicitária que faz coincidir a entrada do produto ao seu ponto de desfecho (CARRASCOZA, 2012) – o lance de mágica: antes que ela, já na outra margem, pudesse se afastar “daquele horror”, a mulher ergue o xale que cobria a cabeça do bebê:

– Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

– Acordou?!

Ela sorriu:

– Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos – aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar (TELLES, 1996, p. 72).

Nesse exato “instante” se dá o “milagre”, exequível no espaço da ficção, onde nem a verdade e nem a mentira vigoram, mas, sim, o “mágico”. A mulher ainda dirá à narradora, antes de desaparecer, “Então, bom Natal!” (TELLES, 1996, p. 72), recordando-nos que a ação do conto se passa na noite de Natal, na qual se comemora o nascimento de Cristo, a vinda à luz daquele que, depois, haveria de operar tantos milagres.

Terminada dessa maneira a “lição” dada pela professora à narradora, não nos resta senão indagar se a falta de fé dessa última vislumbrou a morte da criança quando nela ainda havia vida, ou se, de fato, a fé poderosa da mãe foi capaz de realizar a mágica de resgatá-la do mundo dos mortos. Seja como for, o fazer crer se torna, finalmente, algo feito, ainda que incrível. A professora nos mostra que, apesar dos danos sofridos (a morte do filho primogênito, o abandono do marido), é possível repará-los, por meio do passe mágico (da fé), e ela assim o fez, sobretudo graças à criança doente.

A narradora, a última a sair da barca, ainda vê o velho bêbado passar, conversando novamente com seu vizinho invisível – e ele, já o dissemos, representa os excluídos do consumo, aqueles que o discurso (a publicidade) não tem interesse em atrair, o que é uma posição recíproca. Já ela, uma vez “conquistada”, volta-se para o rio e pode imaginá-lo como seria de manhã cedo: “verde e quente. Verde e quente”. São essas as suas últimas palavras. E assim é, também, o mundo dentro das peças publicitárias: verde e quente. Bom e caloroso. Vivo e promissor.

A professora fez a narradora entrar em seu mundo – e, então, crer e comungar com seus valores. É como nos diz Douglas e Isherwood (2006, p. 125), “o desfrute do consumo físico é só uma parte do serviço prestado pelos bens: a outra parte é o desfrute do compartilhamento de símbolos”.

A história aparente deixa entrever, ao fim, a história oculta, que sobe à tona, para desaguar, também, no término de nossa retextualização. Entre uma e outra, corre, portanto, o rio metafórico que une as duas pontas do sistema capitalista – a produção e o consumo de bens.

O discurso ressuscita a fé no consumo

Assim como o conto de Lygia Fagundes Telles – após a travessia por essas águas interpretativas sobre o processo de fazer crer da publicidade a partir de uma obra literária –, chegamos à outra margem de nosso ensaio, onde, como vimos, as duas histórias se juntam.

Podemos concluir que, em Natal na barca, para além da história aparente, que recontamos, a história oculta está centrada no poder da crença, capaz de “ressuscitar” uma vida; e na descrença, que “vê” morte onde ainda há vida. Por meio dela, notamos, analogamente, como o discurso persuasivo é a “profissão de fé” da publicidade, e como, investindo num caminho dionisíaco, produz histórias para levar o público a acreditar em seu mundo – sempre possível – de luz. Não que as sombras estejam ausentes da narrativa publicitária, mas o universo solar, evidentemente, é aquele que nela predomina. Em sua crítica à propaganda, Toscani (1995, p. 13) afirma: “nas estradas desertas, mulheres jovens, de belas pernas bronzeadas, dirigem carrões rutilantes que mal acabaram de sair da lavagem automática. Elas ignoram os acidentes, a cerração, os controladores de velocidade, a possibilidade de furar um pneu”.

Contudo, as lógicas de produção da publicidade vão além dessa “perfeição”: por vezes, com o intuito de ilustrar o diferencial do bem anunciado, para fazer o público crer nele, no mundo fictício que o distingue de outros tantos, as suas histórias incorporam, sim, aspectos obscuros. Não são poucas as campanhas publicitárias, como as da marca Dove, nas quais a ênfase da persuasão é direcionada à ponta oposta, não a habitual, e o que vemos nos comerciais e materiais impressos não são mulheres jovens, de belas pernas bronzeadas. Da mesma forma, não é difícil encontrarmos exemplos de filmes publicitários, de variados produtos, nos quais estão presentes mazelas humanas, perdas familiares, angústias subterrâneas.

Nesses casos, tais traços, nada luminosos da existência, são levados à narrativa para que, no desfecho de sua trama, a luz (da marca anunciante) se faça. Em outras palavras: embora não seja prioritário em seu cânone, quando for estratégico, a publicidade haverá de explorar também o sombroso. É o que Safatle (2009, p. 102), ao analisar padrões retóricos de consumo, chamou de posicionamento bipolar de marca. Para operar o seu “milagre”, podemos dizer que o discurso publicitário investe na claridade, mas, se caso seja preciso, não hesitará em mercantilizar o negrume.

Assim, tanto quanto numa manjedoura, na embarcação tosca (do conto Natal na barca, aqui retextualizado), sobre um rio envolto na escuridão, a sensibilidade humana é capaz de nos convencer de que a sua magia pode estar, igualmente, a serviço da luz e das trevas. O amanhã só será verde e quente, se tivermos fé na sua (nossa) transformação.

Talvez seja por isso que, na concepção de Baudrillard (2012), a publicidade opere pela lógica do Papai Noel. Sabemos que o velho bondoso não existe, mas “fingimos” que acreditamos nele, talvez porque, de fato, queiramos crer em algo. Ou talvez porque à figura dele está associada uma boa história – barca que nos tira das sombras do real e nos leva ao sol das fábulas.

REFERÊNCIAS

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BIZZOCCHI, Aldo. Anatomia da cultura: Uma nova visão sobre a ciência, arte, religião, esporte e técnica. São Paulo: Palas Athena, 2003.

CARRASCOZA, João. A. A cena de consumo. Um detalhe da estética publicitária. In: ROCHA, R. M; CASAQUI, V. (Org.). Estéticas midiáticas e narrativas do consumo. Porto Alegre: Sulina, 2012.

CARRASCOZA, João. A. Razão e sensibilidade no texto publicitário. São Paulo: Saraiva, 2007.

CARRASCOZA, João. A.; HOFF, Tânia. Narrativa publicitária: modernização e consumo no Brasil dos anos 1950: Primeiro movimento. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (Org.). Como anda a publicidade?. São Paulo: Schola, 2011.

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PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.

ROCHA, Everardo. P. Guimarães. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São Paulo: Brasiliense, 1990.

SAAVEDRA, Miguel C. Dom Quixote de La Mancha. São Paulo: Nova Cultural, 1993.

SAFLATE, Vladimir. Identidades flexíveis como padrão da retórica de consumo. In: CAEPM. (Org.). Bravo mundo novo. Novas configurações da comunicação e do consumo.São Paulo; Alameda, 2009.

TELLES, Lygia F. Natal na barca. In: Para gostar de ler: contos. São Paulo: Ática, 1996. (v. 9).

TORRES I PRAT, Joan. Consumo, luego existo: poder, mercado y publicidad. Barcelona: Icária, 2005.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.

Notas

2 Disponível em: <http://www.muchafoundation.org/gallery/browse-works/object/46 >. Acesso em: 20/11/2015.
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