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Consumo e sociabilidade na Lavradio, a rua dos antiquários
Consumption and sociability at Lavradio, the antiquarians street
Interin, vol. 24, núm. 2, pp. 21-34, 2019
Universidade Tuiuti do Paraná



Recepción: 10/10/18

Aprobación: 11/11/18

Resumo: Neste artigo procura-se descrever as práticas de comercialização, de consumo e de sociabilidade presentes na Rua do Lavradio, no centro da cidade do Rio de Janeiro, que se destaca pela presença de antiquários. Balizado por uma pesquisa etnográfica, o estudo se insere na perspectiva antropológica do consumo e, portanto, lança luz aos aspectos de linguagem coletiva, de comunicação e de classificação social presentes nas práticas comerciais que ali se desenrolam. A Rua do Lavradio representa um caso em que o nome da rua confere aos estabelecimentos comerciais ali instalados uma simbologia positiva, de modo que aquela tradicional localização, por si, já representa uma espécie de garantia ou de certificação, sendo a rua um fator de reconhecimento a priori de qualidade. Estar naquela rua funciona como uma credencial aos antiquários.

Palavras-chave: Comércio, Consumo, Sociabilidade, Etnografia.

Abstract: This article analyzes practices of commerce, consumption and sociability in Lavradio Street, in the center of the city of Rio de Janeiro, which stands out due to the presence of many antiquarian stores. Based on an ethnographic research, the study emphasizes the anthropological perspective of consumption and, therefore, reinforces aspects of collective language, communication and social classification that take place in that street. Lavradio Street represents a case in which the name of the street gives a positive symbology to the local establishments So that traditional location, by itself, already represents a kind of guarantee or certification. In other words, the street is a factor of recognition of quality a priori. Being in that street works as a credential to these antiquarians.

Keywords: Commerce, Consumption, Sociability, Ethnography.

1 Os espaços de consumo e o comércio sob a perspectiva antropológica

Os estudos antropológicos sobre espaços comerciais e de consumo apontam para questões relacionadas à sociabilidade que envolve a frequência a esses espaços e à relação entre consumidores, entre consumidores e comerciantes e entre consumidores e mercadorias.

Em relação ao aspecto da sociabilidade nos espaços de consumo, existem estudos diversos, que vão daqueles que analisam shopping centers (CAVEDON; LENGLER, 2002; COSTA et al, 2000; FRÚGOLI Jr, 1992; SOARES, 2000; UNDERHILL, 2004) àqueles sobre supermercados (MILLER, 2002), feiras (TAVARES, 2008), cibercafés (MILLER; SLATER, 2004), lan houses (BARROS, 2008) e lojas variadas (LALLEMENT, 2005; SILVA, 2002). Os referidos trabalhos apontam para aspectos variados e para a especificidade de cada um dos espaços de consumo analisados, mas, em comum, trazem a perspectiva de que shoppings, feiras, cibercafés e lojas em geral representam locais privilegiados para o estabelecimento de laços sociais que se estabelecem e se desenvolvem nas relações de consumo.

Esses trabalhos vão de encontro à perspectiva do consumo, e, por consequência, dos espaços de consumo como elementos desestruturantes da vida social[1], mostrando, ao contrário, que a frequência a esses lugares – shoppings, lan houses, feiras, etc. – resulta em estabelecimento de rede sociais importantes. No caso específico dos shopping centers, Cavedon e Lengler (2002) e Soares (2000), explicitam a relação de pertencimento que alguns frequentadores de shopping centers de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, respectivamente, estabelecem com esses espaços. Soares (2000) analisa essa relação de pertencimento a partir dos conceitos de “casa” e “rua”, de DaMatta (1997), ao revelar que alguns frequentadores se sentem em “casa” no shopping – um espaço, em tese, classificado como “rua”. Além disso, os autores que analisam shopping centers chamam atenção para o consumo simbólico desses espaços, pois não se trata apenas de compreender o consumo que se realiza nos shoppings, mas sim do consumo dos shoppings, ou seja, de seus significados. A frequência a determinado shopping center pode revelar o compartilhamento de uma imagem e de um significado daquele espaço de consumo; imagem e significado que são estendidos a seus frequentadores, especialmente a seus habitués. Apenas a título de exemplo, especificamente sobre comércio de rua, existem estudos brasileiros no campo da Antropologia e da Sociologia sobre os mais variados lugares, tais como a SAARA-Sociedade dos Amigos e das Adjacências da Rua da Alfândega (BARROS, 2002; CUNHA; MELLO, s/d), região de comércio popular no centro do Rio de Janeiro, sobre ambulantes (MARTINELI, 2009; BARROSO, 2008) – o primeiro sobre ambulantes das ruas de Ipanema, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, e o segundo sobre ambulantes da rua Voluntários da Pátria, na cidade de Porto Alegre.

As diferentes dinâmicas de troca presentes na relação entre consumidores e entre consumidores e comerciantes podem ser analisadas à luz dois importantes autores da Antropologia: Marcel Mauss (2001) e Clifford Geertz (1978, 1979). O primeiro, através de estudos sobre sociedades “primitivas”, revela a importância das relações de troca no estabelecimento e na manutenção de redes de relações sociais. O segundo, em função de suas pesquisas sobre “economias de bazar”, é aqui percebido como representante de uma tradição antropológica no estudo de sociedades da África e do Oriente Médio nas quais o mercado é uma instituição fundamental, um elemento estruturador da vida social.

Mauss (2001), partindo de análises sobre o kula e o potlach, percebia a cultura como um elemento decisivo nos processos de troca; trocas que são coletivas e associadas a rituais onde a circulação de riquezas é apenas um dos aspectos envolvidos, relativizando assim a prevalência da razão prática e do viés utilitarista que pautam algumas análises não-antropológicas sobre o tema. Para Mauss (2001), não haveria, portanto, simples trocas de produtos e riquezas, pois essas trocas estão invariavelmente imersas em relações sociais. As trocas são, para Mauss (2001), fenômenos a partir dos quais é possível perceber dimensões sociais como as obrigações de dar, receber e retribuir, a defesa de interesses pessoais e coletivos, a cooperação, a competição, os conflitos e as disputas.

Geertz (1978, 1979), em seu estudo sobre sistemas de mercados tribais/regionais (“peasant market systems”) ou aquilo que ele denomina de economia de bazar (“bazaar economy”), revela a centralidade do mercado na estruturação de algumas sociedades. A partir de sua pesquisa na cidade de Sefrou, no Marrocos, o autor descortina questões importantes para o entendimento das relações sociais nessa sociedade. O bazar é um sistema particular de relações sociais centrado em torno da produção e do consumo de bens e serviços; ou seja, é um tipo particular de economia. Nesse sistema, a informação é escassa, mal distribuída, ineficientemente comunicada e intensamente valorizada. O nível de ignorância ou desconhecimento sobre tudo – da qualidade dos produtos aos preços praticados – é alto. Como consequência, o “jogo” do bazar consiste na busca por informações por aqueles que não as têm e a proteção da informação por parte daqueles que as possuem. Para Geertz (1978, p. 30), “a procura por informação é uma experiência de vida central no bazar”[2]. Mais do que troca de produtos, trata-se da troca de habilidades cuja ênfase recai sobre o conhecimento a respeito de que tipo de mercadoria está sendo vendida e para que fins a mesma está sendo vendida. Nesse contexto de trocas simbólicas, dois procedimentos de busca são fundamentais: a “clientelização” [3] e a barganha. O primeiro pode ser entendido como a tendência a compras repetitivas de bens e serviços específicos a fim de estabelecer relações contínuas (situação oposta à da procura pelo mercado a cada nova ocasião de compra) e representa uma maneira de lidar com as deficiências de informação no bazar. A barganha, por sua vez, tem um caráter multidimensional e intensivo, uma vez que qualidade, quantidade e outras dimensões não-monetárias podem ser barganhadas, o crédito pode ser negociado, etc. Apesar de ressaltar a especificidade do suq (bazar) de Sefrou – sua formação, seu desenvolvimento, sua heterogeneidade e suas características étnicas, os trabalhos de Geertz (1978, 1979) lançam bases para a análise de outras configurações de comércio[4], uma vez que analisam o bazar em sua estrutura física (organização espacial, segmentação, setores, etc.) e em sua forma social (divisão de trabalho, relações entre comprador e vendedor, financiador e tomador de empréstimo, profissional e leigo) – aspectos que podem orientar o olhar etnográfico para diferentes locais de troca e formas comerciais.

2 As ruas de comércio especializado

As ruas das grandes cidades brasileiras são espaços privilegiados para a compreensão das dinâmicas urbanas no que tange ao consumo, ao trabalho, ao lazer e à sociabilidade; enfim, a instâncias atravessadas pelas relações sociais presentes no espaço urbano. Historicamente, o comércio representa um elemento importante de desenvolvimento da vida social e, atualmente, o comércio ganha novos contornos devido à centralidade do consumo na vida moderna. Ainda que se considerem o crescimento do número de shopping centers e o aumento das cifras do e-commerce, o comércio de rua, representado por lojas, feiras, ambulantes, etc, encontra-se longe da extinção. Em certa medida, é possível perceber a resistência ou mesmo o florescimento ou reflorescimento do comércio de rua em algumas cidades brasileiras.

Exemplos dessa resistência seriam as tradicionais ruas de comércio especializado ou específico, que sobrevivem, às vezes com dificuldades, às transformações impostas pelas dinâmicas econômica e urbana. As ruas de comércio especializado são aquelas em que há forte presença, clara predominância ou mesmo exclusividade de um segmento de comércio. Nessas ruas é possível encontrar uma concentração de lojas que comercializam um mesmo tipo de mercadoria. Compreender a dinâmica dessas ruas, buscando mostrar as trajetórias que as levaram a se tornar ruas de comércio especializadas em um tipo de produto – ou, em alguns casos, mostrar que mudanças podem, ao contrário, fazer com que esse caráter de especificidade seja reduzido, abrindo espaço para a existência de outros tipos de lojas e produtos, é um ponto de partida para a compreensão das transformações ocorridas nas relações de consumo, de trabalho e de comércio.

Na cidade do Rio de Janeiro, algumas ruas são bastante conhecidas por concentrarem significativo número de lojas que se dedicam à comercialização de um tipo específico de produto: os antiquários da Rua do Lavradio; os lustres e materiais de iluminação da Rua Senador Bernardo Monteiro (mais conhecida como Rua dos Lustres); as lojas de móveis da Rua do Catete; as lojas de instrumentos musicais da Rua da Carioca; e os produtos populares da Rua da Alfândega. Esse tipo de concentração comercial também faz parte do cenário urbano de outras cidades brasileiras, como Recife – que tem como exemplos a Rua da Concórdia, que concentra lojas de instrumentos musicais, e a Rua do Aragão, com suas lojas de móveis – e de São Paulo – com destaque para a Rua Oscar Freire, com suas lojas de luxo, e para a Rua São Caetano, onde se concentram lojas de vestidos de noiva. Cidades europeias, como Barcelona, Londres e Paris, apenas para citar algumas das mais conhecidas, também possuem ruas de comércio especializado[5] (CORRÊA, 2015).

3 A pesquisa na Rua Lavradio

A Rua do Lavradio, localizada no centro da cidade do Rio, foi aberta em 1755 por ordem do 2º Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil entre 1769 e 1779, que ali mandou construir sua residência. Devido a esse fato, é, por vezes, referida como a primeira rua residencial do Rio de Janeiro e tem, assim como todo seu entorno, grande importância histórica. A história da Rua do Lavradio, já bem documentada, revela as fases pelas quais a rua passou. Inicialmente denominada Rua do Marquês de Lavradio, a rua rapidamente transformou-se em um dos mais elegantes endereços da cidade, moradia de nobres. A partir das últimas décadas do século XIX, a Lavradio passou a abrigar teatros e outras casas de espetáculos, e, consequentemente, a vida boêmia carioca ali se instalou nas primeiras décadas do século XX. A partir dos anos 1940, a Lavradio caiu no ostracismo e entrou em uma fase de decadência. A rua somente foi reencontrar essa tradição boêmia a partir do início da década de 1980, com a revitalização daquela região através do Projeto Corredor Cultural[6], um plano elaborado para preservar e reabilitar o centro do Rio de Janeiro. Contudo, a Lavradio continuava apresentando problemas de infraestrutura que só foram solucionados com o projeto de reurbanização da rua, iniciado em 1999 e concluído somente em 2002.

Pensado para a função que o local possui: um ambiente para se flanar em busca de algum objeto antigo para se guardar em casa, um móvel de que se necessita, uma luminária para se colocar ao lado do sofá para ler. (...) A rua foi idealizada para a fruição de um passeio só para ver os prédios, para sentar nas mesas dos bares e restaurantes ao ar livre para ouvir música à noite e nos dias da feira de antiguidades, quando todo espaço é apropriado pelos frequentadores (PINHEIRO et al, 2007, p. 151).

Hoje, a rua é um dos mais importantes locais de comércio de antiguidades da cidade e, além dos antiquários e das lojas de móveis, a rua concentra também muitos bares, restaurantes e casas noturnas especializadas em música brasileira (especialmente samba e choro), sendo por isso uma das mais conhecidas ruas da Lapa, sub-bairro do Centro. Em contagem feita in loco, foram identificados na Rua do Lavradio 12 antiquários e mais de 30 bares e restaurantes de tipos e tamanhos variados. Há também outros tipos de comércio, como padarias, salões e barbearias, floricultura, que convivem lado a lado com pequenos hotéis, escolas e cursos variados.

Com relação à ocupação da Rua do Lavradio por antiquários, a data de início não é precisa, mas há referências (PINHEIRO et al, 2007) de que foi nos anos 1980 que alguns pequenos brechós começaram a se instalar ali, lado a lado com cortiços, motéis e botequins, ainda numa fase de decadência da rua. Em 1988, foram abertos dois empreendimentos considerados “incubadoras de antiquários”, pois muitos comerciantes saíram desses empreendimentos para abrir lojas na região: o Antique Center e o Art Center, espaços divididos em boxes de antiquários. Quase dez anos depois, em 1996, existiam 12 lojas de antiguidades instaladas na Lavradio. Segundo dados levantados pela ACCRA – Associação dos Comerciantes do Centro do Rio Antigo, em 2007 esse número tinha aumentado para 19 antiquários, e o comércio de antiguidades era considerado a “atividade matriz da rua”[7]. Esse aumento no período vai ao encontro da ideia de um entrevistado, proprietário de um dos antiquários, de que a concentração de antiquários é o grande fator de atração de novos. No entanto, a redução para 12 antiquários em 2018 pode ser reflexo de uma combinação de fatores, que incluem o caráter dinâmico da rua, com o fechamento e a abertura de lojas e comércios de tempos em tempos, o fenômeno de valorização da Rua do Lavradio como espaço privilegiado para a instalação de bares e restaurantes e também o cenário de crise econômica que atingiu a cidade do Rio de Janeiro, especialmente nos últimos dois anos. Além disso, apesar da redução no número de antiquários, a Lavradio segue sendo uma referência quando o assunto é antiguidades.

Em relação ao espaço físico dos antiquários, o tamanho das lojas varia muito, mas uma característica comum à maioria é o acúmulo de objetos à venda. Transitar dentro dos antiquários requer dos consumidores atenção tanto para não esbarrar como para observar as mercadorias expostas e seus detalhes; daí ser comum no universo dos antiquários o uso do termo “garimpar”. Há antiquário de todo tipo, com objetos variados e para todos os gostos. Alguns antiquários são mais organizados; em outros os produtos são expostos sem nenhuma aparente preocupação com a ordenação e a limpeza dos objetos. Nos antiquários da Lavradio é possível encontrar mercadorias específicas e existem, inclusive, antiquários especializados em móveis e objetos dos anos 1950, 60 e 70. O conforto do consumidor não é algo que se mostre, em geral, como uma preocupação para comerciantes das lojas de antiguidades da Rua do Lavradio. Há bastante informalidade na relação comerciante-cliente, mas o tratamento é aquele que procura deixar o consumidor à vontade, mas sem muitos mimos. Como os antiquários são lojas que não costumam ter um fluxo muito grande de pessoas[8], não é raro ver vendedores na porta ou do lado de fora das lojas; alguns conversando com comerciantes próximos. É de se notar que muitos antiquários não possuem letreiros – ou apresentam letreiros bem discretos – e seus horários de funcionamento seguem o horário de funcionamento do comércio de rua – de segunda à sexta-feira, de 9 horas até 19 horas, aproximadamente, e aos sábados, de 9 horas até 16 horas, sendo que o horário de fechamento pode variar de antiquário para antiquário.

Com relação aos consumidores, os proprietários e gerentes entrevistados dizem não haver um perfil muito claro, mas pontuam algumas características: pessoas de classe média e média-alta; casais de meia idade; gays. Apenas um gerente de antiquário afirmou perceber uma renovação dos consumidores ao ver na loja jovens “descolados” interessados em antiguidade – seria um grupo específico de jovens para os quais ter uma peça antiga em casa é uma coisa cool porque, segundo o gerente, “a grande tendência é você ser vintage”. A respeito das mercadorias, as peças consideradas antiguidades são mercadorias com mais de 50 anos e explica-se que isso é relativo, pois em outros países somente peças com mais de 100 anos entram na categoria antiguidade, mas, segundo estes mesmos proprietários e gerentes, como o Brasil é um país mais jovem e que não costuma valorizar aquilo que é antigo, aqui temos esse período mais curto. Os comerciantes dos antiquários reclamam, com mais ou menos veemência, do encolhimento do mercado de antiguidades, do fechamento de vários antiquários e da instalação de lojas de móveis de madeira de demolição na rua (algumas dessas lojas vendem exclusivamente móveis de demolição; outras têm esses móveis como carro-chefe, mas têm uma ou outra antiguidade). Foi percebida certa confusão em relação a antiquário e loja de móveis de demolição. Confusão por parte dos consumidores, principalmente, que entravam em lojas do segundo tipo atrás de antiguidades e vice-versa ou que não sabiam diferenciar uma coisa da outra, mas também uma ambiguidade por parte de comerciantes que algumas vezes apresentavam seus estabelecimentos como antiquário, mas comercializavam prioritariamente móveis confeccionados com madeira de demolição. Alguns antiquários falaram também de pessoas em busca de móveis usados, a preços baratos, que entram “desavisados” nos antiquários. Apesar disso, a rua continua sendo percebida como o mais importante ponto do comércio de antiguidades na cidade e “quem não está na rua [do Lavradio] quer vir para a rua do Lavradio”, como sintetizou um entrevistado.

Na Rua do Lavradio, no primeiro sábado de cada mês, é realizada a Feira do Rio Antigo, evento que atrai cariocas e turistas, no qual lojistas estabelecidos na rua expõem suas mercadorias do lado de fora das lojas e outros comerciantes expõem seus produtos (antiguidades, predominantemente, mas também artesanato variado) em barracas. A música também está presente nos dias de Feira, com a apresentação de grupos tocando, ao vivo, ao longo da rua. A Feira, idealizada e organizada por um grupo de donos de antiquários da rua, foi inaugurada, em 1996, com o nome de Feira da Lavradio e é descrita como um elemento atrativo que deu novo fôlego à Rua do Lavradio:

Em outubro de 1996, inaugurou-se a Feira da Lavradio e com ela uma nova era para os antiquários, para os moradores, para a rua e para a cidade. Breve, a Feira seria considerada um evento “tradicional”, apesar da pouca idade. A cada primeiro sábado do mês, lá está ela, cada vez maior, mais organizada, mais bonita, mais alegre, mais sedutora, mais frequentada (PINHEIRO, 2007, p. 147).

Hoje, a Feira é indicada por sites da Internet como um programa que atrai cariocas e turistas:

A Feira Rio Antigo é promovida há 21 anos pela Associação Polo Novo Rio Antigo e chega a reunir até 30 mil visitantes para prestigiar os mais de 400 expositores. O passeio pelo Centro do Rio Antigo é ainda uma excelente alternativa para os apreciadores de arquitetura, já que a região conserva seus casarões antigos. As lojas e restaurantes dos arredores também ficam abertos, com atrativos especiais nos dias de feira (POLO NOVO RIO ANTIGO, 2018).

Todo primeiro sábado do mês a Rua do Lavradio recebe a Feira do Rio Antigo. A rua centenária, que abriga casarões históricos, bares, antiquários e casas de shows, oferece uma programação descontraída para quem quer conhecer a história da cidade e se divertir sem gastar nada (RIOTUR, 2018).

Ainda sobre a Feira, as entrevistas revelaram que ela está longe de ser uma unanimidade entre os comerciantes da rua. A maioria dos entrevistados se mostrou reticente em relação à feira e, principalmente, aos benefícios que traz aos antiquários. Se por um lado reconhecem que a Feira movimenta muito a rua e dá visibilidade ao local e aos seus estabelecimentos comerciais, afirmam que esse movimento é significativo, em termos de retorno de vendas e lucro, apenas para os restaurantes. Para os antiquários, que recebem um fluxo de pessoas infinitamente maior do que em outros dias ditos “normais”, o movimento não se reverte em vendas; ao contrário, muitos afirmaram que os dias de Feira são os dias de menores vendas, pois o público que frequenta a rua nesses dias não é o consumidor de antiguidades. São pessoas que, segundo um dos entrevistados, “não têm a cultura de antiguidade” e que lotam os antiquários apenas para olhar e que, exatamente por encher as lojas, afugentam os compradores e os clientes habituais que preferem a tranquilidade dos antiquários mais vazios nos dias de semana ou nos sábados “normais”, evitando assim os dias de Feira.

Nos sábados de Feira, a rua vira um formigueiro humano formado por cariocas e turistas de outros estados e países. Barracas são instaladas na rua para que pessoas, cadastradas pelo Polo Rio Antigo, que comercializam artesanato (principalmente) e antiguidade (em menor quantidade), exponham seus produtos. Nesses dias, os antiquários podem expor seus produtos do lado de fora das lojas, mas muitos evitam fazê-lo ou o fazem com cuidado, escolhendo as peças que irão para fora, pois temem pelos danos que o grande movimento de pessoas pode causar aos objetos. Alguns proprietários de antiquários chegam a contratar seguranças extras para controlar o fluxo de pessoas nas lojas; outros instalaram câmeras de segurança para tentar evitar os furtos que eles dizem ocorrer nos dias de Feira.

Na Rua do Lavradio está instalada a sede da Associação Polo Rio Antigo, que teve origem na já citada ACCRA, fundada, em 1991 pelos comerciantes locais, principalmente antiquários. Atualmente conta com setenta associados, sendo a maioria bares e restaurantes. Cabe destacar que área de atuação da Associação – ou do Polo, como é mais referido – não se restringe à Rua do Lavradio, mas boa parte do centro histórico do Rio (Praça Tiradentes, Largo de São Francisco, Cinelândia, Lapa). Assim como no caso da Feira Rio Antigo, as percepções e opiniões sobre o Polo são divergentes e verificou-se que a maioria dos antiquários não faz parte dessa associação – embora alguns já tenham participado anos atrás. Um dos mais antigos proprietários de antiquários da rua e um dos fundadores da ACCRA explica esse afastamento como uma reação à chegada de um “grupo que dominou a região” e que “mudou o perfil da área”, numa referência, mais ou menos velada, aos donos de restaurantes e ao grupo que participa do Polo.

Essa percepção dos antiquários de que o Polo não trata de questões pertinentes aos antiquários e outras questões gerais da rua é de conhecimento das pessoas envolvidas na administração do Polo:

Eles [os proprietários de antiquários] não querem mais, né? Eles alegam que a Associação tomou outro rumo, que agora é mais pra bar e restaurante... o que não é verdade. A gente tá tentando mudar esse quadro e trazer novos antiquários para a Associação e para a Feira. A gente quer que eles venham participar, mas só que infelizmente alguns não pensam, acham que não, que não vale a pena... Mas a gente vai tentar trazê-los, mesmo assim.

5 Considerações Finais

Espaços nos quais se pode perceber o estabelecimento e a manutenção de relações sociais variadas, além das óbvias funções ligadas ao intercâmbio de objetos e serviços e a geração de lucro, as ruas de comércio não devem ser vistas como sobrevivência do passado e nem como algo periférico a outros espaços e a outras dinâmicas econômicas, tais como os grandes shopping centers e os sites de compras da Internet. A Lavradio, tradicional e histórica rua do centro da cidade do Rio de Janeiro, que apresenta uma arquitetura que combina casario histórico e prédios modernos, representa um caso em que o nome da rua confere aos estabelecimentos que comercializam antiguidades ali instalados uma simbologia positiva, de modo que aquela localização, por si, já representa uma espécie de garantia ou de certificação. Em outras palavras, a rua é um fator de reconhecimento a priori de qualidade; a rua é uma grife e, portanto, estar naquela rua funciona como uma credencial ao estabelecimento comercial.

Referências

BARROS, Carla. Um exercício de observação etnográfica na Saara. Cadernos Discentes COPPEAD. Rio de Janeiro, nº 9, 2002.

BARROS, Carla. Games e redes sociais em lan houses populares: um olhar antropológico sobre usos coletivos e sociabilidade no “clube local”. Internext – Revista Eletrônica de Negócios Internacionais, São Paulo, v. 3, n. 2, ago./dez, 2008, p. 199-216. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018

BARROSO, Priscila Farfan. Etnografia de rua na “Voluntários da Pátria”: fotografando ambulantes no espaço público. Revista Ensaios, n.1, v.1, ano 1, 2008, p. 1-12. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

CAVEDON, Neusa.; LENGLER, Jorge Francisco. Do “templo do consumo” à representação mitológica: um olhar etnográfico desconstrutivo sobre os ritos no shopping center. RIMAR-Revista Interdisciplinar de Marketing, v. 1, n. 2, mai./ago, 2002, p. 23-38. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

CORRÊA, Sílvia Borges. As ruas comerciais, o consumo e a vida social urbana: o universo dos ateliês da Rua Dias Ferreira. Revista Rua. Campinas, n. 21, v. 1, jun. 2015, p. 5-20. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

COSTA, Alexandre. et al. Comportamento do consumidor: pesquisa etnográfica em shopping centers: Madureira Shopping Rio X São Conrado Fashion Mall. Cadernos Discentes Coppead. Rio de Janeiro, n. 1, 2000, p. 43-54.

CUNHA, Neiva Vieira da; MELLO, Pedro Paulo Thiago de. SAARA: reinventando etnicidades e ambiências urbanas num mercado popular carioca. Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2013.

DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FRÚGOLI Jr, Heitor. Os shoppings de São Paulo e a trama do urbano: um olhar antropológico. In: PINTAUDI, S. M.; FRÚGOLI Jr., H. (Org.). Shopping centers: espaço, cultura e modernidade nas cidades brasileiras. São Paulo: Ed. da Unesp, 1992, p. 75-92.

Geertz, Clifford. The bazaar economy: information and search in peasant marketing. The American Economic Review, v. 68, nº 2, May 1978, p. 28-32. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

Geertz, Clifford. Suq: the bazaar economy in Sefrou. In: ROSEN, L. et al. Meaning and order in contemporary Marocco: three essays in cultural analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

LALLEMENT, Emmanuelle. Le populaire à l’épreuve des situations marchandes: «popu-chic» et «chic-popu» chez Tati. Paris: Hermès, v. 42, 2005, p. 131-136.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas. Lisboa: Edições 70, 2001.

MARTINELI, Fernanda. O original e o fake se encontram na esquina: uma etnografia do consumo nas ruas de Ipanema. In: XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

MILLER, Daniel. Teoria das compras. São Paulo: Nobel: 2002.

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PEIRANO. Mariza. Uma antropologia no plural. Brasília: UNB, 1991.

PINHEIRO, Augusto Ivan et al. Rua do Lavradio. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio: Rio Scenarium, 2007.

POLO NOVO RIO ANTIGO. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2018.

RIOTUR. Feira do Rio Antigo. Evento gratuito acontece mensalmente na Rua do Lavradio. Disponível em: . Acesso em: 24 out. 2018.

SILVA, Carlos Henrique Costa da. Novas formas de comércio e consumo: estudo sobre lojas de conveniência. Geografia. Rio Claro, v. 27, abr. 2002, p. 65-82. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

SOARES, Luiz André. Entre a “casa” e a “rua”: revisitando o espaço shopping center no Brasil. Cadernos Discentes Coppead. Rio de Janeiro, n. 2, 2000, p. 80-92.

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UNDERHILL, Paco. 2004. A magia dos shoppings. São Paulo: Campus, 2004.

Notas

[1] Aqui refere-se especificamente a trabalhos de viés moralista que “demonizam” o consumo e que veem, por exemplo, o shopping center como um espaço de alienação social.
[2] Original em inglês: “the search for information is the central experience of life in the bazaar” (GEERTZ, 1978, p. 30).
[3] No original, clientelization, que também poderia ser traduzido por fidelização.
[4] Geertz preocupa-se em ressaltar que o bazar deve ser entendido como uma modalidade econômica e cultural e não como uma forma primitiva de se fazer comércio.
[5] Alguns exemplos são Carrer de la Riera Baixa, no bairro do Raval, em Barcelona, e Brick Lane, em Londres, ambas conhecidas por suas lojas de roupas de segunda-mão (especialmente vintage). Em Paris, as ruas do Triangle d’Or e suas butiques de luxo.
[6] O Projeto Corredor Cultural foi elaborado em 1979, mas a lei foi publicada somente em 1984.
[7] Ainda acordo com a ACCRA, a Rua do Lavradio recebe por mês em seus estabelecimentos comerciais mais de 30 mil frequentadores, incluídos turistas nacionais e estrangeiros. Seus cafés, bares e restaurantes empregam cerca de 520 pessoas.
[8] A exceção é o primeiro sábado de cada mês, quando os antiquários (e também os bares e restaurantes) recebem grande fluxo de frequentadores, pois é realizada a Feira do Rio Antigo, que será apresentada mais adiante.


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