Déjá vu: revivendo experiências em ambientes de realidade virtual

Déjá vu: reviving experiences in virtual reality environments

Eduardo Zilles Borba
Universidade Fernando Pessoa, Portugal, Brasil
Marcelo Zuffo
Universidade de São Paulo, Brasil

Déjá vu: revivendo experiências em ambientes de realidade virtual

Interin, vol. 23, núm. 1, pp. 221-237, 2018

Universidade Tuiuti do Paraná

Recepção: 03 Outubro 2017

Aprovação: 26 Outubro 2017

Resumo: Esta é uma discussão sobre o uso da Realidade Virtual (RV) como plataforma de mídia para registro e preservação de experiências com espaços, objetos, atividades e, até mesmo, pessoas. São debatidas suas potencialidades como interface multissensorial que estimula o feeling de imersão do usuário no ambiente de fluxos comunicacionais. A condução metodológica percorre referenciais teóricos sobre o uso de dispositivos de mídia como instrumentos que resguardam fatos e, consequentemente, memórias dos povos (McLUHAN, 1964; BARTHES, 1980), sobre a cultura digital (KERCKHOVE, 1995; LÉVY, 1999) e os sobre ambientes de RV (BURDEA, 2003; STEINICKE, 2016); além de aplicar observações exploratórias a dois cenários de simulação que, de alguma forma, utilizam recursos eletrônicos para preservar a noção de espaço e tempo de lugares e atividades efêmeras, nomeadamente: HMD e CAVE. Os resultados indicam que a premissa mcluhaniana – os meios de comunicação são extensões do humano – faz todo sentido em ambientes de RV devido aos estímulos multissensoriais produzidos no corpo do sujeito, fazendo-o crer que participa da experiência, num ato simbólico, porém convincente, de que revive situações passadas. Ora, um déjá vu eletrônico.

Palavras-chave: Realidade virtual, Imersão, Mídias Digitais, Interfaces Multissensoriais, Dispositivos eletrônicos.

Abstract: This article discusses the use of Virtual Reality (VR) as a media platform for recording and preserving past experiences with spaces, objects, activities and even people. It debates on its potentialities as a multisensory interface that stimulates the immersion feeling of the user in the communication flow environment. To conduct the essay, we present concepts on the use of media devices to safeguard facts and, consequently, people memories (McLUHAN, 1964; BARTHES, 1980); on digital culture (KERCKHOVE, 1995; LEVY, 1999) and, also, on VR environments (BURDEA, 2003; STEINICKE, 2016); to then apply exploratory observations to two simulations scenarios which, somehow, making use of electronic devices to preserve space and time notions of ephemeral places and activities, specifically: HMD and CAVE. Results show the mcluhanian premise – media as mankind extensions – makes perfect sense in VR environments, due to the multisensory stimuli produced in the user´s body, making her/him believe she/he participates in the experience, in a symbolic, but convincing, act of reliving past situations. It means, an electronic déjá vu.

Keywords: Virtual Reality, Immersion, Digital Media, Multi-sensorial Interfaces, Electronic Devices.

1 Realidade virtual como plataforma de mídia multissensorial

Muito se tem falado sobre a Realidade Virtual (RV), o seu potencial e as possibilidades de produção de experiências imersivas para os usuários em ambientes digitais. De fato, a sua popularização entre o grande público segue um crescimento exponencial que provavelmente não irá abrandar nos próximos anos (GRAFT, 2014). Muito pelo contrário, a tendência é de que a sua presença em universidades, escritórios e residências seja cada vez maior[1]. Ao olhar para o seu potencial como plataforma de mídia podemos sugerir que suas características são realmente inovadoras, pois o sujeito pode visualizar, interagir e manipular conteúdos digitais à semelhanças das ações que realiza no mundo real (FRIEDBERG, 2006).

É importante ressaltar que a RV não é exatamente uma novidade. Segundo Zilles Borba et al. (2015), experimentos com esta tecnologia remetem a década de 1960, especialmente com as pesquisas de Ivan Sutherland (1963) sobre o head-mounted display (HMD)[2].

Há décadas que os laboratórios de pesquisas utilizam a RV para criar experiências com efeito da realidade física. Na atualidade, devido aos avanços da computação gráfica e dos dispositivos tecnológicos, este modelo de interface está saindo da órbita universitária e despertando o interesse das grandes corporações. Isto catapultou a sua popularização entre o grande público e, consequentemente, alavancou oportunidades para diversos mercados otimizarem ações com potenciais consumidores. (ZILLES BORBA et al., 2015, p. 356).

Para aqueles que não estão familiarizados com o termo, a RV deve ser compreendida como uma interface avançada entre usuário e computador, na qual a pessoa pode visualizar, interagir e manipular conteúdos digitais através de experiências virtuais que reproduzem as estéticas e as operações do mundo físico (KIRNER; TORI, 2004). A fim de explorar uma simulação virtual, o usuário deve utilizar dispositivos eletrônicos – óculos de estereoscopia, joysticks, sensores de presença, gestos e movimentos – capazes de estimularem os receptores sensoriais do seu corpo como, por exemplo: visão, audição, tato, propriocepção e cinestesia. Estes estímulos sensoriais, induzidos pelos equipamentos eletrônicos, são fundamentais para que o usuário realize a construção de uma percepção específica desta nova realidade. Ou seja, se mais sentidos do corpo humano forem estimulados na experiência (multissensorialidade), mais convencido ele estará de que habita o contexto virtual (ZILLES BORBA, 2017).

Retornando aos trabalhos realizados por Sutherland (1963), devemos apontar que o seu HMD apresentava ao usuário algumas imagens tridimensionais em wireframes. Isto é, o sujeito visualizava formas geométricas sem cores, texturas ou preenchimentos (elipses, cubos e triângulos). Mesmo que hoje isso pareça inexpressivo, tendo em conta a capacidade da computação gráfica daquela época, podemos encarar o seu trabalho como algo incrivelmente inovador. Isso também significa que, para chegarmos nos dispositivos atuais (Oculus Rift[3], HTC Vive[4], Samsung GearVR[5], PlayStation VR[6], Google Cardboard[7]), pesquisadores e desenvolvedores estiveram condicionados a uma espécie de technolag intrínseco à própria evolução da computação gráfica, do processamento de dados binários e da queda no custo de produção de hardwares (KERCKHOVE, 1995).

Na atualidade, Zilles Borba e Zuffo (2015) indicam dois paradigmas de interfaces com a RV: o head-mounted display (HMD) e a Cave Automatic Virtual Environment (CAVE) (fig. 1).

Interfaces de RV imersiva em HMD (óculos) e
CAVE (sala cúbica)
Figura 1:
Interfaces de RV imersiva em HMD (óculos) e CAVE (sala cúbica)
Fonte: Zilles Borba; Zuffo (2015).

Burdea (2003) destaca que ambos são eficazes no que se refere à projeção de imagens que simulam espaços físicos realísticos (ou mesmo imaginários). Contudo, são dispositivos com características estruturais e materiais diferentes. HMDs são dispositivos vestíveis, com uma estrutura afixada na cabeça do usuário e um monitor colocado em frente aos seus olhos, numa espécie de capacete com óculos embutidos. Eles anulam o mundo físico da percepção visual do usuário, estimulando-o a dar atenção somente às imagens computacionais projetadas nas lentes dos óculos (ZILLES BORBA et al., 2015). Esta experiência visual é suportada por gráficos de elevada qualidade. Também, a noção de amplitude do cenário é otimizada pelo fato do espaço revelar-se num ambiente 360°, que circunda o sujeito, com imagens por todos os lados. É importante sublinhar que essas experiências são visualizadas a partir da perspectiva da primeira pessoa, incitando uma noção de simbiose entre usuário e avatar e, a certa medida, permitindo que a pessoa sinta-se na pele do personagem para vivenciar o mundo virtual (BOLTER; GROMALA, 2003). Por sua vez, Domingues (2004) explica que as CAVEs são salas cúbicas compostas por seis faces, nas quais as imagens computacionais são projetadas (quatro paredes, teto e chão). Isto é, elas não são dispositivos vestíveis, mas sim espaços físicos. Desta forma, o usuário coloca-se no centro da sala cúbica para visualizar o cenário virtual projetado ao seu redor. Para Zuffo et al. (2001), este modelo de interface coloca o usuário literalmente no centro da simulação tecnológica, permitindo que visualize os conteúdos nas paredes e utilize o seu próprio corpo para navegar pelo palco virtual. Para reproduzir a experiência visual do mundo físico, o usuário veste óculos de estereoscopia – os mesmos utilizados em sessões de cinema 3D – a fim de criar a ilusão de que as imagens saltam para fora das telas e, assim, estejam no mesmo plano de interações que o corpo do usuário (o eixo Z, de profundidade) (DOMINGUES, 2004). Ainda, para transpor os movimentos do usuário no palco virtual ou, simplesmente, permitir que este interaja com os objetos virtuais, tecnicamente torna-se necessário utilizar um joystick, um gamepad ou equipamentos capazes de rastrear seus movimentos naturais (sensores e/ou câmeras espalhadas ao redor da CAVE).

No espaço de realidade virtual, as interfaces mandam sinais para os ambientes tridimensionais, que estão armazenados no computador e que foram construídos em princípios renascentistas da geometria e da perspectiva linear com base nas coordenadas cartesianas X,Y e Z. Essas cenas vão sendo modeladas, renderizadas, portanto, visualizadas em tempo real, numa total correspondência com a ação do corpo no ambiente... No que se refere à estereoscopia, os ambientes ganham qualidades visuais tridimensionais que simulam relevo. Tecnicamente, a estereoscopia confere qualidades visuais de profundidade, gerando uma imagem diferente para cada olho, apresentando-as separadamente a partir da diferença existente entre as projeções na retina. Por outro lado, os shutter-glasses, usados para a realidade virtual, com seus dois painéis de LCD, os quais obstruem alternadamente a visão de cada olho, fazem com que a obstrução alternada seja sincronizada com o sistema de projeção de tal forma que cada campo atualizado no sistema seja alternado na imagem gerada. (DOMINGUES, 2004, p. 41-42).

Independente de usar uma CAVE ou um HMD para acessar o ambiente de RV, Zilles Borba e Zuffo (2015) indicam que ambos estimulam no usuário a sensação de habitar o contexto virtual. Esta ilusão de presença noutra realidade é estimulada por mecanismos de imersão como, por exemplo: estereoscopia da imagem tridimensional, som em profundidade espacial, luvas com feedback hápticos, entre outros. Segundo eles, todos possíveis mecanismos de imersão podem ser alocados em três categorias: realismo, interatividade e envolvimento (fig. 2). O realismo está relacionado à capacidade do ambiente virtual em apresentar cenários, objetos, personagens, atividades ou sonoridades à semelhança de suas versões originais (formas, cores, texturas, escalas, proporções, ruídos, vozes, etc.). Por sua vez, a interatividade indica como o sujeito interage ou manipula os elementos do mundo virtual. Neste caso, quanto mais próximas das operações no mundo real forem as ações virtuais, mais imersiva será a experiência de interatividade (caminhar, correr, pular, pegar, falar, etc.). Por fim, o envolvimento indica tanto à ampla percepção do espaço a ser explorado num cenário 360° (o que é completamente diferente de um cenário explorado numa tela plana de computador) quanto à capacidade do enredo da experiência manter ativa e constante a transferência de atenção do usuário (storytelling).

Os três pilares fundamentais da imersão do
usuário no contexto virtual
Figura 2:
Os três pilares fundamentais da imersão do usuário no contexto virtual
Fonte: Zilles Borba; Zuffo (2015)

1. 1 Registrar e preservar memórias em interfaces multissensoriais

Os meios de comunicação sempre foram (e ainda são) responsáveis por registrarem fatos históricos importantes da humanidade. Através de suas características técnicas e tecnológicas, como o registro da imagem pela fotografia ou o registro audiovisual pela câmera de vídeo, jornalistas e documentaristas congelam momentos que estarão eternamente preservados na forma de gráficos, imagens estáticas ou imagens em movimento para que, no futuro, as pessoas consultem dados sobre a cultura da nossa sociedade em determinado período da História (KERCKHOVE, 1995; CASTELLS, 1999; LEVY, 1999).

Para Mesquita et al. (2011) as imagens publicitárias em outdoors são exemplos de formatos de mídia que retratam a cultura, os costumes, a moda, a tecnologia ou os hábitos de um povo em determinada época. Isto é, não importa qual a técnica aplicada para a coleta e/ou reprodução de imagens, as mídias sempre surgem como agente principal quando o assunto é conhecer ou espalhar informações sobre a humanidade para a humanidade.

Neste ponto nos parece pertinente sublinhar que, diferente da fotografia (visual) ou do vídeo (audiovisual), a RV emerge como uma mídia multissensorial e imersiva, justamente, porque suas características como plataforma de comunicação permitem que o usuário sinta – de corpo inteiro – a sensação de habitar os espaços eletrônicos (ZILLES BORBA, 2017). Isto inclui a possibilidade de segurar objetos virtuais, de realizar atividades físicas em cenários sintéticos e, ainda, de se relacionar com avatares (sejam eles outros usuários ou inteligências artificiais). Tudo isso de forma realística, interativa e envolvente (escalas, formas, proporções, profundidades, cores, texturas, luzes) (ZILLES BORBA; ZUFFO, 2016). “Aos poucos estamos deixando de lado a necessidade de aprender o modus operandi das máquinas para realizar ações cada vez mais naturais com elas”, (ZILLES BORBA; ZUFFO, 2015, p. 2586). Isto é, mais do que admirar uma paisagem numa fotografia, a RV proporciona que o usuário se sinta parte desta paisagem, afinal ela está ao seu redor, numa interface 360°, e não mais numa tela plana; sugerindo uma experiência imersiva de telepresença, na qual os sentidos são totalmente encorajados a acreditarem que o ambiente virtual passa a ser uma espécie de realidade física, pura e concreta (fig. 3). Caso para sugerir que as tecno-interações estão criando tecno-percepções, numa extensão das atuações do humano para realidades paralelas, em virtualidades da vida que resultam numa nova significação para a noção que temos do espaço, do tempo e da própria realidade (SODRÉ, 2001). Na visão de Accioly (2010), a certeza dicotômica entre real (verdade) e virtual (mentira) parece perder-se nos ambientes de RV, criando uma espécie de conflito perceptivo na interpretação que o usuário faz do contexto virtual. “O que estamos observando agora é uma tecno-interação, uma interação por meio de tecnologia, que se processa desde o telefone até os meios de comunicação. Estamos assistindo a uma multiplicação, uma disseminação das tecno-interações na vida social” (SODRÉ, 2001, p. 3).

Técnicas de imersão estimulam o usuário a se
sentir no contexto virtual
Figura 3:
Técnicas de imersão estimulam o usuário a se sentir no contexto virtual
Fonte: Zilles Borba; Zuffo (2016)

Em 1964, Marshall McLuhan definiu uma interessante classificação entre mídias quentes e mídias frias. Para ele, as mídias quentes são aquelas que prolongam algum dos sentidos da pessoa, numa experiência em alta definição e com elevado grau de imersão (fotografia, televisão, cinema); enquanto as frias representam mídias com baixa definição (telefone). Utilizando esta taxonomia, sugerimos que a RV é uma mídia extremamente quente. Afinal, trata-se de uma interface multissensorial com elevadíssima resolução e imersão. Isto é, não somente as imagens ou as sonoridades dos ambientes e objetos virtuais são percebidas pelo sujeito à semelhança do que ele já vivenciou no mundo real, mas também as interações do seu corpo fazem mimética motora, proprioceptiva e cinestésica ao mundo físico (gestos, movimentos, equilíbrio e toques). Ora, a elevada resolução dos múltiplos impulsos sensoriais que esta mídia desperta no corpo do usuário (áudio, visual, háptico, etc.) faz-nos refletir que a RV se enquadraria na extremidade mais quente da taxonomia entre as mídias quentes e frias de McLuhan (1964).

Ainda pensando sobre taxonomias para os diferentes dispositivos de mídia, no campo da imagética torna-se interessante buscar o conceito de câmara clara e câmara escura de Barthes (1980). Nele, o autor considera que qualquer imagem criada pelas mãos humanas deve ser compreendida como uma câmara clara (ilustração, escultura, etc.); enquanto as imagens captadas e reproduzidas mecânica ou eletronicamente devem ser entendidas como câmaras escuras (fotografia, vídeo, etc.). Levando em conta os aspectos estéticos, narrativos e tecnológicos da RV, percebemos que ela possui características de ambas as câmaras sugeridas pelo estudioso francês. Desta forma, num exercício de reflexão, sugerimos um conceito de câmara específica para essa plataforma de mídia: a câmara cinzenta. Encorajamo-nos a sugerir tal denominação com base no que percebemos ser o resultado da mistura entre os conceitos de claro (branco) e escuro (preto) na teoria das câmaras de Barthes. Por exemplo, a ilustração digital de um objeto tridimensional, feita pelas mãos do designer, se enquadra como uma técnica de câmara clara. Por sua vez, sustentada por algoritmos da máquina informática, a reprodução automatizada dos movimentos de carros ou personagens que povoam a paisagem eletrônica se enquadra como uma técnica de câmara escura. Neste exemplo, que ocorre na grande maioria dos projetos de ambientes em RV (BURDEA, 2003), verificamos que a RV possui tanto características de câmara clara quanto de câmara escura[8]. Isto significa, em nossa perspectiva, que todas as mídias digitais que possuem características de ambas as câmaras, podem ser agrupadas numa câmara mista, a qual denominamos de câmara cinzenta[9].

Estas reflexões nos levam a considerar que, indubitavelmente, a RV desperta como um formato de mídia capaz de preservar feelings (sensações), reconstruir situações (noções geográficas e atmosféricas dos espaços) e explicar ou resgatar emoções (memórias) relacionadas a objetos efêmeros, zonas ou atividades do passado e/ou presente para as pessoas no futuro. Por exemplo, num ambiente de RV com estímulos multissensoriais sofisticados o usuário pode sentir como seria estar dentro de uma densa selva, durante um conflito bélico, que possivelmente não existe mais ou que, simplesmente, com o tempo foi modificada pela força da natureza ou do humano. Ou, ainda, participar ativamente em concertos musicais de bandas extintas que deixaram gravadas suas performances em vídeos 360° (fig. 4). Ambas situações indicam características de uma experiência relacionada a interações multissensoriais em ambientes virtuais como, por exemplo: telepresença, ilusões de viagem no tempo, interações humano-máquina, imersão e interfaces avançadas.

Projeção em vídeo 360º através de um
dispositivo HMD
Figura 4:
Projeção em vídeo 360º através de um dispositivo HMD
Fonte: procura no Google pelo termo “McCartney 360º”

2 Um olhar comunicacional aos projetos de RV

Para conduzir uma discussão inicial, porém relevante, sobre o uso da RV como uma mídia que permite ao usuário vivenciar experiências passadas de forma multissensorial e imersiva, realizamos um exercício de mapeamento aleatório de projetos que utilizam esta interface tecnológica avançada para registrar e preservar experiências de tempo e espaços efêmeros.

Através de uma observação participativa a dois ambientes de RV suportados pelos seguintes equipamentos: Oculus Rift, Leap Motion, OptiTrack, Wii Remote, Nvidia 3D Vision, Razer Hydra Joysticks e projetores; foram analisados aspectos estéticos e narrativos na composição da experiência do usuário com os cenários virtuais. A exemplo de Slater e Wilbur (1997), Steinicke (2016) e Skarbez (2017), defende-se que a coleta deste tipo de dado empírico é imperativa para que se possam refletir sobre os padrões e/ou particularidades das experiências do usuário com os meios de comunicação. Neste caso, sobre a sua noção de reviver, ou viver pela primeira vez, em espaços e contextos reais mimetizados pela RV.

A seguir apresentamos dois casos de espaços que já não existem ou foram modificados desde a sua descoberta, mas que foram reconstruídos pela nossa equipe de pesquisa em RV. O primeiro caso é explorado com o uso do dispositivo HMD, enquanto que o segundo é suportado por uma CAVE: a) o sítio arqueológico de Itapeva (2015); b) o centro histórico de São Paulo (1911).

2.1 Espaço arqueológico: uma experiência em HMD

Este projeto de RV apresenta um ambiente totalmente imersivo que simula o espaço arqueológico de Itapeva, no interior de São Paulo. Nele, mais do que recriar a sensação de transporte do usuário para o sítio arqueológico, são identificados mecanismos de comunicação entre usuário-computador favoráveis para a recriação da exploração de espaços e objetos efêmeros de uma forma não-destrutiva.

Este modelo digital surge como um exemplo para reviver (ou vivenciar pela primeira vez) a sensação de caminhar por espaços de difícil acesso. Assim, na universidade, os estudantes de arqueologia têm a oportunidade de explorar espaços reconstruídos tridimensionalmente e, com isso, perceber aspectos importantes da geografia, escalas e atmosfera do local sem realmente ir até lá. Esta sensação de presença no sítio arqueológico é produzida no usuário porque ela/ele veste um head-mounted display (HMD) com elevadas qualidades imersivas – desde a alta taxa de frames por segundo das imagens 3D até a alta resolução das texturas, cores e sombreamentos dos objetos num cenário que permite a visualização 360°.

Ainda, a percepção visual do cenário através da perspectiva da primeira pessoa aumenta a sensação de presença no contexto e, por vezes, gera uma noção de que o usuário possui outro corpo, numa simbiose entre o seu corpo orgânico e o corpo do seu avatar representado no palco sintético. Como recurso extravisual deste projeto, “o usuário pode fazer zoom in e out para aproximar ou afastar os objetos do seu campo de visão” (BORBA et al., 2016, p. 47). Em suma, todo este “aparato tecnológico permite que o usuário observe detalhes da paisagem virtual num verdadeiro entendimento espacial da cena como, por exemplo: as formas, as escalas, as texturas, as luzes e sombras” (BORBA et al., 2016, p. 47).

A navegação e manipulação dos objetos no sítio arqueológico virtual imitam os movimentos naturais do humano. Para tal são utilizados sensores de posicionamento, gestos e movimentos da pessoa, nomeadamente: o Razer Hydra[10] e o OptiTrack Prime 41[11]. Desta forma, a pessoa pode praticar exercícios de escavação, exploração ou observação arqueológica a partir de casa, do laboratório ou da sala de aula (fig. 5).

Usuário explorando virtualmente um espaço
efêmero de forma não-destrutiva.
Figura 5:
Usuário explorando virtualmente um espaço efêmero de forma não-destrutiva.
Fonte: Borba et al. (2016).

2.2 Antigo centro histórico de São Paulo: uma experiência em CAVE

Este projeto se propôs reconstruir o centro histórico da cidade de São Paulo, de 1911, através de imagens 3D. Todo o trabalho de modelagem, aplicação de texturas e iluminações do cenário teve como base imagens fotográficas e ilustrações cedidas pela prefeitura do município. Afinal, para produzir uma ilusão de viagem no tempo até um espaço que não existe mais, Cabral et al. (2007) explicam que foi necessário criar mais do que um cenário visualmente realístico (prédios, carros, texturas, cores, etc.). Foi preciso criar interações, movimentos e vivências características da cidade naquela época. Assim, para gerar esta sensação de presença, foram reconstruídas situações (geográficas, arquitetônicas e atmosféricas) e, até mesmo, estimuladas emoções com impulsos multissensoriais e construções de narrativas num enredo que procurava resgatar os hábitos do povo paulista, daquela época, através de animações realísticas de personagens, carroças e zonas comerciais que seguiam roteiros envolventes, a fim de prender a atenção do usuário (envolvimento com a narrativa).

A plataforma de RV eleita para suportar esta simulação foi a CAVE – a Caverna Digital da USP – que, diferente do HMD, permite que a exploração virtual seja realizada por diversos usuários ao mesmo tempo. Por exemplo, dois ou mais indivíduos entram na estrutura cúbica da Caverna Digital para vivenciar a experiência. Porém, apenas um deles consegue controlar as interações do grupo.

Neste projeto, todas as ações são controladas pelo usuário que mantém o controle de Nintendo Wii em suas mãos. Esta pessoa define se o grupo segue para frente, para trás, para esquerda ou para a direita na sua caminhada pelo antigo centro histórico de São Paulo. Também, é importante destacar que neste sistema de CAVE os usuários vestem óculos estereoscópicos, semelhantes aos que o espectador utiliza para ver filmes 3D, o que garante uma experiência mais imersiva com as imagens computacionais. Afinal, os objetos virtuais saltam para fora das telas, proporcionado a sensação de que os elementos virtuais estão no mesmo plano físico que o corpo do usuário (fig. 6).

Em suma, neste projeto é possível explorar o centro histórico, não somente de uma forma individual, mas de forma coletiva. Durante as nossas observações ficou claro que, no que se refere a preservação da história, da cultura e do comportamento da nossa sociedade, as CAVEs surgem como plataformas de mídia extremamente inovadoras e imersivas, sendo uma ferramenta que oportuniza ao usuário a vivência em cenas do passado para os seguintes fins: estudos arquitetônicos, registro dos espaços urbanos, visitas em museus, entre outros. Isto é, sua narrativa multissensorial permite que as pessoas do presente ou do futuro caminhem por cidades que tiveram a sua morfologia urbana modificada ou, simplesmente, já não existem. E, mais do que visualizar imagens das cidades de séculos passados, de forma realística e em escalas naturais, essa tecnologia incentiva o usuário a sentir como era ser um habitante de determinada época ao estar imerso no meio de um centro histórico antigo, no qual pode realizar atividades que tinham significado nas rotinas das pessoas daquela época.

Usuário inserido no centro histórico de São
Paulo através de uma simulação tridimensional sustentada pelo ambiente virtual
em CAVE
Figura 6:
Usuário inserido no centro histórico de São Paulo através de uma simulação tridimensional sustentada pelo ambiente virtual em CAVE
Fonte: Cabral et al. (2007).

Conclusão

Com base no referencial teórico sobre dispositivos de mídia, cultura digital, RV e imersão expostos neste ensaio e, também, após conduzir observações exploratórias participativas que permitiram aos autores se colocar na posição do usuário nos ambientes de simulação eletrônica, pode-se concluir que a RV tem um enorme potencial para a criação de experiências multissensoriais, permitindo ao usuário sentir que realmente explora atividades, espaços e situações do passado (e até mesmo do presente ou do futuro). Esta noção de imersão surge de uma combinação entre a capacidade tecnológica dos dispositivos em intermediarem a relação usuário-realidade virtual; mas, também, das estéticas e narrativas criadas no espaço informacional. Isto é, se os equipamentos estimulam a imersão do corpo do usuário ao enganar seus sentidos com a aplicação de técnicas de imersão como, por exemplo: a estereoscopia da visão, a espacialidade do som no cenário, o rastreamento da posição, gestos e movimentos reais do usuário a serem transferidos para o seu avatar virtual; a composição do cenário para estas tecno-interações estimula sua noção de presença com a criação de roteiros, enredos e ações que estimulam a transferência de atenção no contexto em que se está inserido. Mais do que visualizar imagens realísticas de fotos ou vídeos, a RV permite que o sujeito mergulhe na experiência e assuma a postura ativa de um avatar que povoa o cenário, através da perspectiva da primeira pessoa, criando a sensação de que se está revivendo (ou vivendo pela primeira vez) a experiência. Ora, um déjá vu eletrônico.

A partir desta conclusão, fica evidente considerar que as narrativas e as estéticas características dos espaços comunicacionais gerados por essa tecnologia abrem um leque de possibilidades para a aplicação no campo das mídias (publicidade, jornalismo, relações públicas, etc.). Pois, mais do que ser um agente que navega pela interface da plataforma web (monitores planos em frente ao usuário), os HMDs ou CAVEs permitem que o usuário sinta-se dentro do mundo virtual, onde realiza gestos naturais (caminhar, correr, pular, pegar, tocar), visualiza as paisagens com realismo gráfico (forma, escala, proporção, profundidade, cor, textura) e escuta as sonoridades de acordo com a configuração e a acústica do espaço (ruído, vozes, música, eco).

De fato, a RV possui capacidade para produzir, artificialmente, experiências multissensoriais semelhantes às que vivenciamos no mundo físico. Ela estimula nossos sentidos (o corpo) a acreditarem que estamos inseridos noutra realidade (a virtual), numa espécie de interface tecnológica que proporciona a criação de narrativas digitais para o corpo inteiro (ver, ouvir, tocar, pegar, manusear, caminhar, correr, pular, etc.).

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado com o apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil através do programa Atração de Jovens Talentos do CsF.

Referências

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ZILLES BORBA, Eduardo; ZUFFO, Marcelo. Paradigmas da Interação Humano-Máquina em Dispositivos de Realidade Virtual. Anais do I Seminário Internacional de Pesquisa em Midiatização e Processos Sociais. São Leopoldo: Unisinos, p.1-11, 2016.

ZILLES BORBA, Eduardo. Narrativas do Corpo Inteiro: tecnomediações em realidade virtual. In: Soster, D.; Piccinin, F. (Org.). Narrativas Midiáticas Contemporâneas: perspectivas epistemológicas. Santa Cruz do Sul: Editora Catarse, p.239-254, 2017.

ZUFFO, Marcelo; SOARES, Luciano; CABRAL, Márcio. Sistemas avançados de realidade virtual. In: Tori, R.; Kirner, C.; Siscoutto, R. (Org.). Fundamentos e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada. Belém: Editora SBC, p.51-58, 2001.

Notas

[1] Dados da Digi-Capital Research (2015) indicam que, em 2017, o mercado global da RV atingirá uma movimentação de U$ 9 bilhões, especialmente com a comercialização de hardwares (equipamentos). Para 2020, o mesmo estudo prevê que este valor alcance os U$ 30 bilhões, especialmente com a produção e a venda de softwares (conteúdos). Dados semelhantes são projetados na pesquisa da International Data Corporation (2017), lançada em agosto, ao prever que o mercado da RV atingirá a marca dos U$ 11 bilhões em dezembro deste ano. Por sua vez, dados da SuperData Research (2017), apresentados em fevereiro, mostram uma expectativa mais conservadora. Baseado nos índices do mercado global da RV em 2016, que atingiu U$ 1,8 bilhões, o estudo sugere que, no final deste ano, o mercado não deverá passar da marca de U$ 4,9 bilhões.
[2] HMD é uma espécie de combinação entre capacete e óculos de realidade virtual, sendo um dispositivo capaz de isolar a percepção visual do usuário do mundo físico, criando a sensação visual de que somente o contexto virtual existe ao redor da pessoa (ZILLES BORBA et al., 2015).
[3] www.oculus.com
[4] www.htcvive.com
[5] www.samsung.com/pt/gear-vr
[6] www.playstation.com/en-au/explore/playstation-vr
[7] www.google.com/cardboard
[8] Ilustração 3D e programação binária (programação orientada a objetos) (BURDEA, 2003).
[9] A denominação de câmara cinzenta tem, justamente, o intuito de sugerir uma nova câmara para as mídias que se enquadram tanto no conceito de câmara clara quanto de câmara escura de Barthes (1980). Neste sentido, fazendo uso do conceito de luz (e cores) que dá nome às câmaras do cientista francês, numa suposta fusão do claro (branco) com o escuro (preto) teríamos como resultado o cinzento (cinza).
[10] http://www.razerzone.com/br-pt/gaming-controllers/razer-hydra-portal-2-bundle
[11] http://optitrack.com/products/prime-41
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