O alarmismo no discurso da TV e no cotidiano do público

The alarmism in the TV speech and in the daily life of the public

Jeferson Bertolini
UFSC, Brasil

O alarmismo no discurso da TV e no cotidiano do público

Interin, vol. 24, núm. 2, pp. 119-134, 2019

Universidade Tuiuti do Paraná

Recepção: 22 Fevereiro 2019

Aprovação: 29 Maio 2019

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apurar como se manifesta um possível discurso alarmista de programas de televisão relacionados a saúde e bem-estar e como esse se reflete no cotidiano do público. Trata-se de resultados de pesquisa relacionada ao assunto que emprega a análise de conteúdo do programa Bem Estar, da Rede Globo, bem como se baseia em observação participante com clientes de supermercado e alunos de academia de ginástica, pois entende-se que este público representa pessoas que cuidam da saúde por meio da alimentação e da prática de atividade física. A intenção é analisar o discurso alarmista da TV e se o discurso do público contempla elementos do eventual alarmismo. Conclui-se que o programa analisado emprega discurso de alerta ao público sobre riscos à saúde e, ao fazer isso, colabora com o dispositivo biopolítico da segurança da população.

Palavras-chave: Alarmismo, Televisão, Saúde, Bem Estar, Biopolítica.

Abstract: This article presents research results about the alarmism in the discourse of Brazilian TV and in the daily life of the public. The program Bem Estar, by Rede Globo (first of its kind in Brazil) and supermarket clients and gymnastic students were analyzed (they are what are called public here, they are examples of people who take care of their health through food and physical activity). The work crosses content analysis and participant observation. The objective is to determine if the TV speech is alarmist, and if the daily life of the public contemplates this alarmism. The manuscript concludes that Brazilian TV uses alarmism to alert the public about health risks and, in so doing, collaborates with the biopolitical device of population safety.

Keywords: Alarmism, Television, Health, Bem Estar, Biopolitics.

1 Introdução

Este artigo apresenta os resultados de um estudo sobre o alarmismo no discurso de programas de TV relacionados a saúde e bem-estar e no cotidiano do público. O texto se baseia em análise de conteúdo do programa Bem Estar, da Rede Globo (foi o primeiro da TV aberta brasileira a tratar de saúde e bem-estar, ao vivo, diariamente) e observação participante com clientes de supermercado e com alunos de academia de ginástica (representam exemplos de pessoas que cuidam da saúde pela alimentação e pela atividade física; formam o que aqui se chama público).

Neste trabalho, alarmismo é o tom que norteia o discurso (o discurso alarmista tenta fisgar a atenção da audiência pela noção de risco, sobretudo o risco de morte). Discurso é o conjunto de enunciados (falas de convidados e jornalistas, entrevistas, reportagens etc.) veiculados na TV. Cotidiano é o conjunto de práticas diárias comuns aos indivíduos de uma determinada população. Público é o conjunto heterogêneo de indivíduos de uma população, expostos à mídia de maneira direta ou indireta.

Este estudo analisa a questão pelo prisma da biopolítica. Biopolítica é uma forma indireta de governar a vida das pessoas, iniciada no século XVIII, que incide sobre o corpo da população como um todo na tentativa de regulá-lo e potencializá-lo.

Na obra de Foucault (2012), autor referência neste texto, a biopolítica se inscreve em cinco formulações: medicina (o médico cria normas para regular a população), sexo (o dispositivo da sexualidade surge como forma de higienizar os corpos e de controlar a população), guerra (prevê a purificação da raça considerada superior e a vitória desta sobre as demais), economia (é impossível pensar o governo da população sem considerar o viés econômico) e segurança (tudo o que ameaça a segurança da população deve ser evitado).

O alarmismo analisado neste estudo se enquadra especificamente na formulação biopolítica da segurança: na perspectiva desta pesquisa, o discurso alarmista de programas de TV sobre saúde e bem-estar tenta afastar aquilo que ameaça a segurança da população (como o consumo de açúcar, que causa diabetes e, por sua vez, representa um risco à saúde).

No Brasil, programas de TV sobre saúde e bem-estar tornaram-se comuns a partir de 2000, quando Drauzio Varella iniciou uma parceria com o dominical Fantástico, da Rede Globo, apresentando a série Viagem ao corpo humano. A aceitação pela audiência foi tamanha que, em 2011, a emissora criou um programa diário para tratar do tema, o Bem Estar.

Este trabalho usa, como metodologia, a análise de conteúdo do programa Bem Estar (para apurar se o discurso veiculado é alarmista) e a observação participante com clientes de supermercado e alunos de uma academia de ginástica (para apurar a noção de alarmismo no cotidiano dessas pessoas, aqui chamadas de público; esses estabelecimentos foram escolhidos porque são onde as pessoas compram alimentos e exercitam o corpo; onde, portanto, atentam à saúde e podem demonstrar comportamento compatível com o discurso alarmista da TV).

Este é um estudo interdisciplinar, pois associa temas da Filosofia e de outras ciências humanas à Comunicação Social. A interdisciplinaridade “não é um método novo; é uma estratégia eficiente para a compreensão, interpretação e explicação de temas complexos” (MINAYO, 2010, p. 441).

O texto está dividido em quatro seções, a partir da “introdução”. A primeira detalha a metodologia do estudo. A segunda traz exemplos de frases extraídas do Bem Estar que, para este estudo, contêm tom alarmista. A terceira apresenta exemplos de frases extraídas de conversas com o público observado. A quarta destaca apontamentos bibliográficos sobre risco/alarmismo.

O presente artigo conclui que o referido programa de TV sobre saúde e bem-estar aposta no alarmismo para alertar a população sobre riscos à saúde. Ao fazer isso, o programa em questão colabora com a formulação biopolítica da segurança da população (mais que preservar a população, este dispositivo tenta proteger as pessoas de todo tipo de ameaça para que vivam mais, produzam mais e consumam mais).

2 Metodologia

Este estudo usa duas técnicas de pesquisa: (a) análise de conteúdo (para apurar se o discurso de um programa de TV sobre saúde e bem-estar é alarmista) e (b) observação participante (para apurar se o cotidiano do público contempla o alarmismo visto na TV).

A análise de conteúdo foi aplicada ao programa Bem Estar, da Rede Globo, por este ter sido o primeiro programa da TV aberta brasileira a tratar, ao vivo e diariamente, sobre saúde e bem-estar. Foram analisados 81 programas (33,19% dos exibidos em 2016). Escolheu-se o primeiro mês cheio de cada uma das quatro estações do ano: janeiro (verão), abril (outono), julho (inverno) e outubro (primavera). Foi adotado o modelo de análise de conteúdo proposto por Bardin (2010), que prevê três polos: pré-análise (leitura flutuante, escolha dos documentos, formulação dos objetivos, elaboração dos indicadores e preparação do material), exploração do material (prevê a transformação de dados brutos em uma representação de conteúdo) e tratamento dos resultados (análise dos dados). “A análise de conteúdo é um conjunto de instrumentos metodológicos que se aplica a discursos extremamente diversificados; que absolve e cauciona o investigador pela atração pelo escondido, o latente, o não aparente” (BARDIN, 2010, p. 7).

O programa Bem Estar foi criado em 2011. Em 2016, ano em que ocorreu a análise de conteúdo, era transmitido ao vivo, diariamente, e apresentado por dois jornalistas. Eles contavam com a participação de sete médicos consultores (pediatra, psiquiatra, ginecologista, dermatologista, oftalmologista, cardiologista e ortopedista), que participavam ao vivo, em sistema de revezamento, de acordo com a pauta. Em 2018, o Bem Estar atingiu, segundo a emissora, 5,8 milhões de telespectadores por dia. A audiência era formada por 68% de mulheres e 32% de homens. A maioria dos telespectadores era da classe C (47%), sendo que os demais eram das classes A e D (35%) e E (18%). A distribuição do público por faixa etária era: de quatro a 11 anos (4%), de 12 a 17 (6%), de 18 a 24 (7%), de 25 a 49 (42%) e maiores de 50 (41%). Em 2019, o programa deixou a grade de produtos jornalísticos da Rede Globo e foi rebaixado à condição de quadro em programas de entretenimento.

A observação participante foi feita no Supermercado Giassi e na Academia Racer. Ambos estão situados na Grande Florianópolis, que é a região mais populosa de Santa Catarina, com 1,5 milhão de habitantes (IBGE, 2018). Santa Catarina foi escolhida como local da pesquisa por ser o estado onde o autor deste estudo reside e por ter a maior longevidade do país, o que denota cuidado com a saúde: em 2016, segundo o IBGE, a expectativa de vida dos catarinenses era de 82,1 anos para mulheres e 75,4 anos para homens, contra 75,5 anos da média do país.

No supermercado, a observação foi feita nos meses de agosto, setembro e outubro de 2016, durante uma das maiores crises política e econômica da história recente do país, com forte controle dos gastos, inclusive com alimentação. O período não registrou anormalidades climáticas ou afins que pudessem causar escassez de determinados produtos (pela perda de lavouras) ou a compra em massa de determinados itens (como repelente, em caso de epidemia de mosquitos). Foi uma transição tranquila do inverno à primavera.

A observação foi feita em visitas ao supermercado – às vezes, duas por dia –, em horários alternados, com duração média de 45 minutos. Foram 90 visitas no período, que resultaram em 320 “situações” observadas (situações englobam diálogos entre pesquisador e pesquisado e diálogos entre pesquisados). Para abranger a maior variedade de clientes, as visitas foram feitas em horários e dias da semana alternados (o cliente que vai ao supermercado aos sábados costuma destoar daquele que faz compras durante a semana, assim como aquele que vai às 8h costuma ter um perfil consumidor diferente daquele que vai às 21h).

O procedimento adotado envolveu conversas com clientes: o autor deste trabalho, no papel de um consumidor comum, conversou com clientes sobre os seguintes tópicos: as expectativas deles em relação aos produtos; por que escolheram os itens que estavam na cesta; quais produtos gostariam de levar e não levaram; por que não levavam; os itens que passaram a comprar em busca de uma vida saudável; que produtos foram excluídos da lista de compras ante à expectativa de uma vida longeva; a reação às novidades da indústria alimentícia etc. As conversas envolviam, portanto, o contexto da vida saudável, com foco na alimentação dos clientes. Não descambaram para cuidados estéticos e produtos de beleza. Algumas duraram poucos minutos. Outras, quase uma hora.

O Giassi de Campinas atende majoritariamente pessoas da classe média. É frequentado por moradores de toda a Grande Florianópolis por abrigar, em suas instalações, casa lotérica, praça de alimentação, pet shop, salão de beleza, banca, chaveiro, relojoaria, loja de celulares, loja de instrumentos musicais, gráfica e floricultura.

Na academia, a observação foi feita nos meses de agosto, setembro e outubro de 2016. Trata-se de uma época do ano com alunos regulares, que demonstram preocupação com o corpo e com a saúde o ano inteiro, não apenas no verão. Foram 78 visitas no período, cada uma com duração entre 45 e 75 minutos. Elas resultaram em 250 situações observadas (é importante registrar que o pesquisador frequenta academias há cinco anos, o que ajudou no trabalho, na interação com outros alunos, no diálogo com instrutores e afins).

Matriculado como aluno regular, o autor deste estudo treinou com outros alunos, de diferentes idades e classes sociais, durante o período analisado, procurando saber o que pensam sobre saúde, alimentação, cuidado com o corpo, vaidade, disciplina e afins. As conversas também envolveram instrutores e sócios da academia.

As visitas ocorreram em turnos alternados, para abraçar diferentes tipos de público (pela manhã, há uma predominância de donas de casa; à noite, há uma presença maior de jovens que procuram desenvolver mais músculos). Nas manhãs, além de conversas com pessoas se exercitando em esteiras e aparelhos de musculação, o pesquisador procurou assistir aos programas Bem Estar e Mais Você (a parte do programa destinada à elaboração de receitas) com frequentadores da academia. Nesse ponto, observou-se, principalmente, a reação dos alunos aos conteúdos apresentados na TV.

A academia escolhida é uma das mais tradicionais da Grande Florianópolis, tendo sido criada nos anos 1980. Tornou-se referência pela tradição comercial e pelas modalidades de treino, como musculação, natação, ginástica, bike indoor, dança aeróbica e artes marciais (são 26 modalidades de treino). A variedade de modalidades dá, à academia, um corpo de alunos com biotipos, idades e expectativas diferentes em relação ao treino: há quem queira emagrecer, ganhar massa muscular, melhorar o condicionamento físico, definir os músculos do corpo, aliviar o estresse, perder gordura localizada, praticar arte marcial etc. A unidade pesquisada tem um fluxo médio de 500 alunos por dia, com elevação nos meses de verão. O público majoritário é de classe média.

A observação participante é uma técnica etnográfica, sendo frequentemente equiparada à etnografia. Essa técnica consiste no contato direto do pesquisador com o fenômeno observado, para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seu próprio contexto. “A ideia é que, mediante sua presença, o pesquisador pode observar e registrar, de uma posição privilegiada, como as coisas são feitas, quem as realizam, como e onde” (RESTREPO, 2010, p. 12).

3 O alarmismo no Bem Estar

Esta seção apresenta exemplos de frases extraídas do Bem Estar que, para este trabalho, apresentam um traço de alarmismo. No programa, fala-se em risco de mortecomo forma de preservar a vida: “Outra coisa que pode acontecer na viagem de avião é a trombose. Ela vai para o pulmão e a pessoa pode morrer”, diz um médico ao falar sobre riscos à saúde no avião (07/01, sobre viagem de férias); “Toxina botulínica pode matar em poucos dias”, diz uma química (12/01, sobre conservantes nos alimentos); “Colesterol alto provoca derrame”, diz um médico (26/01, sobre colesterol); “Colesterol alto provoca infarto”, diz um médico (26/01); “Nova ameaça: vírus da zika é sexualmente transmissível”, diz uma mensagem exibida na tela (25/04, sobre zika).

O alarmismo também leva em conta o número: “Desde o início do programa, 753 pessoas foram diagnosticadas com diabetes; 174 morreram de problemas do coração provocados pelo diabetes”, destaca um contador exibido no fim do programa (10/10, sobre diabetes); “A cada 45 segundos morre uma pessoa no Brasil por causa do colesterol. Desde o início do programa, dezenas de pessoas já morreram”, diz um cardiologista (26/01, sobre colesterol); “Todo mundo vai ter catarata um dia”, diz um oftalmologista (07/07, sobre relação entre celular e cegueira); “Quanto mais gente no mesmo lugar, maiores são os riscos de as pessoas se contaminarem”, diz um infectologista (21/01, sobre comida de praia).

O alerta às vezes procura evitar um problema: “Correndo, você pode evitar a cegueira”, diz um oftalmologista, encorajando consulta para identificar deslocamento de vítreo, problema que costuma ocorrer após os 50 anos de idade e cujos sintomas mais comuns são miopia, trauma ocular, inflamação ocular e flashes (05/10, sobre cegueira infantil); “Pessoas que bebem pouco líquido e comem muito sal têm mais chance de ter a doença”, diz um médico (28/01, sobre pedras nos rins); “Proteína em excesso pode formar pedra nos rins”, diz uma mensagem exibida na tela (28/01).

Às vezes, recorre-se aos sintomas para se alertar dos riscos: “Pessoas com enxaqueca de aura têm mais risco de AVC”, diz uma mensagem exibida na tela (20/01, sobre dor de cabeça); “Quem tem enxaqueca tem que se cuidar mais, porque nesse caso o risco é maior”, diz uma médica (13/07, sobre a relação entre enxaqueca e AVC); “Você enxerga embaçado? Cuidado, sua retina pode estar por um triz”, diz a apresentadora (05/10, sobre cegueira infantil); “Depressão aumenta o risco de doença cardiovascular”, diz um cardiologista (11/10, sobre como animais de estimação ajudam na saúde); “Ganhar peso é o principal risco para a pessoa ficar diabética”, diz um médico (19/04, sobre doces); “Se o consumo de vitaminas é baixo nessa fase da vida [infância], aumenta muito o risco de osteoporose numa fase da vida em que isso é muito importante”, diz um médico (06/10, sobre endometriose).

Os alarmes estão nas cenas exibidas ou nos roteiros: “Foram os piores quatro dias da minha vida”, diz o filho de um homem que morreu de gripe. A reportagem começa com cenas de velório (25/04, sobre zika); “O momento em que a gente mais precisa de tranquilidade [gravidez], acaba sendo mais tenso”, diz uma mulher com medo de dengue. A reportagem mostra ela trancada em casa, no calor do nordeste (25/04); “Está difícil”, diz o marido de uma babá que perdeu o emprego para cuidar da filha com microcefalia. A reportagem mostra o casal em dificuldades financeiras e destaca que os amigos fizeram uma “vaquinha” para ajudá-los a comprar comida (25/04); “Vamos voltar ao nordeste para ver o drama das mães”, diz o apresentador Fernando Rocha, em tom de abertura de noticiário, sobre grávidas com medo do mosquito (25/04); “Daqui a pouco: o zika deixa o mundo em alerta”, diz a apresentadora Michele Loretto, ao anunciar as atrações do próximo bloco (25/04). A reportagem mostra hospitais superlotados do nordeste, onde ninguém gostaria de estar.

O programa parece ver risco em tudo: “O risco também está nas brincadeiras e na hora de lazer”, diz uma repórter, em matéria sobre riscos à memória, após mostrar lutadores de boxe doentes de tanto levar pancada na cabeça (05/07, sobre perda de memória); “Brincar no shopping pode ser perigoso”, diz uma repórter (22/07, sobre os benefícios do ato de brincar).

O reflexo, entre os telespectadores, parece imediato: “Minha mãe diz: toma cuidado! Se você correr, você pode escorregar e quebrar a perna”, diz uma menina na piscina (13/07, sobre a relação entre enxaqueca e AVC).

4 O alarmismo no cotidiano do público

Esta seção apresenta exemplos de frases extraídas de conversas com o público pesquisado sobre alarmismo. No discurso do programa Bem Estar, como visto na seção anterior, o alarmismo aparece nos constantes enunciados de risco, sobretudo o risco de morte, e nos números que indicam alguma curva de perigo, como o percentual de pessoas que morrem por obesidade.

Entre os clientes observados, nota-se que o alarmismo causa insegurança e instala uma espécie de estado de medo. Isso influencia até situações cotidianas, como comer um chocolate (nota do autor: os mais vulneráveis diriam que chocolate tem açúcar e gordura, que esses produtos entopem as veias, que veia entupida pode provocar infarto e derrame, e que essas doenças são as que mais matam no país).

Em outra frente, o alarmismo parece fazer aumentar a submissão aos médicos e aos nutricionistas (representam a salvação), a esperança na ciência (aliada contra as intempéries), a confiança na disciplina alimentar e física (o sujeito depende dele mesmo) e a expectativa em relação aos produtos garantidores de saúde (protegem das ameaças).

Entre os clientes observados, o efeito do alarmismo é uma espécie de preocupação constante: “Rapaz, vai ao médico urgente. Isso dá derrame, dá infarto. Não perde tempo”, recomenda uma mulher adulta, cliente do supermercado, ao ouvir o autor deste estudo dizendo que teve 600 pontos de triglicerídeos, quando o normal são 150; “Tenho medo. Não como mais isso. A gente pode morrer dormindo”, diz um homem maduro, aluno da academia, sobre sorvete; “Não uso mais sal. Faz mal. Tempero a comida com limão. O sal aumenta a pressão. E pressão alta é meio caminho andado para o andar de cima [morrer]”, diz uma aluna da academia à amiga após ver na televisão a apresentadora Ana Maria Braga, do programa Mais Você, salgando uma salada.

O alarmismo parece influenciar mais quem convive com a doença ou com o medo dela: “Será que não é pneumonia?”, pergunta um homem ao colega de academia que se queixava de tosse insistente. “A gente não pode bobear. Para morrer, basta estar vivo”, completa ele; “Será que não é verme?”, pergunta uma mulher ao ouvir o autor deste estudo, na academia, reclamar de câimbra na barriga. “Não quero te assustar, mas já vi gente que teve parada cardíaca depois disso”, reforça ela; “Não deverias ir embora assim. Deverias procurar ajuda porque com saúde não se brinca. Às vezes a gente não trata no começo e quando percebe está com um problemão”, diz uma mulher idosa, de pele bem cuidada, à amiga de academia que interrompeu o treino por tontura.

Embora em número reduzido, nota-se, entre os clientes observados, uma consciência do alarmismo: “As pessoas assustam a gente com essa coisa de doença. A gente vai fazer um exame, alguma coisa, e todo mundo acha que a gente está doente, que vai morrer. É chato isso”, diz uma mulher adulta e magra, à colega de academia; “Eu gosto de ir ao médico e ver se está tudo bem. Mas acho que eles assustam a gente um pouco”, diz uma mulher ao instrutor de academia em conversa sobre exames periódicos; “Se a gente for deixar de comer e de fazer tudo o que dizem que faz mal ou é perigoso, a gente não vive. Fica em casa, trancado, com medo”, diz um homem adulto, cliente do supermercado, ao reencontrar um amigo e falar com ele sobre o assunto “doença”.

5 A noção humana de risco

O risco é uma constante na alimentação humana. Por um lado, há a necessidade de comer. Por outro, o perigo de comer aquilo que se desconhece. Essa dupla pressão guia o que Rozin (1976) chamou de paradoxo do onívoro. “Onívoros, como ratos e humanos, confrontados com um enorme número de potenciais alimentos, devem escolher sabiamente. Eles estão sempre em perigo de comer algo prejudicial ou comer muito de uma coisa boa” (ROZIN, 1976, p. 2).

Ao longo da história, acrescentam Contreras e Garcia (2011), a espécie humana tem oscilado entre a neofilia (tendência à exploração; necessidade de mudança e de novidade; variação) e neofobia (prudência; medo do desconhecido; resistência à inovação).

Em todo caso, enquanto as condições ecológicas e econômicas não permitiram garantir o abastecimento alimentar, a tendência foi incrementar os repertórios alimentares mediante a incorporação e a exploração de novos produtos (CONTRERAS; GARCIA, 2011, p. 333).

Em nossos dias, a preocupação com a alimentação ganha outros contornos: está nos excessos; nos produtos desconhecidos ou modificados geneticamente; nos colorantes, conservantes, aromas; está em tudo que a indústria alimentícia acrescenta ao alimento longe da vista dos consumidores. “Há que se admitir que estas inquietudes não se atêm somente aos perigos que nossos alimentos carregam em si, mas também a imaginação do comedor (...). Se não sabemos o que comemos, não sabemos o que iremos nos tornar” (FISCHLER, 1995, p. 13-70).

Em parte, isso se deve à incorporação de novas tecnologias à alimentação. Além disso, o aumento da concorrência mundial obrigou as empresas a inovarem e criarem novos produtos. Há, ainda, o desenvolvimento dos conhecimentos biológicos, que levou à manipulação genética da comida.

Desses novos produtos, a população conhece apenas os elementos finais de seus processos de produção, resultantes de uma autêntica caixa-preta. Sobre essa caixa-preta são projetados os sentimentos e atitudes de maior ou menor preocupação, ansiedade e segurança, pois nem os processos nem os produtos resultantes estão inscritos nas representações culturais apreendidas pelos diferentes grupos sociais (CONTRERAS; GARCIA, 2011, p. 333).

Neste contexto, o alimento processado, que chega à mesa do consumidor por meio da industrialização, é um fator de risco. Para Pollan (2008), todas as nossas incertezas sobre a nutrição não deveriam esconder o simples fato de que as doenças crônicas que agora matam a maioria de nós começaram com a industrialização de nossa comida: com o surgimento de alimentos altamente processados e grãos altamente refinados; o uso de produtos químicos para cultivar plantas e criar animais em enormes monoculturas; a superabundância de calorias baratas provenientes do açúcar e da gordura produzidos pela agricultura moderna; a redução da diversidade biológica da dieta humana a alimentos básicos, como trigo, milho e soja. “Estas mudanças nos deram a dieta ocidental que achamos natural: montes de alimentos e carne processados, montes de gordura e açúcar adicionados, montes de tudo, exceto hortaliças, frutas e grãos integrais” (POLLAN, 2008, p. 18).

O risco contido na alimentação e alertado pela mídia confere poderes a médicos e nutricionistas.

Comer é um ato que impõe fazer escolhas, decidir, mas também assumir riscos objetivos e simbólicos. Os vínculos entre a alimentação e a saúde, mas também entre a alimentação e a doença, são usados pelo médico moderno. A epidemiologia aponta, cada vez mais, os vínculos, a longo prazo, entre as patologias e as práticas alimentares (POULAIN, 2013, p. 95-97).

Além dos riscos de envenenamento, intoxicação e afins, o consumidor enfrenta ao menos três ambivalências ao se alimentar: a primeira opõe prazer e desprazer (a alimentação é uma fonte de prazer, mas pode causar sensações desagradáveis, como vômitos); a segunda confronta saúde e doença (o alimento é fonte de saúde, mas pode intoxicar e causar doenças); a terceira contrasta vida e morte (alimentar-se é uma necessidade vital, mas implica, na maior parte do tempo, na morte de animais) (BEARDSWORTH, 1990 apud POULAIN, 2013).

O risco retratado no programa Bem Estar não está só na alimentação. Está na água, no ar, nas roupas, na exposição ao sol, no cosmético, no tratamento desconhecido, na atividade física sem acompanhamento, no sexo desprotegido etc. Isso amplifica o efeito da palavra risco.

A mídia amplifica o sentido da palavra risco porque a usa como sinônimo das expressões risco relativo e excesso de risco, diferenciadas no meio médico (...). A onipresença da mídia e a sua capacidade de conferir visibilidade aos acontecimentos e às informações produzidas pela ciência desempenham papel fundamental no processo de ressignificação da noção humana de risco (LUIZ, 2006, p. 107).

A palavra risco ganhou conotação de perigo no século 16. Em linhas gerais, ela abrange duas dimensões: a primeira refere-se àquilo que é possível ou provável, em uma tentativa de apreender a regularidade dos fenômenos; a segunda está no âmbito dos valores econômicos e pressupõe a possibilidade de perda de algo (SPINK, 2003).

Em termos históricos, há dois processos que contribuem para a incorporação da noção de risco pela população: o primeiro tem relação com o avanço do Estado laico (deixa-se de acreditar no salvador e passa-se a temer o perigo); o segundo está atrelado às transformações nas relações econômicas (medo de perder capital) (SPINK, 2003).

O contexto histórico afirma ainda que a noção moderna de risco emerge no século 17, no contexto dos jogos de azar; é incorporada no século 18, pelo seguro marítimo, e pela economia, no século 19 (MARY DOUGLAS, 1992).

Atualmente, nota-se “uma progressiva expansão das fronteiras espaciais e temporais que fazem com que os riscos possam ser percebidos para além das subjetividades individuais, para além das fronteiras territoriais e até mesmo para além das fronteiras planetárias” (SPINK, 2002, p. 151).

Assim, a ideia de risco se amplia por conta de seu alcance global.

Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se de seus equivalentes medievais fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série do maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravado com seu desenvolvimento ulterior (BECK, 2010, p. 26).

Neste contexto, o risco se torna mercadoria à venda porque há os que são afetados e os que lucram com ele. “Necessidades podem ser satisfeitas, mas os riscos são um barril de necessidades sem fundo” (BECK, 2010, p. 28).

A mídia estaria do lado dos que lucram com o risco, pois pode vender prevenção ou solução ante as ameaças. “A sociedade do risco é também a sociedade da ciência, da mídia e da informação. Nela, escancaram-se novas oposições entre aqueles que produzem definições de risco e aqueles que as consomem” (BECK, 2010, p. 56).

Para Marcuse (1997, p. 13), todo o sistema capitalista ganha com o alarmismo e com a propagação do perigo, pois, “se tentarmos relacionar as causas do perigo com a forma pela qual a sociedade é organizada e organiza seus membros, defrontamos com o fato de a sociedade industrial desenvolvida se tornar mais rica, maior e melhor ao perpetuar o perigo.” Para o autor, a estrutura da defesa torna a vida mais fácil para um maior número de criaturas e expande o domínio do homem sobre a natureza. “Em tais circunstâncias, os nossos meios de informação em massa encontram pouca dificuldade em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos os homens sensatos” (MARCUSE, 1997, p.13).

Para Spink (2002), a mídia amplifica a noção de risco. “A mídia tem um papel fundamental nesse processo de ressignificação da noção de risco porque confere uma visibilidade sem precedente aos acontecimentos” (SPINK, 2002, p. 152).

5 Considerações Finais

Na obra de Foucault (2012), usado como referência neste estudo, o dispositivo da segurança envolve tudo aquilo que representa uma ameaça à vida da população. Esse dispositivo se apoia no pacto histórico firmado entre população e Estado. “O que o Estado propõe como pacto à população é: vocês estarão garantidos. Garantidos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, dano, risco” (FOUCAULT, 2008, p. 385).

No plano prático, a segurança da população é uma forma de gestão de casos, riscos, perigos e crise. Caso é aquilo que integra, no interior de um campo coletivo, os fenômenos individuais. Risco é a probabilidade de algo dar errado. Perigo está ligado a fatores de risco. Crise é uma disparada circular que só pode ser controlada por um mecanismo natural e superior, que vai freá-la, ou por uma intervenção artificial (FOUCAULT, 2008, p. 79).

Este trabalho conclui que, nos dias de hoje, quando os segredos do corpo humano são destrinchados em programas de TV sobre saúde e bem-estar, o dispositivo da segurança se apoia na mídia. É por meio da mídia que a população toma conhecimento daquilo que lhe ameaça, do risco a que está submetida comendo este ou aquele alimento ou deixando de fazer atividade física, para citar tópicos recorrentes neste trabalho.

A análise de conteúdo mostrou que o discurso do programa Bem Estar contém traços de alarmismo: na amostra analisada (81 programas), este estudo identificou 195 enunciados alarmistas (média de 2,41 enunciados por programa). Como visto, o alarmismo está nos alertas feitos pelo Bem Estar sobre os riscos a que a população está exposta, como o risco de morrer ou de contrair determinada doença.

A observação participante com clientes de um supermercado e alunos de uma academia mostrou que o cotidiano dessas pessoas (tomadas, neste trabalho, como exemplo de público) contém elementos desse alarmismo observado na TV. Significa que, em tarefas do dia a dia, os pesquisados demonstraram incorporar o que é apresentado na TV como perigoso e passaram a orientar escolhas relativas à saúde pela noção de risco (exemplo: excluir ou evitar comer batata frita pelo risco de infarto devido ao excesso de gordura no sangue).

Não se fez, neste trabalho, um estudo clássico de recepção. Não se procurou apurar se o que é dito pela TV influencia o público. Apenas se observou no público o mesmo gabarito analisado na TV. Entretanto, embora não tenha buscado medir a influência da mídia, este trabalho observa que, mesmo as camadas da população não expostas a ela de maneira direta, são tocadas de maneira indireta, via amigos, família etc. Afinal, “os processos de comunicação sofrem a influência dos meios de comunicação de massa, seja de modo direto, seja em maior escala através dos líderes de opinião” (HABERMAS, 1978, p. 197).

Referências

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BECK, U. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade; tradução de Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010

CONTRERAS, J.; GRACIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011

FISCHLER, C. El (h) omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo; tradução de Mario Merlino. Barcelona: Anagrama, 1995

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2012

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Notas

[1] Disponível em: . Acessado em: outubro de 2017
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