A paisagem olímpica do Rio de Janeiro: natureza e ruínas no discurso institucional
The Olympic landscape of Rio de Janeiro: nature and ruins in the institutional discourse
A paisagem olímpica do Rio de Janeiro: natureza e ruínas no discurso institucional
Interin, vol. 24, núm. 1, pp. 82-99, 2019
Universidade Tuiuti do Paraná
Recepção: 09 Outubro 2018
Aprovação: 12 Novembro 2018
Resumo: O artigo discute como a paisagem do Rio de Janeiro foi representada na narrativa das transformações urbanas para os megaeventos esportivos, em especial os Jogos Olímpicos de 2016. O objeto da análise são as fotografias produzidas pelo fotógrafo Cesar Barreto, contratado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, para o portal institucional Cidade Olímpica. A natureza carioca foi apresentada pelo discurso institucional, especialmente através do Dossiê de Candidatura para a Olimpíada, como um elemento agradável ao olhar dos estrangeiros, que inclusive ajudou a eleger a cidade. Por outro lado, as imagens das paisagens degradadas eram destinadas ao público interno, os moradores do Rio, servindo como justificativa para as grandes intervenções urbanas. Cesar Barreto fotografou esses dois tipos de paisagem, categorizadas aqui paisagem natural-construída e paisagem-ruína, para uma sessão especial do portal.
Palavras-chave: Fotografia, Paisagem, Megaeventos, Rio de Janeiro.
Abstract: The paper discusses how the landscape of Rio de Janeiro was represented in the narrative of the urban transformations for the mega sporting events, especially the 2016 Olympic Games. The object of the analysis is the photographic work produced by the photographer Cesar Barreto, contracted by Rio de Janeiro City Hall, for the institutional site Olympic City. The ‘carioca’ nature was proposed by the institutional discourse, especially through the Application Dossier for the Olympic Games, as a pleasant element for the foreigners look, even helping the city to be elected. On the other hand, the images destined to the internal public, Rio’s residents, served as justification for the great urban interventions. Cesar Barreto photographed these two types of landscape, categorized here as natural-built landscape and ruin landscape, for a special session in the website.
Keywords: Photography, Landscape, Mega events, Rio de Janeiro.
1 Introdução
No presente artigo, analisamos como a paisagem carioca foi explorada na narrativa sobre a requalificação urbana do Rio de Janeiro para os megaeventos esportivos internacionais, em especial os Jogos Olímpicos de 2016. Desde o momento da candidatura para os Jogos, os governantes e agências envolvidos no processo vinham divulgando o Rio internacionalmente como uma cidade em que os hábitos de vida se integravam às paisagens naturais (RUBIO, 2016; JAGUARIBE, 2011).
“A natureza não é somente parte do Rio de Janeiro, ela é a própria cidade”, reforçava o Dossiê de Candidatura (2009, p. 86) para os Jogos. Essa ideia da natureza como um aspecto intrínseco à urbe carioca estava presente em muitos dos produtos midiáticos produzidos pelo Comitê Rio 2016 e pela Prefeitura do Rio, como o filme publicitário de candidatura[1]. Dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles, o vídeo mostrava belas cenas de praias, lagoas e topografias cariocas a partir de ângulos abertos e tomadas aéreas, conferindo um ar de grandiosidade aos cenários, apresentados como palcos abertos e democráticos aos esportes. Curiosamente, após a cidade ter sido eleita, outro elemento se somou à narrativa institucional: a ênfase nas paisagens degradadas do Rio como justificativa para as intervenções urbanas.
Nesse trabalho investigamos como esse discurso se refletia através das imagens presentes no sítio institucional Cidade Olímpica, em especial as fotografias produzidas por Cesar Barreto para a sessão especial O Olhar de Cesar Barreto. Inaugurado em 2011 e excluído em 2017, esse sítio centralizava informações sobre as obras e projetos em andamento para os Jogos Olímpicos de 2016. Além das matérias jornalísticas, nele eram publicados fotografias, vídeos e infográficos.
Entre 2011 e 2013[2], Cesar Barreto foi contratado pela Prefeitura do Rio, através da agência Casa Digital, para prestar o registro fotográfico do processo de revitalização da cidade para a Olimpíada que estava por vir. Barreto produziu um arquivo fotográfico da cidade antes e durante as reformas, retratando especialmente canteiros de obras e cenários que enfrentariam apagamentos com as demolições. Uma particularidade do acervo é que as fotos são em preto e branco, produzidas com câmeras analógicas de grande e médio formato[3].
A paisagem é compreendida nesse artigo como uma questão política e estética. Partimos da ideia de que a concepção de uma nova paisagem para o Rio de Janeiro ocorreu tanto no espaço físico, com as obras e demolições, quanto através das representações desse processo em fotografias, vídeos e discursos. Ou seja, a noção é aqui entendida não apenas como uma representação visual, mas também como um processo que organiza e cria espaços.
Conceitualmente, o termo paisagem refere-se às formas de representação dos ambientes espaciais. O tema vem sendo amplamente explorado por diferentes disciplinas e perspectivas acadêmicas, dentre elas a da Comunicação, constituindo um campo chamado de landscape studies (ELKINS; DELUE, 2008), que possui diversas abordagens, metodologias e enfoques teóricos[4]. Na História da Arte, existe certo consenso de que a ideia de paisagem remete à pintura ocidental do século XV[5], após o surgimento da perspectiva, artifício técnico baseado em cálculos matemáticos e estudos anatômicos. A técnica da perspectiva instituiu uma maneira mais realista de representação espacial, simulando profundidade entre os planos de uma pintura ou ilustração, através de pontos de fuga para onde convergem linhas imaginárias.
Para a historiadora da arte Anne Cauquelin (2007), a ideia de paisagem não apenas inventa novos modos de representação do espaço, mas também modifica a percepção visual do Ocidente. Em concordância com esse argumento, William John Thomas Mitchell (2002) aponta que a noção de paisagem foi construída por meio de convenções artísticas, modos de representação e discursos de modo a transmitir uma ilusão de neutralidade. A paisagem, para ambos os autores, nada tem de neutra, pois é instrumento e agente de poder.
2 Paisagem natural-construída: a natureza como invenção cultural
Um dos clichês mais comuns quando se trata do Rio de Janeiro são suas paisagens naturais. Essa referência é recorrente no próprio modo como a cidade se vende turisticamente para o mundo: um local onde a natureza coexiste com o concreto urbano. Suas praias, montanhas, florestas e cachoeiras são destacadas em comerciais de produtos, propagandas de agências turísticas e campanhas da própria Prefeitura do Rio. Até o Comitê Olímpico Brasileiro utilizou esse apelo das belezas naturais no Dossiê de Candidatura para os Jogos Olímpicos, como é possível conferir nos dois excertos abaixo:
O Rio de Janeiro é a cidade do carnaval e das descobertas. Durante séculos, pessoas vieram dos quatro cantos do planeta para admirar sua beleza, experimentar seu espírito único, e para provar a paixão e a emoção do seu modo de vida. Estas são algumas das razões que fazem do Rio uma das cidades mais conhecidas do mundo, célebre por suas praias a perder de vista, atrações icônicas, cordialidade e simpatia do seu povo. Se o Rio tiver a honra de sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, a cidade poderá organizar uma celebração excepcional do esporte em um cenário sem igual no mundo (DOSSIÊ DE CANDIDATURA, 2009, p. 15, grifos nossos).
Os Jogos Rio 2016 aproveitarão ao máximo a paisagem natural da cidade, a experiência em eventos de grande porte e a hospitalidade dos cariocas para organizar uma festa que irá atrair e empolgar o mundo inteiro (DOSSIÊ DE CANDIDATURA, 2009, p. 23, grifos nossos).
Esses fragmentos do Dossiê fazem uso de uma série de chavões sobre o Rio, como as festas de carnaval, as qualidades do povo carioca (simpatia, cordialidade e hospitalidade) e as paisagens, como nos trechos grifados: admirar sua beleza, praias a perder de vista, cenário sem igual no mundo e paisagem natural. As características ressaltadas, sejam elas reais ou idealizadas, reforçam propositadamente uma determinada visão estereotipada que outros países têm da cidade, atuando como clichês que ajudam a posicionar a marca Rio no cenário global, como já discutido anteriormente por Freitas, Lins e Santos (2014). A natureza idealizada foi um dos elementos utilizados pelo branding[6] publicitário (gestão da marca) construído para o Rio, além das referências à sua cultura popular, vocação turística e repertório histórico:
O atual branding do Rio de Janeiro como “cidade maravilhosa” encontra-se, portanto, numa encruzilhada de representações, mas ele obedece aos receituários globais. Por um lado, é necessário enfatizar o local color dado pela topografia arrebatadora, a cultura popular vibrante e a mistura de raças e classes. Entram aí os cartões postais já consagrados do cenário carioca, entre os quais o Maracanã, o Sambódromo, as praias cariocas (JAGUARIBE, 2011, p. 343, grifos da autora).
Segundo Beatriz Jaguaribe, o papel do branding aplicado às cidades é torná-las visíveis e identificáveis no imaginário global. Essa nova forma de publicidade, que articula “autoridades administrativas e políticas, empresários do setor privado, arquitetos, urbanistas e agências de publicidade” (JAGUARIBE, 2011, p. 330), teve início nos anos 1970, com o desenvolvimento da economia capitalista globalizada. Os agentes envolvidos nesse processo vendem ao mundo a imagem de uma cidade ideal, através da criação ou reforço de determinados repertórios – no caso explorado nesse artigo, a natureza carioca.
De certo modo, as fotografias de Cesar Barreto corroboram com a ideia de uma paisagem idílica e sem conflitos, o que pode ter sido um dos motivos pelos quais ele foi escolhido para documentar o período olímpico do Rio de Janeiro. Em uma entrevista concedida ao jornal O Dia, a fala do fotógrafo possui relação justamente com a ideia de uma natureza monumental: “A beleza é o que me atrai, sou um voyeur” (MAIA, 2013, online)[7]. A fotografia abaixo, que não integrava a fotogaleria especial do Cidade Olímpica, pois havia sido realizada previamente por Barreto, já revelava dessas algumas dessas características.
Percebemos nessa imagem a natureza representada de forma etérea, quase romântica. Do alto da Vista Chinesa, o fotógrafo contempla e registra a cena, tornada paisagem bela e idílica. O título da foto nos apresenta a informação de que a imagem foi produzida durante o dia (“Manhã na Vista Chinesa”), o que explica a névoa suave que rodeia e encobre partes da topografia, típica do início das manhãs. O Pão de Açúcar mal aparece em meio à cadeia montanhosa, que, num degrade acinzentado[9], se funde ao oceano e ao céu de poucas nuvens. Os morros se encadeiam e esvaem na direção do horizonte, posicionado na metade do frame, até onde alcança o olhar do observador. A luz do sol que ilumina a cena parece mais dura que a observável usualmente durante as manhãs por conta do alto contraste utilizado pelo fotógrafo. O estilo de composição da foto possui semelhança com as vistas fotográficas de Marc Ferrez no final do século XIX[10].
Essa fotografia, que integra o fotolivro Rio Pictoresco (2013), foi produzida em 1999. É curioso constatar como o fato de ela ser em preto e branco nos faz perder o referencial temporal; isto é, tanto poderia ter sido feita antes de 1999 como nos dias atuais. No entanto, a ocupação massiva do espaço, com prédios à beira-mar e ao redor da lagoa Rodrigo de Freitas, captados pela foto, nos impede de voltar muito no tempo.
A ideia do belo na paisagem foi desenvolvida especialmente pelo Romantismo no século XVIII, como uma reação ao progresso científico. No imaginário desse período romântico, “a natureza deixou de ser um conjunto de fenômenos científicos, contidos em leis deterministas, para ser um objeto de contemplação” (VIEIRA, 2007, p. 46). O Romantismo também possuía apreço pelas paisagens justamente porque um dos ideais românticos era a harmonia entre o homem e a natureza. Uma grande fonte de inspiração para as paisagens românticas era a ideia do jardim inglês, concebido por volta de 1720, que, ao contrário do geométrico jardim barroco francês, apresentava “agrupamentos naturais de árvores, aparentemente selvagens” (WOLF, 2008, p. 10). Ou seja, o Romantismo, ao mesmo tempo em que idealizava a natureza, também propunha sua representação de forma menos restrita a certas convenções. Percebemos uma dualidade na obra de Cesar, que parece ser um misto de fotógrafo romântico e técnico, em busca de uma natureza idealizada, mas com a preocupação de criar imagens precisas.
Considerar Cesar Barreto como um romântico pode parecer contraditório, levando em conta que a fotografia é um meio técnico ligado à modernidade e, consequentemente, ao ideal de progresso[11]. No entanto, as câmeras e processos antigos utilizados por Barreto remetem a um estilo de fotografia que pode ser considerado datado por alguns, convertendo o fotógrafo num romântico no contexto da produção fotográfica atual. Apesar da convivência entre tecnologias e técnicas de diferentes tempos e materialidades no contemporâneo – fenômeno relacionado à cultura da convergência (JENKINS, 2008)[12] e ao processo de remediação (BOLTER; GRUSIN, 2000)[13] –, não deixa de parecer curioso que um fotógrafo opte por utilizar um equipamento pesado, grande e robusto, não muito prático de ser carregado consigo, ainda mais em locais rústicos como canteiros de obras. Cesar Barreto não se mostra avesso à tecnologia digital, embora seja incomum ele utilizar câmeras digitais em seus trabalhos e raras sejam suas fotos coloridas.
As duas fotografias reproduzidas a seguir (fig. 2), estas integrantes do trabalho produzido para o Cidade Olímpica, apresentam grande semelhança entre si, apesar de terem sido produzidas em locais diferentes da cidade. O Pão de Açúcar, um dos pontos turísticos mais populares do Rio e do Brasil, foi registrado pelo fotógrafo a partir de dois pontos de vista: Santa Teresa e comunidade Santa Marta. Esse monumento natural é bastante presente nas fotografias de Barreto, até mesmo ilustrando a capa de seu fotolivro Rio Pictoresco.

Legenda: Pão de Açúcar fotografado de Santa Teresa (acima) e da comunidade Santa Marta (abaixo).
Fonte: Reprodução da internet[14].O Pão de Açúcar representa bem a ideia de uma paisagem natural-construída: é composto por duas formações geológicas, com edificações construídas em seu cume, conectadas por bondes[15]. Nessas composições podemos notar elementos relacionados ao mundo natural (as árvores nas encostas dos morros e a topografia) e ao artificial (os prédios e casas distribuídos nos diversos planos da paisagem). Mas estas paisagens são construções não apenas por haver nelas elementos introduzidos ou modificados pelo homem: a ideia de natureza, em si, também é uma invenção cultural e social.
Como aponta Simon Schama (1995, p. 61), a paisagem é cultura antes de ser natureza. Entretanto, costuma-se considerar a ideia e a representação da natureza como se fossem espontâneas e independentes dos seres humanos, já que, ao longo da história, suas convenções e técnicas pictóricas foram se tornando invisíveis aos olhos humanos. Para Jean Marc-Besse, a paisagem é um enquadramento do mundo, sintetizada na metáfora de uma janela que se abre para a realidade, “seja essa janela apenas parte do quadro, ou confundida com o próprio quadro com um todo” (BESSE, 2014, p. 15). Ou seja, a paisagem foi arquitetada como um equivalente à natureza ao mesmo tempo em que submeteu a visão humana a um processo de adaptação.
Por outro lado, é difícil encontrar hoje ambientes que não tenham sido explorados ou modificados em algum nível pelo homem. Mesmo naqueles que parecem obras únicas da natureza, como cenas bucólicas de bosques, prados verdejantes e campos floridos, é provável que o ser humano tenha exercido alguma interferência, seja desviando o curso de rios, implodindo pedreiras ou cortando árvores para a abertura de pastos e estradas. Não obstante, as marcas dessas modificações na paisagem natural tendem a ser intencionalmente ignoradas pelos observadores, a menos que nela estejam presentes construções mais claramente ligadas à ação do homem, como é o caso das retratadas pelas fotografias de Barreto acima.

Ao observarmos as duas imagens lado a lado (fig. 3), é possível perceber que elas parecem se integrar, formando uma imagem panorâmica. Em ambas as fotos, a encosta foi posicionada na metade vertical do frame, criando uma linha diagonal que as divide. Provavelmente, o fotógrafo não tinha em mente estabelecer uma continuidade entre as duas imagens, mas isso nos revela um pouco do seu estilo de composição e as operações e escolhas recorrentes evocadas por ele ao fotografar uma paisagem. Essas duas fotos remetem ao desejo do fotógrafo de criar novos cartões postais a partir de paisagens célebres, excessivamente clicadas. Como produzir registros diferentes em meio a tantos outros, especialmente após a popularização da fotografia digital?
Como nos diz Mitchell (2002, p. 20), por mais clichê que certas paisagens tenham se tornado, elas continuam sendo objeto de apreciação na contemporaneidade: “As convenções tradicionais da paisagem do século XVIII e XIX são agora parte do repertório do kitsch, reproduzidas incansavelmente pela pintura amadora, cartões postais, pacotes de turismo e emoções pré-fabricadas”[16]. Na percepção de Cesar Barreto, contudo, os melhores registros da paisagem carioca encontram-se no passado. Para ele, “a cidade é bem-documentada até a década de 30, mas, depois disso, a qualidade foi caindo” (MAIA, 2013, online)[17]. Parece contraditório o trabalho de um fotógrafo com um discurso tão nostálgico ter sido associado à ideologia progressista adotada pela Prefeitura do Rio no contexto de realização dos Jogos Olímpicos. Porém, ao analisarmos tanto essa fala quanto seu estilo fotográfico vintage dentro do contexto da narrativa institucional, que trazia referências ao passado da cidade do Rio, como a reforma urbana de Pereira Passos e as fotografias de Augusto Malta e Marc Ferrez da Belle Époque carioca (cf. GAUZISKI, 2017)[18], percebemos que a escolha pelo fotógrafo não foi por acaso.
3 Paisagem-ruína: fragmentos, terrain vagues e canteiros de obras
Cesar Barreto também registrou o que estamos considerando como paisagens-ruínas, imagens que evocam simultaneamente ruínas do passado e do presente. A interferência na paisagem do presente cria ruínas a partir dos escombros das construções antigas. Algumas delas, contudo, já eram ruínas, edificações deterioradas pelo tempo e pela falta de conservação pelo poder público. Essas fotografias tanto retratam elementos decadentes da paisagem quanto romantizam os restos da destruição deixados pelas demolições. Vejamos um exemplo.

Uma paisagem degradada. Em meio às rachaduras do muro, um recorte quadrado, antes janela, se abre para um pedaço do céu e um vestígio de uma construção qualquer. Capim e ervas daninhas crescem desordenadamente (ou numa ordem que nos é indecifrável, própria das coisas da natureza). Cascalhos, pedras e galhos secos descansam no solo, que não parece ter sido percorrido por seres humanos há um bom tempo. Os andaimes e a grua nos dão a pista de que uma obra está ou esteve em andamento. Ao fundo, no alto do morro, os prédios em bom estado e as palmeiras, mais vivas que o matagal no primeiro plano, contrastam com os outros elementos da imagem. Embora a vegetação nos remeta a um local de clima tropical, a foto não traz referências a um tempo e um espaço específicos. Se não fosse pelo título da galeria (“Evolução das obras no túnel da Saúde”), não seria possível associar essa foto a alguma paisagem específica do Rio de Janeiro.
Podemos dizer que essa não é uma fotografia convencional de obras. Essa foto, em particular, se assemelha a um cenário pós-apocalíptico digno das distopias cinematográficas, o que, num primeiro momento, não parece condizer com o ideal de futuro progressista em torno dos megaeventos. Paradoxalmente, esses escombros também simbolizam uma metáfora para o renascimento da cidade, tal qual uma fênix.
A região portuária do Rio era tratada na retórica da Prefeitura antes das reformas como um terrain vague (SOLÀ-MORALES, 2014); isto é, um espaço abandonado e sem atividades relevantes. Inspirada pela tendência mundial de requalificação de áreas industriais e portuárias, a Prefeitura tinha o objetivo de transformar a região num polo econômico e turístico. A fim de justificar as obras, a narrativa institucional buscava atrelar a região à imagem de um local decadente, ao mesmo tempo em que referenciava paradoxalmente seu passado longínquo, especialmente a herança africana[20], como capital cultural e simbólico. O Cais do Valongo[21] foi um exemplo interessante nesse sentido.
A foto de Cesar Barreto nos apresenta o Cais do Valongo em processo de escavação. Envolto por um tapume, ele é simultaneamente um monumento-ruína e um canteiro de obras. As pessoas presentes nessa fotografia parecem servir apenas como referência a dimensionar o tamanho grandioso desse espaço.

A Prefeitura do Rio apresentava a versão, replicada pela imprensa[23], de que o Cais do Valongo havia sido descoberto com as obras na região[24]. Sua localização, contudo, já era conhecida por historiadores e essa informação constava inclusive em um obelisco situado na Praça Jornal do Comércio, nas imediações. Em 2017, o Cais do Valongo foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, ampliando o capital cultural e turístico da cidade internacionalmente.
Já a fotografia abaixo é um exemplo de uma ruína do presente. Cesar Barreto registrou o Autódromo de Jacarepaguá em seu momento de tensão, em vias de ser completamente apagado. Não é possível saber se seu processo de demolição já estava em curso, embora as gruas no plano distante da imagem nos recordem da impossibilidade de resistir ao progresso. A paisagem transmite instabilidade, pois aos poucos se aproximava o seu momento derradeiro. A pista de corrida ainda exibia em seu asfalto as impressões dos pneus de carros e motos que ali competiram. Uma grade, posicionada no centro do quadro, separava a pista da arquibancada, na qual os amantes do automobilismo vivenciaram inúmeras competições, que se tornariam apenas um registro em suas memórias. Em breve, os elementos presentes nessa composição perdurariam somente através da própria imagem.

Essa imagem possui ainda relação com um dos temas mais registrados por Barreto ao longo de seu trabalho para a Prefeitura: os cenários antes do impacto das reformas. Esse tipo de fotografia reforça o lugar do fotógrafo como responsável pelas memórias visuais de lugares extintos da cidade. Mesmo que não registre o momento exato da destruição, a foto acima evoca o apagamento de um pedaço do território urbano, o autódromo, que sabemos não mais existir ali. A imagem atua, assim, como uma ponte entre presente e passado.
A escolha deste local para a instalação do Parque Olímpico foi motivada pelo amplo espaço disponível para sua construção. Por outro lado, a opção dos idealizadores do megaevento por concentrar grande parte das competições na Barra se prestava ao objetivo latente de incentivar novos empreendimentos imobiliários na região, como o condomínio residencial Ilha Pura[26]. A construção do Parque Olímpico também nos remete, novamente, à ideia da paisagem natural, com diversas montanhas e a Lagoa de Jacarepaguá ao fundo.
De modo geral, os idealizadores das arenas para os megaeventos esportivos também levam em consideração o modo como essas novas construções e as paisagens ao seu redor serão exibidas pelas filmagens aéreas durante a transmissão televisiva[27]. Ou seja, não basta transformar a paisagem física da cidade: elas também precisam parecer belas nas imagens:
Realidades urbanas mais mundanas, menos fotogênicas, que possam afetar negativamente as percepções globais sobre a cidade e sugerir pobreza, subdesenvolvimento ou atraso são mostradas muito rapidamente, cortadas fora ou apagadas digitalmente. Podemos refletir sobre os vídeos promocionais apresentados pelo comitê de candidatura do Brasil às Olimpíadas, onde os locais para as arenas na Zona Norte são mostrados como objetos isolados, enquanto os bairros circundantes onde mora a classe trabalhadora são deixados de fora da cena. Nas vistas deslumbrantes do Rio, os potentes raios solares iluminam porções da paisagem de forma a apagar, convenientemente, a presença de favelas. Da mesma forma, o material sobre a candidatura do Rio muitas vezes retrata o Maracanã a partir dos mesmos ângulos, para evitar mostrar a favela da Mangueira no plano de fundo (BROUDEHOUX, 2014, p. 29).
A construção do Parque Olímpico implicou a remoção da comunidade Vila Autódromo, que estava sediada às margens da Lagoa de Jacarepaguá. A prefeitura possuía o plano de construir um estacionamento na área, que acabou não sendo concretizado. A maioria dos imóveis foi desapropriada, motivo de grande reação pública negativa, e as famílias residentes realocadas em novos imóveis no bairro, através do programa Minha Casa, Minha Vida. Outras, que se recusaram a sair, permanecem lá até hoje. Certamente, a desapropriação da Vila Autódromo também foi motivada pela ideia apresentada acima por Broudehoux; isto é, gerar atrativas imagens de paisagens para os canais de televisão, eliminando tudo que pudesse ser desagradável aos telespectadores.
4 Considerações finais
As paisagens da natureza carioca foram incorporadas com o valor de commodity na narrativa olímpica. Um exemplo disso é que os legados ecológicos também foram promessas nessa edição brasileira dos Jogos, tendência presente desde a edição de Sydney/2000. Um dos compromissos olímpicos era a concepção da Floresta dos Atletas, que previa o plantio de 13 mil árvores, germinadas a partir de sementes colocadas em cápsulas pelos atletas na cerimônia de abertura. Até o final de 2017, esse projeto ambiental, que tentava compensar as árvores cortadas e os gases estufa emitidos ao longo do evento, não havia sido cumprido[28]. A preocupação com a natureza, que era exaltada no discurso olímpico, ficou apenas nisso: no discurso.
Por outro lado, temos as paisagens-ruínas, representadas através de imagens de áreas degradadas, em especial as da região portuária. Esse local da cidade, rebatizado Porto Maravilha, foi o maior símbolo das obras olímpicas, com a construção de novas vias e espaços culturais (Museu de Arte do Rio, Museu do Amanhã, AquaRio) e a revitalização da Praça Mauá. A ideia do abandono do porto, em particular, já vinha sendo construída através de “metáforas e metonímias visuais e verbais” desde o Plano Porto do Rio, concebido pela prefeitura de Cesar Maia em 2001 (GUIMARÃES, 2014, p. 34). Entretanto, alguns dos locais considerados pelos planejadores urbanos como precários ou arruinados eram vistos positivamente pelos moradores da região portuária, uma vez que remetiam a famílias “ligadas ao porto e ao comércio pequeno ou informal” (GUIMARÃES, 2014, p. 47). Essa situação evidencia que o poder público muitas vezes está alheio às dinâmicas sociais e produtivas dos lugares que pretende requalificar. Como esclarece Paolo Perulli (2012, p. 181), o “esvaziamento da cidade pertence à dinâmica da ‘destruição criadora’ própria do capitalismo”. A mesma lógica capitalista responsável pelo surgimento de áreas abandonadas no tecido urbano[29] decide reocupá-las.
Mitchell (2002) aponta que o surgimento e desenvolvimento das paisagens é uma consequência do capitalismo, que as transforma em objetos de consumo a serem comprados, consumidos e compartilhados. No caso do Rio olímpico, essa noção estava presente nas imagens do processo de revitalização da cidade (com as fotografias de paisagem de Cesar Barreto), nos conteúdos publicitários do megaevento e na própria concepção do espaço físico da cidade (orientada também pelas imagens aéreas a serem exibidas nas transmissões televisivas). Uma síntese para essas ideias pode ser encontrada na afirmação de Arantes (2012, p. 19) de que a arquitetura é transformada em paisagem quando “nasce para virar imagem de si mesma”.
Referências
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Notas