Resumo: O mercado de games retrô constitui o objeto empírico deste artigo, que se caracteriza como resultado parcial de pesquisa em andamento voltada para a compreensão das relações entre memória, identidade e consumo de games, no mercado brasileiro. Buscamos explicitar alguns nexos entre memória social e o consumo de jogos digitais retrô, entendendo que a constituição das memórias individuais e sociais são processos comunicativos e afetivos. Como percurso argumentativo, apresentamos, na primeira parte deste artigo, algumas considerações sobre o conceito de memória social, bem como sobre fenômeno contemporâneo de “cultura da memória”, conforme trabalhado pelo historiador Andreas Huyssen. Em seguida, tratamos de iluminar alguns pontos sobre os sentidos mobilizados no processo de consumo dos jogos retrô.
Palavras-chave:Games retrôGames retrô,MemóriaMemória,IdentidadeIdentidade,ConsumoConsumo,ComunicaçãoComunicação.
Abstract: The retro games market is the empirical object of this paper, that is characterized as a partial result of ongoing research aimed to understand the relationships between memory, identity and game consumption, in the Brazilian market. It seeks to explain some nexus between social memory and the consumption of retro digital games, perceiving that the constitution of individual and social memories are communicative and affective processes. As an argumentative course, it presents, in the first section, some considerations on the concept of social memory, as well as on contemporary phenomenon of "memory culture", according to the historian Andreas Huyssen. Then it tries to enlighten some matter about the senses that are mobilized in the process of retro games process consumption.
Keywords: Retro games, Memory, Identity, Consumption, Communication.
Identidade, nostalgia e memória afetiva no consumo de videogames retrô
Identity, nostalgia and affective memory in the retro video games consumption
Recepção: 19 Abril 2018
Aprovação: 08 Outubro 2018
O mercado de games retrô constitui o objeto empírico deste artigo que se caracteriza como resultado parcial de pesquisa em andamento voltada para a compreensão das relações entre memória, identidade e consumo de games no mercado brasileiro.
O que denominamos mercado de games retrô envolve uma complexa faceta da pujante indústria de videogames e é composta por diversas linhas de bens e de produtos midiáticos, como o (re) lançamento de jogos e consoles populares nas décadas de 1980 e 1990 (Master System e Mega Drive); a produção de réplicas compactas de plataformas clássicas de 8 e 16 bits (NES Classic Edition, SNES Classic Edition); jogos que emulam estéticas e mecânicas retrô; uma variada gama de emuladores para computadores pessoais e smartphones; um dinâmico mercado de itens usados; bem como múltiplas linhas de produtos – como camisetas, livros, quadrinhos e brinquedos – que resgatam ícones, personagens, jogos e marcas clássicas da cultura gamer.
Esse mercado vem crescendo consideravelmente nos últimos anos, conquistando diversos tipos de consumidores. Muitos deles buscam experiências que remetem à infância e juventude, enquanto outros, mais novos, buscam conhecer os jogos e consoles clássicos de que tanto ouvem falar – através dos meios de comunicação e da boca de amigos e familiares. Em ambos os casos, um dos elementos centrais desse consumo é o acionamento de memórias afetivas socialmente compartilhadas tanto por quem vivenciou as décadas de 1980 e 1990 quanto pelos que nasceram depois do auge das plataformas de 8 e 16 bits.
A despeito de ainda representar uma parcela bastante pequena do mercado mundial de videogames, consideramos que o mercado de jogos retrô é uma faceta cultural bastante significativa que pode ser abordada de forma analiticamente fértil pelo campo de estudos de comunicação e consumo.
Como procedimento para os resultados aqui apresentados, lançamos mão de análise de contextos socioculturais e mercadológicos que atravessam os processos de produção e de consumo de games retrô. Esse procedimento foi amparado pela análise de casos de jogos e pela compreensão dos sentidos mobilizados pelos jogadores (as)[1] em seus usos e apropriações de jogos retrô, conforme pudemos observar em nossa atuação acadêmica e profissional.
Como referencial teórico, nos amparamos na compreensão de que o consumo não deve ser visto como um ato meramente induzido nos consumidores pela publicidade e por interesses comerciais. Na discussão que propomos, o consumo deve ser entendido como
o resultado de um conjunto de práticas sociais e culturais fortemente relacionados às subjetividades dos atores e ao grupo social ao qual pertencem. Imersos nessas culturas do consumo, nós criamos identificações, construímos identidades, reconhecemos nossos pares e somos reconhecidos socialmente. Quando consumimos, não estamos apenas admirando, adquirindo ou utilizando determinado produto ou serviço. Estamos comunicando algo e criando relações com tudo e todos os que estão à nossa volta (CASTRO, 2014, p.60).
Castro (2014, p.60) entende que o consumo é um campo plural e que hoje “não seria correto falarmos em cultura, mas culturas do consumo”. Corroborando essa ideia, Sassatelli (2010, p.193) destaca que as lógicas de consumo que permeiam essas culturas geram uma miríade de consumidores que compram, usam, estocam, mantêm, gerenciam e fantasiam com mercadorias, ainda que se possa questionar até que ponto realmente se concebem como consumidores enquanto executam essas variadas atividades no dia a dia. O consumo está impregnado no cotidiano. Consumimos produtos, mas também consumimos conteúdos, ideias, simbolismos e imagens. Retomando Castro (2014), o consumo é plural ou multifacetado porque está presente em diferentes situações que nos cercam no dia a dia. Consumimos não somente quando compramos algo em uma loja, mas quando navegamos na internet ou nos movimentamos pela paisagem urbana.
Além do mais, nos servimos das conceituações apresentadas pelos campos da Psicologia, da História e da Comunicação acerca dos processos de constituição das memórias individuais e sociais. Baseados no trabalho de Nunes (2016, p.148), consideramos neste trabalho a memória tanto como um processo comunicativo sociocultural quanto como um processo memético-afetivo.
Como trilha expositiva deste texto, apresentamos, na primeira parte, alguns apontamentos conceituais e contextuais sobre a interface memória/cultura. Aqui, em primeiro lugar explicitamos algumas relações entre memória, identidade e afetos, para em seguida apresentarmos as dimensões relativas à cultura da memória no capitalismo contemporâneo – neste tópico mostramos como a aceleração do tempo na contemporaneidade é complementada por um amplo desejo social pelo resgate do passado e das tradições.
Na segunda parte deste texto, tratamos das dimensões culturais e mercadológicas que atravessam os videogames retrô. Nesta seção, estabelecemos alguns pressupostos que julgamos basilares acerca das dinâmicas de consumo dessa modalidade de jogos.
Enquanto faculdade de reter certas informações, a memória remete a um conjunto de faculdades psíquicas e biológicas que permitem que o ser humano possa representar ou atualizar acontecimentos passados, ou que ele julga passados (LE GOFF, 2000, p. 354).
Os campos da História e da Psicologia nos mostram que a produção da memória é um processo essencialmente ativo no qual está implicado o indivíduo e que envolve uma série de rearranjos, seleções, vieses, esquecimentos, recortes e construções narrativas. Longe de ser a marca objetiva do passado, a memória se dá em função do contexto presente em que ela é produzida (LE GOFF, 2000, p. 354; BOSI, 2003).
O intelecto humano é incapaz de se recordar de todos os momentos de nossa vida. Nesse sentido, o esquecimento é uma faceta constitutiva da memória. Quando lembramos, lembramos pontos de nossa vida. Essas lembranças são permeadas de sensações (boas ou ruins) e são entrecruzamentos de representações do passado que permeiam nossa vida e a cultura na qual estamos inseridos.
A esse respeito sintetiza Nunes (2016, p.249):
Seja como sistema neurobiológico, químico, psíquico, cognitivo, isto é, como faculdade individual, seja como expressão das sociedades e culturas humanas, o trabalho da memória jamais será o resgate de um dado estanque, mas a recuperação processual e dinâmica, uma construção sobre as imprecisões e os escombros do tempo vivido. A memória, em seus tantos estratos, redesenha liames e limites esgarçados entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade.
Conforme nos mostra Bosi (2003, p.36), a partir das reflexões do filósofo francês Henri Bergson, a memória tem um papel fundamental na existência humana, “já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações”: enquanto força subjetiva, as lembranças incidem diretamente nas percepções e valorações atuais. Em outros termos: a memória, fruto de uma trajetória de vida singular, é “o lado subjetivo de nosso conhecimento do mundo” (BOSI, 2003, p.36) – um dos principais substratos da consciência de si e da realidade.
Ao estar diretamente ligada à constituição da identidade e à percepção de quem somos, a memória individual é atravessada por afetos. Conforme nos ensina o filósofo holandês Espinosa, os humanos são seres fundamentalmente constituídos pelos afetos (pelas paixões). Isso significa, sem desconsiderar a importância de nossas faculdades racionais, que nossa relação com o universo físico e social é guiado pela nossa relação afetiva com o que nos cerca. De maneira resumida e parcial, para o filósofo a essência do humano é buscar o contato com coisas e seres que ele imagina aumentar sua felicidade e evitar o contato com as coisas e seres que imagina lhes causem tristeza. No primeiro caso, amamos essas coisas e intentaremos conservar o máximo possível a presença dessas coisas em nossa vida; no segundo caso, odiamos essas coisas e sempre que possível nos esforçaremos por afastá-las de nossa vida.
No caso da relação memória e afeto, demonstra Espinosa na definição 32 e na proposição 36 da parte III de sua Ética ([1677], 1973, p. 194-197):
[...] o desejo ou apetite de possuir alguma coisa cuja lembrança de outras coisas que excluem a existência desejada [...] Aquele que se recorda de uma coisa com que se deleitou deseja possuí-la nas mesmas circunstâncias em que na primeira vez com ela se deleitou [...] se aquele que ama descobrir que alguma coisa dessas circunstâncias em que pela primeira vez com ela se deleitou [...] se aquele que ama descobrir que alguma dessas circunstâncias falta, ficará triste, pois imagina algo que exclui a existência da coisa amada. Ora, como deseja por amor essa coisa ou essa circunstância, imaginá-la faltando entristece. Essa tristeza, enquanto referida à ausência, do que amamos, chama-se saudade[2].
As formas de consciência do passado são em alguma medida compartilhados pelos indivíduos que convivem em determinados grupos e/ou coletividades. Relaciona-se, assim, à conformação de determinada identidade coletiva, como a identidade familiar, a identidade de grupos, a identidade regional, a identidade nacional.
Mais: a produção das memórias sociais é um processo comunicacional. Nele, as vivências individuais e coletivas se constituem mutuamente num movimento contínuo de interações. Afetos, palavras, representações, imagens circulam pelo tecido cultural estabelecendo certos marcadores relativamente estáveis de memória que são identificados, produzidos e transmitidos pelos sujeitos, instituições e grupos.
E ao reconhecermos que no cenário contemporâneo os meios de comunicação ocupam a centralidade na produção e reprodução dos sentidos sociais – isto é, na (re) produção da cultura–, reconhecemos o papel central que eles, os meios, desempenham no enquadramento das memórias sociais. Através dos produtos midiáticos, representações de um passado imaginário são replicadas, afetos são acionados e estimulados, memórias são recuperadas e criadas. Assim, é possível que pessoas, de alguma forma, lembrem de determinados fatos passados sem o terem o vivenciado de fato – como no caso de jovens nascidos no final dos anos 1990 que consomem produtos culturais dos anos 1980 com um verdadeiro sentimento de afeto e nostalgia.
Nessa complexa trama, envolvendo memórias individuais, memórias sociais, afetos e os meios de comunicação, emerge a questão da mercantilização da memória como um dos traços característicos das sociedades ocidentais na contemporaneidade. A esse respeito, tratamos na seção seguinte como substrato para compreendermos melhor as dinâmicas do mercado de videogames clássicos e retrô.
Como nos mostra Le Goff (2000, p. 391), tanto os conteúdos das memórias sociais quanto os modos sociais que elas assumem são historicamente determinados. Cada época histórica tem um modo definido de constituição das memórias sociais: nas sociedades antigas, a cultura da memória é fundada em processos orais de transmissão. Nesse cenário a figura do “narrador” se destaca, uma vez que é nesse que se encontram os formatos de preservação e comunicação das memórias sociais. Já na Idade Média e na Idade Moderna até a Revolução Industrial, a memória é constituída tanto através de procedimentos orais quanto através de processos escritos – nesse contexto histórico a difusão de memórias é ampliada por conta da invenção da prensa, porém limitada materialmente em seu alcance por estar restrita ao registro em fichas, cadernos, catálogos e livros de tiragem reduzida. A partir do século XIX, com a difusão da imprensa escrita e da indústria editorial, a memória coletiva adquire um volume tal que se torna impossível “pedir” que a memória individual “receba o conteúdo das bibliotecas” (LE GOFF, 2000, p. 391).
Evidentemente, não existem rupturas entre esses processos históricos, e sim um processo dialético de acumulação e transmissão do acervo de conhecimento e dos bens culturais ao longo da história, de maneira que o salto que a memória coletiva experimenta a partir do século XIX é “a conclusão culminante da acumulação da memória desde a Antiguidade” (LE GOFF, 2000, p. 391). Assim, o desenvolvimento e ampla difusão dos diversos suportes materiais e tecnológicos das memórias contribuem cada vez mais para a tessitura de uma memória social. Nunca houve como em nossa sociedade tantos dispositivos tecnológicos de registro e comunicação da memória, assim como nunca houve a quantidade de agentes sociais que as produzem. Fotos, testemunhos, reportagens e vídeos relatam o presente, transbordam os meios de comunicação, tradicionais e os digitais, numa imensidão de experiências pessoais e coletivas (CUNHA, 2011).
No contexto contemporâneo, podemos identificar pelo menos duas mudanças importantes nas relações da sociedade com a memória individual e coletiva: por um lado, temos um contexto social e cultural marcado por transformações na organização do tempo social e nas experiências das temporalidades que implica novas formas de os sujeitos se relacionarem com a memória (1). Por outro, observamos um processo no qual as memórias sociais são amplamente mercantilizadas e apropriadas pela indústria cultural (HUYSSEN, 2014) (2). Analisemos essas duas dimensões para melhor compreendermos o mercado de videogames clássicos e retrô:
(1) Como demonstram diversos pesquisadores, como o geógrafo inglês David Harvey (2001) e o filósofo polonês Zygmunt Bauman (2009), nossa sociedade vem experimentando desde meados da década de 1970 uma temporalidade cada vez mais efêmera e acelerada. Este fenômeno se dá, entre outros fatores, por conta de mudanças no sistema produtivo capitalista e pelos inúmeros avanços tecnológicos, e implica uma contínua dissolução no presente numa frenética busca pela novidade – em certa medida é esse o sentido da famosa expressão cunhada por Bauman de sociedade líquida: na sociedade do tempo acelerado, nada é estável e fixo, todas as coisas, as relações sociais, afetivas, institucionais, identitárias etc. se dissolvem facilmente, se esparramam como líquido.
Durante séculos o ser humano viveu em sociedades em que objetos cotidianos eram feitos para durar. Na sociedade capitalista contemporânea, tanto os objetos quanto os costumes, estilos e gostos se tornam rapidamente obsoletos. Em outros tempos “os objetos acumulavam memória e através deles gerações conversavam” (BONIN, 2009, p. 60). Hoje os objetos são descartáveis. O valor é dado sempre a novos produtos e inovações tecnológicas.
Baudrillard (2007) fala de nossa sociedade de consumo como marcada pela dinâmica da abundância de objetos e produtos. Com efeito, o filósofo francês (2007, p. 15) argumenta que na sociedade de consumo os indivíduos são rodeados por uma multidão de objetos, de serviços e de bens materiais, num fenômeno que implica uma “mutação fundamental na ecologia da espécie humana”. Na compreensão do autor (2007, p. 15-16), as pessoas, na sociedade de consumo, vivem o tempo dos objetos. Quer dizer, existem de acordo e em conformidade com o ritmo e a sucessão permanente dos objetos: na era contemporânea, ao contrário de outras civilizações, nas quais os objetos (instrumentos ou monumentos) sobreviviam às sucessivas gerações humanas, são os indivíduos que presenciam o nascimento, produção e morte dos objetos (BAUDRILLARD, 2007, p. 15-16).
(2) Entretanto, essa legitimidade cultural dada ao “novo” em oposição ao “antigo” leva a um desejo pelo passado percebido como lugar de ancoragem temporal diante da efemeridade do tempo e da incerteza em relação ao futuro. Nesse quadro, Huyssen (2014, p. 11-12) afirma que vivemos numa sociedade amplamente marcada por uma cultura da memória.
Segundo esse autor, desde meados da década de 1970 a memória tem se tornado uma obsessão cultural global. Aqui, tanto os meios de comunicação quanto as empresas capitalistas assumem papel importante na produção e divulgação do passado, num processo que pode ser definido como “mercantilização da memória” (HUYSSEN, 2014, p.20).
Esse processo é objetivado na crescente museificação do passado-espetáculo; na construção de parques temáticos históricos; na produção de filmes e seriados históricos que visitam desde Troia até o século XIX; nas histórias da vida privada que se assomam no mercado editorial; na obsessão incessante pelas duas grandes guerras e personagens históricos, na retomada de estilos retrô no campo da moda, vestuário e estilo; na retomada da estética dos anos 1980 em variados campos culturais e mercadológicos, entre diversos outros. No campo dos games, observa-se, além de jogos que revisitam a Idade Média, o Egito Antigo, a Revolução Francesa etc., o fenômeno de resgate de consoles, jogos e linguagens clássicos – sobretudo referente aos videogames de 8 e 16 bits.
Assim, a aceleração do tempo e o resgate do passado se constituem como processos socioculturais complementares em que a novidade e o passado se entrecruzam como valores constituidores de diversos segmentos de mercado. Em relação ao mercado de jogos retrô, assinalamos no primeiro relato dos resultados de nosso projeto de pesquisa que o entrecruzamento entre inovação tecnológica e a constituição de linguagens e estéticas retrô é um elemento fundamental nas estratégias e processos atinentes ao campo de produção desse mercado. Na seção seguinte, tendo como pressuposto que os campos da produção e do consumo são dialeticamente relacionados (BACCEGA, 2009, p.113), apresentamos alguns pontos relativos ao processo de consumo dos jogos retrô e como e em que medida eles se relacionam a esse contexto sociocultural marcado pela aceleração do tempo/cultura da memória
Conforme assinalamos na introdução deste texto, o mercado de games digitais retrô é complexo e multifacetado. Envolve uma diversidade de formatos de jogos, plataformas e produtos. Neste sentido, além da definição “jogos retrô”, lançamos mão da noção de linguagens nostálgicas para dar conta dos games produzidos atualmente e que se servem de estéticas e mecânicas antigas e disponibilizados para plataformas modernas como Playstation 4 e Xbox One – em contrapartida aos jogos e consoles produzidos nas décadas de 1980, 1990 e início de 2000 e que estão disponíveis através do mercado de bens usados [3].
Nesse contexto, podemos destacar, a título de exemplo, o clássico jogo de plataforma Contra, lançado em 1987 pela Konami para fliperamas e, logo em seguida, para o Nintendo Entertainment System, no qual alcançou enorme popularidade; bem como o jogo Minit, lançado em abril de 2018 para o Playstation 4 e que se inspira na estética e mecânica dos jogos antigos de 8 bits – ou seja, serve-se de linguagens nostálgicas.


Um outro exemplo que podemos trazer para nossa discussão é o jogo Shovel Knight lançado em 2014 pela produtora Yacht Club Games para as plataformas PlayStation 4 e Nintendo 3DS; vale frisar que em 2017 o game também foi lançado para a mais recente plataforma da Nintendo, o console Nintendo Switch. O título utiliza gráficos de consoles da década de 1980 e 1990 para compor uma narrativa com temática medieval no qual um cavaleiro utiliza uma pá como arma. Há uma atualização nas mecânicas e dinâmicas do jogo, mas o visual de cada tela reproduz o visual de antigas produções do mercado.

Como um exemplo que foge de temáticas tradicionais de games, mas que também se vale da estética retrô para compor sua interface, temos o jogo Papers, please lançado de maneira independente pelo game designer Lucas Pope em 2013. Neste game lançado para Playstation 4, PC e plataformas mobile (smartphones e tablets), o jogador faz o papel de um fiscal de fronteiras na república fictícia de Arstotzka. É preciso tomar decisões morais sobre deixar ou não os cidadãos cruzarem a borda para entrar no outro país. Vale destacar que o visual do game replica dos jogos da década de 1990, mas a interface possui a complexidade dos jogos atuais de computador e console.

O último exemplo que trazemos para esta discussão é o game Mother Russia bleeds da produtora Devolver Digital, disponibilizado no mercado em 2016. A narrativa, ambientada em uma Rússia apocalíptica, é um jogo de luta que reproduz os gráficos e mecânicas de jogos como Double Dragon (Technōs Japan), de 1987. Logicamente, como no supracitado Shovel Knight, há uma atualização de possibilidades narrativas e mecânicas em Mother Russia bleeds, mas uma atualização que vem “envelopada” por uma aura retrô que serve como um diferencial para o game.


Compreendemos que os jogos retrô e as linguagens nostálgicas ativam memórias afetivas que conferem um sentido de continuidade entre o passado e o presente. Ao desfrutar de um jogo deste tipo, o jogador se conecta no nível imaginário a um tempo passado que tende a lhe afetar de modo positivo, aumentando sua sensação de prazer e bem-estar.
Esses jogos e os sentidos atribuídos a eles estão carregados de afetos. Através do consumo material e simbólico desses jogos, o jogador experimenta um processo memorialístico que sublinha a permanência de uma identidade e de uma trajetória de vida particular, deixando de lado uma lógica histórica e temporal que é essencialmente marcada por rupturas e transformações.
Retomemos as considerações de Espinosa trazidas na primeira seção deste artigo: o consumidor de jogos e linguagens nostálgicas se recorda de uma experiência de sua infância e/ou juventude no qual se deleitou e busca retomá-la, de sorte a aumentar sua felicidade – em termos espinosanos, em busca de aumentar seu conatus, ou seja, sua potência de ser, desejar e existir.
Essa vontade de resgate memorialístico do passado está intimamente relacionada à sensação de aceleração e dissolução que o mundo contemporâneo enceta. Afinal, a percepção de perdas de laços com o passado e a tradição é resultante dessa dinâmica marcada pela fragmentação espaço-temporal (VIRILIO, 2008). Uma suposição derivada das reflexões de Espinosa é a de que os jogadores, ao experimentarem um presente que lhes afeta negativamente e ao perceberem uma incerteza sobre o futuro (sensação que tende a levar ao medo e/ou esperança, ambas paixões tristes, segundo o filósofo), buscam no consumo dos jogos e linguagens nostálgicos o resgate de um passado alegre e seguro.
Nesse quadro, mesmo jogadores mais novos que não experimentaram, de fato, o passado com os jogos antigos, também experimentam sensações de estabilidade e conexão ao consumirem os imaginários e memórias compartilhados pelos meios de comunicação e que atravessam o mercado dos jogos retrô. Aqui, desenha-se de forma clara a dimensão da memória como um fenômeno comunicativo: os afetos e marcadores de memória fazem parte da trama cultural e estão em circulação nos distintos universos sociais de diferentes jogadores.
A memória individual e a memória social são dialeticamente relacionadas. O que lembramos é uma construção ativa em função de nossa trajetória de vida, mas que se dá justamente dentro de quadros de memórias sociais. Conforme nos explica Pollak (1989, p.9), o processo subjetivo de constituição da memória reside na
operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis.
Ao contribuírem para a coesão de grupos de pertencimento, as memórias coletivas definem fronteiras simbólicas que separam o “nós” dos “outros”, que separam aqueles que se incluem em determinada “comunidade imaginária” e aqueles que dela estão excluídos por não partilharem da mesma trajetória, da mesma memória e dos mesmos traços distintivos, dentre outros fatores.
Tomando emprestada a argumentação de Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984), entendemos que há nesse processo memorialístico um trabalho de invenção de tradições que, além de operar no processo de subjetivação e coesão dos jogadores do universo retrô, tende a revestir o passado de uma dimensão sacra e mítica. Quer dizer, os jogos e consoles antigos tomam o estatuto de clássicos absolutos: são intocáveis, atemporais e inquestionáveis.
Assim os jogos antigos são vistos pelos gamers retrô como melhores que os jogos atuais. Essa distinção é, muitas vezes, como podemos notar em nossa atividade profissional, relacionada à questão da dificuldade dos jogos antigos. É comum observar, nas práticas e discursos desses gamers, uma crítica aos jogos de plataformas modernas, vistos como “muito fáceis” ou “carentes de desafios” em relação à dificuldade dos jogos “clássicos” – ou dos jogos atuais inspirados neles.
Há, de fato, um certo consenso por parte de profissionais e acadêmicos de games de que os jogos antigos de consoles de 8 e 16 bits costumam oferecer uma carga de desafio e dificuldade maior do que a maioria dos jogos para as plataformas modernas. Um exemplo emblemático disto é o supracitado jogo Contra. A superação de um jogo como esse tende a operar como motivo de orgulho pessoal e de sinal de distinção – indicando que o jogador é “um verdadeiro gamer” e não só mais “um aventureiro casual”. Nesse contexto, é interessante notar que muitos dos jogos que lançam mão de mecânicas e estéticas retrô para plataformas modernas são jogos bastante desafiadores e seu consumo tende a conferir um status distintivo a seus jogadores.
Evidentemente não queremos afirmar que há sempre uma finalidade consciente, por parte dos jogadores de jogos retrô, de criar distinção em relação a outros tipos de jogadores. Tampouco que o móvel único (seja consciente ou inconsciente) que motiva os jogadores retrô seja a busca por distinção. A questão é mais complexa e envolve a mobilização de conceitos e teorias sobre a ação humana (praxeologia) e sobre as dinâmicas dos universos sociais, bem como uma robusta pesquisa de campo[10]. Na próxima fase de nossa pesquisa buscaremos desenvolver essa questão.
Neste artigo, buscamos iluminar alguns pontos referentes à lógica do mercado de games retrô a partir do diálogo entre os estudos sobre o papel da memória social na (re) produção da cultura (BOSI 2003; LE GOFF, 2000; HUYSSEN, 2014) e os estudos que investigam a dimensão cultural do consumo (CASTRO, 2014; SASSATELI, 2010).
Embora tenhamos estabelecido uma relação entre a cultura da memória no capitalismo contemporâneo e o mercado de games retrô, compreendemos que não podemos estabelecer um nexo axiológico entre eles. Entendemos que não podemos considerar esse mercado como mero epifenômeno da obsessão ocidental pelo passado e pela memória, conforme definida por Huyssen (2014). Partimos do pressuposto de que esse mercado, assim como cada mercado, possui uma lógica particular de produção e consumo, constituindo-se como um espaço cultural e econômico relativamente autônomo ao conjunto da sociedade. Para usarmos uma expressão cara a Bakhtin (2002, p.33) cada campo de consumo reflete e refrata a realidade à sua maneira.
Entendemos que existe uma homologia estrutural e funcional (BOURDIEU, 2006, p. 167-196) na qual a produção social do gosto responde tanto a uma lógica cultural de valorização do passado quanto a dinâmicas inerente a cada um desses campos. Assim, o campo do vestuário retrô, o campo editorial retrô, o campo da arquitetura retrô, o campo dos jogos digitais retrô etc. possuem particularidades, a despeito de serem atravessados por um contexto sócio histórico comum.
Cabe ao campo da comunicação/consumo aprofundar estudos empíricos relativos a cada um desses universos em sorte de estabelecer pontos de convergência e de divergência entre eles e, assim, contribuir para o esboço de uma teoria geral do consumo retrô na contemporaneidade. Nesse contexto, interpretamos que seja fundamental contemplarmos o cotidiano dos consumidores e os usos e apropriações que esses fazem dos produtos vinculados a um resgate afetivo do passado.





