Resumo: O artigo tem como foco a forma do livro, que é abordada a partir do conceito de dispositivo (MOUILLAUD, 2002; CHARAUDEAU, 2006). Em uma aproximação teórica, problematiza-se a noção de livro na cultura da convergência, tendo em vista os processos de remediação no sistema de mídia, adotando-se como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e a documental. Conclui-se que, entre imediação e hipermediação, a materialidade do livro na contemporaneidade é resultado de um processo contínuo de remediação do livro impresso no digital e do digital no impresso. Esta demanda ao leitor acionar seu repertório acerca do livro tradicional, em um processo contínuo de significação dos produtos em tela e (res)significação daqueles em papel.
Palavras-chave:LivroLivro,DesignDesign,RemediaçãoRemediação,DispositivoDispositivo,ConvergênciaConvergência.
Abstract: The article focuses on the form of the book, which is considered from the concept of device (MOUILLAUD, 2002; CHARAUDEAU, 2006). In a theoretical approach, the notion of book in the culture of convergence is problematized, considering the processes of remediation in the media system, adopting as methodological procedures bibliographical and documentary research. It is concluded that, between immediacy and hypermediacy, the book's materiality in contemporaneity is the result of a continuous process of remediation of the printed book in digital and digital book in printed. It demands the reader to trigger its repertoire on the traditional book, in a continuous process of signification of the products in screen and (re)signification of those in paper.
Keywords: Book, Design, Remediation, Device, Convergence.
A materialidade do livro na contemporaneidade: imbricamentos entre imediação e hipermediação
The materiality of the book in contemporaneity: imbrications between immediacy and hyperimediacy
Recepção: 30 Setembro 2017
Aprovação: 26 Outubro 2017
A morte do livro já foi anunciada em diferentes momentos da história. Refletir sobre as transformações deste objeto ao longo do tempo é lidar com um artefato paradigmático da cultura letrada que, em meio à dinâmica renovação do sistema de mídia (BRIGGS; BURKE, 2006), adapta-se a inovações tecnológicas, a modificações de ordem social e econômica, entre outras. A cada nova mídia que surge, todo o conjunto se reorganiza. Enfatizando as mudanças provocadas pelo digital, Bolter e Grusin (1999) reiteram que um meio de comunicação não existe alheio a outros, visto que, sempre que um novo meio surge, ele ao mesmo tempo se ancora nos meios já existentes e, com o passar do tempo, os modifica, em um processo contínuo de remediação.
Para Jenkins (2009), na cultura digital, caracterizada pela convergência dos meios de comunicação, a circulação de conteúdos depende fortemente da participação ativa dos consumidores. Segundo o autor, a convergência não deve ser compreendida como um processo puramente tecnológico que uniria múltiplas funções dentro dos mesmos aparelhos. Em vez disso, esta representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos.
A cultura da convergência pode ser percebida em diversos níveis na cadeia do livro. O âmbito tecnológico (JENKINS, 2009) potencializa as mudanças de ordem empresarial, profissional e de conteúdos (SALAVERRÍA, 2010), em um complexo processo. Se de um lado há conglomerados editoriais cada vez mais fortes, que investem prioritariamente na publicação de best-sellers, cada vez mais, as pessoas se veem não apenas como consumidores de mídia, mas como produtores, fazendo com que o mercado editorial de nicho e de autopublicação ganhe, cada vez mais força (LUPTON, 2008). Além disso, o mundo está sendo transformado por novas atitudes sociais em relação à produção e ao compartilhamento de conteúdo de todo tipo. Essas mudanças são refletidas nos produtos editoriais que ganham novas formas materiais, do papel para as telas dos computadores, dos tablets, dos smartphones.
Este meio já passou por outras mudanças profundas em sua materialidade: do rolo para o códex, do manuscrito ao impresso. Entre permanências e transformações, foram alteraram os modos de estruturar e de inscrever os textos. No contexto atual, a inscrição do texto na tela traz uma estruturação que não é a mesma com a qual se defrontava o leitor do livro em rolo da Antiguidade, ou o leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro em códex manuscrito ou impresso. Traços como o fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica indicam que a revolução do livro digital é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito, no modo de inscrição do texto e nas maneiras de ler (CHARTIER, 1999).
O processo de pensar e fazer o livro também mudou bastante nos últimos séculos. As figuras do editor-impressor, editor-livreiro, editor-empresário, são exemplos das várias facetas do editor na história, adaptando-se às possibilidades culturais, econômicas, tecnológicas, de cada tempo (BRAGANÇA, 2005). No século XIX, após a revolução industrial da imprensa, ficou mais comum a separação de tarefas e profissões. Os papéis do autor, do editor, do tipógrafo, do distribuidor e do livreiro passaram a ser claramente separados. Na cultura da convergência, com as redes eletrônicas, esses papéis voltam a se misturar (CHARTIER, 1999). O que se entende por livro, desse modo, muda conforme muda a cultura em torno do objeto. O presente artigo tem como foco a forma do livro. Em uma aproximação teórica, problematiza-se a noção de livro na cultura da convergência, tendo em vista os processos de remediação, adotando-se como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e a documental.
O termo forma relaciona-se ao campo do design que, enquanto processo, opera conformando materialmente conceitos intelectuais (CARDOSO, 2004). O design sempre foi fundamental às práticas de edição e tem papel central na transformação de ideias em produtos editoriais. Em projetos gráficos, articula palavras e imagens, forjando relações entre os signos, abrangendo uma extensa lista de fatores humanos e técnicos em um processo caracterizado pela mediação entre autores e leitores (LUPTON, 1996; GRUSZYNSKI, 2008). No mercado editorial, faz o elo entre a edição do conteúdo e a materialização do produto.
A partir do conceito de dispositivo, reflete-se acerca da configuração material do livro. Há várias dimensões para este conceito. O dispositivo, enquanto técnica, diz respeito às operações realizadas e, enquanto tecnologia, aos suportes tecnológicos, ou seja, às máquinas, aos equipamentos e aos instrumentos utilizados nos processos de comunicação. Charaudeau (2006a) define o dispositivo como o quadro constituído pelo conjunto das circunstâncias materiais, que regem a realização de todo ato de comunicação e que, particularmente, para a comunicação midiática, é composto de um tipo de material, de um tipo de suporte e de um tipo de tecnologia que agem como marcas.
Sabe-se que os livros são um tipo de publicação que, em geral, têm uma vida útil estendida, se comparada a jornais e revistas. Neste sentido, ao longo de seu ciclo de vida, os artefatos vão ganhando marcas, especialmente em função da passagem do tempo e do contexto de uso dos objetos. Essas marcas certamente interferem na relação que se estabelece entre cada livro e cada um de seus leitores. Livros impressos autografados têm valor sentimental para seus donos, por exemplo. Mesmo nos artefatos da cultura digital, por mais que se fale de uma certa “imaterialidade” do e-book, lê-lo em um tablet com tela trincada, por uma queda ou algum outro descuido, ou lê-lo em um hardware novo gera diferentes experiências de leitura.
Todavia, por mais que saibamos da importância dessas marcas do tempo e da apropriação dos leitores, o foco aqui são as marcas que ajudam a constituir a noção de dispositivo e que são inseridas nas edições intencionalmente ao longo do processo editorial. A noção de dispositivo é importante neste contexto, pois destaca o contrato de comunicação entre quem produz e quem lê um livro. Charaudeau (2006b, p. 53) propõe que “o dispositivo é, antes de tudo, de ordem conceitual”. E continua:
Ele é o que estrutura a situação na qual se desenvolvem as trocas linguageiras ao organizá-las de acordo com os lugares ocupados pelos parceiros da troca, a natureza de sua identidade, as relações que se instauram entre eles em função de certa finalidade. (CHARAUDEAU, 2006b, p. 53).
Uma vez que condições materiais em que se desenvolvem as trocas podem variar de uma situação de comunicação a outra, estabelece-se uma relação de acoplamento entre o macrodispositivo conceitual, que estrutura cada situação de troca social, e os microdispositivos materiais, que as conformam enquanto variantes (CHARAUDEAU, 2006b). Pensando o livro como dispositivo, cada texto está, assim, envolto por inúmeras camadas que promovem sua identificação com um certo conceito, construído socialmente, de livro. Para Mouillaud (2002), o dispositivo como aquilo que envolve o discurso de uma determinada mídia é entendido como a junção de forma e conteúdo, de modo tão fundamentalmente conectado que nenhuma das partes existe alheia a outra. Explica o autor:
A página em que escrevo pertence, por sua vez, a um dispositivo que a envolve, aquele do livro, por exemplo. Chama-se de “volume” o texto munido de um paratexto (preâmbulo, prefácio, sumário, capa precedendo o texto, posfácio, índice, anexos). O paratexto faz as vezes de interface com o meio (de outros livros do mesmo autor, da mesma coleção, do mesmo editor, de outros editores, etc.). Funciona como uma peneira (cujo análogo, no cinema, seria o corredor que faz o espectador passar da luz do mundo à sala obscura). Ele prepara a leitura oferecendo possibilidades e negando outras. Basta que o paratexto mude (uma nova edição de uma mesma editora, ou a passagem para um formato de bolso), para que o sentido mude. (MOUILLAUD, 2002, p. 31-32).
No âmbito da apresentação de conteúdos associados ao que se denomina livro, percebe-se, nos últimos anos, a passagem da estrutura do códex para as páginas com rolagens sem fim na tela dos computadores e a troca do papel pelos pixels, o que afetou também as práticas de leitura. No meio digital, ao mesmo tempo em que os textos precisam agora de hardwares e softwares de leitura para serem acessados, estes são partes inerentes aos textos digitais. Há, assim, um vasto espectro de artefatos que se denominam livros.
Nesse contexto, se mudam a materialidade e a forma, mudam também os modos de interação com os livros. Alteram-se seus usos sociais, a postura como são lidos e os espaços nos quais circulam, bem como seu caráter simbólico. O lugar e o estatuto do livro no espaço social, as condições da sua produção, da sua transmissão e do seu consumo, o papel da leitura na sua construção e a elaboração de uma cultura comum transformaram-se profundamente nas últimas décadas.
Há novas condições para o reconhecimento do livro em uma cultura contemporânea de convergência, apesar de seguirem atreladas a séculos de cultura letrada tradicional que operam sobre a construção de laços no tempo entre o livro de papel e o leitor. Em variadas edições de um mesmo título, mesmo que o texto verbal não se altere, podemos entender que cada livro é uma outra obra. É possível cercar o texto com um certo projeto gráfico para um certo leitor imaginado, mas o significado desse produto está sempre condicionado por outros marcadores, construídos social e culturalmente. Na cultura da convergência, há uma mudança significativa nesses indicadores.
Pode-se tomar como exemplo Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, texto célebre da literatura brasileira, que vem sendo reeditado há mais de 130 anos. O personagem Brás Cubas contou sua história pela primeira vez em 1880, publicada em forma de folhetim no terceiro tomo do primeiro ano da Revista Brasileira. Esta exigiu que os leitores passassem de março a dezembro daquele ano acompanhando as dezessete partes que compuseram suas memórias para saberem o desfecho da narrativa. Quinze anos depois da edição de 1881, é lançada pela Editora Garnier a terceira edição, em 1896, que é a segunda em livro. Em 1899, Garnier lança mais uma edição, a última que o escritor acompanhou. De lá para cá, os desdobramentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas não pararam.
O autor a concebeu para um meio, o impresso. Porém, atualmente, passado mais de um século, versões digitais com possibilidades de configurações jamais imaginadas por ele circulam livremente pela web. As possibilidades materiais de publicação mudaram muito de lá para cá. Hoje, o personagem defunto circula em múltiplas plataformas, além dos livros impressos e dos e-books, ele está em audiolivros, quadrinhos, filmes e peças de teatro. Especialmente para os alunos do ensino médio, encontra-se, ainda, em palestras presenciais e em vídeo, resumos impressos e digitais, e até mesmo em um blog mantido como se fosse escrito pelo próprio Brás Cubas. Moraes, em pesquisa que estudou o livro em um contexto de múltiplos suportes a partir da prática de estudantes universitários, observou que
[...] os alunos manipulam ativamente a dimensão dos suportes de conteúdo, construindo canais de comunicação personalizados e às vezes únicos, a partir de uma conjugação de conveniência pessoal, gosto e, também, efeitos de representação indicativos de pressão coercitiva herdada da cultura do livro. (MORAES, 2017, p. 6).
São múltiplas as formas de acesso ao texto. Em cada uma delas, encontram-se elementos que ajudam a identificar as diferenças entre cada versão. Nos livros digitais, por exemplo, há paratextos de livros impressos que se mantêm e outros que se modificam. Com efeito, o processo de mediação editorial, na edição desses produtos, ora salienta sua relação com o meio impresso, ora destaca a nova mídia digital. Nos novos contornos que as publicações ganham na cultura da convergência, o design tem papel central no processo de aproximação e afastamento dos modelos pensados para o livro.
As características materiais de uma publicação transmitem informações sobre sua natureza e, antes mesmo de ser manipulado, cada objeto induz à determinada postura da parte de quem o aborda. Historicamente, a evolução do design editorial foi marcada pela definição de formatos, materiais, arranjos gráficos, que foram delimitando as fronteiras entre um tipo de produto e outro. As estratégias gráficas na edição das publicações adequam-se às estratégias editoriais na formação da identidade de cada tipo de texto publicado. O trato que se reserva a cada tipo de publicação revela um acúmulo de juízos, crenças, valores, oriundos de experiências anteriores e memórias, assim como de informações obtidas indiretamente (CARDOSO, 2012). Há uma tendência a se naturalizar tais significados – ou seja, a considerar que eles decorrem da natureza do objeto e são os mesmos, desde sempre –, porém, todos eles foram construídos e são reconstituídos continuamente por meio da cultura e de suas trocas simbólicas.
Em publicações impressas, as diferenças materiais entre livros, jornais e revistas foram estabelecidas ao longo de séculos. No final do século XX, entretanto, o uso dos computadores pessoais e a leitura em tela tornaram menos claros esses limites. Antes, no impresso, não era difícil definir, em linhas gerais, as diferenças entre os tipos de publicação. Entretanto, quando livros, revistas e jornais passam a ser lidos em tablets e smartphones, por exemplo, perdem-se esses contornos e novas estratégias de design para diferenciação dos dispositivos midiáticos precisam ser estabelecidas. Nesse contexto, o design tem papel importante na criação de novas formas para produtos digitais, utilizando tanto os tradicionais parâmetros do mundo do impresso quanto as inovações possíveis para a leitura em tela.
O que se conhece hoje como partes do livro impresso, assim como todas as materialidades da escrita, foi estabelecido ao longo de centenas de anos (GONÇALVES; COUTINHO, 2009; CHARTIER, 2009). À medida que o suporte impresso de escrita foi ganhando personalidade, através da afirmação de uma estética própria à página impressa, as partes do livro foram se delineando. No que tange à organização do conteúdo nos últimos séculos, suas quatro principais partes são: extratextual, pré-textual, textual e pós-textual (ARAÚJO, 2008). Dentre os elementos extratextuais, estão capas (1a, 2a, 3a e 4a), lombada, orelhas, guardas, sobrecapa e luva. São identificados como elementos pré-textuais, conforme Araújo (2008, p. 400) “falsa folha de rosto, folha de rosto, dedicatória, epígrafe, sumário, lista de ilustrações, lista de abreviaturas e siglas, prefácio, agradecimentos e introdução”. Na parte textual, o seccionamento orgânico do texto também é uma consequência de um processo histórico de continuidades e rupturas, manutenção da tradição e inovação.
Já no livro em rolo, era possível encontrar divisões que foram herdadas pelo códex. É da normalização alexandrina que provém o moderno escalonamento do livro em grandes partes, sejam capítulos, seções e itens ou subcapítulos. Outros cortes comuns são páginas capitulares, páginas subcapitulares, fólios, cabeças, notas, elementos de apoio. Posfácio, apêndice(s), glossário, bibliografia, índice, colofão e errata são exemplos de elementos pós-textuais (ARAÚJO, 2008). Mais ligados à produção gráfica do livro, outros elementos de construção/constituição são fundamentais para a definição da anatomia do objeto. Com a mudança na materialidade do livro em tela, o design de produtos editoriais digitais depende de novas estratégias.
Tem havido muita ênfase sobre a replicação formal do layout dos impressos, bem como seus recursos físicos, e pouca análise de como essas características afetam a função do livro. A materialidade de um e-book se constitui a partir de distintas camadas que unem hardware, sistema operacional, software reader e conteúdo (GRUSZYNSKI, 2015). A combinação entre essas quatro camadas estabelece um grande rol de possibilidades de materialização de uma edição digital. No nível do hardware, dentre os diversos tipos existentes para acessar livros digitais, os mais utilizados são e-book readers, smartphones, tablets e computadores pessoais (de mesa e laptops).
Há muitas marcas e modelos de cada um deles disponíveis no mercado. Ao se optar, por exemplo, pela compra de um tablet, deve-se decidir qual sistema operacional se prefere, dependendo do fabricante. Essa escolha restringe os tamanhos de tela, que variam conforme o fabricante. No nível do software, aparelhos que funcionam com Android ou iOS oferecem diferentes opções de: (a) softwares de leitura; (b) softwares de navegação (ou browsers) que permitem ler – entre outras coisas – e-books; e (c) livros aplicativos. Nesta camada, é mais comum, por exemplo, encontrar softwares de leitura e de navegação que sejam desenvolvidos para Android e iOS, do que livros aplicativos para ambos os sistemas.
É importante ressaltar que livros aplicativos, ou interactive e-books correspondem à junção de arquivo e software leitor em um único pacote, de modo inseparável pelo usuário (ITZKOVITCH, 2012). Por fim, no nível do arquivo, cada tipo – AZW, MOBI, EPUB, PDF, IBOOKS, para citar alguns – funciona em alguns softwares específicos. Essas diversas modalidades de arranjo coexistem atualmente no mercado. Tanto o PDF, como o EPUB, são formatos muito utilizados em publicações digitais por funcionarem em um grande número de softwares de leitura. O PDF (Portable Document Format) representa documentos de maneira fixa independente do aplicativo, do hardware e do sistema operacional usados para criá-los. Já o EPUB (Eletronic Publication) foi projetado para conteúdo fluído e flexível. Com esse tipo de arquivo, a tela de texto pode ser otimizada de acordo com o hardware usado para leitura, sendo o padrão projetado para funcionar como um formato único oficial para distribuição e venda de livros digitais sendo livre e aberto. Percebe-se, assim, que há diversos modos de publicar digitalmente hoje no mercado.
Em edições digitais muitas vezes os tradicionais elementos extra, pré e pós-textuais dos livros impressos apresentam-se organizados de múltiplas maneiras, por vezes alguns estão ausentes, ainda que muitas estratégias do impresso se repitam. No que diz respeito às inovações, na medida que não se tem páginas e volume físicos, a anatomia do hardware interfere na postura e nos gestos que o leitor/usuário executa frente ao livro digital. Estas envolvem, por exemplo, desde a habilidade para segurar o equipamento de leitura, até a identificação de quanto falta para que a leitura seja concluída. Percebe-se, por vezes, no design de interface uma série de metáforas utilizadas para que a experiência se pareça com a de acessar um livro impresso: a divisão em páginas, o modo de passar as páginas horizontalmente, a possibilidade de marcar páginas e fazer anotações, a alusão à biblioteca física como uma estante de livros, entre outras. No nível do software de leitura, para a navegação e-books pode-se ter links como: “ir para a primeira página”, “voltar/avançar uma página”, “zoom”, “som do flip on/off ”, “bloco de notas” “marcadores”, entre outros, por exemplo.
Observa-se, portanto, que as formas dos objetos que chamamos de livro em circulação hoje são muito variadas. Mas, apesar de suas diferenças, há elementos que possibilitam que determinados produtos editoriais sejam reconhecidos como tal. Isso não depende apenas de características intrínsecas aos artefatos. Entende-se que o significado desses objetos só existe dentro de um sistema maior, ou seja, significado formal é mais processo do que coisa (CARDOSO, 2012). Seria melhor falar, segundo Cardoso (2012), em “significação”: processo mediante o qual significados vão sendo acrescentados, subtraídos e transformados em relação ao conjunto total das formas significativas. Para o autor, o processo de significação dos artefatos, ou seja, seus significados ao longo de um ciclo de vida, é determinado por quatro fatores: materialidade, ambiente, usuários e tempo.
A materialidade corresponde aos elementos paratextuais ligados à forma, ou seja, estrutura, configuração e aparência. Entender o processo de remediação da forma do livro impresso no livro digital e do digital no impresso é fundamental para perceber continuidades e inovações hoje. O fator ambiente está relacionado ao entorno, à situação, à inserção social, ao contexto de uso. O entorno do livro, sua circulação na cultura atual está ligada a esse aspecto, que apresenta mudanças importantes no que diz respeito aos limites do que está fora e dentro das edições digitais, entre outros aspectos.
Os usuários são leitores, cujos repertórios, gostos, comportamentos, ideias e intenções interferem no processo de significação dos objetos de leitura. Novos modos de ler e novos letramentos são ativados pelos leitores de hoje, que fazem parte de uma cultura letrada em significativa transformação. Pensar o livro em relação ao tempo presente, é entendê-lo como singular e múltiplo simultaneamente. De um lado, a partir da experiência única que cada materialização do texto proporciona e, de outro, a partir do acesso sobreposto a variadas plataformas.
Os fatores ligados à materialidade são apresentados por Cardoso (2012) condicionados por processos e técnicas de fabricação, prevendo uso, entorno e duração esperados, e são fixados de modo mais ou menos definido até que o artefato se desagregue fisicamente. Mesmo que o objeto tenha seu uso modificado, ou sua operação prejudicada, a materialidade sugere um retorno à condição primeira, nem que seja conceitualmente. O livro mudou muito desde o seu surgimento como meio de comunicação, o que ressalta o aspecto temporal da noção de dispositivo.
Para Furtado (2006), a mediação tecnológica é estranha ao mundo do livro. Diferentemente de áudio e vídeo, mediados através da tecnologia de equipamentos de leitura, “o livro impresso sempre teve a vantagem de ser imediatamente visível, folheável e consultável e de ser fácil de emprestar” (FURTADO, 2006, p. 89). O livro impresso corresponde a uma particular tecnologia de produção, transmissão e conservação do texto, que influencia o tipo de textualidade produzida, transmitida e conservada. O autor destaca algumas mudanças fundamentais entre o impresso e digital. A questão do suporte é essencial para o estabelecimento do estatuto dos textos, pois é através dele que se identificam as modalidades concretas de presentificação dos textos. Os conteúdos devem ser reclassificados e reordenados no sistema de conhecimentos para assegurar uma nova eficácia simbólica exigida pelo novo meio. Além disso, o contexto de leitura muda, uma vez que os hardwares empregados para a leitura digital alteram a portabilidade do texto e o modo de leitura. Para tentar abarcar a complexidade dos fenômenos referidos por Furtado, o próprio autor remete a Bolter e Grusin (1999) ao apresentar o conceito de remediação, a fim de dar conta da operação de transferência de conteúdos para outros suportes, modificando as mídias existentes e criando novas mídias.
Dentro do conceito de remediação (BOLTER; GRUSIN, 1999), é possível identificar duas estratégias: imediação e hipermediação. A imediação é a busca por fazer o observador esquecer a presença da mídia e acreditar que se encontra na presença das coisas representadas, em uma tentativa de apagamento do meio. Já na hipermediação, a busca é por chamar atenção para as qualidades do meio, sublinhando sua própria opacidade. A dupla lógica da remediação apresenta-se na tentativa de ao mesmo tempo multiplicar as mídias e tentar apagar os traços da sua mediação. Neste contexto, novas e antigas mídias evocam imediação e hipermediação no esforço de reformular a si mesmas e de reformular as demais. Para os autores, a remediação não começou com a introdução da mídia digital. Pode-se identificar o mesmo processo ao longo dos últimos séculos de representação visual no Ocidente. Uma pintura do século XVII do artista Pieter Saenredam, uma fotografia de Edward Weston, e um sistema de computador para realidade virtual são diferentes em vários aspectos importantes, mas todos eles são maneiras de atingir imediação por ignorar ou negar a presença do meio e o ato de mediação.
Assim, a tentativa de deixar aflorar as palavras sem que o leitor perceba o design da página de um livro, o design como arte invisível, está ligada mais à tentativa de fazer com que o leitor esqueça a presença da mídia e acredite estar na presença do texto do autor da forma mais transparente possível, movimento mais próximo da imediação do que da hipermediação. Na leitura dos e-books, a imediação faz com que a interface de computador pareça natural ao invés de arbitrária. Neste sentido, uma interface transparente seria aquela que apaga a si mesma, de modo que o usuário não perceba estar perante o meio, mas ao invés disso esteja perante uma relação imediata com o conteúdo do meio. Na medida em que menus e botões para acesso às edições digitais, por exemplo, trazem do mundo do livro impresso formas que os tornam facilmente reconhecíveis e as rotinas de navegação passam a ser familiares ao leitor, há uma tendência à imediação, ou seja, de esquecer que aquele é um artefato digital e assumi-lo como o livro impresso em si.
O desejo por imediação leva as mídias digitais a tomarem emprestado inúmeros aspectos umas das outras, bem como de suas predecessoras analógicas, como o filme, a televisão, e o próprio livro. Toda vez que uma mídia parece convencer seu público de sua imediação, outra tenta se apropriar dessa convicção. Assim como a imediação, a hipermediação também tem sua história. Um manuscrito medieval iluminado ou um aplicativo multimídia com botões e janelas são expressões de uma fascinação com o meio. Bolter e Grusin (1999) lembram que em manuscritos medievais, as grandes iniciais capitulares podem ter sido elaboradas para decoração, mas elas ainda assim constituem parte do próprio texto, e o leitor é desafiado a apreciar a integração entre texto e imagem.
Há variadas estratégias possíveis de remediação entre os artefatos que chamamos de livro. Os autores não defendem que imediação, hipermediação e remediação sejam verdades estéticas universais, mas sim práticas de grupos específicos em momentos particulares da história. O processo de remediação opera sempre sob as premissas da cultura corrente acerca de imediação e hipermediação. Assim, uma interface que hoje parece transparente pode, em um futuro próximo, ser considerada opaca. A noção de transparência e opacidade no que diz respeito à remediação depende de quão acostumados os leitores/usuários estão com as gramáticas de interação com o meio.
Toda mediação é remediação, uma vez que todas as mídias correntes funcionam como remediadoras e esta remediação nos oferece uma maneira de interpretar também o trabalho das mídias anteriores. Assim, mídias antigas também podem remediar as mais novas; nenhum meio pode funcionar independentemente e estabelecer seu próprio espaço separado e apartado de significado cultural. Um meio é aquilo que remedia. Isto é, aquilo que se apropria das técnicas, formas, e significados sociais de outra mídia, buscando adaptá-las em nome do real.
É possível identificar o processo de remediação entre os produtos editoriais em todas as camadas da forma. Na camada da estrutura, percebe-se que a anatomia é o aspecto que mais se alterou entre livros impressos e digitais. Apesar dos tamanhos dos hardwares de leitura como tablets e e-readers se aproximar dos de muitos livros impressos, a matéria da qual livros em papel e em tela são feitos é completamente diferente. Contudo, é possível encontrar um esforço deliberado em remediar a anatomia do livro impresso quando uma contracapa é mantida em uma edição em PDF apesar desse elemento não ter mais utilidade. Já a imediação fica evidente quando um e-book traz a imagem de um livro de capa dura revestida em tecido verde com letras gravadas em dourado, por exemplo. O objetivo é fazer com que a tela seja transparente ao leitor, em experiência que remete à anatomia de um livro bastante tradicional. No nível de um software de leitura como o iBooks, a imediação está na busca por imitar o volume das páginas de um livro impresso ao utilizar como imagem de fundo um bloco de folhas sobrepostas. No nível do arquivo, a conexão com o tradicional mundo do impresso pode ficar por conta do uso de uma fotografia antiga de seu autor em tons de sépia.
A manutenção de elementos pré-textuais, textuais e pós-textuais como estruturação base do conteúdo nos produtos digitais é outro traço muito forte da remediação do livro em papel no livro em tela. Como a estrutura de um produto editorial é fundamental para pensar sua forma, este é um aspecto determinante no reconhecimento desses novos artefatos digitais como livros. Além disso, pode-se observar em um site como a Nuvem de Livros[1] a remissão visual ao mundo do livro impresso, na medida que se utiliza da imagem de uma biblioteca física como fundo do leitor. Já as ferramentas da plataforma – opções “zoom+”, “zoom-”, “iniciar slideshow”, “bloco de notas”, “marcadores” – propõem um certo efeito de hipermediação.
Ainda que o livro digital não tenha constituído uma identidade própria, observa-se uma tendência importante no seu entendimento neste início de século XXI: seu tratamento como objeto de dados. No âmbito digital, esse modo de olhar o livro vem já das primeiras iniciativas na área. O Projeto Gutenberg, fundado em 1971, arquiva e distribuiu obras culturais através da digitalização de livros. Destacado por Bolter e Grusin por seu objetivo de coletar o texto verbal de clássicos da literatura, adiciona muito pouco no nível da aparência, não “distrair os leitores” dos textos alfabéticos. Anos mais tarde, na década de 1990, o desenvolvimento da linguagem CSS[2], separou de vez o texto de sua forma gráfica em âmbito digital. Essa noção de livro como objeto de dados, abordagem proposta também pela plataforma Google Books, em certo sentido, não é totalmente nova uma vez que se considere que o texto verbal seja o único elemento importante para a narrativa, faceta que se alinhou na produção impressa à busca pela produção de edições cada vez mais baratas.
O livro como objeto de dados tem outro aspecto importante, visto que há uma falsa sensação de apagamento dos profissionais da rede do livro, e uma valorização da máquina no processo de mediação. Programas de computador e plataformas que são utilizados na cadeia do livro são produtos criados por pessoas, uma vez que incorporam algoritmos idealizados por agentes humanos, ainda que uma vez prontos e rodando, a máquina os execute (BOLTER; GRUSIN, 1999).
O ato de programação, dessa forma, emprega o apagamento dos programadores, uma vez que esses profissionais buscam remover todos os traços de sua presença com o objetivo de dar ao software o máximo de autonomia. É importante não esquecer que, por mais que o computador pessoal tenha facilitado de modo sem precedentes as rotinas de produção editorial, cada software utilizado em cada hardware proporciona um número restrito de operações possíveis, definidas por um grupo de pessoas, com certos objetivos, em um certo momento histórico. Fica claro, então, que a materialidade se manifesta fortemente em todos os livros, mesmo os digitais. Além disso, o controle de quem produz software e hardware está nas mãos de poucas empresas, bem como, em alguns casos, a ampla distribuição dos livros, sejam EPUBs, PDFs, aplicativos, por mais que haja a liberdade de criação dos arquivos, a partir de programas que automatizam e virtualizam certos processos da cadeia editorial, como o design das publicações página a página, ou mesmo sua distribuição.
De fato, o profissional de design adaptado às demandas do mercado editorial digital é fundamental no desenvolvimento de plataformas como a Nuvem de Livros, Google Books, ou mesmo de plataformas de auto-publicação. Neste cenário, percebe-se que o investimento em buscar o desenvolvimento de tecnologias que promovam o acesso a livros nascidos impressos e depois digitalizados, ou a livros digitais como objetos de dados, são tendências importantes neste início de século e é a este contexto que o design editorial como área tem se adaptado.
Os aspectos tratados ao longo do texto evidenciam que a diversidade de artefatos em circulação hoje, de modos variados, formam um complexo que constitui a noção de livro enquanto dispositivo na cultura contemporânea. No que diz respeito à remediação como a inseparável relação entre mediação e realidade, ressalta-se a faceta material das mediações, como artefatos presentes em uma cultura mediada. Os meios funcionam como objetos dentro do mundo, ou seja, dentro de sistemas de trocas linguísticas, culturais, sociais e econômicas.
Entende-se o livro não apenas enquanto conjunto de folhas de papel impressas e encadernadas, ou hardwares munidos de softwares que abrem arquivos digitais, mas como uma rede de artefatos e acordos culturais acerca do que esses objetos significam e possibilitam. Se edições impressas do século XIX, no que diz respeito à forma, são objetos que integram o texto verbal e a retórica tipográfica, valorizando o espaço gráfico como elemento importante para a narrativa; edições digitais do século XXI trazem outras propostas, com novos atrativos, que vão desde ferramentas de busca dentro do texto até a possibilidade de cruzamento do texto verbal na formação de paratextos também verbais. Essas novas formas podem apontar um outro modo que não valoriza o aspecto gráfico como elemento importante, enfatizando seu caráter de objeto de dados.
A remediação como reforma aponta para o objetivo da remediação de remodelar ou reabilitar outras mídias. Uma vez que todas as mediações são ao mesmo tempo reais e mediações do real, a remediação também pode ser entendida como um processo de reforma da realidade. O investimento no livro digital pode ser visto como uma tentativa de preencher espaços que o impresso não preencheu, ou reparar suas falhas. Novas formas associadas ao livro, a facilidade de distribuição e acesso aos produtos editoriais em tela é uma vantagem importante, desde que se tenha acesso a um hardware de leitura e à internet. Em relação ao acesso à internet, é preciso lembrar que, apesar de assistirmos à expansão dos números de usuários, a “barreira digital” ainda é um grande problema de origens e consequências econômicas, políticas e sociais, embora formas de integração das mais diversas procurem diminuir esse impacto.
Entretanto, mesmo que esses leitores não leiam livros digitais, os efeitos da remediação das edições em tela nas edições em papel serão sentidos por eles. Para Cardoso (2012, p. 153), “a possibilidade de ressignificação dos artefatos está nas mãos de quem usa e, a partir do momento que se convenciona socialmente aceitar um significado novo, este pode ser extensível a toda uma comunidade de usuários”. As novas formas do livro em tela, que inauguram novos modelos de bibliotecas e livrarias digitais, apontam para novos modos de ler, assim como para a necessidade de novos letramentos que possibilitem aos leitores navegar por esses ambientes. É importante ressaltar que estes pressupõem não só conhecimento em relação aos artefatos digitais, mas também em relação às formas do impresso. Isso ocorre, pois a remediação do livro impresso no digital demanda ao leitor acionar seu repertório acerca do livro tradicional, em um processo contínuo de significação dos produtos em tela e (res)significação daqueles em papel.