Recepción: 19 Abril 2019
Aprobación: 16 Mayo 2019
Resumo: O texto é uma versão ampliada da aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens realizada na abertura do ano letivo de 2019, em que estabelecemos o que estamos denominando confluências entre comunicação e história. O objetivo do texto é ampliar as reflexões realizadas inicialmente durante a conferência, realizando um balanço conceitual das análises feitas durante as últimas décadas em que a reflexão sobre os diálogos entre a comunicação e a história foram foco de algumas das pesquisas realizadas.
Palavras-chave: Comunicação, História, Diálogos.
Abstract: The text is an extended version of the inaugural lecture of the Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens, held at the opening of the 2019 academic year, in which we establish what we are terming confluences between communication and history. The purpose is to broaden the initial reflections made during the conference, by carrying out a conceptual balance of the analyzes made during the last decades, in which reflection on the dialogues between communication and history were the focus of some of the researches carried out.
Keywords: Communication, History, Dialogues.
1 Introdução
Esse texto reproduz, em parte, algumas das reflexões sobre a relação Comunicação e História, abordada durante a aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuitui do Paraná (UTP), em março de 2019, cujo objetivo foi mostrar não apenas aproximações e distanciamentos entre esses dois lugares teóricos, mas o que estamos denominando confluências. Ou seja, lugares de hibridização, de misturas, de indeterminação que existem quando se coloca em confronto Comunicação e História.
Ancorada em reflexões que realizo sobre a temática há mais de três décadas, o objetivo maior desse texto é amplificar a fala realizada naquele momento, quando o discurso oral dominou a cena. Agora, na prisão da palavra escrita, sedimentado como inflexões conceituais, o texto ganha outros contornos e outras considerações.
Assim, num primeiro momento faço uma breve revisão dos estudos em que essas relações foram colocadas e destaco o que denomino diálogos entre a comunicação e a história. Num segundo momento, indico, brevemente, alguns caminhos teóricos e metodológicos para se pensar a comunicação numa dimensão historiográfica.
Considerei importante aproveitar essa oportunidade para fazer um balanço conceitual do que venho denominando confluências entre Comunicação e História, realizando uma revisão das aproximações traçadas em diversos textos desde a década de 90 do século passado[1].
Resumo:
2 Comunicação e história: cadeia de significações
No primeiro texto em que produzi uma aproximação entre comunicação e história, as confluências estabelecidas diziam respeito ao mundo do jornalismo (1998). É recorrente as afirmações dos jornalistas ao longo do tempo que caberia a esse profissional ser, tal como qualificava Camus, o historiador do instante. Diante dessa perspectiva, naquele momento busquei mostrar as aproximações e distanciamentos entre o fazer historiográfico e a produção oriunda do jornalismo, enfatizando, sobretudo, a dimensão narrativa presente nas duas configurações textuais.
Destacando a questão da imaginação historiadora e da emergência da subjetividade no jornalismo, mesmo quando advoga a neutralidade e a construção de uma pretensa objetividade, o texto enfatizava ainda a dose de ficcionalidade presente nas duas narrativas. Imersos, entretanto, na busca pela verdade, tanto as narrativas historiadoras, como as jornalísticas se valem de um discurso que visualiza na cientificidade dos fatos e dos seus objetos a ponte para a construção da verdade seja do passado ou do presente.
Outra questão que aparecia no texto dizia respeito às motivações que levam os jornalistas ao longo do tempo a tomarem para si o papel de testemunha da história, testemunhas do tempo, produtores de uma história imediata. Sem dúvida, o jornalista utiliza o tempo como capital simbólico de sua profissão e da importância que ela deve ter, e não apenas o presente, tomado como possibilidade de ser o futuro do passado, mas igualmente também o passado no presente. A questão da temporalidade emergia, então, como ponte significativa das relações entre comunicação e história.
Os usos que os meios de comunicação fazem do passado nos leva a refletir e concordar com Matheus (2011) que a história fornece capital simbólico para os meios de comunicação. Ao transformar o que já descreveu como presente em passado memorável e digno de novo registro procuram reafirmar sua ação como “testemunha da história”, construindo-se como produtores dessa mesma história. Essa é uma das razões das infinitas referências ao passado produzidas pelos meios de comunicação: ao passado de uma memória partilhada pelos próprios meios; ao passado comum construindo uma memória histórica mais ampla; e ao passado como utopia midiática, reconstruindo os idílios dos tempos de outrora (BARBOSA, 2010).
A recuperação rotineira dos fatos do passado para ilustrar o presente e, sobretudo, para permitir se mostrar como construtor do tempo, é atividade recorrente no jornalismo, como também é a pretensão de registrar os fatos do mundo e deixá-los a disposição para serem utilizados em outro momento da cadeia temporal. Mais do que um lugar de memória (Nora, 1993), o jornalismo quer ter um lugar na história (BARBOSA, 2016a).
Observa-se, portanto, a primeira grande inflexão nessa teia de confluências entre Comunicação e História: a temporalidade. Essa problemática, que seria retomada em diversos outros textos, partia da premissa da emergência do passado como tempo absoluto da história e do presente como momento privilegiado das aporias narrativas da comunicação, seja dos meios de comunicação, seja dos estudos da área de comunicação (BARBOSA, 2017).
A segunda relação diz respeito à natureza do ato comunicacional que ao se realizar deixa marcas duradouras que se tornam os rastros e restos que do passado chegam ao presente sendo objeto privilegiado das análises históricas. O ato narrativo comunicacional indica a passagem dos homens do passado e são esses sinais que os historiadores procuram recuperar e interpretar. Em função dessa perspectiva afirmamos que a história é, em última instância, uma relação comunicacional. Essa afirmativa que estabelece vínculos profundos e duradouros entre comunicação e história foi também objeto de diversas reflexões que procuraram ver a documentação historiadora sobre nova perspectiva (BARBOSA, 2009 e 2010, entre outros).
A terceira confluência que se estabelece entre comunicação e história diz respeito ao próprio ato narrativo. Ao fazer essa afirmação, estamos partindo do pressuposto que tanto a história como a comunicação produzem narrativas de existência, tendo como base o que se denomina “passado humano” (História) ou “problemas do tempo presente” (Comunicação). O que se constitui como essência e âmago da análise nas duas possibilidades é o ser humano na sua dimensão narrativa (BARBOSA, 2008a).
Nenhuma narrativa existe fora do ato humano de produção de sentido. Narrativa pode, então, ser definida como a maneira como produzimos nossa existência em atos corriqueiros e banais, ou seja, na história. Tomando de empréstimo as categorias conceituais de Paul Ricoeur (1994) podemos dizer que produzir o ato narrativo é a partir de um mundo configurar um texto que sempre se transforma pela ação humana. A produção de sentido se converte em configuração de um novo texto que volta ao mundo produzindo novas compreensões, explicações e, por fim, transformações.
Esses atos, em círculos intermináveis, mas não viciosos, já que jamais se repetem, são construídos como modos de comunicação: um texto que se apresenta aos nossos olhos (o mundo) é lido e compreendido por atos sempre comunicacionais e se transforma igualmente em outros atos comunicacionais.
A história se ocupa dessas mesmas articulações narrativas, mas estas devem estar localizadas num outro tempo. Dessa forma, são os rastros e restos dos homens que produziram significações no passado, transformados em vestígios significantes, que poderão ser decifrados pelos pesquisadores. Os atos comunicacionais sempre deixam marcas. E são eles os chamados conectores históricos (a cultura material, a memória, os documentos etc.) que permitem a interpretação (e a reinterpretação) do passado.
Esses materiais, que denominamos fontes, são espécies de aberturas que possibilitam descortinar nossos objetos de pesquisa, sempre textos de múltiplas naturezas: textos materiais sob a forma de traços de vida; textos memoráveis como falas audíveis ou momentaneamente silenciadas; textos escritos que procuram desvendar as aporias de outro tempo, entre diversas outras possibilidades.
A partir do desenvolvimento sempre crescente dos aparatos tecnológicos da comunicação, as fontes da história passaram a ser cada vez mais dependentes não apenas dos atos comunicacionais, mas das próprias tecnologias de comunicação. Minerais, escritas, sonoras, fotográficas, audiovisuais e virtuais, as fontes vão adquirindo a materialidade das tecnologias que dominam as épocas e como tal são deixadas para um historiador que, no futuro, de maneira consciente, deliberada e justificada procura interpretá-las e, assim, reconstruir uma sequência particular do passado. A análise que produz significa restituí-la a seus contemporâneos sob a forma de narrativa, ou seja, de uma escrita dotada de coerência interna e repleta da inteligibilidade científica (ROUSSO, 1996, p. 2).
Cabe aqui uma pausa para distinguir as peculiaridades e diferenças que podem ser remarcadas entre rastros e restos. Podemos entender a noção de rastro a partir da tradição filosófica ocidental, tanto da filosofia socrática platônica, quanto aristotélica. No primeiro caso, centrado na questão da representação presente de uma coisa ausente e no segundo, baseado na suposição da representação de uma coisa percebida anteriormente e que apreendida induz a construção de uma imagem em relação ao rastro-lembrança (RICOEUR, 2007, p. 27). Ricoeur sustenta também que toda a problemática do rastro, da Antiguidade aos nossos dias, é herdeira da noção antiga de impressão, mas que longe de resolver o enigma da presença da ausência, acrescenta um enigma que lhe é próprio (RICOEUR, 2007, p. 425).
Assim, o filósofo distingue três espécies de rastros: o escrito, que pela operação historiográfica se torna rastro documental; o rastro psíquico, ao qual prefere chamar de impressão, no sentido de afecção, deixada em cada um por um acontecimento marcante e que, como tal, imprime uma marca; e, por fim, o rastro cerebral, tratado pelas neurociências. O rastro documental, assinala o autor, pode ser alterado fisicamente, apagado, destruído e foi exatamente contra essa ameaça de apagamento que se instituiu o arquivo (RICOEUR, 2007, p. 425).
O rastro material/documental é, portanto, algo que foi voluntária ou involuntariamente guardado e que prova a existência do passado, ensejando a qualidade daquilo que figura como representação dos tempos idos, possuindo a positividade de representá-lo e de ser reconhecido como possibilidade de instaurar uma espécie de aura de um tempo que poderia ter sido irremediavelmente perdido. Já o resto pode ser compreendido como vestígio, ou seja, uma mensagem em referência ao passado e que sub-repticiamente no presente pode revelar algo sobre o passado. Ao resto é atribuído um valor e, dessa forma, transforma-se em algo significante podendo adquirir a qualidade de documento (HELLER, 1993, p. 102-103). Os restos, portanto, são as mensagens e sinais que existem no presente de maneira multifacetada e que, como num quebra cabeça, permite a junção de peças desconexas (restos) construindo uma trilha de rastros. O resto é um indício de mensagem a quem é dada uma significância, transformando-se em rastro material, ou seja, adquirindo a qualidade de documento.
Dessa forma é possível fazer uma distinção entre rastro e resto. Enquanto o rastro mantém indicialidade em relação ao passado, ou seja, é a prova viva da sua existência já que permaneceu durando, o resto é presença viva e sem conexão imediata com este mesmo passado. O resto necessita da intervenção de alguém que veja nele a qualidade de vestígio – isto é, de ser percebido como algo significante no presente – restituindo-lhe a possibilidade de ser rastro e só assim pode ser seguido em direção ao passado.
É preciso sublinhar também que as fontes não existem em essência e nem são dotadas de uma neutralidade capaz de espelhar verdades. Os vestígios do passado, sejam eles um testemunho ou um documento, só se transformam em fontes históricas no momento em que o pesquisador lhes atribui essa qualificação. É nesse sentido que se pode concordar com a premissa expressa por Henri Rousso de que toda fonte é “inventada” (1996, p. 3). Da mesma forma, é preciso enfatizar que as fontes não são dotadas de questões intrínsecas, dependendo sempre das teias interpretativas que lhes são lançadas, a partir de perguntas que são formuladas pelos pesquisadores. A fonte não existe fora da pergunta e do olhar do historiador.
3 Considerações metodológicas
Um texto escrito por um escravo do século XIX serviu na palestra para estabelecer os nexos teóricos entre comunicação e história. Naquele momento apresentei uma carta escrita pelo escravo de ganho Claro para a escrava Teodora, que pediu a ele que escrevesse para o seu marido, Luís. Ao todo Claro escreveu oito cartas para ela. O que essas cartas e outras que sobreviveram por séculos e que foram produzidas pelos escravizados brasileiros revelam sobre as confluências entre comunicação e história?
Em primeiro lugar, são atos de comunicação que materializam a mistura entre tecnologias possíveis (oral e escrita) e que deixam transparecer vivências, sonhos, projetos e, sobretudo, sofrimentos cotidianos. São escritas como atos de vida, e ditadas pela tecnologia da voz migraram para as tecnologias do traço, capazes de produzir o enigma e o milagre de ultrapassar fronteiras de espaço e de tempo. De espaço, porque a carta de Teodora chega a Luís, que está situado longe de sua presença há quilômetros de distância. De espaço-tempo, também, porque sobreviveram e chegaram ao século XXI inundadas de outras significações.
Permitindo o ato memorável e a fixação das memórias de outros que são considerados antepassados, mostram também as permanências das exclusões e dos esquecimentos comandados que existem, ainda hoje no Brasil, em relação à escravidão. Mostram ainda a naturalização da barbárie contra os corpos negros, seja no passado, seja no presente.
Revivendo esses atos comunicacionais como materialidades de um passado, diante das agruras dos escravizados brasileiros, como não lembrar dos que ainda hoje são aprisionados sem culpa, levados a força de suas famílias, deslocados de seus territórios para outros aonde encontrarão a morte? Como não lembrar dos que são supliciados a vista de todos, a partir de uma culpa que está definida a priori pela cor da pele? A atualização para os tempos contemporâneos torna-se mais do que plausível: transforma-se numa emergência, quando escutamos e vemos o corpo negro submetido a linchamentos públicos, fuzilamentos irracionais, barbáries contemporâneas de sujeitos que são considerados desviantes apenas por ter um corpo negro[2].
Reproduzo a seguir uma carta. Não daquelas que Claro fez para Teodora, mas a que Timóteo escreveu, em Salvador, em 1861. Ao contrário das cartas de todos os outros escravizados que tivemos acesso (BARBOSA, 2016b), a carta de Timóteo não foi dirigida a alguém em particular. Era destinada a todos que no passado ou no futuro tivessem acesso a ela.
Perdaõ
A muito tempo que tenho desejo de não existir pois a vida me hé aborrecida porem naõ existindo naõ será mais pois quem pode viver sem ter disgostos que vá vivendo. A Jaia Pombinha e toda família d’ella sou muito grato por isto pesso pelo amor de deus Perdão sendo que com esta vez é a 3a que eu tenho entado contra minha existência porem quem naõ quer viver nem deve tomar vidro, e nem sollimão pois saõ lentos a quem tem a mor a vida muito addemirava me naõ receiar-se com meo gênio nao fazer um acerto para mim pois naõ acho doudice n’este proceder.
Não há tempo perder!!!!
Poz-me preciso declarar-me que nem fui eu, e nem sabedor daquele infaime papel, e n’elle achava-me inocente se faço esta declaração é para livrar que vão ao Inferno, estas almas que dispistarão suas conciencias!....
Não persuadaõ-se que eu fiz digo: que cometi este atentado, por temer o que esta va-se fazendo; pois para passar melhor, não havia que temer: as rasões saõ outras pois a sepultura será sabedora, e naõ este infaime lugar digo e naõ esta terra de vivos. (Texto escrito pelo escravo Timóteo, na cidade de Salvador, em 1861. Citado por Oliveira, 2009, p. 212-213. Manteve-se a grafia original).
O texto de Timóteo é uma carta de despedida, sem destinatário revelado, feita com o propósito de ser perdoado. O título indica a intencionalidade da escrita, mostrando não apenas a capacidade de escrever que ele possui, mas a síntese que consegue produzir de tudo que é descrito na sequência. A capacidade escriturária de Timóteo é infinitamente superior, se fosse possível produzir a gradação dos modos e das fórmulas da escrita.
Revelando que aquela é a terceira vez que tenta o suicídio, produz uma narrativa na expectativa de que seja também uma despedida “desta terra de vivos”. Revela ainda o desejo de “não mais existir pois a vida me é aborrecida”. O pedido de perdão é dirigido a uma família pela qual possui gratidão. Na descrição densa que produz sobre seu estado de espírito naquele momento, enumera as formas ineficazes do suicídio (“nem deve tomar vidro, nem sollimão pois são lentos”).
Refere-se igualmente a um “infame papel”, reafirmando sua inocência. Mas não é por isso que o suicídio se avizinha como possibilidade mais uma vez: “as razões são outras pois a sepultura será sabedora, e não este infame lugar digo e não esta terra de vivos”.
Mas no escrito de Timóteo, se tirar a vida é algo perfeitamente aceitável (dentro dos códigos culturais emanados da sua africanidade[3]), por outro há referência aos lugares possíveis de serem destinados aos pecadores na religião católica: o inferno é anunciado como possibilidade para aqueles que realizam o ato infame. Num trecho repleto de sentimentos, de obrigações, misturando o mundo dos espíritos com o mundo da consciência, Timóteo reproduz valores díspares, confusões mentais, exacerbação de sentimentos que não deixam ver de maneira clara o propósito de suas palavras.
Na escrita produzida por Timóteo, a referência não é a alguma coisa dita, mas a um pensamento que teima em produzir inquietações silenciosas. Sem poder revelar sua dor e sua angústia que produzem o desejo de colocar um ponto final na sua existência, o escravo escreve. No escrito – pedido de perdão e, ao mesmo tempo, despedida –, o silêncio do não-dito se apresenta como brecha narrativa. Aqui, a oralidade é suplantada pelo desejo de uma escrita que deixa falar o que efetivamente não foi verbalizado.
Não sabemos se Timóteo realmente deixa, depois que pousa a pena sobre o papel, o mundo dos vivos. Mas sua escrita, como um enigma e um milagre comunicacional, continua perpetuando sua existência em traços duradouros de um texto que sempre se reconfigura no tempo.
As tecnologias comunicacionais, aqui representada pela documentação escrita que perdurou, são, portanto, mais do que fontes históricas. São documentações da vida narrativa de seres que, ao viver, viveram na história produzindo elos permanentes de uma vida comunicacional. Não são meros documentos, são signos vivos de uma existência narrativa.
Assim, nesse momento final dessas reflexões que objetivam apresentar algumas considerações metodológicas sobre a documentação comunicacional como objeto do olhar do historiador cabe ainda algumas indicações sobre o material utilizado para produzir interpretações do passado.
Entre uma profusão de fontes documentais (os próprios periódicos, correspondências, memórias, papéis administrativos contidos em arquivos diversos etc.) há que se considerar a especificidade dos documentos que se têm diante dos olhos e as funções que originalmente desempenharam. Assim, por exemplo, usar a imprensa como fonte para sua própria história requer alguns cuidados que dizem respeito ao cenário de produção desses textos que coloca no centro da reflexão a intencionalidade com que foram produzidos. Marcar na própria coleção aquele periódico como emblema de uma época, produzir uma memória partilhada em momentos de comemoração, por exemplo, não indica a veracidade das descrições, mas permite descortinar que imagem interessava ao próprio periódico construir sobre si mesmo.
Considerando que a história não é ressurreição intacta do passado, mas interpretação possível, os arquivos passam a ser documentação do passado a partir do momento em que se copia o texto original, se detém num pedaço narrativo, abrindo espaço para possíveis conclusões a partir de vestígios que chegam até o presente. Como enfatiza Arlette Farge (2009), “o sabor do arquivo passa por esse gesto artesão, lento e pouco rentável, em que se copiam textos, pedaço por pedaço, sem transformar sua forma, sua ortografia, ou mesmo sua pontuação” (p. 23). Mas é preciso também tentar recuperar a produção de sentido daquele texto que, no passado, possuía outras intencionalidades.
No ato de pesquisar há sempre a atitude de se despojar de documentos. De uma série recolhe-se um certo número e sobre o que fica se realiza uma arrumação, uma operação de classificação, criando um olhar específico e tentando construir sentido sobre um mundo que se apresenta sempre de maneira fragmentada.
Importante também na definição dos cenários metodológicos é a forma como se articula nas análises texto e contexto. Numa história da comunicação, por exemplo, o contexto que está sob o foco é o cenário midiático articulado com o mundo social. Não são fatias do social, do econômico e do cultural, como instâncias separadas e dotadas de explicação histórica, que interessam para montar o cenário contextual, mas os processos de comunicação que definem e particularizam as especificidades daquele tempo histórico. Nesse cenário, os meios de comunicação ocupam lugar central e estabelecer vínculos das relações entre texto e contexto se configura como o maior desafio.
Tomando como premissa três dimensões a serem consideradas do ponto de vista metodológico nos estudos que estabelecem a interconexão entre comunicação e história, podemos especificar essas análises a partir das proposições historiográficas, históricas e das práticas peculiares. Denominamos proposições historiográficas a percepção dominante de história escolhida; proposições históricas os conceitos fundamentais adotados para articular as perguntas que são direcionadas aos fenômenos implicados na análise; e como proposições práticas as ferramentas metodológicas propriamente dita utilizadas.
Ao construir como cenário metodológico, por exemplo, a percepção do passado como “ruínas” passíveis de serem interpretadas, este passa a ser visto como uma possibilidade a partir dos rastros e vestígios de um tempo que se esfacela, mas que chega como indícios ao pesquisador do presente. Diante do espanto em relação a um momento da história marcado pelo inominável, resta ao pesquisador compreender as teias de significações desse mundo estranho e que não prometia mais nenhuma redenção futura, como no caso do texto Timóteo transformado em documento para a história.
Outra proposição frequente que emerge dos estudos que fazem das teorias da história mola mestra para a interpretação é a que produz a articulação indispensável entre temporalidade e narratividade, transformando a questão do tempo na demarcação essencial para a definição do início da história a ser contada e a problemática da narrativa como trânsito da história. Claramente herdeira das reflexões de Paul Ricoeur (1994), essa dimensão considera como premissa fundamental o caráter eminentemente temporal da experiência humana, transformando a obra histórica numa narrativa que apresenta um mundo sempre temporal. “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 15). A afirmação de Ricoeur repetida e explicada à exaustão em Tempo e Narrativa enfatiza não apenas o vínculo indispensável entre temporalidade e narratividade, como também instaura no mundo das coisas contadas o tempo da experiência sempre figurado e reconfigurado de modo narrativo.
A problemática das processualidades históricas como indispensáveis às interpretações produzidas também é uma dimensão recorrente que, assim, considera o trânsito indispensável entre rupturas e continuidades. A história é vista na sua dimensão processual, abrindo possibilidades para a produção de trânsitos interpretativos do presente em direção ao passado e vice-e-versa. Nessa visão processual busca-se incessantemente pelos contextos.
E, por último, remarcamos a recorrência da questão da subjetividade interpretativa do passado. Assim, o passado é visto não como um lugar possível de ser acessado e sobre o que se pode produzir uma totalidade interpretativa verdadeira. O passado, ao contrário, sempre os “tempos idos” (HELLER, 1993), é um lugar completado pela imaginação historiadora e produto da interpretação de um historiador que conta uma história imerso nas possibilidades do grau de consciência histórica do tempo de sua vivência.
Do ponto de vista das proposições práticas, as pesquisas podem fazer uso de um extenso ferramental metodológico, destacando-se as entrevistas utilizando, sobretudo, as técnicas recomendadas no âmbito da história oral[4]. Como decorrência, procura-se a partir dos trabalhos de memória dos entrevistados encontrar vivências, sensações e registros afetados pelo presente, de forma a descortinar o passado a partir de uma multiplicidade de olhares interpretativos. Incluindo-se, muitas vezes, subjetivamente na pesquisa, a produção das entrevistas é referendada pelos pressupostos teóricos da memória, sobretudo na perspectiva do lugar posicionado de onde falam os atores sociais, a partir de enquadramentos da memória (POLLAK, 1989). Relacionam-se os momentos de ouvir o outro com a dinâmica da história, contextualizando os vários tempos e considerando a historicidade dos grupos estudados e dos processos envolvidos e os espaços de análise como lugares de consensos e de conflitos, de subordinação e resistência. Ou seja, coloca-se em prevalência as contradições inerentes às processualidades históricas. A práxis interpretativa percebe também o discurso do outro como um saber partilhado e marcado pela tradição, pela cultura e pelas conjunturas. Não há verdade essencialista nos sentidos que são expressos, seja nas articulações textuais, seja nas articulações memoráveis.
Se, por um lado, o uso dos relatos memorialísticos, tanto orais quanto escritos, é extremamente interessante para o pesquisador, há que se ter uma série de cuidados para lidar com eles, colocando inúmeros desafios teóricos. Beatriz Sarlo (2005) observa que, na contemporaneidade, a descrença numa verdade única produz, paradoxalmente, a ideia de que o gênero testemunhal é capaz de dar sentido à experiência. Evidentemente, a valorização da subjetividade – e, consequentemente, dos relatos individuais – deve ser necessariamente problematizada.
As chamadas fontes documentais são, sem dúvida, o maior conjunto utilizado, privilegiando-se, no caso das pesquisas em torno da imprensa, por exemplo, as próprias edições dos jornais como lugares prediletos para a análise. Edições comemorativas e as expressões discursivas presentes em páginas impressas produzem um reordenamento das representações presentes nas textualidades, e, assim, é possível considerar esses documentos como índices de reconhecimento de um tempo e de um mundo, procurando os múltiplos diálogos fixados na prisão da palavra impressa.
Indo aos arquivos e aos documentos para desvendar os múltiplos processos comunicacionais, parte-se da premissa interpretativa e não apenas se observa o que foi guardado na imobilidade, apenas em aparência transparente, daquelas fontes, mas também que o ato de torna-las novamente presentes faz delas uma experiência viva e comunicativa, na qual o pesquisador também se inclui.
Evidentemente, essas observações sobre o ato metodológico como ferramentas possíveis de análise carecem de aprofundamento, sendo apenas breves considerações sobre uma temática extremamente complexa e capaz de prefigurar outras conclusões. Entretanto, o objetivo desse texto nos leva a produzir apenas brechas sobre essa temática naquilo aonde também aparecem as conexões mais evidentes entre comunicação e história.
4 Considerações Finais
A passagem do texto falado para o texto escrito se por um lado permitiu o aprofundamento de várias questões abordadas na aula inaugural de 2019 do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da UTP, por outro retirou do texto os momentos de alegria, de emoção e de partilha que foram abundantes naquela tarde.
Despido das possibilidades que a fala permite e que o diálogo produz, o texto que ora apresento tem, ao mesmo tempo, muitos e poucos nexos com a fala produzida naquele momento. Os pontos de aproximação dizem respeito aos chamados trânsitos entre comunicação e história que permaneceram intactos tanto na versão falada, como na versão escrita. Os pontos de distanciamento se referem à maturação do pensamento sobre as expressões partilhadas naquele momento, o que levou a complementações conceituais que, certamente, produziram um hiato entre o que foi falado e o que ora se apresenta como texto.
Entretanto, apesar desses distanciamentos quero deixar intactas as palavras com as quais terminei minha exposição naquele dia.
Refleti naquele momento sobre as camadas de esquecimento que existem ainda hoje no Brasil no que diz respeito à escravidão, fazendo com que o tema seja sempre visto com certo desconforto quando é abordado. Parece haver um esquecimento tão monstruoso que o objetivo é dizer que não ocorreu, que não foi aqui que há menos de dois séculos milhares de seres se tornaram escravizados e privados de sua liberdade. Constrói-se, assim, diuturnamente uma interdição em camadas, sobre as quais e constroem outras barbáries, num movimento perpétuo de interdição de um passado, que mesmo existindo não é reconhecido plenamente.
Essa interdição que faz da escravidão uma espécie de nosso Holocausto produz, paradoxalmente, a permanência do que mais cruel havia nas relações entre escravizados e os outros: a efetivação do corpo negro como alvo natural da barbárie, mantida e naturalizada por mecanismos que, ao renegar o passado, constrói a exclusão como teia dominante das relações sociais no Brasil.
Referências
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Notas