Dossiê Temático
O samba e a religiosidade afro-brasileira na cinematografia de Nelson Pereira dos Santos1
Samba and afro-brazilian religiosity in the films of Nelson Pereira dos Santos
O samba e a religiosidade afro-brasileira na cinematografia de Nelson Pereira dos Santos1
Interin, vol. 21, núm. 2, pp. 23-41, 2016
Universidade Tuiuti do Paraná
Recepção: 06/06/2016
Aprovação: 20/09/2016
Resumo: Este artigo propõe-se a refletir sobre as recorrências temáticas do samba e da religiosidade afro-brasileira nas representações de personagens do diretor brasileiro Nelson Pereira dos Santos. Inicialmente, busca-se contextualizar tais elementos socioculturais e suas transversalidades na filmografia do diretor, para então, com base nos enquadramentos em primeiro plano dos protagonistas dos filmes Rio, Zona Norte (1957) e Boca de Ouro (1962), lançar uma proposta de análise político-afetiva desses personagens. Investiga-se como a música e a religião permeiam formas de resistência e emancipação ao estado de coisas político-social em que os personagens estão inscritos através das narrativas fílmicas. Para isso, utilizam-se como abordagem teórico-metodológica a reflexão sobre o personagem cinematográfico por meio de Badiou (2004) e o enquadramento em primeiro plano nas perspectivas de Kracauer (2001) e Deleuze (1985).
Palavras-chave: Cinema Brasileiro, Nelson Pereira dos Santos, Personagem Cinematográfico.
Abstract: This article tries to elaborate the thematic recurrence of samba and afro-brazilian religiosity in the characters representation of Brazilian director Nelson Pereira dos Santos. First of all, we try to to put such sociocultural elements and their transversal nature in the director’s filmography into context. In the sequence, we present an political-affective analysis of the main characters of the films Rio, Zona Norte (1957) and Boca de Ouro (1962), regarding their first plan framing in such works. This way, we investigate how music and religion surround these characters’ resilience and emancipation regarding the social-political state of affairs in which they find themselves through filmic narrative. Therefore, we use as theoretical-methodological approach Badiou’s (2004) reflection on the film character and the first plan framing under the view of Kracauer (2001) and Deleuze (1985).
Keywords: Brazilian Cinema, Nelson Pereira dos Santos, Film Character.
Considerações Iniciais
Este artigo tem como proposta pensar a estética cinematográfica a partir das implicações das imagens em primeiro plano dos personagens Espírito, de Rio, Zona Norte (1957), e Boca de Ouro, do filme homônimo de 1962.. Com isso, viabilizam-se análises de modo a identificar significações sociais que permitem a leitura das relações políticas dos sujeitos na perspectiva dos afetos.
Os protagonistas dessas narrativas fílmicas são chaves de leitura para, com base em suas relações político-afetivas, identificarem-se as implicações da musicalidade do samba e da religiosidade afro-brasileira. Essas são viabilizadoras de estratégias de vida e ressignificação das experiências político-sociais dos personagens de Nelson Pereira dos Santos. Inicialmente, buscam-se, sobre o conjunto de filmes do diretor, interseções ético-estéticas que conferem relativa unidade temática a um grupo de filmes com os quais as representações de Espírito e Boca de Ouro se relacionam.
As observações desenvolvidas com base nas experiências vividas por Espírito e Boca de Ouro tiveram início com o olhar para as 18 ficções em longa- metragem do diretor. Nesse sentido, os personagens cinematográficos foram entendidos como “categoria política ativa” por meio de Badiou (2004, p. 73). Para o autor, os filmes são suportes imaginários nos quais, por meio do sensível, pode- se pensar sobre as formas de resistência humana. Com isso, os personagens e a política apresentam-se em vista da emancipação dos sujeitos sociais, o não condicionamento dos afetos a um estado de coisas político-social que imobiliza a sua experiência no mundo. Alinhando-se essa perspectiva teórica com o fazer cinematográfico de Nelson Pereira dos Santos, buscou-se contextualizar suas recorrências num conjunto de filmes, para assim situar as análises dos personagens Espírito e Boca de Ouro.
O contexto social e a influência estética do diretor
Os filmes Rio, 40 Graus (1954) e Rio, Zona Norte são os primeiros títulos do diretor e relacionam-se entre si enquanto momento histórico no cinema. Como projeto para realização de filmes no Brasil, inspirado pelo cinema italiano pós- Segunda Guerra Mundial., o diretor percebe a urgência de um modo de representação cinematográfica brasileira que mostre personagens através das suas questões sociais e afetivas.
Como crítico de cinema., o ponto de vista de Nelson Pereira dos Santos é o de problematizar as representações fílmicas dos estúdios da Vera Cruz, em São Paulo, e da Atlântida, no Rio de Janeiro. Ele apontava a primeira como desvinculada do que considerava próprio aos brasileiros em suas formas de dar conta da vida por meio de características socioafetivas. Por sua vez, via a segunda como produtora de filmes cujas temáticas eram despolitizadas, por tratar-se de comédias de costumes, as conhecidas chanchadas.
O que se deve reter dessa perspectiva crítica de Nelson Pereira dos Santos quanto ao fazer cinema é seu posicionamento político de esquerda, que empenha na expressão cinematográfica a realização de um projeto ético e estético que leva às telas relações humanas inscritas nas condições sociais brasileiras. Assim, o contexto político-social é ressignificado por meio dos afetos dos personagens de seus filmes.
Segundo Badiou (2004), o personagem cinematográfico é oferecido como possibilidade de compreensão das formas de emancipação dos sujeitos sociais. Percebe-se que, através da religiosidade afro-brasileira e do samba, Nelson Pereira
dos Santos preocupa-se com visibilizar afetos cujas representações fílmicas possibilitam entender como os sujeitos criam estratégias de vida. Desse modo exercitam resistências e não condicionamentos a um estado de coisas inexorável, utilizando-se das expressões religiosas e musicais.
Os filmes Rio, 40 Graus . Rio, Zona Norte não parecem assumir uma determinação estrita de denúncia social. O que se produz como representação das condições de marginalidade, discriminação e pobreza são as inscrições de tais fatos na vida dos personagens, sem imobilizá-los ou resigná-los. Com a câmera, o diretor mostra a capacidade desses de se movimentarem entre o morro e a parte urbanizada da cidade, privilegiando as interseções entre a vida na periferia e a vida no Rio de Janeiro economicamente próspero.
O primeiro filme, de 1954, é considerado como aquele que preconiza o movimento cinemanovista. Sobre isso, o cineasta Cacá Diegues, um dos integrantes do Cinema Novo, diz: “Nelson foi quem mostrou a todos nós que era possível se fazer um cinema diferente no Brasil.” (DIEGUES, apud SALEM, 1996, p. 12).
O samba e a Umbanda junto às questões socioafetivas dos personagens
Em virtude das reflexões desenvolvidas na seção dedicada às análises de Espírito e Boca de Ouro, busca-se apresentar inserções temáticas em outros filmes do diretor, cujos elementos relacionam-se com as referências encontradas nesses personagens. Há pontos de relação temática que possibilitam compreender os desejos de representação de Nelson Pereira dos Santos na perspectiva do seu engajamento político-social e político-afetivo no cinema.
O universo em que o sambista Espírito está representado é um morro na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Elementos como a música, a religiosidade afro-brasileira e a situação social do filho do compositor são relacionais a Rio, 40 Graus realizado entre 1954 e 1955..
Nesse filme, é narrado o cotidiano do Rio de Janeiro com seus moradores da periferia, da zona sul, imigrantes e turistas. Um grupo de meninos do Morro do Cabuçu é quem costura as histórias apresentadas pela narrativa. Essas crianças e jovens vendem amendoim em locais que representam a cidade próspera, urbanizada e turística por suas belezas geográficas.
O filme mostra as questões político-sociais implicadas na vida dos meninos em seus movimentos pela cidade. Dentre eles, o personagem Sujinho, órfão de pai e mãe, foi criado com apoio dos moradores do morro, especialmente dona Elvira. Em Rio, Zona Norte, Norival, filho de Espírito, perdeu a mãe em seu nascimento. Assim como Sujinho, o jovem foi criado livre pelo morro até ser retirado da guarda do pai, já que Espírito precisava trabalhar e deixava o menino desassistido de seus cuidados. Norival faz parte de um grupo de meninos que comete roubos na comunidade e será assassinado por seus companheiros em função do desacordo quanto ao dinheiro do assalto a Seu Figueiredo, amigo e incentivador do sambista Espírito.
Para além de questões político-sociais relacionáveis, esses filmes de Nelson Pereira dos Santos apresentam personagens com perspectivas político- afetivas próximas. Em Rio, Zona Norte, a imagem em gesso do orixá Ogum é vista na casa de Espírito e de seu amigo Seu Figueiredo em situações de conflito e resistência por parte do sambista. Em Rio, 40 Graus, não é propriamente essa imagem de culto que será apresentada. No entanto, o diálogo entre dona Elvira, que está acamada, e sua vizinha, que lhe faz uma visita, mostra que o terreiro. é confiável para o tratamento de saúde da mulher que está doente.
Ainda quanto às relações afetivas que compõem a vida desses, o samba é elemento constante nos dois filmes. Em Rio, Zona Norte, ele é ativação dos movimentos de Espírito junto à comunidade e aos personagens que representam o polo de significação da cidade urbanizada, detentora das decisões sobre os sambas que serão sucesso de rádio. Já em Rio, 40 Graus, o samba A voz do morro, de autoria do compositor carioca Zé Kéti, é a música-tema do filme. Ela possui variações e é inserida em diversos momentos, como, por exemplo, na resistência de Sujinho quando Seu Peixoto tenta roubar-lhe a lata de amendoim. Essa ação acontece em decorrência daquele estar vendendo em um ponto da cidade cujo comércio de rua foi apropriado por este.
Em Rio, Zona Norte, o samba, para além da manifestação artístico- cultural, é apresentado como não subordinação do compositor Espírito às tentativas de outros personagens de estabilizar suas experiências afetivas. O filme relaciona-se com Rio, 40 Graus, uma vez que nesse o samba também representa a existência político-afetiva dos moradores do morro não condicionada à sua existência político-social.
Esses dois filmes possuem em comum a representação dos personagens brasileiros por Nelson Pereira dos Santos sem determiná-los estereotipadamente ou, ainda, deslocados da realidade social em que estão inscritos. Em Rio, Zona Norte . Rio, 40 Graus, o samba como expressão cultural e as questões sociais são comunicados por meio do cotidiano dos personagens.
Em Boca de Ouro (1962), Nelson Pereira dos Santos produz a representação de um banqueiro do jogo do bicho recorrendo às imagens. de Ogum. As questões político-sociais, implicadas na adaptação para o cinema da dramaturgia de Nelson Rodrigues10, associam-se às imagens do orixá revelando sentidos que permitem refletir sobre as perspectivas político-afetivas do personagem. Para privilegiar essa atmosfera em que, recorrentemente, Ogum aparece, o aspecto sonoro extradiegético compõe-se de instrumentos de percussão próprios à cultura afro-brasileira.
Esse filme relaciona-se com o décimo primeiro11 longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos, intitulado O amuleto de Ogum12(1974). Nele, um artista de rua cego, interpretado por Jards Macalé13, é tomado de assalto por um grupo de jovens armados. Ele será obrigado pelo grupo a contar uma história. Com isso, o personagem responde: Vou contar uma história que aconteceu de verdade e que eu inventei agorinha14. Então, o filme mostra a vida do menino Gabriel, que vive no interior da Bahia e tem o pai e o irmão assassinados. A mãe o leva a um terreiro de Umbanda para que seu corpo seja fechado, isto é, a mulher faz algo denominado troca de vida. Ela promete sua vida pela do filho, Gabriel carregará consigo um amuleto do orixá Ogum e, enquanto ela estiver viva, será imortal.
Nota-se que a cultura afro-brasileira confere relativa unidade temática a um grupo de filmes de Nelson Pereira dos Santos. Entretanto, se dentro dos temas representados esses dois filmes aproximam-se, cinematograficamente o registro de câmera mostra a pluralidade estética do diretor. Em Boca de Ouro, a câmera faz desenhos meticulosos da casa do bicheiro em uma montagem alternada entre a narradora Guigui e as versões sobre a vida do Drácula de Madureira. Por outro lado, em O amuleto de Ogum, o diretor movimenta a câmera para produzir efeitos oníricos ou estados de transe, assim como a montagem do filme sofre rupturas entre as conexões de ação e reação dos personagens.
Como em Boca de Ouro, no filme O amuleto de Ogum Nelson Pereira dos Santos apresentará um poderoso chefe do jogo do bicho. Dez anos se passaram desde a morte do pai e do irmão. Gabriel imigra da Bahia para o município de Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, e passa a integrar o grupo de matadores chefiado pelo bicheiro Severiano. O rapaz é iniciado na vida do crime e parece ser ingênuo quanto às suas ações. Dessa maneira, logo terá um desentendimento no grupo e será alvejado por tiros. O jovem não morre devido ao seu corpo fechado; nesse momento, a imagem em gesso de Ogum é vista atrás de Gabriel.
Observa-se no filme a relação do orixá guerreiro com as armas e a batalha. Isso é visto por meio da imagem em gesso de Ogum que compõe a cenografia da casa onde o grupo de matadores reside. A associação do orixá com a morte por intermédio de armas também está presente no espaço em que, no filme Boca de Ouro, o bicheiro habita e comete seus assassinatos.
Nos dois filmes de Nelson Pereira dos Santos, nota-se a relação de cupidez produzida a partir da associação dos personagens e a imagem de Ogum. Em Boca de Ouro, há constância do orixá nos enquadramentos em que aparece o banqueiro do jogo do bicho. Ele também estará presente nas sequências em que o personagem apresenta-se como sedutor às mulheres. Já em O amuleto de Ogum, Gabriel envolve-se com Eneida, companheira do bicheiro Severiano. Quando a mulher é enquadrada trocando olhares com o jovem, junto a ela é vista uma imagem em gesso de Iemanjá15. Na perspectiva umbandista, tal orixá é associada aos mares e representa a feminilidade e a vaidade.
Em Boca de Ouro, o bicheiro envolve-se com Maria Luiza, uma grã-fina que faz visitas à sua casa. Em uma delas, inclusive, a mulher tem o intuito de batizá-lo na Igreja Católica. Na sequência final do filme, em que ela se senta na cama de Boca de Ouro, vê-se a partir do ponto de vista dele, sobre um móvel entre o quarto e a sala, a estátua de uma mulher deitada como uma sereia. Não se trata de uma representação idêntica à imagem de Iemanjá; no entanto, como produção de sentidos em vista da sedução entre os personagens, compreende-se a relação que o diretor pratica quanto ao elemento feminino na imagem sobre a mesa e o ponto de vista do bicheiro.
Na temática desses filmes, os imaginários da Umbanda servem ao diretor para elaborar afetivamente as formas com que seus personagens dão conta de seus cotidianos. Contudo, Nelson Pereira dos Santos não deixará de apresentar questões de cunho político-social. As relações de gênero, por exemplo, são dadas pelo machismo e pelas tentativas dos personagens masculinos de sujeitar as personagens femininas às suas determinações de poder. Verifica-se isso nas brigas de Gabriel com Eneida em O amuleto de Ogum e na crítica moral que Boca de Ouro faz às mulheres que se despem em um concurso de seios por ele promovido. Nos diálogos entre a perspectiva político-afetiva e político-social, o diretor evidencia as questões quanto à cultura afro-brasileira. Em O amuleto de Ogum, na chegada de Gabriel, vindo da Bahia, à casa de Severiano, com uma carta de recomendações que cita seu corpo fechado, o bicheiro logo pergunta a um de seus assistentes se o rapaz é negro e fica aliviado ao saber que não. Já em Boca de Ouro, o banqueiro do jogo do bicho, que nasceu em uma pia de gafieira, chama um Preto Velho16 para contar a história de sua mãe. Os dois personagens riem juntos e mostram que compartilham afetos.
A cultura afro-brasileira aparece na filmografia de Nelson Pereira dos Santos como composição afetiva e social dos personagens para tratar de questões políticas do país desde seus primeiros filmes. O diretor não deixará de diversificar suas abordagens temáticas e estéticas; contudo, a religiosidade implicada no cotidiano e seus conflitos socioafetivos são recorrentes em seus filmes. Sob esse aspecto, um dos intercessores do diretor é o escritor baiano Jorge Amado. Em Tenda dos milagres (1975) e Jubiabá (1986), esse autor e o cineasta trabalharam juntos nas adaptações dos textos literários para o cinema. Nesses dois filmes, o Rio de Janeiro deixa de ser o cenário e Nelson Pereira dos Santos busca na Bahia ambientações que restituem as práticas do candomblé nos textos de Jorge Amado.
Os dois filmes têm em comum os cultos próprios à expressão religiosa da Nação, que se diferencia da Umbanda quanto à prática sincretista. Nos cultos dessa religião, os orixás são representados a partir de elementos visuais característicos de sua origem africana, assim como os cantos, os quais são denominados pontos, manifestam-se através dos dialetos próprios de regiões da África que formam o povoamento negro no Brasil durante o período da escravatura.
Nos filmes baseados na obra de Jorge Amado, o diretor tratará de temas como o preconceito racial e as implicações relativas à religiosidade. Essas questões de raça e credo, bastante evidentes nos roteiros adaptados com o escritor baiano, aparecem diluídas no cotidiano dos personagens em outros filmes de Nelson Pereira dos Santos. Por exemplo, em Rio, 40 Graus, em uma discussão durante a feira, o dono da quitanda, imigrante português, chama a rainha da Escola de Samba Unidos do Cabuçu de neguinha desaforada. Já no filme Boca de Ouro, a personagem Maria Luiza quer batizar o bicheiro porque nessa idade, Boca ainda é pagão.
O enquadramento cinematográfico como visualidade político- afetiva dos personagens
Na medida em que é possível situar-se nas referências temáticas do diretor por meio da recorrência em seus filmes, busca-se notar em Rio, Zona Norte . Boca de Ouro as operações estéticas cujos regimes de visibilidade revelam, através do político-afetivo, as formas de resistência às circunstâncias político- sociais dos personagens Espírito e Boca de Ouro.
Os enquadramentos em primeiro plano, para compreensão das significações socioafetivas desses personagens, são pensados a partir de Kracauer (2001). Esse autor reivindica a redenção do cinema à realidade física ao compreender que as relações sociais podem ser reveladas por meio das imagens fílmicas. Desse modo, é próprio ao dispositivo cinematográfico dar conta da “materialidade sensível” (KRACAUER, 2001, p. 366). Então, tem-se no primeiro plano cinematográfico a espessura da vida social, que é material e não se fecha em uma totalidade de tempo linear. A ruptura provocada pela imagem em primeiro plano na montagem traz à tona formações afetivas que transitam na materialidade do espaço social.
Percebe-se, com base nessas reflexões, que a câmera cinematográfica revela o sentido imediato do objeto, amplificando-o em infinitas significações. Há uma fragmentação elementar das imagens nos níveis de indeterminação da “materialidade sensível”. Kracauer (2001) afirma que os rostos dos personagens ilustram essa noção na medida em que se moldam desde um movimento interior que aparece no exterior. Com isso, pode-se dizer que a imanência e a transfiguração da imagem nas linhas de expressão dos rostos formam conexões, mobilizações de sentidos irredutíveis, pois, como expressões do visível, são formadas por meio do sensível e seguem em movimento de transformação.
A utilização das imagens em primeiro plano, como instrumento de análise político-afetiva dos personagens, inscreve-se na perspectiva de investigação do cinema em vista da subjetividade e da memória na produção de imaginários socioafetivos. Com isso, entende-se que a formação da consciência por meio da materialidade subjetiva está junto à ideia de imagem-afecção, Deleuze (1985), que se refere ao primeiro plano cinematográfico.
Nota-se esse ponto com base nos escritos de Deleuze (1985) sobre a noção de rostidade. Para o autor, é entre a variação infinita dos movimentos da matéria, como próprias à formação das memórias, e as atualizações dessas em um estado de coisas, que se forma uma espécie de dobra sensível onde se elaboram as formações afetivas. Por meio da estética da montagem do cinema clássico, o autor permite que se compreenda a dimensão político-afetiva dos personagens pela variação das significações sociais operadas através dos afetos. Assim, o movimento entre aquilo que se atualiza como sentido formado na ação dos personagens vinculada à narrativa e a variação infinita dos sentidos realiza o que para Deleuze é a imagem-afecção como primeiro plano, e esse, por sua vez, é o rosto.
A rostidadepara o autor pode ser um rosto, um traço, um objeto, um possível como expressão que não se fecha no enquadramento de um primeiro plano. Ela o amplifica como qualidade que apresenta o novo imanente à imagem, ou seja, abre a imagem que segue como afeto, potência que não se esgota. Então, de acordo com Deleuze, o aparecimento da materialidade sensível (Kracauer, 2001) no rosto como visualidade do afeto não pode ser fechado na dimensão espaço-tempo. Assim, a rostidadeacontece por visitação e passagem, ela é pré- atual, o que resulta em compreender as formações afetivas dos rostos de Espírito e Boca de Ouro como potências de vida, ou seja, ação de transformação político- afetiva por meio da variação incessante do movimento da montagem fílmica e da memória.
Reflexões sobre as experiências político-afetivas de Espírito e Boca de Ouro
As análises dos protagonistas de Rio, Zona Norte . Boca de Ouro permitem perceber universos socioafetivos que reservam alguns vínculos. Nas observações do sambista Espírito e do bicheiro Boca de Ouro, notam-se o orixá Ogum e a morte como ativação político-afetiva de forma a produzir resistências quanto aos conflitos político-sociais apresentados pelas narrativas.
Em Rio, Zona Norte, o diretor conta a história de Espírito da Luz Soares, personagem que é interpretado pelo ator Grande Otelo. Nesse filme, em que Nelson Pereira dos Santos assina argumento, roteiro e direção, a vida do sambista Espírito é narrada por meio de suas relações com a música, com os amigos da comunidade, com o filho, Norival, e com sua nova esposa, Adelaide. A narrativa é construída a partir da busca de Espírito pelo reconhecimento de suas composições por intermédio da rádio. Essa motivação do personagem encontra dificuldades em função de Maurício Silva, interpretado por Jece Valadão, um produtor que o trapaceia quanto à autoria de seu samba.
No caso do personagem Espírito, a imagem em gesso de Ogum aparece enquadrada em primeiro plano junto ao rosto do personagem, em duas situações. A primeira (figura 1) ocorre quando o sambista, pelo rádio, sabe que a autoria de seu samba foi fraudada por Maurício. Em outro momento (figura 2), o orixá é visto em uma discussão entre Espírito e Adelaide, madrasta de Norival, sobre o acolhimento do filho após o assalto cometido pelo jovem a Seu Figueiredo, amigo do sambista.


Percebe-se que, nessas duas situações de Rio, Zona Norte em que Ogum é mostrado, os enquadramentos em primeiro plano o relacionam com o rosto do personagem Espírito. Trata-se de situações em que se identifica a emancipação do sambista às tentativas de captura de seus afetos, separando-o seja do filho, seja da autoria de seu samba.
Nota-se que, tanto no caso do samba quanto no do filho, há tentativas de sujeição do personagem a um enquadramento político-social. Quando o produtor de rádio Maurício Silva exclui Espírito do samba, o faz em seu favor e do grande Alaor da Costa. O sambista é um desconhecido no universo social da rádio, mora em um morro da Zona Norte do Rio de Janeiro e, para Maurício Silva, possivelmente, não está enquadrado dentro do que se deseja como uma estrela de rádio. Os personagens que habitam a emissora não são negros como o sambista. Alaor da Costa é o único; ainda assim, quando este personagem aparece, é representado por elementos que o relacionam com os demais integrantes da rádio. Ou seja, ele é visto sendo barbeado e vestindo ternos como os dos outros homens que ali estão e dos quais a simplicidade de Espírito destoa.
O sambista cria suas músicas a partir de experiências no lugar em que vive; suas composições são ritmadas com uma caixa de fósforos. Na rádio, onde as músicas são produzidas para serem interpretadas com acompanhamento de uma orquestra, Espírito encontra-se distante do universo político-social dos personagens que por lá transitam.
Nesse sentido, a imagem em gesso de Ogum é enquadrada em primeiro plano junto ao rosto de Espírito na medida em que o sambista responde ao roubo de sua autoria, reinterpretando a canção que ele e seus amigos acabaram de ouvir na voz de Alaor da Costa. Quando Espírito canta para o grupo, não se trata mais da mesma música, pois, quando Ogum aparece junto ao seu rosto, este se transforma em decorrência dos afetos de resistência. As relações afetivas que originaram a composição do sambista seguem presentes; contudo, ao relacionarem-se à imagem do orixá, trata-se das mesmas, que, no entanto, também são novas. São as estratégias político-afetivas de resistência e não a resignação do personagem.
Mais uma vez, há uma tentativa do condicionamento político-social de Espírito, dessa vez através da sua separação do filho, Norival, por intermédio de Adelaide, já que, para a nova esposa do sambista, a presença do jovem na casa pode gerar problemas com a polícia.
Na ocasião em que Espírito resiste ao apelo de Adelaide para separá-lo do filho, a imagem em gesso de Ogum está enquadrada sobre a cama e junto ao rosto do personagem (figura 2). O orixá é visto no contexto da tentativa da mulher de condicionar a relação pai e filho a uma marginalidade de Norival. Forma-se, então, um campo de disputa entre a resistência e a sujeição dos afetos; o sambista afronta, mas perde força diante da ação de Adelaide. O filho foge pela porta e, na noite seguinte, será assassinado em frente ao pai. Com Norival, a morte aparecerá na forma de uma tragédia na vida de Espírito. Entretanto, o personagem resiste e cria um novo samba.
A presença de Ogum enquadrado em primeiro plano, junto ao personagem quando ele reinterpreta a canção roubada por Maurício (figura 1), e a composição do samba, que ressignifica a morte de Norival, são formas de não condicionamento político-social do personagem a partir de suas resistências político-afetivas.
O sambista combate a tentativa de marginalização do filho por parte de Adelaide e, também, a trapaça do produtor de rádio, que tenta roubar-lhe a autoria da música, uma vez que ele considera Espírito vulnerável em função de sua classe social. Ao criar uma nova composição após a morte trágica de Norival, mais uma vez o personagem não se condiciona à violência enquanto função social. Nesse sentido, os enquadramentos em primeiro plano das imagens em gesso do orixá Ogum junto ao rosto de Espírito e o samba são pistas de como os afetos do compositor são elaborados, dando-lhe resistência político-afetiva em vista das questões político-sociais presentes na narrativa do filme.
No filme Boca de Ouro, a vida do banqueiro do jogo do bicho que vive no bairro de Madureira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é narrada por Guigui, ex- amante do bicheiro. Com isso, são reveladas diferentes versões sobre a biografia do personagem Boca de Ouro ao repórter Caveirinha. Esse é o encarregado de uma grande pauta sobre a vida do Drácula de Madureira. O bicheiro, que foi assassinado, tinha o corpo fechado; a narrativa mostra que, sobre sua vida, existem histórias de cupidez e morte que povoam o imaginário dos moradores da cidade.
Neste, que é o quarto filme17 de Nelson Pereira dos Santos, as referências à cultura religiosa afro-brasileira, assim como em Rio, Zona Norte, aparecem através de Ogum. A composição dos cenários da casa de Boca de Ouro possui imagens do Orixá guerreiro que são privilegiadas pelos enquadramentos em primeiro plano do personagem em diferentes momentos do filme. A referência imagética utilizada corresponde a São Jorge, um santo da Igreja Católica apropriado pela Umbanda.
As significações que Ogum produz junto a essa religião afro-brasileira o remetem aos impulsos de vida; desse modo, ele é reconhecido por seus devotos como o senhor das vontades. Na mitologia dos orixás, existe Oxalá, que, na Umbanda, é representado pela imagem de Jesus Cristo, associando-se à ideia de criação. Na hierarquia religiosa, como senhor da vontade, Ogum é a vontade do criador.
No caso de Boca de Ouro, uma das aparições de Ogum em primeiro plano é um mosaico na parede junto ao rosto do personagem (figura 3), quando ocorre a afronta que o bicheiro faz a Leleco, oferecendo-lhe uma arma para que ele o mate. O rapaz, que é marido de Celeste, leva-a para a casa de Boca de Ouro, sendo condescendente quanto à relação sexual entre o bicheiro e sua esposa. Ao resistir, Celeste diz que o marido dará um tiro em Boca de Ouro, o qual estabelece um jogo em que, por meio da morte, objetiva desmoralizar Leleco diante da esposa. A conexão do mosaico de Ogum ao rosto do bicheiro falsifica a ideia de morte em vista da desconstrução moral do marido, uma vez que a produção de sentidos que o orixá evoca na mitologia afro-brasileira é associada às batalhas e à cupidez.

A partir de então, torna-se recorrente a relação do orixá com o personagem na formação dos enquadramentos em primeiro plano de Boca de Ouro, que se reflete por meio da noção de “rostidade” em Deleuze (1985). Ou seja, as imagens de Ogum na cenografia da casa são enquadradas em primeiro plano, conectando- se a Boca de Ouro pelo movimento das imagens, que são compreendidas por sua materialidade afetiva. Nesse sentido, Ogum torna-se onipresente e uma espécie de cúmplice do personagem, uma vez que se relaciona com o rosto do bicheiro quando este subverte sentidos morais em suas relações com os outros personagens da narrativa.
Para Boca de Ouro, assassino contumaz, Ogum está vinculado à morte, como, por exemplo, quando o orixá compõe o enquadramento em primeiro plano do personagem, embora ele afirme a Maria Luiza nunca ter matado ninguém. No entanto, o rosto do bicheiro junto à imagem em gesso de Ogum sobre a mesa insinua os assassinatos que ele cometeu. Destaca-se que na vida de Boca de Ouro, se Ogum é conexo à morte, esta está envolta nas questões morais implicadas ao adultério. Tais questões inscrevem-se dentro de uma perspectiva político-social de disputa quanto à validade dos sentidos morais.
Percebe-se assim que a relação estabelecida entre os personagens Boca de Ouro e Espírito, quanto a Ogum e à morte, inscreve-se na presença do orixá como ativação de resistência dos afetos em vista da determinação político-social da morte. Na medida em que as narrativas dos filmes demandam questões sociais implicadas no cotidiano dos personagens, observa-se que as imagens dos enquadramentos em primeiro plano revelam movimentos entre o afetivo e o social. Dessa maneira, com base em Kracauer (2001) e Deleuze (1985), as significações imagéticas da presença do orixá junto aos rostos dos personagens amplificam os sentidos narrativos dos filmes. Em vista disso, as suas questões sociais são transformadas devido aos afetos mobilizados pelas imagens dos seus rostos que são compostos juntos a Ogum.
Em comum, também, os personagens possuem o fato de criarem histórias que eles desejam contar. Nesse sentido, Espírito as comunica em suas composições musicais, enquanto Boca de Ouro as realiza pelos casos de adultério, corrupção e morte. Sobre si, o bicheiro fala: eu sou apenas aquilo que dizem os jornais.
Considera-se que, nos dois filmes, há distinções que demarcam especificidades político-sociais entre um banqueiro do jogo do bicho morador de Madureira e um sambista que tenta iniciar sua carreira e vive em um morro na Zona Norte da cidade. No entanto, tratando-se de uma perspectiva político-afetiva, Espírito e Boca de Ouro estão vinculados por meio de Ogum e da morte. Pois, assim como o bicheiro no filme Boca de Ouro, tendo Ogum como testemunha, o sambista adultera por meio dos enquadramentos em primeiro plano a relação social da morte tratada na narrativa de Rio, Zona Norte.
Nota-se que as observações dos primeiros planos, baseadas na relação com as narrativas dos filmes, trazem à tona vínculos imagéticos que visibilizam as formas de resistências político-afetivas desses personagens.
Considerações Finais
Observa-se que, para Nelson Pereira dos Santos, as escolhas temáticas dos filmes inscrevem-se em uma perspectiva crítica enquanto representação da realidade. A composição de sua ética cinematográfica contempla expressões afetivas em que, através das mitologias religiosas e das manifestações musicais do samba, encontra-se a complexidade de seus personagens.
Nos filmes analisados por este artigo, o diretor exercita seu registro cinematográfico em um fluxo entre as relações afetivas e sociais de Espírito e Boca de Ouro. Nesses dois filmes, ele evidencia, por meio dos rostos em primeiro plano, do samba e da religiosidade afro-brasileira, situações em que se apresentam resistências quanto ao condicionamento político-social dos protagonistas.
A política inscreve-se no cotidiano dos personagens pelo movimento de forças entre as narrações de suas histórias de vida e a materialidade dos afetos que as constituem. Neste artigo, a opção metodológica de análise dos dois protagonistas se deu por meio dos enquadramentos em primeiro plano, de modo que a estética cinematográfica se oferece como lugar de leitura das relações políticas sob o ponto de vista dos afetos.
As ficções produzidas pelos personagens sobre si mesmos como forma de ação política – os sambas de Espírito e as lendas urbanas de Boca de Ouro –, de certa forma, singularizam suas experiências de vida. Contudo, a materialidade que compõe essas ficções elabora um vínculo que torna tais experiências relacionáveis. Desse modo, politicamente há uma ligação afetiva entre os personagens e tal relação estabelece-se por meio das forças de transformação que, em certa medida, lhes são comuns.
Assim, ao reconhecer que Nelson Pereira dos Santos possui um engajamento temático quanto à representação de personagens brasileiros e que nele estão implicados afetos e questões sociais, buscaram-se recorrências em filmes que possibilitaram evidenciar elementos da música e religiosidade da cultura brasileira nas composições político-afetivas dos personagens.
REFERÊNCIAS
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Notas