Dossiê Temático

O livro e o e-book como dispositivos: discursos tecnológicos do suporte de texto

The book and the e-book as devices: technological discourses within the text apparatus

André Carlos Moraes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Ana Cláudia Gruszynski
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

O livro e o e-book como dispositivos: discursos tecnológicos do suporte de texto

Interin, vol. 21, núm. 2, pp. 42-59, 2016

Universidade Tuiuti do Paraná

Recepção: 11/06/2016

Aprovação: 17/08/2016

Resumo: Dentro das investigações sobre as diferenças e complementaridades entre os livros e os e-books, este artigo discute a aplicação, no contexto dos suportes textuais, do conceito de aparato conforme a acepção proposta por Matthew Fuller, que propõe a ampliação da categoria dos discursos de Michel Foucault em um contexto simbólico que inclua tecnologias como a eletrônica, em um modelo que também mobiliza proposições de Vilém Flusser e Friedrich Kittler. Discutem-se as implicações da transposição do texto impresso para o digital em um arcabouço teórico concentrado não no aspecto morfológico, mas no sistema envolvido na própria codificação do dispositivo como artefato tecnológico/cultural, o que abre uma nova dimensão simbólica, com suas próprias implicações analíticas.

Palavras-chave: Livro, E-book, Dispositivo, Texto Eletrônico, Livro Digital.

Abstract: Within the investigations about the differences and complementarities between books and e-books, this paper discusses the implementation, in the context of textual supports, of the concept of apparatus as proposed by Matthew Fuller, who proposes an expansion of the category of discourses by Michel Foucault within a symbolic context that includes technologies such as electronics, in a model that also mobilizes propositions of Vilém Flusser and Friedrich Kittler. The implications of the printed text/digital flow are discussed, not in the morphological aspect, but focusing on the system involved in the encoding of the device itself as technological/cultural artifact, which opens a new symbolic dimension, with its own analytical implications.

Keywords: Book, E-book, Device, Electronic Text, Digital Book.

Introdução

A discussão sobre as diferenças e complementaridades entre o e-book – ou, no sentido mais amplo, do texto eletrônico – e os livros tradicionais é atravessada por vários temas que estão na base dos estudos de Comunicação, como as questões de edição, recepção, design e plataforma. Este artigo, que se integra a um corpo de investigações em curso sobre processos editoriais e a cultura do livro, trata de um aspecto menos enfocado quando se debate a temática do livro eletrônico: a questão do dispositivo. Aborda-se, em particular, as implicações teóricas da aplicação, no contexto dos livros e e-books, do conceito de aparato como proposto por Matthew Fuller (2007), autor que, por sua vez, mobiliza um corpo de teorias que inclui Michel Foucault, Vilém Flusser e Friedrich Kittler.

Metodologicamente, este artigo emprega revisão crítica de bibliografia, assim como ensaia um desenvolvimento teórico inicial a partir dos conceitos apresentados. A seção a seguir contextualiza brevemente, no campo de estudos sobre o livro e processos editoriais, a questão do texto eletrônico e das novas tecnologias, assim como delimita os próprios termos e-book e texto eletrônico. Depois, apresenta-se o conceito de Fuller (2007). Finalmente, são discutidas derivações possíveis a partir da aplicação desta ferramenta teórica no panorama dos estudos que é objeto do presente trabalho, assim como se apresenta um exercício preliminar de análise. O objetivo não é, necessariamente, obter conclusões, mas prospectar um campo de estudo que se abre a partir deste exercício e que pode vir a delimitar investigações futuras.

O livro e as tecnologias

A historiadora Leslie Howsam pondera que o livro é “um fenômeno que é simultaneamente um texto escrito, um objeto material e uma transação cultural”3 (HOWSAM, 2006, p. vii), síntese que ajuda a delimitar o problema de pesquisa tratado no presente artigo. A área de pesquisa que costuma se identificar como História do Livro abrange a compreensão de todas essas instâncias. Escreve Roger Chartier:

Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra, declamadas num palco de teatro. Compreender os princípios que governam a “ordem do discurso” pressupõe decifrar, com todo o rigor, aqueles outros que fundamentam os processos de produção, de comunicação e de recepção dos livros (e de outros objetos que veiculem o escrito). (CHARTIER, 1998, p. 8).

Nesta linha teórica, o livro é entendido como manifestação cultural tanto quanto como artefato tecnológico e veículo de conteúdo. Há, entretanto, pontos de tensão conceitual quando se torna necessário mapear transformações tecnológicas. É o que leva Robert Darnton a formular a indagação “Que terreno em comum existe entre os velhos livros e os e-books? Que vantagens mútuas ligam as bibliotecas à Internet?”4 (DARNTON, 2009, p. vii).

Em primeiro lugar, é importante compreender ao que se refere o conceito de e-book. José Afonso Furtado menciona a pluralidade de definições em torno do próprio termo:

[...] o entendimento do que é um e-book vai desde um simples arquivo digital acompanhado pelo software que possibilita o acesso e a navegação do conteúdo. Outros referem-se ao e-book a partir do outro lado do espectro, fazendo referência apenas ao novo hardware que irá conter os arquivos eletrônicos de livros. (FURTADO, 2006, p. 44).

O enquadramento conceitual do livro eletrônico ou e-book e sua diferenciação em relação aos livros impressos apresenta o desafio adicional da necessidade de contornar o determinismo tecnológico. Há uma linha teórica, costumeiramente vinculada a Marshall McLuhan, que tende a dar valor preponderante à configuração tecnológica do livro como aparato. McLuhan, em sua Galáxia de Gutenberg (1972), propunha que o advento da tipografia instituiu toda uma cultura alicerçada em características do próprio texto impresso, tais como a uniformização. McLuhan origina linhas de investigação ainda hoje, como o conceito de “remediação” de Jay David Bolter e Richard Grusin. Estes autores alertam para o perigo do “determinismo” de McLuhan (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 187), mas fazem uma releitura de suas ideias ao propor que “qualquer mídia futura também vai definir seu significado cultural com referência a tecnologias estabelecidas”5 (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 270-271).

Embora exista uma vertente que tende a enfocar a questão do livro e do livro eletrônico sob o viés tecnológico, é possível encontrar em alguns autores desta linha, paradoxalmente, uma desatenção à própria questão dos aparatos. O norte-americano Jeff Gomez, em Print is Dead, escreve o seguinte:

Com o crescimento da leitura digital, computadores, laptops e telefones celulares [...] vão ser meramente aparatos, os „funis malucos‟ nos quais vamos derramar as grandes palavras do passado, presente e futuro. Verdade, eles não serão o mesmo que livros impressos, mas isso não significa que eles vão „destruir o espírito original‟ dos livros que conhecemos e amamos. Da mesma forma que Handel vindo de uma caixa de som pequena ainda possui o gênio de Handel, a prosa suntuosa de Fitzgerald continuará sendo suntuosa mesmo quando materializada na tela de um computador.. (GOMEZ, 2008, p. 203).

Embora acredite que “se as gerações futuras não lerem digitalmente, simplesmente não vão ler”7 (Id., 2008, p. 203), Gomez, por outro lado, manifesta indiferença sobre a questão do suporte tecnológico, o que fica claro ao se referir a computadores e telefones como “meramente aparatos”. Sua atenção está centrada no conteúdo, o que é reforçado pela sua conclusão, quando escreve que “seja qual for o mecanismo para colocar palavras em frente a um par de olhos humanos curiosos, ou onde estas palavras terminem, o importante é que elas sejam lidas”8 (Id., 2008, p. 203).

É uma posição semelhante a esta de Alan Jacobs:

Grandes Esperanças é um livro tanto se você lê-lo em um Kindle, em um Nook, iPad ou iPhone, no seu laptop ou em folhas soltas de papel impressas de um e-texto do Projeto Gutenberg, num códex de papel ou mesmo em um rolo de papiro. Em qualquer destas encarnações ele permanece Grandes Esperanças – ainda em um sentido profundamente significativo o mesmo livro, um ponto que merece ser enfatizado, dadas certas ansiedades comuns sobre o advento da leitura eletrônica.. (JACOBS, 2011, p. 63).

Comentários como os de Jacobs e Gomez tendem a entender o livro como conteúdo, não como forma, tendência que se tornou saliente ao ponto de provocar uma reação em contrário de autores que refutam, em teoria literária, aquilo que chamam de interpretações hermenêuticas. É o caso de Jerome McGann (1991; 2001) e Hans Ulrich Gumbrech (2004; 2012), ambos, de maneiras diferentes, defendendo a revalorização de conceitos como a fisicalidade do suporte de texto.

A questão do suporte é um dos alicerces das teorias tanto sobre o livro quanto sobre o e-book. Chartier (1998, p. 8) mencionava que “As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas”. Darnton (2009) também é uma referência na compreensão dos aspectos tanto culturais quanto físicos do ciclo do livro. O bibliógrafo D.F. McKenzie (2004) já fazia a proposição, nos anos 80, de que os estudos sobre o livro ampliassem o conceito de texto para incluir registros em outros suportes.

Há trabalhos recentes e teorias ainda em construção que tentam resolver a tensão entre o aspecto sociológico e histórico das teorias consolidadas sobre o livro e o equacionamento dos desenvolvimentos tecnológicos, uma fórmula cujo balanço pode ter sido afetado pelas novas configurações culturais do texto eletrônico. O britânico John B. Thompson dedicou duas obras, já no século XXI, ao mapeamento de transformações no mercado livreiro. Em Books in the digital age (2008) e Merchants of Culture (2012), ele analisa o impacto de novas tecnologias, como a dos e-books, no mundo dos autores, editores e leitores. O norte-americano Ted Striphas cunhou o termo late age of print, “idade tardia do impresso”, para definir um período diferenciado da cultura do livro, já em face de mudanças tecnológicas:

Assim como o capitalismo tardio é ainda um capitalismo vigoroso, assim também livros e outros materiais impressos na idade tardia do impresso são ainda comuns e gozam de considerável prestígio. Um conceito arejadamente modesto, a idade tardia do impresso sublinha o papel continuado dos livros em modelar hábitos de pensamento, conduta e expressão. Ao mesmo tempo, chama a atenção para as maneiras pelas quais as coordenadas sociais, econômicas e materiais dos livros têm mudado em relação a outras mídias, formas mais densas de organização industrial, padrões em transformação de trabalho e lazer, novas leis governando a propriedade e uso de mercadorias, e um conjunto de outros fatores.10 (STRIPHAS, 2011, p. 3).

A observação de Striphas, e sua proposição do conceito de “idade tardia do impresso”, é uma tentativa de conciliar novas tendências tecnológicas com a herança da cultura do livro, em um conjunto que possa ser entendido teoricamente em uma continuidade histórica. De certa forma, o autor norte-americano adota uma posição convergente a esta observação de Olivier Donnat, sociólogo do departamento de estudos estatísticos do Ministério da Cultura da França:

A interpretação da baixa na quantidade de livros que são lidos, que – nós acabamos de ver – é o produto de várias dinâmicas, pede a maior prudência. É, em efeito, provável que este fenômeno se deva ao menos tanto às mutações de ordem simbólica quanto a uma evolução efetiva dos comportamentos de leitura: se a leitura de livros sofreu nestas últimas décadas a concorrência de numerosas atividades de lazer ligadas à cultura da tela (televisão no primeiro momento, jogos em vídeo e Internet em um segundo momento), ela também perdeu uma parte de seu poder simbólico junto aos jovens, notadamente do sexo masculino, que têm a tendência hoje a superestimar menos suas práticas de leitura que seus pais na mesma idade [...].11 (DONNAT, 2012, p. 48).

Esta transformação “de ordem simbólica”, para Donnat, inclui “o recuo da leitura linear de tempo longo em troca de formas de leitura fragmentadas”, que, para ele, se origina tanto das exigências de informação da vida cotidiana e profissional quanto das “transformações ligadas ao desenvolvimento das novas tecnologias”12 (DONNAT, 2012, p. 49). Porém, quando se refere a um fenômeno simbólico, está abordando a questão junto aos leitores. Donnat faz seu comentário interpretando a dimensão do livro como apropriação. Outros autores tentam desvendar mecanismos simbólicos constituintes do próprio suporte, aqueles atuantes na configuração do objeto livro.

Um esforço recente neste sentido é a obra The Visible Text, de Thomas A. Bredehoft (2014). O autor propõe um olhar diferente sobre a evolução da indústria do livro, centrado não no conteúdo, mas no que chama de paradigmas reprodutivos. Bredehoft identifica vários momentos históricos da reprodução textual, começando pelo que chama de “produções” (BREDEHOFT, 2014, p. 34), em que os manuscritos ou registros de texto eram criados para ser únicos. Posteriormente, ele identifica um momento que define como “gótico” (BREDEHOFT, 2014, p. 82), no qual já havia o conceito de cópias ou reproduções de uma obra, mas não necessariamente idênticas entre si. A tipografia, que Bredehoft identifica com a Galáxia de Gutenberg de Marshall McLuhan, seria o momento em que se instaura a atual cultura, da reprodutibilidade. Pressupõe-se que todo livro seja uma cópia, com algum grau de inexatidão, para um original ideal, paradigma que incorpora um conceito de Jacques Derrida. Haveria um paradigma posterior, para Bredehoft, constituído pelas edições de histórias em quadrinhos, cujo original inexiste e que são constituídas, efetivamente, a partir do processo industrial de edição, onde entram a retícula e as cores, por exemplo (BREDEHOFT, 2014).

Ponto importante da proposição do autor é seu entendimento de que os diferentes paradigmas de reprodução traduzem o que chama de “ideologias textuais” (BREDEHOFT, 2014, p. 168), conjuntos de pressupostos que ajudam a constituir cada momento da história da reprodução textual. O mais relevante para o tema analisado aqui está na argumentação final de Bredehoft. Ele comenta que “pode ser cedo demais na história do texto digital para entender completamente as implicações do novo modo”13 (BREDEHOFT, 2014, p. 160), mas que “a produção de textos digitais envolve uma ideologia textual que não é mais inocente em seus efeitos e consequências do que as ideologias exploradas nos quatro períodos ou domínios” (BREDEHOFT, 2014, p.161) por ele abordados.

A intuição de Bredehoft sobre o que ele define como ideologias textuais, assim como sua tática de identificar paradigmas históricos que são tanto culturais quanto tecnológicos, aponta uma estratégia teórica promissora na abordagem do desafio da compreensão das aproximações e rupturas entre o livro e o livro eletrônico. Especificamente, pode ser útil compreender como o próprio aparato empregado para leitura seja capaz de codificar, em si mesmo, ideologias ou dimensões simbólicas, que, assim, serão importantes ao ensejar novos contextos comunicacionais e culturais. Uma proposição conceitual neste sentido é tratada na seção a seguir.

O discurso do dispositivo

Em um livro chamado, sintomaticamente, The lost art of reading, o crítico norte-americano David Ulin escreve o seguinte:

O iPad ou o Kindle podem ser dispositivos de leitura, mas eles também são mercadorias para compra e venda. Se o mesmo se aplica para os livros, a indústria editorial por muito tempo operou sob a ilusão de que é diferente, um negócio de cavalheiros (ou damas), no qual ideias, não comércio, são a moeda corrente. Seja ou não este o caso (não é) não é o ponto; o que é importante é que isso engendrou um conjunto de ideais ou crenças. Quando se trata de leitura eletrônica, entretanto, outras influências, outros sistemas de crenças entram em jogo.14 (ULIN, 2010, p. 126).

A afirmação de Ulin pode ser entendida como uma formulação intuitiva do tema que o presente artigo problematiza. O autor pondera que, à parte quaisquer vantagens ou desvantagens trazidas pelos dispositivos eletrônicos de leitura, sua constituição é fundamentalmente diferente porque, antes de mais nada, eles integram outro contexto, aquilo que chama de “conjunto de ideais ou crenças” (Id., 2010, p. 126).

Este é o ponto no qual seria útil tentar modelizar teoricamente a questão do próprio suporte de leitura como aparato. Trata-se de uma dimensão analítica que envolve conceitos bem mais amplos do que aqueles restritos ao campo normalmente associado aos estudos do livro. Recentemente, têm havido tentativas de colocar esta problematização em pauta.

Em um livro publicado pela MIT Press, editora do Instituto Tecnológico de Massachusetts, Matthew Fuller analisa, justamente, os diferentes níveis dos meios de comunicação contemporâneos e as novas articulações que apresentam. Em Media Ecologies (2007), Fuller propõe, entre outras coisas, a discussão de “como a escrita opera em relação aos outros tipos de atividade” (FULLER, 2007,p. 12). O interesse principal do autor é com a combinação de meios de comunicação, no que descreve como “uma zona de combinação experimental com a qual outras culturas da mídia podem aprender”15 (FULLER, 2007, p. 13), mas sua estratégia analítica consiste em “pegar cada parte deste mecanismo gigante e testar as coisas com seus componentes” (Idem), trabalho durante o qual ele se aprofunda em aspectos específicos dos meios de comunicação – um dos quais a materialidade técnica.

Interessante, sobretudo, é o trabalho teórico de Fuller, que na questão dos aparatos constrói um modelo conceitual a partir de autores como Michel Foucault, Vilém Flusser e Friedrich Kittler. A proposição de Fuller começa com sua síntese de um conceito que fica pressuposto na obra de Flusser:

O que é de interesse aqui é, primeiro, a noção que uma tecnologia é uma portadora de forças e impulsos, na verdade é feita deles. Segundo, é composta pela mútua interpenetração de várias outras forças que podem ser técnicas, estéticas, químicas – que podem ter a ver com capacidades do corpo humano – e que passam entre todos estes corpos e são compostas através e em meio a eles.16 (FULLER, 2007, p. 56).

Este desenvolvimento de Fuller parte do conceito de programa conforme esboçado por Flusser no clássico Ensaio sobre a Fotografia (1998):

Se considerarmos o aparelho fotográfico sob tal prisma, constataremos que o “estar programado” é que o caracteriza. As superfícies simbólicas que produz estão, de alguma forma, inscritas previamente (“programadas”, “pré-escritas”) por aqueles que o produziram. As fotografias são realizações de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O número de potencialidades é grande, mas limitado: é a soma de todas as fotografias fotografáveis por este aparelho. (FLUSSER, 1998, p. 43).

Aqui, Flusser fala da fotografia e, especificamente, dos aparelhos utilizados para realizá-la. Mas a apropriação de Fuller vai além desta aplicação específica ao propor uma dinâmica aplicável a outros dispositivos técnicos, a “noção de que uma tecnologia é uma portadora de forças e impulsos, na verdade é feita deles” (FULLER, 2007, p. 56). Este é o ponto em que Fuller articula Flusser com Foucault e, mais adiante, Kittler.

Do pensador francês, Fuller emprega a noção de que os discursos podem se apresentar, como os programas de Flusser, embutidos em dispositivos ou mesmo aparatos técnicos:

Foucault não apenas trabalhava com documentos e suas dinâmicas de composição e arranjo, mas também ao que eles se referem e invocam – biopoder – e os “aparatos”, “instrumentalidades”, “técnicas”, “mecanismos”, “maquinarias”, e assim por diante pelos quais eles são constituídos e tornados disponíveis. Há uma alternância entre texto e hardware, práticas textuais e aquelas do corpo, saciedades de nomenclaturas e ordenamentos.17 (FULLER, 2007, p. 61).

Noções como a de dispositivo, em Foucault (1999), são aplicadas principalmente a mecanismos sociais de estabelecimento e consolidação do que o autor francês chama de discursos, embora a dimensão técnica seja reconhecida. Fuller aponta que este é o ponto em que o alemão Kittler estende o conceito de discurso, “tendendo ocasionalmente a uma realocação do Geist Hegeliano do humano para o objeto técnico”18 (Id., 2007, p. 61). Kittler, na síntese de Fuller, “explora como as práticas discursivas se tornam hardware, como o discurso se torna sujeito de sistemas de armazenamento, transmissão, informatização, e processamento”19 (Idem).

Uma síntese do projeto de Kittler é dada por ele próprio:

Podemos fornecer os dados tecnológicos e históricos sobre os quais textos ficcionais da mídia, também, são baseados. Só então o novo e o velho, os livros e seus sucessores tecnológicos, se apresentam como a informação que eles são. Entender a mídia [...] permanece uma impossibilidade precisamente porque as tecnologias de informação dominantes de hoje controlam todo o entendimento e suas ilusões. Mas esquemas e diagramas, independentemente de como eles controlem as impressoras ou computadores, podem encerrar traços históricos do desconhecido chamado corpo. O que resta das pessoas é o que a mídia pode armazenar e comunicar. O que conta não são as mensagens ou o conteúdo com o qual abastecem as assim chamadas almas ao longo da duração de uma era tecnológica, mas (e em estrito acordo com McLuhan) seus circuitos, o próprio esquematismo da perceptibilidade. (KITTLER, 1999, p. xl-xli).

A explicação de Kittler dialoga com outro autor que o influencia, Marshall McLuhan, mas é possível notar o ponto em que sua proposição se articula com Foucault, na alusão a um levantamento tanto histórico quanto tecnológico, ou ao controle das formas dominantes sobre o “entendimento e suas ilusões”. O argumento sobre como diagramas possam encerrar traços históricos ou sobre a relevância dos circuitos e da forma de percepção que eles codificam é, também, compatível com as teorias de Flusser.

As obras de Foucault, Flusser e mesmo Kittler são ricas e abrangem grande escopo histórico e sociológico. Muitos dos escritos destes autores, entretanto, foram elaborados entre os anos 60 e 80, motivo pelo qual contemplam um conjunto diferente de meios de comunicação. Embora conceitos como os discursos de Foucault, os programas de Flusser e o discurso tecnológico de Kittler permaneçam ferramentas teóricas versáteis e úteis, sua aplicação em contextos atualizados pode requerer adaptações, daí a utilidade das proposições de Fuller e o motivo pelo qual, aqui, ele é apontado como a origem do modelo analítico. Fuller, a propósito, é um dos autores que fundamentam discussões nas chamadas “digital humanities” (BERRY, 2012, p. 11), uma vertente teórica de pesquisadores de humanidades que tenta incorporar no panorama de pesquisa as consequências culturais e metodológicas das tecnologias digitais, incluindo as ditas “media ecologies” (BERRY, 2012, p. 197).

Da releitura de Fuller, então, destaca-se, aqui, sua proposição de que há uma dimensão do discurso presente em dispositivos tecnológicos independentemente de seu conteúdo, que é, ela mesma, não uma decorrência técnica dos próprios aparelhos mas a sedimentação de um discurso anterior. Para Fuller (2007), este mecanismo integra a discussão do que ele chama de ecologias, mas, no escopo deste artigo, interessa considerá-lo como uma dimensão analítica, um aspecto a ser ponderado em estudos sobre o objeto aqui tratado, o texto ou livro eletrônico. Na seção a seguir, discutem-se implicações deste conceito nesta aplicação específica.

O e-bookcomo dispositivo e seu discurso

Para ilustrar a utilidade de compreender o objeto do presente artigo à luz da dimensão descrita por Fuller (2007), é interessante cotejar uma parte das discussões sobre o livro eletrônico ou e-book. Autores que se dedicam à questão costumam enfocar, em algum ponto, os mecanismos de direito autoral. Thompson menciona modelos de distribuição de livros digitais discutindo prós e contras, inclusive mencionando a ameaça de pirataria (THOMPSON, 2008, p. 348; THOMPSON, 2012, p. 361). O alerta também é feito pelo brasileiro Ronaldo Lemos, que considera que se as normas “[...] forem severas demais, penalizam quem paga pelo original e levam à pirataria” (LEMOS, 2012, p. 59). Ted Striphas detalha exemplos já históricos de editoras e autores que tentaram criar sistemas de distribuição de livros eletrônicos que, inclusive, se deletavam após a leitura do usuário (STRIPHAS, 2011, p. 40); em uma obra recente, a norte-americana Naomi S. Baron pondera que, ao contrário dos livros impressos, os e-books têm um regime de propriedade diferente, e o leitor não é mais proprietário, mas desfruta de uma espécie de leasing (BARON, 2015, p. 96).

Uma outra forma de compreender a questão dos direitos autorais mencionada pelos autores acima consiste em assumir que os livros eletrônicos têm um regime de propriedade sujeito a regras diferentes daquele dos impressos. Seja na forma dos arquivos eletrônicos que incorporam medidas de segurança para evitar pirataria, seja no regime diferenciado de preço ou mesmo de propriedade, os livros eletrônicos têm um diferencial ao mesmo tempo técnico e econômico que lhes é inerente. Nos termos de Fuller, como dispositivos eles são constituídos por um discurso próprio.

Entender a proteção de direitos autorais dos livros eletrônicos a partir da ideologia codificada no dispositivo torna-se útil ao analisar o mesmo exemplo acima de forma aprofundada. O português José Afonso Furtado participou, no início dos anos 2000, das discussões internacionais que culminaram no protocolo de publicação eletrônica que viria a originar o formato Epub. Naquela época, Furtado escreveu o seguinte, a respeito das diferenças entre o mercado editorial impresso e o debate sobre direitos autorais nos e-books:

Ora, a legislação sobre o copyright estava concebida apenas para a regulação da cópia, e pouco tinha a ver com questões sobre comportamentos de leitura ou de partilha de uma obra. Tratava-se de um equilíbrio muito sutil entre a proteção dos autores, dos detentores do copyright e de certos direitos públicos de uso e acesso aos conteúdos. No novo contexto, ao invés, uma conjugação entre novas disposições legais e mecanismos tecnológicos vai regular os direitos digitais através de algoritmos, metadata e protocolos criptográficos que permitem a gestão da identidade e atributos para os dispositivos de leitura, a definição das restrições na duplicação, utilização e transferência de conteúdos. (FURTADO, 2004, p. 20).

A observação de Furtado é semelhante às ponderações de Thompson (2012), Striphas (2009) e Baron (2015), mas se diferencia por sua preocupação mais técnica. Furtado menciona, especificamente, “mecanismos tecnológicos”, “algoritmos” e “protocolos criptográficos” (FURTADO, 2004, p. 20). E, efetivamente, é nestes termos antevistos por ele que o gerenciamento de direitos autorais nas publicações eletrônicas veio a ser implementado. O International Digital Publishing Forum (IDPF) é, nas palavras da própria entidade, “a organização global de comércio e padronização dedicada ao desenvolvimento e promoção da publicação eletrônica e consumo de conteúdo”20. O IDPF emite um protocolo técnico de recomendações para os agentes ligados ao livro eletrônico (como editores, fabricantes de dispositivos e lojas on-line), a Open Publication Structure (OPS). Na descrição técnica do padrão Epub, a OPS menciona que “Sistemas de leitura podem incluir funções adicionais de processamento, como compressão, indexação, encriptação, gerenciamento de direitos e distribuição”21.

Acompanhar a preocupação explicitada por Furtado (2004) e cotejá-la com a efetiva implementação técnica de um espaço de proteção de direito autoral pelo IDPF permite compreender em uma situação empírica o estabelecimento do discurso contido no dispositivo conforme descrito por Fuller (2007). Do ponto de vista teórico, é uma forma de modelizar uma dimensão analítica do objeto que, como se viu, concentra atenção de autores dedicados à área.

Há outras instâncias dos estudos sobre o livro eletrônico que também passam pelo equacionamento desta dimensão do discurso embutido no dispositivo. Baron (2015, p. 168) menciona as pesquisas sobre “eye tracking”, que tentam observar, junto a usuários, o movimento dos olhos durante a leitura, tentando averiguar se há diferenças entre os padrões do livro impresso e eletrônico. A autora defende o ponto de vista de que o texto eletrônico tende a concentrar leituras mais rápidas e superficiais, de menor imersão, citando, entre outras referências, Nicholas Carr. Este é o autor que, por sua vez, defendia, na obra The Shallows, que o Google e outros recursos eletrônicos são uma versão atualizada do taylorismo, princípio gerencial que buscava a otimização de produção:

O sistema de mensuramento e otimização de Taylor ainda está muito conosco: ele permanece uma das bases da manufatura industrial. E agora, graças ao crescente poder que os engenheiros da computação e codificadores de software detêm sobre nossas vidas intelectuais e sociais, a ética de Taylor está começando a governar o reino da mente também. A Internet é uma máquina desenhada para a eficiente e automatizada coleção, transmissão e manipulação de informação, e suas legiões de programadores estão resolutas em encontrar o “melhor caminho” – o algoritmo perfeito – para executar os movimentos mentais do que viemos a descrever como trabalho do conhecimento.22(CARR, 2011, p. 150).

Nicholas Carr não é um autor que observe a estrita metodologia científica do meio acadêmico, mas, ainda assim, é referenciado por Baron (2015), uma pesquisadora ligada ao mundo universitário e de pesquisa. De uma certa maneira, Carr intui a dimensão ideológica do aparato ao fazer alusão ao poder que, alega, os engenheiros e programadores detêm sobre o “trabalho do conhecimento” (CARR, 2011, p. 150). É nesta medida, justamente, que suas observações se tornam suficientemente relevantes para figurar no extensivo estudo de Baron (2015) sobre leitura digital.

Assim como a questão da implantação do sistema de direitos autorais, que pode vir cifrado dentro do próprio aparelho leitor de e-books, o taylorismo aludido por Carr (2011) integra a categoria dos discursos que se encontram entranhados em dispositivos eletrônicos. Aqui, estas duas discussões ainda atuais sobre o e- book servem como exemplo da utilidade de transpor para a área a categoria esboçada por Fuller (2007). Não se trata necessariamente de referendar as conclusões dos autores, mas defende-se, aqui, a conveniência do conceito como ferramenta analítica. A ideia de aparato delineia uma dimensão, a partir da qual podem ser construídas investigações de fundo simbólico que são anteriores ou posteriores à constituição do dispositivo como forma particular de discurso.

Considerações finais

Identificado com as pesquisas sobre processos editoriais, o presente artigo se debruçou sobre uma questão teórica e metodológica envolvida no livro eletrônico que, em alguma medida, diz respeito também a temáticas mais amplas dentro dos estudos de Comunicação. A questão do livro eletrônico, que mobiliza um corpo de autores que vai da História Cultural à Teoria da Literatura, até mesmo fazendo limites com áreas técnicas como a Engenharia e a Computação, passa por questões basilares para estudos contemporâneos de mídia. Trata-se de mapear reconfigurações representacionais, acompanhar como determinadas transformações, como a do texto impresso para o eletrônico, envolvem não só o reposicionamento de regimes simbólicos, mas simultaneamente a constituição de novos sistemas significativos que podem ser constituídos no próprio interior de dispositivos.

Especificamente, o exercício de analisar questões empíricas ligadas à evolução dos livros eletrônicos, como as mencionadas por Baron (2015) e Furtado (2004), teve o objetivo, aqui, não de estabelecer conclusões, mas demonstrar e testar uma dimensão analítica, aquela do dispositivo, que, amparada em um conceito de Fuller (2007), mobiliza e atualiza um corpo de autores essenciais para estudos comunicacionais, como Michel Foucault, Marshall McLuhan, Friedrich Kittler e Vilém Flusser.

Reservar um espaço teórico e metodológico para equacionar o aspecto ideológico cifrado no próprio aparato ou dispositivo é, no caso dos e-books ou textos eletrônicos, uma forma de fugir de uma armadilha que, como se viu, se apresenta às pesquisas da área. Há o perigo de incorrer no determinismo, como referido por Bolter e Grusin (2000), mas também a necessidade, por força da própria temática técnica, de fazer frente às questões tecnológicas envolvidas. Esta discussão, por sua vez, tem que ser feita sem detrimento de outras dimensões, como a questão simbólica do suporte referida pelo francês Donnat (2012) ou a própria dimensão cultural e histórica que já era delineada por Chartier (1998). Vem daí a proposição, sustentada aqui, de compreender o conceito do discurso do dispositivo como uma dimensão analítica, um parâmetro adicional de estudo a incluir no problema de pesquisa em aberto do e-book. Descreveu-se, aqui, um espaço interpretativo mais do que um conjunto de conclusões.

REFERÊNCIAS

BARON, Naomi S. Words onscreen: the fate of reading in a digital world. Oxford: Oxford University Press, 2015.

BERRY, David M. Understanding digital humanities. Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2012.

BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.

BREDEHOFT, Thomas A. The visible text: textual production and reproduction from Beowulf to Maus. Oxford: Oxford University Press, 2014.

CARR, Nicholas. The Shallows: what the Internet is doing to our brains. New York: W.W. Norton, 2011.

CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

DARNTON, Robert. The case for the books: past, present, and future. New York: Public Affairs, 2009.

DONNAT, Olivier. La lecture régulière de livres: un recul ancien et général. In: Le Débat. Paris: Gallimard, n. 170, mai-out. 2012, p. 42-51.

FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D‟Água, 1998.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

FULLER, Matthew. Media ecologies: materialist energies in art and technoculture. Cambridge: The MIT Press, 2007.

FURTADO, José Afonso. O papel e o pixel: do impresso ao digital: continuidades e transformações. Florianópolis: Escritório do Livro, 2006.

FURTADO, José Afonso. Metamorfoses da Edição na Era Digital. In: Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, 1., 2004, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.academia.edu/630205/Metamorfoses_da_Edi%C3%A7%C3%A3o_n a_Era_Digital. Acesso em: 01 maio 16.

GOMEZ, Jeff. Print Is Dead: Books in our digital age. 8. ed. New York: Macmillan, 2008.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosphere, mood, Stimmung: on a hidden potential of litera-ture. Stanford: Stanford University Press, 2012.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot convey. Stan-ford: Stanford University Press, 2004.

HOWSAM, Leslie. Old books & new histories: an orientation to studies in book and print culture. Toronto: University of Toronto Press, 2006.

JACOBS, Alan. The pleasures of reading in an age of distraction. New York: Oxford University Press, 2011.

KITTLER, Friedrich A. Gramophone, film, typewriter. Stanford: Stanford University Press, 1999.

LEMOS, Ronaldo. Futuros possíveis: mídia, cultura, sociedade, direitos. Porto Alegre: Sulina, 2012.

McGANN, Jerome. Radiant textuality: literature after the world wide web. Basingstoke: Palgrave, 2001.

McGANN, Jerome. The textual condition. Princeton: Princeton University Press, 1991.

McKENZIE, D.F. Bibliography and the sociology of texts. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

McLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Editora Nacional/Editora da USP, 1972.

STRIPHAS, Ted. The late age of print: everyday book culture from consumerism to control. New York: Columbia University Press, 2011.

THOMPSON, John B. Books in the digital age. Cambridge: Polity, 2008.

THOMPSON, John B. Merchants of culture: the publishing business in the twenty-first century. New York: Plume, 2012.

ULIN, David L. The lost art of reading: why books matter in a distracted time. Seattle: Sasquatch Books, 2010.

Notas

5 Original em inglês, esta é uma versão dos autores deste artigo.
6 Original em inglês, esta é uma versão dos autores deste artigo.
7 Original em inglês, esta é uma versão dos autores deste artigo.
10 Original em inglês, esta é uma versão dos autores deste artigo.
11 Original em francês, esta é uma versão dos autores deste artigo.
17 Original em inglês. Esta é uma versão dos autores deste artigo.
18 Original em inglês. Esta é uma versão dos autores deste artigo.
19 Original em inglês. Esta é uma versão dos autores deste artigo.
20 Em inglês no original. Informação disponível em: http://idpf.org/about-us. Acesso em: 30/4/2016.
21 Em inglês no original. Informação disponível em: http://www.idpf.org/epub/20/spec/OPS_2.0.1_draft.htm# Section1.1. Acesso em: 30/4/2016.
22 Original em inglês. Esta é uma versão dos autores deste artigo.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por