Recepción: 20 Septiembre 2018
Aprobación: 20 Noviembre 2018
Resumo: A Rua 16 de Março, localizada na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, recebeu especial atenção de empreendedores que investiram na criação de uma associação de comerciantes, visando à promoção de atrações culturais, produzindo novas lógicas e mecanismos de circulação e produção de sentidos associados ao local. Neste trabalho, a partir de visitas ao local e de relatos das gestoras da Associação Rua 16 de Março, procuramos compreender como se articulam práticas de consumo, lazer e dinâmicas de circulação no espaço urbano, nas iniciativas empreendedoras que têm sido implementadas na localidade. Observamos, a partir dos dados analisados, a busca dos gestores por incrementar a imagem da Rua 16 de Março, por meio de iniciativas voltadas à valorização do espaço urbano, em conformidade com as tendências mundiais de gestão de cidades criativas e cidades-espetáculo.
Palavras-chave: Petrópolis, Rua 16 de Março, Consumo, Lazer, Espaço Urbano.
Abstract: The 16 de Março Street, situated in the city of Petrópolis, Rio de Janeiro, received particular attention from entrepreneurs who made efforts to create an association of merchants, looking to promote cultural attractions, producing new logics and mechanisms of circulation and production of meanings associated with the location. In this paper, from 16 de Março Street visits and reports from the managers of The 16 de Março Street Association, we seek to understand how consumer, leisure and dynamic circulation practices are articulated in space, in the entrepreneurial initiatives, that have been implemented in the locality. Based on the data analyzed, we noticed the search for managers to increase the image of 16 de Março Street, through initiatives aimed at the valorization of the urban space, in accordance with the worldwide trends in the management of creative cities and show cities.
Keywords: Petropolis, 16 de Março Street, Consumption, Leisure, Urban Space.
1 Introdução
Este trabalho se inscreve na tradição de estudos inaugurada por George Simmel (2007), que toma os fenômenos sociais, como o urbano, o consumo e o lazer – aqui entendido como o aspecto lúdico da interação social – como formas sociais resultantes de múltiplas interações. Nesse contexto, buscamos compreender como se articulam práticas de consumo e lazer na perspectiva de gestores do atual projeto implementado na Rua 16 de Março, no centro de Petrópolis. Ressaltamos que a via, uma das mais importantes da cidade, localiza-se próxima aos principais atrativos turísticos locais, como o Museu Imperial e a Catedral de São Pedro de Alcântara. A Rua 16 de Março serve como passagem para moradores e visitantes que circulam nas proximidades desses atrativos, além de ser paralela à Rua do Imperador, principal via do Centro Histórico.
A Rua 16 de Março se inscreve no quadro das manifestações artísticas, práticas de lazer e consumo representativas de cidades contemporâneas. Espaços públicos reúnem mais do que possibilidades de convívio cidadão e relações sociais, apresentando esferas de produção de sentidos ancoradas nas lógicas do mercado dos bens simbólicos. As cidades, nessa perspectiva, tornam-se mercadorias sob a ótica de determinados atores, competindo por visibilidade de acordo com seus valores de troca e de uso.
Nesse sentido, a obra de Simmel (2007) nos serve de referência por vários motivos. O autor foi um dos primeiros analistas a refletir sobre o espaço urbano a partir de uma perspectiva interacionista. Simmel (2007) se debruçou sobre o significado do fenômeno urbano, principalmente para o tipo social fundamental da metrópole: o citadino. A luta diária e incessante travada pelo metropolitano para se diferenciar dos demais citadinos e também proteger sua intimidade repercutiu decisivamente sobre o processo de individualização, forma elementar social (SIMMEL, 2007; 2013).
Valendo-se das lições de Simmel, Robert E. Park (1973, p. 26) concebe a cidade como “[...] um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição”. Considerando a diversidade de espaços e de tipos sociais que integram a cidade, o repertório cultural e as características estéticas se constituem como elementos de diferenciação que permitem estabelecer hierarquias de valor entre monumentos, centros comerciais, praças, vias e outros lugares, na perspectiva de seus frequentadores. As atividades de lazer e as práticas de consumo operadas em um espaço contribuem para posicioná-lo no cenário global de competitividade urbana e turística (FEATHERSTONE, 2004).
Midiaticamente conhecida como Cidade Imperial, Petrópolis possui reputação turística ligada à imagem de cidade histórica e espaço aristocrático, o que não exclui outras versões sobre a cidade. O imaginário da cidade é, em parte, construído a partir da herança das temporadas de veraneio que a Família Real passava no local, durante o Segundo Reinado, no século XIX, no Brasil. Muitas atividades e estabelecimentos turísticos locais se concentram na região conhecida como Centro Histórico, onde Dom Pedro II se hospedava com sua família durante o verão, no palácio em que hoje se encontra o Museu Imperial.
Situada nesta área da cidade, a Rua 16 de Março consiste em uma das vias mais tradicionais do município, reunindo estabelecimentos comerciais do setor de moda, prestadores de serviços, lanchonetes, bares e restaurantes. Muitos desses estabelecimentos constituem diversos pedaços para seus frequentadores, na medida em que, situados entre o privado e o público, operam a rede básica de sociabilidade na cidade (MAGNANI, 1996). Tendo passado por obras de revitalização em 2003, a Rua 16 de Março voltou a ser alvo de um novo projeto em 2017, empreendido por comerciantes e por uma agência de publicidade local. O intuito era promover a localidade comercial e midiaticamente.
Portanto, em termos de fundamentação teórica, valemo-nos de autores cujas pesquisas levam em conta o consumo, o urbano e o lazer como referências centrais à construção das identidades coletivas e subjetivas. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa e de abordagem hermenêutico-interpretativa (GEERTZ, 1978; BECKER, 1994; VELHO, 1978). Além disso, empregamos técnicas de coleta de dados que reuniram diversos relatos dos gestores do projeto da Rua 16 de Março a partir de sites, perfis e páginas de redes sociais de divulgação da iniciativa, bem como a realização de uma entrevista semiestruturada com uma das gestoras do projeto. Também recorremos ao trabalho de campo, com visitas à Rua e participação em seus eventos (VELHO, 1978; DAMATTA, 1978).
A Rua 16 de Março representa profícuo cenário para a compreensão das relações que se originam em espaços orientados para o consumo e o lazer, no contexto das cidades-mercadoria que fazem do espetáculo sua fonte de produção de sentidos.
2 A Rua 16 de Março no contexto da cidade turística de Petrópolis
Localizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, a cidade de Petrópolis é um reconhecido destino turístico brasileiro, selecionado pelo Ministério do Turismo como um dos 65 destinos indutores do turismo regional[1]. O passado da cidade, ligado ao período do Segundo Reinado no Brasil (1840-1889), constitui o argumento de boa parte das atrações turísticas locais, além de iniciativas ligadas à preservação de tradições remanescentes da efervescência cultural vivida pela cidade durante o século XIX[2].
A tradição turística de Petrópolis se inscreve num cenário em que atividades lúdicas e não produtivas de valor de troca ganham cada vez mais destaque nas cidades, que procuram atender à lógica da provocação de novas sensações e experiências demandadas pelos consumidores na hipermodernidade. Dessa forma, as cidades procuram se diferenciar a partir de seus elementos identitários, construindo marcas que as tornem mais atraentes e competitivas no cenário global. Numa perspectiva associada ao marketing, a economia criativa se apresenta como alternativa para o posicionamento local a partir de seus próprios recursos culturais, mobilizados e orientados de forma produtiva, criando valores simbólicos e intangíveis (REIS, 2017).
Esse posicionamento competitivo está associado ainda ao fenômeno de estetização do mundo que, segundo Lipovetsky & Serroy (2015), reflete-se em diversas esferas da vida e da organização social, incluindo os espaços urbanos. Nessa perspectiva, competindo por visibilidade e atratividade entre investidores e visitantes, as cidades procuram se destacar esteticamente, promovendo a gentrificação de determinadas regiões. O comércio constitui um dos alicerces para o “surgimento de novos bairros centrais estetizados”, atraindo “novas populações que vêm consumir numa ambiência atraente e descolada” (LIPOVETSKY & SERROY, 2015, p. 318).
Sentidos ligados à visibilidade turística e à estetização espacial são constantemente produzidos e despertados em cidades turísticas como Petrópolis, cuja vocação turística, segundo Daibert (2010), tem origem na vilegiatura, prática de uso do espaço serrano pela aristocracia do Rio de Janeiro, que em Petrópolis passou a permanecer durante temporadas em casas de campo. Durante o início do século XX, a vilegiatura cedeu espaço a atividades organizadas que passaram a configurar o turismo na cidade, a exemplo da criação da Empreza ALEX, prestadora de serviços e informações turísticas (DAIBERT, 2010).
Nos anos de 2006 e 2007 a Prefeitura Municipal de Petrópolis realizou um projeto de intervenção na região conhecida como Centro Histórico, o “Projeto de Valorização do Centro Histórico de Petrópolis” (Pró-Centro), voltado à revalorização urbana, à requalificação do núcleo urbano e ao consumo turístico (AMBROZIO, 2013). Ao descrever o Pró-Centro, Júlio Ambrozio (2013, p. 35) afirma que:
Sem esquecer as iluminações de cena da Catedral de São Pedro de Alcântara e do Palácio de Cristal, além da nova modelagem das ruas 16 de Março, Epitácio Pessoa e da Praça da Inconfidência, essa intervenção do poder público no eixo principal do núcleo central da cidade – a Rua do Imperador – seria o principal marco, em Petrópolis, de um urbanismo transformador de centros de cidades em centros históricos vinculados ao turismo.
Retomando as discussões sobre a economia criativa, compreendemos que os usos turísticos do espaço obedecem a práticas de produção e consumo associadas a aspectos imateriais, emocionais e experienciais. Com a mesma orientação para a criatividade, encontram-se derivações da economia criativa em expressões como cidades criativas e turismo criativo. Trata-se de concepções de espaços na ótica do consumo simbólico e turístico a partir de aspectos culturais da localidade (OLIVEIRA & REIS, 2017).
As atividades de lazer desempenham papel de destaque nesse processo, em que a fruição e a ludicidade configuram uma nova arena de produção de sentidos e relações sociais. Convém aqui, recorrer às formulações de Luce Gomes (2004), que situa o lazer não em oposição funcional às atividades produtivas e de trabalho, mas
[...] como uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o trabalho produtivo (GOMES, 2004, p. 125).
A definição de lazer de Gomes (2004) nos auxilia a compreender o papel do espaço para além de uma determinação geográfica pontual, transformado em ponto de encontro, trocas e convívio consigo, com o outro e com o mundo (GOMES, 2004; MAGNANI, 1996).
Para Ricardo Freitas (2004), a confluência entre lazer e consumo, no espaço urbano, é materializada pelos shopping centers, que simulam um sonho de harmonia urbana, proporcionam entretenimento e sensação de segurança em ambientes assépticos que reforçam as diferenças entre a cidade aberta, suja e malsã, e a cidade fechada e limpa, representada por esses centros comerciais. É esse o ideário que encontramos em localidades como a Rua 16 de Março, que embora seja uma via aberta do Centro Histórico de Petrópolis, apresenta-se midiaticamente como shopping a céu aberto.
No contexto do Pró-Centro, diversas vias que compõem o Centro Histórico de Petrópolis receberam obras que incluíram o alargamento de calçadas, o enterramento da rede de distribuição de energia, bem como restrições à circulação de ônibus e outros veículos de grande porte. A Rua 16 de Março, cujo nome faz homenagem ao aniversário da cidade, foi uma das beneficiadas com o projeto, por se localizar paralelamente à principal via da cidade (a Rua do Imperador), além de congregar uma variedade de estabelecimentos comerciais e prédios residenciais no coração do Centro Histórico. A via, aberta em 1943 com o nome de Rua do Centenário, ganhou a denominação atual em 1946.
Definida no site da Prefeitura Municipal como a “rua mais charmosa de Petrópolis”[3], a Rua 16 de Março se estende por mais de 470 metros, nos quais cerca de 80 empresas constituem o “Polo de Compras da Rua 16 de Março”[4], em que se destaca o “comércio de roupas de grifes nacionais e de maior luxo” (AMBROZIO, 2013, p. 40). Para Ambrozio (2013, p. 44), a Rua 16 de Março faz parte de um conjunto de iniciativas que visam ao enobrecimento das adjacências da Rua do Imperador, aumentando seu valor de troca no mercado turístico, maximizado em comparação ao “lugar de uso que a cidade representaria para seu habitante”.
A Rua 16 de Março oferece ao citadino a possibilidade de ser explorada a pé. Tornar o espaço abordável a partir do caminhar é um desafio para muitas cidades. Em seu estudo sobre a cidade de Bordeaux, Fricau e Laplace-Treyture (2009) assinalam que a valorização do deslocamento feito a pé responde aos anseios dos moradores por um tipo de relação com a cidade tido como mais autêntico, suave e íntimo. Segundo as autoras, caminhar a pé permite que um novo olhar se volte para os espaços urbanos. Com a ajuda de livros-guias, por exemplo, o pedestre é convidado a descobrir uma nova Bordeaux pondo em destaque sua sensibilidade, suas lembranças e sua imaginação. A cidade é, então, redescoberta sendo o sujeito, seu corpo e sua sensibilidade fatores centrais nesse processo. Nessa perspectiva, a Rua 16 de Março se insere num conjunto de iniciativas, levadas a cabo em cidades turísticas, com o intuito de criar e ressignificar espaços de circulação e produção de sentidos entre seus frequentadores com ênfase na escala do andar.
Próxima aos principais atrativos turísticos de Petrópolis, a 16 (forma como a Rua 16 de Março é conhecida na cidade) é apresentada, inclusive, como atração local em guias turísticos e páginas sobre o turismo local na internet. O Polo de Compras da Rua 16 de Março se contrapõe a outros dois espaços de comércio de moda na cidade: o Polo de Compras da Rua Teresa e o Polo de Compras do Bingen. Estes últimos apresentam uma variedade de lojas com preços populares, voltadas tanto a varejistas quanto a atacadistas que revendem roupas e acessórios. O consumo é, então, posto em destaque na Rua 16, possibilitando que os sujeitos organizem, rotulem e hierarquizem objetos, pessoas e relações que se encontram no mundo (HEILBRUNN, 2005). O consumo também atua na forma como refletimos sobre nós mesmos, sendo importante mediador na construção de nossas subjetividades.
No trabalho de campo foi possível observar na Rua 16 de Março uma segmentação de público mais elitizada, que se alinha aos objetivos de projeção turística de Petrópolis no cenário nacional a partir de seu Centro Histórico. Por meio do olhar do outro os sujeitos constroem a imagem de si mesmos; por isso, a ressignificação advinda do mercado de consumo, sobretudo, quando se trata de mercadorias de marcas luxuosas. Ao fazer uso de determinados objetos, mesmo que não sejam autênticos/legítimos, os sujeitos se sentem próximos do grupo social hegemônico. Não obstante, essa aproximação não é o suficiente para legitimar sua posição, mas é importante para que ele seja identificado como integrante do jogo social. Entretanto, o consumo é uma prática que não se restringe somente a uma elite, mas a todo o corpo social.
Conforme destaca Benoît Heilbrunn (2005), o consumo não se restringe nem à troca comercial nem à consumação do objeto. O simples ato de olhar as vitrines sem que nada tenha sido comprado também se traduz por consumo, ao mesmo tempo em que evidencia esse universo em termos performativos (SIQUEIRA, 2017). Em outras palavras, o consumo é também performado por meio de gestos, condutas, ações e comportamentos, tendo o corpo lugar de destaque nesse processo (DURET; ROUSSEL, 2005).
Nesse sentido, cada vez mais a 16 tem sido promovida como um dos elementos principais nas dinâmicas de circulação e consolidação do espaço turístico da cidade. Com o objetivo de compreender de que forma se articulam práticas de consumo e lazer na perspectiva da gestão do atual projeto de promoção da Rua 16 de Março, analisamos diversos relatos dos empreendedores em páginas virtuais de divulgação do projeto, além da realização de uma entrevista semiestruturada com uma de suas gestoras[5]. Além disso, foram realizadas visitas à Rua e participações dos autores em alguns dos eventos que compõem a programação cultural da 16 de Março. Páginas e perfis do projeto da Rua 16 de Março em redes sociais também foram consultados, a fim de complementar a pesquisa sobre as finalidades da iniciativa e suas formas de divulgação.
Nas próximas seções, a partir dos dados coletados, iremos discutir de que forma tem sido realizada a gestão da Rua 16 de Março como lugar de lazer, consumo e entretenimento para petropolitanos e visitantes.
3 Reinventando a Rua 16 de Março – comunicação, consumo e lazer no Centro Histórico de Petrópolis
Primeira via que recebeu intervenções do Pró-Centro, em 2003, a Rua 16 de Março passou a ser o centro de uma série de ações voltadas a uma nova revitalização, a partir de agosto de 2017. Um grupo de empresários se reuniu em torno da iniciativa, empreendida por uma agência de publicidade local, que contava ainda com a consultoria de uma profissional da área de Turismo.
Em seu escopo constam intervenções estéticas e apresentações culturais (como performances de música e teatro), além da criação de uma identidade visual e de perfis e páginas em redes sociais virtuais. O consumo dos bens materiais, sobretudo o consumo de elementos tidos como luxuosos, tais como viagens, carros, joias, vinhos, grifes de bolsas e sapatos, proporciona aos sujeitos que os adquirem condição especial frente aos demais membros da sociedade. Incorporam-se a partir do consumo, na verdade, os significados simbólicos que são atribuídos a essas mercadorias (HEILBRUNN, 2005). O objetivo, segundo os empreendedores, seria a transformação da Rua 16 de Março em um corredor cultural com potencial para conquistar o turista e o petropolitano[6].
Em agosto de 2017, o projeto foi iniciado com o evento “16 das Flores”, cujo intuito era “celebrar a chegada da Primavera”[7]. Durante dois meses, a Rua recebeu cestos de flores, jardineiras, placas com a identidade visual do projeto e atrações culturais. Após esse período, a Rua 16 de Março passou a se preparar para a chegada do Natal com ornamentos típicos e performances culturais em diversos dias e horários da semana. Em dezembro, integrando a programação do “Natal Imperial”[8], foi instalado na 16 um túnel de luzes, que eram acesas durante a noite ao longo de todo o mês.
Como mostra Everardo Rocha, (2010) o consumo dos signos/anúncios acaba, em muitos casos, sendo mais importante do que o consumo do produto em si. A partir da publicidade é possível identificar estilos de vida e propagar os modelos que são sugeridos aos sujeitos sociais e devem ser seguidos pela sociedade. O autor discute o universo mágico e mítico apresentado nas campanhas publicitárias segundo a lógica totêmica (2010). Dessa forma, a publicidade articula a passagem do mundo natural ao mundo cultural, transformando produtos homogêneos e seriados em produtos diferenciados e dotados de identidade própria. Além de distinguir e valorizar o sujeito perante os integrantes de seu grupo, o consumo opera como elemento de diferenciação de lugares, promovendo-os no cenário de competitividade por investimentos e visitantes. No caso da Rua 16 de Março, o consumo funciona tanto na produção de sentidos quanto na estruturação do atrativo turístico que se encontra em consolidação na localidade.
No início de 2018 ocorreu a mudança da empresa gestora do projeto da Rua 16 de Março, bem como alterações entre integrantes e parceiros que deixaram ou passaram a fazer parte da iniciativa. Datas especiais, como o Carnaval, o Dia das Mães e o Dia dos Namorados, continuaram a serem lembradas por meio de ornamentação especial e atrações culturais no local. Entretanto, atualmente o projeto não conta com consultoria específica na área de Turismo.
Na ótica de seus gestores, a Rua 16 de Março deve receber ações voltadas ao seu alinhamento de acordo com as tendências e exigências do cenário competitivo das localidades turísticas nacionais e estrangeiras. São essas as perspectivas que iremos discutir adiante.
4 Uma nova imagem para a Rua 16 de Março
O grupo de empresários que iniciou, em 2017, o novo projeto de revitalização da Rua 16 de Março, ao utilizar como ponto de partida estudos de casos de outras localidades, estabeleceu diretrizes para as ações a serem implementadas no local. A imagem assumiu caráter central no posicionamento desses gestores, como se observa neste fragmento, retirado de uma matéria de divulgação da inauguração do projeto:
A criação de uma identidade visual própria é o primeiro passo para fortalecer a experiência estética e tornar a via uma referência cultural. No projeto, estão previstos diversos festivais – das flores, das frutas, dos livros – para tornar a rua um espaço que vai além do centro comercial. Atrações musicais e exposições de fotografia e poesia são outras ideias que estão sendo planejadas[9].
A preocupação com a apresentação estética da 16 se aproxima das reflexões de Lipovetsky e Serroy (2015) sobre a atratividade que apela aos novos consumidores, seduzidos pela ambiência agradável dos centros comerciais urbanos. A mesma orientação para a imagem pode ser encontrada no seguinte trecho, retirado da entrevista realizada com uma das gestoras atuais do projeto:
A identidade que a rua transparecia precisava apenas ser imposta e apresentada ao cidadão petropolitano e, logicamente, ao turista. Para tanto, acrescentamos mais alguns valores (intervenções artísticas e decoração periódica), para ainda mais enfatizar o conceito, e promovemos a mensagem em diversas mídias (informação verbal).[10]
A associação entre a identidade da Rua 16 de Março e a necessidade de fortalecê-la por meio de ambientações especiais e da promoção midiática ficam claras no discurso da gestão atual – o que nos permite retomar as ideias de Reis (2017) a respeito da criação de marcas para promover lugares a partir de seus elementos identitários e de suas imagens. Além disso, tal alinhamento se constrói em consonância com os apontamentos de Ambrozio (2013) sobre as iniciativas de enobrecimento das áreas centrais da cidade de Petrópolis, a fim de potencializar seu valor de troca.
Apesar da ênfase no consumo de produtos de luxo, na 16 de Março diferentes estilos de vida traduzem a diversidade do quadro urbano. Em uma perspectiva mais estruturalista, sem que isso implique uma total ruptura com a ação e a criatividade, Pierre Bourdieu (1976, p. 19-20) nos auxilia na compreensão desse quadro, ao equacionar consumo ou estilo de vida com a origem e a posição de classe: “O estilo de vida das classes populares deve suas características fundamentais, compreendendo aquelas que podem parecer como sendo as mais positivas, ao fato de que ele representa uma forma de adaptação à posição ocupada na estrutura social. [...]”. Bourdieu (1976) ainda menciona que os estilos de vida e objetos materiais que se deve ou não consumir são disseminados pelas camadas altas e médias. Assim, as classes populares copiam, adaptam e muitas vezes fazem uso da falsificação para estar dentro dos padrões de consumo propostos pelas elites.
Em outro relato, de um dos gestores iniciais do projeto, destaca-se a necessidade de comunicar a nova imagem criada para a Rua, bem como de reforçar os elementos já considerados positivos:
A 16 de Março já tem uma alma própria, a relação com o petropolitano é muito positiva, tem uma imagem muito bem construída. Nós queremos estreitar ainda mais esses laços, tornando o elemento cultural da rua algo ainda mais forte. Um ponto que nós tocamos é sobre existir apelo visual, o visitante ter o que ver aqui. Hoje, a geração da imagem é muito importante tanto para o turista quanto para o morador. A pessoa prioriza a imagem que vai gerar, e depois vive a experiência de fato. Por isso é importante a rua ser essa geradora de imagem. As ferramentas de comunicação digital são um braço desse processo[11].
Na visão de alguns gestores, imagem, comunicação e identidade cultural se associam para proporcionar experiências entre moradores e visitantes, em conformidade com os postulados da economia e do turismo criativos (REIS, 2017; OLIVEIRA & REIS, 2017).
A importância da veiculação da imagem e do uso de recursos de publicidade em mídias digitais se alinha ainda às reflexões de Rocha (2010) sobre o consumo do signo em detrimento do próprio objeto. Os dados que coletamos apontaram ainda outros fatores que merecem destaque, como a promoção do lazer, do consumo e de experiências de valor simbólico entre os frequentadores da Rua.
5 Promovendo a 16 como shopping a céu aberto
Antes da implantação do novo projeto de revitalização, a Rua 16 de Março já era considerada um importante centro de compras do Centro Histórico de Petrópolis. Na fala da gestora entrevistada, esse imaginário é enfatizado:
Há muito que a Rua 16 de Março já havia se tornado o destino de compras da família petropolitana. Enxergamos a rua como um local aprazível e charmoso, diante de sua excelente localização e qualidade de serviços e produtos que as lojas por ali sempre ofereceram. [...] A Rua, que sempre foi escolha de destino para compras e caminho para o morador local, agora se estabelece como corredor cultural e destino de compras para o turista (informação verbal).[12]
Esse fragmento permite identificar elementos de significação do espaço urbano ligados ao consumo, tanto entre os moradores quanto para os visitantes. Ao exaltar as características de destino de compras da 16 de Março, a gestora destaca o consumo como aspecto de construção da identidade da Rua e fator de ordenamento social.
No relato de outra gestora, surge uma referência comum quando se trata da Rua 16 de Março – a alusão a um shopping a céu aberto: “Reconhecemos nosso polo de compras como um shopping a céu aberto e buscamos estar sintonizados com estas novas inclinações. Pretendemos oferecer ambientes mais criativos e experimentais, com atrações que tragam conhecimento, entretenimento e vivências”[13].
O ideal de reconhecimento da 16 de Março como shopping center – partindo dos apontamentos de Freitas (2004) – representa o conjunto de significados que se procura construir por meio do projeto de revitalização local, permitindo ao usuário que encontre no mesmo espaço opções para compras, lazer e distinção em relação a outros lugares da cidade. Na ausência de um shopping tradicional na cidade, a Rua 16 de Março se propõe como alternativa a quem procura os atributos comuns aos centros comerciais, com o diferencial de oferecê-los a céu aberto, dentro do conjunto arquitetônico turistificado do Centro Histórico de Petrópolis.
Além da orientação comercial, vários relatos de gestores da Rua apresentam discursos relacionados à promoção de experiências, emoções e criatividade:
Formular momentos únicos e memoráveis só é possível, atualmente, considerando o componente emocional, promovendo a interatividade com os clientes, trabalhando a tematização e oferecendo acontecimentos exclusivos. Isso que estamos trazendo para cá.[14]
“O cliente quer ter experiência em um ambiente agradável, onde ele se sinta bem, se emocione e se encante[15]”; “Temos como objetivo transformar a Rua não só em um grande polo de vendas e turismo, como um corredor cultural, levando sempre aos passantes a experiência dos sentidos, da emoção e bem-estar” (informação verbal).[16]
Percebe-se nestes fragmentos o direcionamento dos gestores da 16 de Março para as diretrizes da economia criativa (REIS, 2017), em que se privilegiam os aspectos ligados à cultura local, bem como às atrações culturais e ao consumo emocional.
A proposição da Rua 16 de Março como espaço de consumo, a partir da variedade de produtos e marcas voltadas ao consumo de luxo (AMBROZIO, 2013), permite situá-la como arena de promoção de relações sociais que se fundamentam também em trocas de valor, posição e status social. A partir do pensamento de Bourdieu, Herpin (2004) assinala que o consumo de bens de luxo pelas camadas altas da sociedade não significa maior liberdade de ação ou escolha, ao contrário. Não repetir as roupas da estação anterior, mesmo se elas ainda se encontram em bom estado e são preferidas, ou portar roupas da moda ainda que não atendam a seus gostos, são algumas das obrigações impostas pelo fato de pertencer a uma classe economicamente privilegiada, destaca Herpin (2004). Nesse sentido, a Rua 16 de Março se apresenta como local de criação e reprodução de dinâmicas sociais pautadas em determinadas práticas de consumo, de acordo com padrões estabelecidos por um grupo social.
Ainda de acordo com Bourdieu (1976), podemos interpretar o projeto como um aglomerado de iniciativas que proporcionam identificação entre os frequentadores da Rua a partir de seus gostos e posições sociais, apresentando um estilo de consumo que se converte, enfim, em um estilo de vida.
6 Considerações finais
No cenário de competição de marcas e atrativos ofertados pelas cidades, as expressões culturais, as práticas de lazer e as dinâmicas de consumo possibilitam sua diferenciação e seu posicionamento de acordo com parâmetros oriundos do mercado. As cidades, mercadorias e espetáculos midiatizados, apresentam cenários em que os valores estéticos e a fruição performada (SIQUEIRA, 2017) se impõem como elementos de relevância nas estratégias de gestão pública e privada do espaço urbano.
O caso da Rua 16 de Março ilustra a forma como uma via, espaço de passagem, vivência e encontro, pode se transformar a partir da implantação de iniciativas de valorização conformes às tendências mundiais de estruturação de cidades criativas. Na ótica dos gestores atuais da Rua, ficou clara a busca por incrementar a imagem local por meio de atrações culturais e de experiências que mobilizam as emoções, atraindo o usuário (considerado cliente) para que permaneça durante mais tempo no local. Além de conferir valor à experiência do visitante, os gestores disseram acreditar que o projeto possa trazer benefícios diretos ao comércio, a partir do aumento no volume de vendas realizadas durante as ações empreendidas.
Os dados analisados demonstram ainda a ênfase nos discursos ligados à promoção do turismo local – as atividades desenvolvidas na Rua se direcionam aos moradores, passantes e visitantes que, na ótica dos gestores, devem perceber a 16 de Março como mais uma atração ofertada pela cidade. A ambientação temática em datas comemorativas e a realização de performances artísticas interativas compõem parte do atrativo, que integra os roteiros turísticos de alguns guias pelo Centro Histórico.
A Rua 16 de Março se propõe como espaço de fruição em que os conflitos do cotidiano na cidade pouco aparecem, bem como as contradições e mecanismos de exclusão social evidenciados pelas lógicas de divisão de espaços de consumo e turismo em Petrópolis. A Rua, reconhecida por alguns gestores como espaço diferenciado, distingue-se de outros lugares da cidade em virtude não somente de seu ordenamento espacial, mas, sobretudo, de um posicionamento estratégico que a direciona para um conjunto específico de práticas culturais e relações sociais. Essas dinâmicas, por sua vez, são oriundas do tipo de consumo material, imaterial e emocional que se promove na localidade.
Convém refletir, portanto, sobre os desdobramentos do atual projeto de revitalização da Rua 16 de Março no sentido de apropriação, ocupação e pertencimento desse espaço pelo petropolitano, que nem sempre encontra no comércio e no turismo do Centro Histórico da cidade aspectos que integram seu cotidiano. Nesse sentido, seria esta iniciativa de fato uma forma de revitalização, como defendem seus gestores, ou um empreendimento de transformação do espaço em centro comercial afeito aos modelos padronizados dos shopping centers? Como uma das principais vias da cidade, a 16 hoje representa um espaço de convívio e de construção de memórias entre os moradores de Petrópolis? Estes são questionamentos para discussões posteriores, que podem ser desenvolvidas a partir desta primeira reflexão.
As perspectivas aqui apresentadas, por meio das óticas dos gestores da Rua 16 de Março, constituem somente uma das diferentes visões sobre esse espaço, rico em possibilidades de desenvolvimento de imagens e socializações para além do consumo e de práticas turísticas que possam promover formas de exclusão espacial e social.
Referências
AMBROZIO, Júlio. Petrópolis: o presente e o passado no espaço urbano – uma história territorial. Petrópolis: Escrita Fina, 2013.
BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: HUCITEC, 1994.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classes e estilos de vida. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 5, out. 1976, p. 18-43.
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Notas