Resumo: É comum no campo da Educação que as imagens de infância, apresentadas dentro da lógica da representação, estejam subordinadas às dimensões complementares do Mesmo e do Semelhante, do Análogo e do Oposto. Configuram-se em adensamento da relação entre pensamento e imagem em que essa esmaga as potencialidades de as diferenças proliferarem. Parece ser necessário pensar na criação de uma zona em várias formas que não são identificadas; o comum a elas seria a indiscernibilidade. Neste texto, buscaremos outras possibilidades de infância ao tomar como referência imagens fotográficas e de produções fílmicas atentas à importância da modulação conceitual de infância aos acontecimentos e da sua relação com o meio inventivo, de criação. Apresentaremos territorialidades para a infância com imagens - fotografias do Almanaque 'Eu sei tudo' e algumas produções fílmicas de Tarkovski e Truffaut - desafiados por conceitos propostos por Gilles Deleuze ao estudar imagens do cinema, da pintura e os processos de singularização. Entre palavras e imagens, trabalhamos o conceito de infância juntamente com outros conceitos, mostrando como eles relacionam-se com todo um processo de produção de transformações. Ao final, o que se coloca como questão em aberto são as potências das imagens da infância como produtoras de um sujeito resultante de experimentações de intensidades.
Palavras-chave: ImagemImagem,Infância;, Filosofia Da Diferença.Infância;, Filosofia Da Diferença..
Abstract: It is a common feature of the field of Education that the images of childhood, represented within the logic of representation, are subject to the complementary dimensions of the Same and the Similar, the Analogous and the Opposed. They configure themselves in the densification of the relation between thought and image, where the image suppresses the potentialities of proliferation of the differences. It seems necessary to consider the creation of a zone with many non-distinguishable forms, the common area being the indiscernibility. In this text, we seek other possibilities of childhood by taking as references photographic images as well as those of movie features which focus on the importance of the conceptual articulation between childhood and the events and its relations to the inventive means of creation. We display territorialities to childhood through images - photographs of the "Almanaque 'Eu Sei Tudo '" and some movie productions such as those of Tarkovski and Truffaut - challenged by the conceptions presented by Gilles Deleuze to the study of images coming from movies, from paintings and the processes of singularization. Somewhere between words and images, we work on the concept of childhood together with other concepts, showing how they relate to the whole process of production of transformations. At the end, we leave as an open question the degree of potentiality that the images of childhood have in order to produce a subject as the result of experiments of intensity.
Keywords: Image, Childhood, Philosophy Of Difference..
Resumen: Es común en el campo de la educación que las imágenes de la infancia que se presentan dentro de la lógica de la representación, están sujetas a las dimensiones complementarias de lo Mismo y lo Semejante, el Análogo y lo Opuesto. Se configuran en la relación entre el pensamiento y la imagen que aplasta el potencial de las diferencias. Parece necesario pensar en la creación de una zona de varias formas que no son identificadas; lo común a ellas sería lo indiscernible. En este texto, buscaremos otras posibilidades de infancia al tomar como referencia imágenes fotográficas y producciones fílmicas atentas a la importancia de la modulación conceptual de infancia, a los acontecimientos y relación con el medio inventivo, de creación. Presentaremos territorialidades para la infancia con imágenes - fotos del Amanac 'Yo sé todo' y algunas producciones fílmicas de Tarkovski y Truffaut - instigados por conceptos propuestos por Gilles Deleuze mediante el estudio de las imágenes del cine, la pintura y los procesos de singularización. Entre palabras e imágenes, trabajamos el concepto de infancia junto con otros conceptos, mostrando como ellos se relacionan con todo un proceso de producción de transformaciones. Al final, lo que se coloca como interrogante abierta son las potencias de las imágenes de la infancia como productoras de un sujeto resultante de experimentaciones de intensidades.
Palabras clave: imagen, infancia, filosofía de la diferencia..
ARTIGOS
Imagens e infância, indiscerníveis territorialidades
Images and childhood, indiscernible territorialities
Imágenes y infancia, territorialidades indiscernibles
Recepção: 23 Março 2017
Aprovação: 23 Abril 2017
Neste texto, buscaremos apresentar outras possibilidades de infância ao tomar como referência imagens fotográficas e de produções fílmicas atentas à importância da modulação conceitual de infância aos acontecimentos e da sua relação com o meio inventivo, de criação.
As imagens que estenderão os territórios de apreciação estética neste artigo são diferentes, tanto nos seus modos de produção quanto na partilha de seus sentidos; suas linhas de conexão e pontos de contágio adensam-se nas suas potencialidades (ou não) de operarem na representação dos momentos de guerra e suas consequências. Os momentos de guerra são considerados especiais para uma analítica centrada nas relações entre cultura e política, para a qual são caras as questões relativas à afirmação das identidades, à constituição de formas de reconhecimento das singularidades em unidades mais indiferenciadas e a natureza ideológica da realidade; ou seja, os momentos de guerra podem ser exemplares para discutirmos aspectos tais como as relações entre o eu e o outro, o engajamento consequente com os constrangimentos do mundo contemporâneo e a afirmação do sujeito em condições concretas de espaço e tempo histórico.
Segundo Hanna Arendt (2001), face aos acontecimentos totalitários, como são as guerras e outros dramas a que assistimos no século XX, uma filosofia política "só pode irromper de um acto original de thaumádzein, cujo assombro, e consequente impulso de interrogação, deve hoje (quer dizer, ao contrário dos ensinamentos antigos) incidir diretamente nos assuntos humanos e na acção" (ARENDT, 2001, p. 351).
Embora reconheçamos a força e vitalidade intelectuais das correlações entre acontecimento e história, seguiremos em outra direção neste texto, dimensionando a guerra muito mais como um agenciamento de sentidos díspares. Um aglomerado heterogêneo de sentidos que exigirá pensar a relação com a política fora dos eixos que priorizem cultura e poder, amplamente arregimentado pelos estudos culturais e pós-coloniais em suas vertentes pós-estruturalistas1.
Aceitando o convite de Pisters (2012), arriscar-nos-emos em um campo problemático da relação entre política e os conceitos de Gilles Deleuze, até mesmo pelo conjunto de combates, dissensos e distanciamentos da centralidade nas culturas que são imanentes aos conceitos desse filósofo. Do conjunto de aspectos que Pisters (2012) assinala como combativos entre os conceitos da filosofia deleuzeana e o âmbito das culturas, nos estudos contemporâneos é particularmente relevante o pensamento de que todas as imagens (mundos real e virtual) referem-se a outras imagens.
Em um sistema deleuziano de pensamento, então, é equivocado ver o virtual como 'fora deste mundo real' - o virtual é uma força imanente que tem que ser levado em conta neste mundo. A consequência de circulação entre o virtual e o real é que o virtual também é real, embora em um nível mais invisível: em nossas mentes, em memórias, na fantasia e imaginação, nas camadas invisíveis de imagens e cultura (PISTERS, 2012. p. 248).
As contribuições desses e outros conceitos de Gilles Deleuze para a teoria política estão precisamente em trabalhar com uma relação entre a 'realidade' (real) e 'imaginação' (virtual) diferente do que mais tipicamente é feito, quando o político é expresso em termos de uma relação entre representação e ideologia. O principal tônus de pensar política com Deleuze é a sua conexão com a emergência de um novo campo de possíveis.
A palavra possível deixou de designar a série de alternativas reais e imaginárias (ou... ou...), o conjunto de disjunções exclusivas de uma época e de uma sociedade dadas. Ela concerne, agora, à emergência dinâmica de novo. Eis a inspiração bergsoniana do pensamento político de Deleuze. Realizar um projeto não produz nada de novo no mundo, uma vez que não há diferença conceitual entre o possível como projeto e sua realização: apenas o salto para a existência. [...] Há uma diferença de estatuto entre o possível que se realiza e o possível que se cria. O acontecimento não abre um novo campo do realizável, e o 'campo dos possíveis' não se confunde com a delimitação do razoável em toda ma sociedade. (ZOURABICHVILI, 2000. p. 337).
Embora os meandros das emergências discursivas apoiadas nas culturas tenham como proposta política a afirmação das diferenças e uma guinada radical de organização das práticas sociais, o lugar destinado às diferenças está bem marcado. Amorim (2010) indica em seu texto algumas influências da pluralidade cultural que são bastante elucidativas do que queremos marcar neste artigo, particularmente o que se materializa em documentos curriculares: o reconhecimento de que um conjunto variado de discursos seja socialmente marginalizado, excluído ou suprimido, e mesmo subjugado na proposição de políticas públicas; uma certa visão de convivência cultural harmônica, pela qual é possível revitalizarem-se ou enriquecerem-se os discursos, real ou potencialmente. Tais discursos contêm e advogam motivos e temas da coexistência cultural, da diversidade, da igualdade, da democracia, da tolerância e da prosperidade comum. E, como terceira influência, os discursos culturalistas conectam-se aos princípios da igualdade e da liberdade. Embasam-se na compreensão de que as comunidades humanas e seus discursos, embora sejam baseados no conflito e em tendências à dominação, devem ser chamados criticamente à consciência e à reflexão com as quais se podem recriar outros discursos com vistas a restabelecer e engrandecer os sentidos de humanidade e seu progresso.
Uma perspectiva distinta das anteriores é apresentada por Simone Bignall (2012, p. 403), na companhia dos conceitos da filosofia da diferença: atente-se para um processo 'que envolve movimentos localmente distintos de devir, modulados pelas experiências idiossincráticas de resistência", ao invés de um processo em que os participantes se esforçam para produzir sociedades que permitem a coexistência pacífica de autoidentificação, comunidades mutuamente envolvidas em atos afirmativos de reconhecimento compartilhado.
Nunca é demais lembrar que todo devir é um bloco de coexistência para Deleuze e Guattari. Apostando nessa ideia, as territorialidades deste artigo estendem-se por imagens que congregam diferentes pontos de vistas e problemáticas também em relação à infância. Por não nos colocarem respostas prontas, não nos impelem a reagir a elas instantaneamente; temos a possibilidade de uma brecha em que nosso pensamento articule relações com o que vimos, com o que selecionamos da nossa percepção e o que sentimos, que muitas vezes não nos possibilitará uma ação instantânea, ou um juízo pronto. Assim, somamo-nos a estudos do campo de estudos que correlacionam infância e imagem (ABRAMOWICZ et all, 2011; MARTINS; TOURINHO, 2010) e não deixamos de considerar que "as imagens e outras representações visuais sejam portadoras e mediadoras de significados e posições discursivas que contribuem para pensar o mundo e para pensarmos a nós mesmos como sujeitos. Em suma, fixam a realidade de como olhar e nos efeitos que têm em cada um ao ser visto por essas imagens" (HERNÁNDEZ, 2011, p. 33).
Há, porém, alguns deslocamentos, inspirados em Amorim (2011; 2012; 2013), que exigem das linhas de composição deste artigo abrirem-se ao devir do pensamento, que pudera ser um devir-criança do pensamento sobre nós mesmos, vinculado ao que carregamos em nossas teorias e memórias. O convite é para estarmos atentos e abertos às variações diferenciais da infância, instalando no pensamento o movimento nômade de deslocamento de relações fixas.
Em um curso ministrado por Gilles Deleuze, no período de novembro 1982 a junho 1983, cujas aulas são traduzidas no livro: Cine II: Los signos del movimiento y el tiempo, tratando do caráter paradoxal das relações, o autor nos dirá sobre a qualidade da mudança, movente, dessas relações, um dos paradoxos para pensarmos este artigo. Tal afirmação ocorre quando o autor problematiza que os empiristas inventaram a lógica mais formal do mundo, a lógica das relações. Assim o que parecia interessar aos empiristas era a exterioridade das relações entre os termos criados, e lhes fará falta uma lógica nova e um formalismo novo para dar conta dessas relações.
A ideia principal é que a relação não pode mudar sem mudarem os seus termos. Deleuze (2011, p. 165), então, acrescenta: "Eu creio que não podemos pensar que quaisquer relações sejam independentes ao menos de um devir virtual." Para ele, os teóricos empiristas não teriam visto isso. E continua: "Ao meu parecer uma relação não é apenas exterior aos seus termos, e sim extremamente transitiva, no sentido de transitória. As relações são frágeis, são inseparáveis de um devir, inseparáveis de uma mudança possível ou virtual." (DELEUZE, 2011, p. 165). Às vezes no complexo ato de pensar instalamo-nos comumente em regiões de sentido que correspondem, sobretudo, a relações abstratas.
O virtual se torna, portanto, essa potência estranha do singular e da série, que "subsiste" e "insiste" em nossas vidas e nossas maneiras de ser, sem se efetuar definitivamente em qualquer lugar. Ele exige então uma inteligência e uma lógica nas quais as "implicações" se tornem potências complicadas, as "disjunções" se tornem inconclusas, e as "conjunções" passem por outro lugar que não as identidades (RAJCHMAN, 2000, p. 398).
Deleuze rejeita que haja apenas um único nível de sentido para todos os problemas e, portanto, não acredita em uma região comum de sentidos, apostando na multiplicidade. O autor propõe que a filosofia precisa estar atenta à mudança e lançá-la ao devir; com a criação de conceitos, que precisam ser móveis; eles se territorializam e desterritorializam, sofrem variações. Ao cabo deste movimento, as imagens que serão nossas intercessoras neste artigo podem ser dimensionadas em um reterritorialização, uma infância diferencial e aberta à violência do devir.
Pensemos, neste artigo, o conceito de infância como uma variante e não tomada em um único sentido e que lhe atribua características transcendentais universais. A efetuação do conceito em imagens dependerá de inúmeras mudanças no meio, pensando o meio como um local com diferentes perspectivas geográficas, sociológicas, históricas que variam no decorrer do espaço-tempo e em suas eventuais rupturas. Nessa direção, a escolha de alguns tipos de imagem, como as presentes neste texto, é promissora e desafiadora.
Instalando-nos num pensamento criativo "entre" essas imagens, movimentaremos a infância - e sua atualização na criança - deixando-nos atravessar por umas relações abstratas, que compõem novas relações, variáveis nas diferenças de percepção e dos afectos que pulsam singularmente em cada imagem. Por isso o convite sedutor do diagrama, "a instauração de um campo intensivo maquínico e individualizado [...] que permeia a possibilidade da proposição e construção de uma experimentação voltada à rede de devires e multiplicidades" (BASBAUM, 2006, p. 85).
Nesse contexto analítico, o texto exporá algumas linhas que esboçam a infância em imagens que, por operarem no circuito das representações e nelas incidir algumas perfurações, dão-nos pistas provocadoras para adentrarmos em territórios adensados pela virtualidade, cujas marcas, ainda evidenciadas no campo das visibilidades, são o indiscernível, a abstração e a variação contínua. São essas a essas qualidades dos processos de singularização de uma infância a que daremos estaque.

É hora de aniquilar os rostos. Não há rostos velhos nem jovens. Não há rostos de crianças nem de adultos. Não há faces de homens ou mulheres. Há um pesadelo compartilhado por todos, que assume todas as faces e as homogeneiza. Há uma face de couro e vidro que se sobrepõe a todos os rostos e os aniquila. Para Conley (2010), é uma característica de sensação passar através de diferentes níveis, devido à ação de forças. Mas duas sensações, cada um com o seu próprio nível ou zona, podem também se confrontar e fazer os respectivos níveis se comunicarem. É o caso, nesta imagem, do espaço-tempo entre a máscara e o rosto. Aí não estamos mais no domínio da vibração simples, mas de uma ressonância. Há duas figuras acopladas, sendo decisivo o acoplamento de sensações: não há uma única e mesma matéria de fato proposta por duas figuras. Não há uma única figura acoplada para dois corpos, a sensação do pesadelo nasce desse entre-imagens que a capa da revista inaugura.
Alienígenas, monstros, pessoas com trombas, grandes olhos-lentes de vidro, cabeças encouraçadas em preto. Que figuras são essas que se apresentam? O que propõem? O que provocam? Que realidades constroem? O que se aprecia nisso é o inumano.
A imagem brutaliza, desumaniza retirando faces, vetando identidades. O medo da guerra química tem um rosto que arranca o que é humano e se sobrepõe a ele. "A infância é, portanto, o nome de nossa miséria inicial, indeterminada e não programada. O pequeno do homem não é um pequeno homem, mas um 'atraso inicial da humanidade': sem palavra, incapaz de manter-se em pé, destituído da razão comum ou 'bom senso', logo, inapto para o cálculo de benefícios e hesitante sobre os objetos de seu interesse" (LAURET, 2008, p. 211).
Todos se despindo de suas faces e homogeneizando-se numa única máscara, mesmas feições, sem expressões, cabeças congeladas sem identidade, ou partilhando de uma única identidade.
Uma máscara única para todos. Que alude à morte, ao medo, ao horror químico. Esse seria o movimento de dar a ver o humano na inumanidade da infância: "o que é humano no adulto [futuro, o que sobreviverá à guerra] é efetuar essa promessa da infância e libertá-la progressivamente de si mesma e de sua selvageria" (LAURET, 2008, p. 211).
A guerra em imagens traz a transcendência do humano a toda natureza, repercutindo consonância entre a indeterminação da infância e a realização do humano em formas culturais.
Ajuda-nos a estender esse pensamento a instalação audiovisual In search of vanish blood2, de Nalini Malani3, artista indiana, na qual as imagens de máscara de gás acoplam-se às das mulheres que sobre-vivem e resistem em condições de uma guerra na qual seus corpos, vestimentas, faces e identificações estão engendrados. Neste caso, a mesma máscara transversaliza-se em imagens de ataduras, rostos cobertos, mumificações e o grito como sensação que liberta as cores e as intensidades de luz.

Nalini Malani mescla as pinturas que elabora com trechos de filmes documentários, com fotografias e com depoimentos, criando imagens panorâmicas que passam a habitar superfície de um monumento histórico de um país estrangeiro. Trata-se de criar um meio para que a sensação possa derivar a partir de diferentes níveis criados pela figura acoplada (rosto-máscara; guerra-corpo; cor-som; criança-adulto). Tal acoplamento é não ilustrativo e não-narrativo.
Com relação às fotografias de Eu Sei Tudo4 falando da guerra, mostrando o preparar-se/desumanizar-se para ela, a referência que Susan Sontag (2003, p. 12) faz à interlocução entre Virgínia Woolf e o leitor é fascinante: " 'Portanto aqui, sobre a mesa, à nossa frente, estão fotos', lançando-lhe um convite à experiência mental de fitá-las". À sua frente estavam fotografias de efeitos da guerra, edifícios e corpos humanos destruídos. A experiência de Woolf foi o de falar a guerra pela barbárie.
Não são humanos seus efeitos, tampouco seus preparativos. A repulsa dos primeiros é antecedida pelo medo provocado pelo outro. O que resta aos que não assumem o rosto alienígena das máscaras? A morte asfixiante dos gases. A imagem age como linguagem que não quer a morte, mas que gera a paralisação daquilo que é vida, um modo de domesticação da força selvagem da vida, significada infância.
Com Fernando Bárcena (2008), reconhecemos que a outra face do acontecimento é a de reconhecer a importância dos finais. "Recorrer à morte como figura do acontecimento não é trair a infância, assim como aprender, transformar-se, tornar-se adulto não equivale a uma infância traída" (BÁRCENA, 2008, p. 154). Em conversações com Deleuze, o autor assinala que pensar a morte e o acontecimento que a antecede - o sofrimento, a dor, a lágrima - é tratar de pensar o que está em uma relação extrema comigo e com meu corpo: o que está fundado em cada um e o que não tem relação conosco, o incorporal, o impessoal. "E assim o é porque a morte, à diferença talvez da dor e do sofrimento, é resistente à ordem da representação" (BÁRCENA, 2008, p. 154).
Tal dimensão compõe uma única figura de caos e desamparo na página número 14 da edição de janeiro de 1939 da revista- almanaque Eu sei tudo. É um mosaico de fotografias: crianças em colos de freiras e enfermeiras, refugiados deitados, uma família se alimentado diretamente das panelas, uma criança é atendida no chão por uma enfermeira, pessoas levando sacos de areia antibombas incendiárias, a construção de um abrigo à prova de bombas aéreas e moças usando máscaras de gás lendo jornais.
O conjunto de imagens é em si um único retrato da personagem guerra, vivida e vívida na revista muito antes de ser oficialmente declarada.
Essas figuras de pesadelo, espalhadas em várias edições da revista-magazine, chocam porque invadem e alteram a imagem de futuro, ao adulto. São um elemento novo e, como tal, atraem uma atenção mórbida relacionada ao bizarro e à agressão química com as quais as máscaras estão relacionadas. Susan Sontag (2003) afirma que as fotos produzem choque à medida que mostram algo que não estamos acostumados a ver. Uma dobra do real, como interrupção ou descontinuidade, fazem pensar o inesperado. Por isso, essas fotografias podem ser consideradas acontecimentos. As fotografias ocorrem surpreendendo-nos, propulsoras de uma ordem do inesperado.
A força e a resistência da tecnologia são apresentadas em contraponto à fragilidade do humano. O funcionamento preciso desse tipo de máquina - a do Estado, a militar - é superior ao do corpo humano e deve ser por este copiado. A máscara é o aperfeiçoamento da face. Ela é o rosto indestrutível.
Deleuze e Guattari afirmam que se o rosto é uma política, o desmantelamento do rosto também é uma política envolvendo seus devires reais. Para Bignall (2012), enquanto a rostidade envolve uma política de territorialização e forma, o desmantelamento da face envolve uma política de desterritorialização e transformação.

Entre as imagens referentes à guerra trazidas pela revista em 1939, talvez a mais dramática seja a da capa da edição de dezembro (Figura 1): uma criança ajoelhada ao pé da cama em posição de prece usando uma máscara de gás, cujos cachos loiros saem entre as alças da máscara que abraçam sua cabeça.
Como de costume, a revista não exibia manchetes em suas capas que, em sua maioria, traziam apenas ilustrações genéricas que não se relacionavam aos conteúdos da publicação. Crianças brincando, marionetes e especialmente mulheres em diversas situações do cotidiano ilustraram as capas da revista.
A edição de dezembro de 1939, porém, fugiu desse padrão ao retratar com sua capa um drama que estava sendo vivido naquele momento, a Segunda Guerra Mundial que se iniciara há três meses.
A máscara de gás no rosto da criança resumia o receio da guerra química que havia marcado vários combates durante a Primeira Guerra Mundial. O temor da repetição daquele horror ganhou a forma icônica da máscara de gás, um equipamento que iguala rostos, tirando-lhes feições e expressões, transformando-os em tubos e óculos herméticos. Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças, todos como mesmo rosto. Todos sem rosto. Homogeneizando as aparências, a máscara transformara todos em "figuras de pesadelo". Esse medo era visível e percebido nas edições de Eu Sei Tudo que precederam o início da guerra. A máscara de gás, antes equipamento estritamente militar, toma as ruas e a população civil, que tem que aprender a utilizá-la, vestindo-a em si e nos incapazes de fazê-lo como as crianças.
Essa imagem pulsa o conceito de "opsigno" de Deleuze. Em A imagem tempo (2007), o autor explica o termo: "a situação ótica pura é aquela em que os personagens, incapazes de agir decisivamente para mudar suas circunstâncias, são retratados como testemunhas, ou "observadores" (ao invés de "agentes" ativos)." (DELEUZE, 2007, p. 2).
Impotente frente ao conflito, a criança pode apenas observar e "rezar". Sua atuação é indireta, seu papel é observar e se preparar, passivamente, para sofrer os seus efeitos. Na trama narrativa, essa imagem relaciona-se com o que já se chamou a atenção para o papel da criança no neorrealismo, especialmente com De Sicca (e, depois, na França, com Truffaut): "é que, no mundo adulto, a criança é afetada por certa impotência motora, mas que aumenta sua aptidão a ver e ouvir" (DELEUZE, 2007, p. 3).
Considerar possível essa semelhança é indicar a força de uma vida que uma fotografia ou a pintura apenas figurativa não conseguem proporcionar. A imagem como um meio diferencial efetua "a substituição do clichê orgânico, plano da forma já constituído, pelo plano da força e da sensação em devir" (CARVALHO, 2007, p. 50).
A relação paradoxal entre imagens fotográficas e do cinema, pensamento em composição neste texto, somente é possível se não insistirmos nos seus lugares de figuração, ou de codificação, mas de mutações instáveis em desequilíbrio perpétuo, em variação contínua. Aproximar-se-iam pela sensação, já que permanecem na base da percepção; percepção, por sua vez é o que provoca a criação de acontecimentos, a própria matéria comum à filosofia, da arte e da ciência. A sensação abre-se no limiar do sentido, ocorre antes da cognição, pertence ao significado puro.
Entre as imagens, há analogia, mas não contiguidade e semelhança entre o representante e o representado. Embora a imagem fotográfica seja "o exemplo paradigmático de um meio analógico que, ao captar e registrar as emanações de luz do representado, instaura um regime de participação e contiguidade entre aquele e o representante" (CARVALHO, 2007, p. 42), e aqui não é excessivo indicar quão as fotografias vêm participando da constituição de registros e repertórios documentais nas políticas culturais, nosso movimento de relacionar a infância na fotografia e no cinema é agir inventivamente sobre a semelhança das imagens - fotográfica e do cinema - , escavando-as com o que aprendemos com Gilles Deleuze em seus estudos.
Buscar o que aparece bruscamente como o resultado de relações completamente diferentes daquelas de que as imagens são incumbidas de reproduzir: a semelhança surge então como o produto brutal de meios não semelhantes.
"O indivíduo deve aprender a ser como uma criança, o que não significa estar sozinho, significa não se aborrecer consigo mesmo. O que é um indício muito perigoso9
Se o plano de composição da infância com imagens fotográficas em associações heterogêneas com a pintura fez-nos pensar a respeito da irrupção do inumano, na dobra descontínua com o real - extraído da guerra, das crianças, da máscara de gás e do rosto desterritorializado - com as imagens do cinema que estenderemos esse território indiscernível da infância com/pelas imagens acentua-se a "estupidez em cultivar no adulto a nostalgia da infância" (LAURET, 2008. p. 212).
As imagens que escolhemos põem em crítica a "presunção em pensá-la como uma ruptura irreversível com a época superada da selvageria, dos julgamentos prematuros, e do mutismo" (LAURET, 2008, p. 212). Ao fazer um belíssimo estudo do texto de Jean-Fançois Lyotard (O inumano, considerações sobre o tempo), Pierret Lauret indica-nos potências da infância na sua incompletude e insatisfação do que seja realizado perfeitamente em conformidade com instituições, atestando em nós, "com persistência, 'a potência para criticá-las, a dor de suportá-las e a tentação de delas escapar" (LAURET, 2008, p. 212).

Na vocação do discurso de dizer tudo, as imagens de "A infância de Ivan" (de Tarkovski, 1962) e "Os Incompreendidos" (de Truffaut, 1959) são extratos do silêncio, da ausência da fala, da clivagem dos mundos.
Acreditava-se que tal imagem de pensamento projetada na tela do cinema causaria os efeitos pretendidos em quem a ela assistisse. Ora, a possibilidade de fazer o povo ter acesso ao pensamento que poderia iluminá-lo não tornou possível a tomada de consciência coletiva em nenhum lugar, ou melhor, mesmo que possa ter realizado ou afetado consciências, essas não se modificaram em um sentido universal. Talvez, Heiddeger já tivesse antecipado uma distância entre ter a possibilidade 'de' e que essa possibilidade produza seus efeitos esperados. "O homem sabe pensar à medida que tem a possibilidade de pensar, mas esse possível ainda não garante que sejamos capazes de pensar" nos diz Deleuze (2006, p. 203) citando Heiddeger.
Deleuze relacionando a citação acima ao cinema e ao pensamento, dirá que a imagem-movimento não necessariamente garantiria o choque que despertaria o pensamento em nós:
Todos sabem que, se uma arte impusesse necessariamente o choque ou a vibração, o mundo teria mudado há muito tempo, e há muito tempo os homens pensariam [...] Eis portanto que o cinema não passará de uma possibilidade lógica. Pelo menos o possível ganhava nisso uma nova forma, mesmo se ainda faltava o povo, mesmo se o pensamento ainda estava por vir. (DELEUZE, 2006, p.203).
A possibilidade lógica a que Deleuze faz referência ao pensar com as imagens do cinema está nas relações, frágeis, não dissociadas do devir ou articuladas a uma mudança possível. Relações transitórias que dependem da atuação de forças internas e externas a um meio.
Ora, tal transitoriedade das imagens de infância em ambos os filmes citados anteriormente experimentam desvinculá-las da ideia de um sujeito fora da imagem. A imagem poderia, portanto, significar o escape da representação de infância que instituições - escola, por exemplo, mas também a própria perspectivação do olhar - engendram na criança.
Várias obras e pensadores atuam como intercessores de Deleuze para pensar o conceito de imagem, e há sobremaneira uma influência de Bergson e Peirce, mas também atravessamentos de Espinosa e mesmo de empiristas ingleses8, para pensar a filosofia em sua conexão com o cinema. Há uma aproximação mais harmônica com o pensamento bergsoniano, mas não se pode negar a influência de Peirce no modo que Deleuze elaborará a sua "taxonomia" das imagens, rompendo e modificando certas relações anteriormente estabelecidas, fazendo-as variar.
Deleuze (2011, p. 26) apresenta como Bergson teria pensado o problema da imagem, exemplificando que através do esquema pensado por Bergson, imagem e movimento seriam o mesmo e haveria um conjunto infinito de imagens que não cessam de variar umas em relação às outras, sobre todas as suas caras e em todas as suas partes; acrescenta que há "n" caras ou "n" dimensões dentro de um plano, que será denominado plano de imanência. Chamaria imagem porque seria aí que coincide o ser e o aparecer. Seriam imagem e fenômeno em um mesmo sentido: aquilo que aparece. Frisamos o fato de que aparecer não significa que estivesse anteriormente dada fora desse plano.
Como estas imagens não cessariam de variar uma em função das outras, as variações dessas matérias se estenderiam tão longe quanto suas ações e reações. Uma imagem também seria inseparável da ação que exerce sobre as outras e das reações que tem frente às ações que sofre. Este pensamento de Bergson é importante para Deleuze, pois Bergson seria o pensador que teria levado mais longe o pensamento sobre a matéria e, neste ponto, anterior ainda à aparição da imagem vivente, poderia ser colocado um grau de igualdade entre os seguintes termos: imagem = movimento = matéria (um mundo de átomos, por exemplo).
Colocando de outra forma, mas ainda acompanhando o pensamento bergsoniano, Deleuze no dirá que eleito um plano de "n" dimensões (o plano pode ter qualquer dimensão), esse plano poderá ser entendido como um conjunto infinito de coisas que variam em função das outras (sobre todas as suas caras e sobre todas as suas partes).
Este plano, o plano das imagens-movimento será nomeado plano de imanência, ou o conjunto de todos os possíveis. "Diria também que é a matéria de toda realidade, quer dizer que tudo o que atua e tudo o que reaciona, e que é real por isso mesmo, está sobre esse plano. É ao mesmo tempo conjunto de todas as possibilidades e matéria de toda a realidade." (DELEUZE, 2011, p.28).
Sobre o plano de imanência derivam algumas imagens particulares, privilegiadas, e essa imagem não é dotada de nenhuma consciência. O que acontece é que essas imagens privilegiadas recebem ações e têm reações retardadas, ou seja, apresentam um intervalo entre ação e reação. (DELEUZE, 2011, p. 31).
Assim, as imagens que comporiam o plano das imagens-movimento passariam também a poder variar em referência ou função de uma imagem privilegiada. Essa imagem privilegiada será erigida como centro de percepção (Deleuze deixa claro que isso não anula o sistema de variação universal). O surgimento da imagem privilegiada não interferiria no todo composto pelo plano, até porque o plano não é um circuito fechado, é aberto e em devir.
Algumas partes desta imagem especial adquiririam uma relativa imobilidade enquanto outras partes apresentariam uma força ativa desenvolvida, uma possibilidade de movimento despregada. Ou seja, ao invés de ter ação e reação, teriam ações recebidas que adquiriram uma imobilidade relativa, e teriam ações executadas que adquiriram graus de liberdade ou potência particulares. Isso estaria compreendido no intervalo e é efeito do intervalo, portanto não viria de fora da imagem.
Este intervalo, este fenômeno da brecha, propiciaria então uma reação executada que se faz esperar e uma reação retardada que estaria assegurada por outras partes da imagem, pois dispõem de graus de liberdade superiores, garantindo dois efeitos.
O primeiro efeito diria respeito à percepção, uma imagem-percepção que varia respectivamente a um centro de indeterminação, a uma imagem privilegiada. Em outras palavras, a imagem-movimento devém imagem-percepção por relação a um centro de indeterminação.
Outro efeito é que a imagem privilegiada condena algumas de suas partes para transformar a imagem-movimento em imagem-percepção. Adiciona-se um sistema centrado sobre um sistema acentrado do plano, o que faz com que as partes da imagem imobilizada recebam excitações e não reacionem em seguida, têm um intervalo e podemos considerar este intervalo como o cérebro (cérebro = matéria intervalo). Com o cérebro ganhamos um tempo (corte) para uma reação "inteligente", ou melhor, uma reação imprevisível e que ninguém está disposto a reagir às ações sofridas. O cérebro assegura a divisão da excitação em microexcitações. A reação inova em relação à ação sofrida, por ocasionar uma imagem-ação, uma ação adaptada, uma ação nova.
Mas o que aconteceria entre a percepção e uma nova ação? O que aconteceria quando a excitação penetra a imagem privilegiada? Deleuze (2011) aponta que "a excitação passa para dentro, se inserta entre a superfície de recepção e as superfícies de ação e reação. O que penetra é a imagem-afecção. Não é nem um "x" percebe, nem um "x" age, é um "x" sente, e sente algo nele, experimenta. Complementa que quando temos um afeto, não sabemos o que fazer ou perceber" (DELEUZE, 2011, p. 36).
Essa imagem privilegiada "que apresenta uma brecha (o cérebro) consegue isolar uma ação principal. Ao mesmo tempo em que consegue antecipar a ação sofrida, também retarda, o intervalo ganha um pouco de tempo". (DELEUZE, 2011, p. 90). Há a possibilidade do novo. Assim a imagem privilegiada tem chance de produzir novas ações (retardadas), ou seja, ações novas por relação à ação sofrida e suas influências (ações que não derivam imediatamente da ação sofrida). Portanto de um lado a ação isolada e antecipada que poderíamos chamar de percepção, e de outro uma ação retardada, que é nova em relação à ação sofrida.
Distanciaríamos, assim, de atingir uma consciência coletiva, essa também não está fora de cada imagem. A imagem vivente não poderia então captá-la em essência, pois está sempre a variar assim como também não há essência fora da imagem. Não há o mesmo olho nas coisas, e as formas de percepção não deixarão de variar em suas respostas. Neste ponto de vista 'o humano', visto como uma imagem-vivente que apresenta uma brecha especial que o permite pensar, não deixará de diferenciar suas respostas quanto às ações sofridas neste longo processo entre uma percepção e uma ação futura.
Cada 'humano' construirá diferentemente sua vida no seu recorte que opera em um plano de imanência, em que sofrerá processos que colocam uma possível consciência em devir e que só poderá ser intensificada mediante aos encontros singulares com os quais cada um se chocará neste grande plano aberto e em devir.
Ao assistirmos a filmes como "A infância de Ivan" de Tarkovski (1962) e "Os Incompreendidos" de Truffaut (1959), temos a oportunidade de expandir a essência da criança, trincar sua forma e colocá-la em movimento com suas respectivas imprevisibilidade e variação. Tais deslocamentos, paradoxalmente, buscam os expressivos do humano.
Porém, na contramão de uma corrente estruturalista, parece que esses filmes não vislumbram a criança como um ser transcendental, erigida em um plano oculto ou em uma dimensão suplementar regida por códigos e valores invariantes. Tampouco mantêm a criança e a infância herméticas e presas ao poder dos discursos que as legislam e categorizam como universais.
Em um aspecto geral, ambos problematizam rupturas e fissuras na identidade infantil, deslocando-a de sua colonização no senso comum, colocando a infância como passível de remodelagem se as situações demonstradas acontecessem, deixando abertas as perspectivas de uma constituição infantil conectada a uma variação de cada uma das personagens e suas escolhas frente aos acontecimentos que as tomam. As imagens de ambos filmes, entendidas como experiência inédita da transitoriedade entre infância e futuro, são relações de forças que se invertem, tornando únicas e singulares as imagens de Ivan e dos Incompreendidos, ambas sem sentido que a cronologia desejaria narrar, trazendo à tona o acontecimento agudo e surpreendente.
Ao considerarmos os conceitos de infância na perspectiva da filosofia da diferença, não seria possível tomá-los a partir de sua identidade, da análise de juízo e/ou semelhanças de percepção. O "ser" criança se abrirá ao devir criança, mudança de qualidade que possibilitaria desvinculá-la de uma concepção eminentemente ligada à representação. As imagens das crianças, nesses dois filmes, são um corpo que emite "constantemente partículas e seu devir torna-se uma tentativa incessante de fazer o plano que incessantemente se desfaz. Desfaz-se porque lhe falta consistência dos seus devires que só o movimento de reversão oferece no adulto" (GIL, 2009, p. 31).
A infância sai do que é visto como comum e ao que deveria ser assegurado ao senso comum. Quando o Todo muda, ou quando há uma variação do meio, as relações que tínhamos antes com uma perspectiva de infância também mudam. Desse modo, talvez o cinema e suas criações imagéticas de infância tenham tido maior sucesso - do que alguns tipos de fotografa, por exemplo - em evidenciar a mobilidade de conceitos quando chocados em uma zona de variação intensiva com o meio cambiante. Teríamos pequenas atualizações desse campo de virtualidade que pode ser a infância, diferentes pontos de vistas que alguns cineastas tentaram construir e que, quem sabe, podem potencializar a maneira como percebemos ou somos afetados no entre imagens.
Em ambos filmes, a criança "compõe multiplicidades de 'personagens', tentando fazer coexistir em cada uma delas e entre elas as multiplicidades heterogêneas das partículas intensivas [infância]. Mas as personagens são incapazes de construir o plano, e sem o plano elas surgem e desaparecem sem consistência duradoura" (GIL, 2009, p. 31).
Entender essa infância aberta e sempre variável é lançar o humano em um plano de imanência, conservando-se um enigma que nem se consegue dizer, portanto sem fala, sem a palavra que dite regras, prescrições, normas e saber.
O filme dirigido pelo cineasta russo Andrei Tarkovski, "A infância de Ivan" (1962), mescla cenas de sonhos e realidade de um menino russo durante a guerra contra o nazismo. Ivan carrega consigo apenas lembranças de sua infância (momentos com sua mãe, suas irmãs, seus amigos), já que é um personagem ativo durante a guerra. O seu pequeno tamanho (Ivan tem aproximadamente dez anos) devém uma importante ajuda para se deslocar através das trincheiras e dos rios, dificultando sua localização pelos inimigos. Ivan só ascende as suas lembranças infantis em seus sonhos. Tarkovski concebe um filme, inspirado no conto do escritor Bogomolov, com uma potencialidade poética e atento à mudança da concepção de uma infância na qual o meio muda e, portanto, a infância também sofre variações. Ao intercalar o nervosismo da espera entre um bombardeio ou trocas de tiro com os sonhos de Ivan, temos um choque de possibilidades de infância.
A abordagem empregada na representação da guerra era convincente devido ao seu potencial cinematográfico oculto. Ela oferecia possibilidades de recriar a verdadeira atmosfera da guerra, com a sua concentração nervosa hipertensa, invisível na superfície de acontecimentos, mas fazendo-se sentir como um rumor subterrâneo, surdo e prolongado. (TARKOVSKI, 1998, p. 13-14).
O filme dirigido pelo diretor russo não nos permite ser colonizados por uma infância única e invariável. Tarkovski é um artista muito atento às concepções estéticas, e não lhe permite transpor o livro para o filme. Destacam-se as invenções criativas que as imagens do cinema fazem com a criança do conto, emergindo o conceito de infância que nos interessa. Ressaltamos, aqui, a relevância cinematográfica do expressivo com a face de Ivan, território de singularização da infância.
O diretor nos diz o seguinte a respeito da Infância de Ivan: "A obra podia estar inteiramente pronta na minha cabeça. Existe, porém, certo perigo em não ter de chegar a conclusões definitivas: é fácil demais darmo-nos por satisfeitos com vislumbres de intuição em vez de um raciocínio lógico e coerente" (TARKOVSKI, 1998, p. 11). Comovido profundamente pela personalidade do garoto no conto de Bogomolov, Tarkovski chama a nossa atenção para uma personalidade destruída, deslocada de seu eixo pela guerra.
Algo de incalculável, na verdade todos os atributos da infância, havia sido irreparavelmente subtraído de sua vida. E aquilo que ele obtivera, como um presente maléfico da guerra, no lugar do que perdera, achava-se nele de forma concentrada e intensa. (TARKOVSKI, 1998, p.14)
Tanto no conto como no filme, o protagonista morre e não temos a sensação de conforto ou continuidade, ambos terminam aí. O que, segundo Tarkovski, dá à morte do herói um significado especial.
No conto de Bogomolov esta etapa, interrompida pela morte, torna-se definitiva e única. Nela se concentra todo o conteúdo da vida de Ivan, a sua trágica força motriz. Não há espaço para mais nada: é esse fato terrível que nos torna, inesperada e agudamente, conscientes da monstruosidade da guerra. (TARKOVSKI, 1998, p. 13).
Outro ponto destacado pelo diretor em seu interesse pelo conto é que o que constitui o material da narrativa não é o heroísmo das operações de reconhecimento, "mas o intervalo entre duas missões, o que o autor impregnou de uma intensidade inquietante e contida, que lembra uma mola pressionada até seu limite máximo." ( TARKOVSKI, 1998, p.11).
Ivan não descarta suas memórias de infância, continua a conviver oniricamente com elas, mas, no entanto, assume um papel no tempo de guerra, atua nela. Tampouco demonstra um aborrecimento de participar dla, pelo contrário, não que ser excluído de sua atuação, não se conforma com possíveis decisões de que não irá mais participar de missões. Nem no conto, nem no filme somos poupados do "destino" de Ivan, nem somos apaziguados com uma solução que nos reconfortaria. Com a descoberta nos arquivos nazistas da morte por estrangulamento de Ivan, poderíamos ser lançados a mais perguntas sobre a infância inventada por "meio" da guerra nas imagens cinematográficas.
A tela do cinema, muitas vezes, mostra-nos imagens- recordação com as quais nós, como espectadores, não temos ligação histórica ou cultural possível, mas elas podem reter o poder de nos afetar, ou elas podem permanecer virtuais em seu não reconhecimento. Assim é a infância de Ivan.
O conceito de cinema representa sinais de significação (de ser, de vida) que estão em processo permanente de tradução: sutis, desconectados, e sempre incompletos em termos de suas implicações para o todo. Essas ideias de Colman (2011) indicam o lugar privilegiado da imagem do cinema em produzir modos possíveis de existência, como conjunto infinito, uma relação não localizável do tempo, "um fogo subterrâneo que está sempre encoberto" (COLMAN, 2011, p.176).
François Truffaut, um outro diretor de cinema, apresenta-nos imagens e pontos de vistas sobre a infância que são indícios desse fogo subterrâneo. Embora o contexto não seja dessa guerra até então focada neste artigo, o filme nos é mobilizador por trazer algumas dimensões da infância reexistente ao primado da representação e da prisão de significados. Ou seja, dimensionamos as imagens deste filme como máquinas de guerra, em um contexto que não é a do poder militar, estatal, direcionado a resolver questões políticas. Tratar-se-ia de "um fluxo de guerra absoluta que escoa de um polo ofensivo a um pólo defensivo e não é marcado senão por quanta (forças materiais e psíquicas que são como que disponibilidades nominais da guerra)". (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 97).
O filme "Os Incompreendidos" trata da solidão de uma criança. É exatamente isso que queria Truffaut. Por essas vias da imagem da infância que nos arremessa à solidão podemos estender os efeitos do conceito de opsigno, enunciado anteriormente: testemunha e observadores de um presente contínuo...
Antoine passa por todas as instituições modernas sem conseguir se adaptar às normas: não se adequa ao modelo de escola, família, reformatório e escapa de todos os dispositivos regulatórios da infância e seus respectivos projetos moduladores, sem se fixar a nenhum, seja pela expulsão ou pela fuga. Na cena final do filme, é como se nos convidássemos a pensar uma infância mais aberta, menos aprisionada e controlada. Uma saída do espaço estriado e conexão ao espaço líquido - com o mar, e de outro modo, o garoto que não cabe em um molde identitário e deseja um fluxo mais intenso, nomádico e maquínico.
O conceito de máquina de guerra de Deleuze e Guattari é mais uma potência, segundo análise de Marques (2009), atrelada a um fazer e estar nômade, que se move e abala os modelos propostos de uma máquina estatal.
Máquina é uma "construção", marcada por conexões, fluxos de interesses, de desejos e de necessidades, por agenciamentos que levam a uma espécie de organização, uma composição de linhas de vários tipos: as linhas duras, que amarram e levam a segmentações - das instituições e dos territórios, e as linhas que não se deixam aprisionar - das desterritorializações, que eles chamam de linhas de fuga. São estas últimas, com sua multiplicidade e seus devires, com suas linhas-entre, que fazem a máquina de guerra. (MARQUES, 2009, p. 24-25).
Com o estudo dessas imagens relativas à infância, a partir da intercessão dos conceitos da filosofia da diferença, parece premente afastarmo-nos de suas efetuações apenas como documento: as imagens nos mostram tendências, proposições, pontos de vista. Não seria possível uma univocidade do ser infantil: o conceito de infância tomado em sua intensa variação e complexidade poder-nos-á possibilitar um devir-criança.
Ambos os filmes mostram espaços singulares e não caberia pensar as crianças desvinculadas da interação com questões culturais várias que agem e reagem no meio da proliferação das imagens. Assim não há como pensar um modelo infantil e isso já nos dá força para nos afastarmos de um pensamento colonial do qual as imagens de infância participariam.
Essas imagens são um interior e um exterior e um passado (memória) e um presente (subjetividade); são os dois lados de uma única superfície, afirma Conley (2011). A relação entre infância e imagem torna-se tanto um arquivo quanto um diagrama, um conjunto de subjetivações e um mapa mental traçado em função do passado, a extrair os acontecimentos e os elementos da realidade experienciada.
Na síntese conceitual que Conley (2011) elabora, afirma-se que quatro dobras afetam a relação do sujeito consigo mesmo, interessantes linhas para estendermos o pensar imagem e infância. A primeira é a dobra do corpo, a que está circunscrita, espaço-temporalmente pelas dobras corporais; a segunda é a dobra da relação de forças, ou do conflito social; a terceira é a dobra do conhecimento, ou a dobra da verdade na medida em que constitui uma relação da verdade com nós mesmos e vice-versa; a quarta é a dobra do fora de si mesmo, a dobra final do limite da vida e da morte.
Se, para as políticas da representação, as primeiras e segundas dobras a que se refere Conley (2011) reafirmariam sua vitalidade e urgência de com elas seguirmos nas teorizações culturalistas da infância, as duas dobras seguintes lançam-nos o convite para o deslocamento radical que as imagens - fotográficas e das narrativas cinematográficas - nos impelem. Anunciam a necessidade de nos instalarmos em regiões de risco, e abrirmo-nos a outra problemática: pensar uma possibilidade de infância como invenção contínua, resultante dos movimentos de as imagens dobrarem-se umas sobre as outras, tais como nos suscita o exercício de experimentação de pensamento neste texto.
Assumimos, neste pensar, a tarefa da Filosofia de criar conceitos. E um conceito, de acordo com a- significação semiótica, não tem nenhuma referência,
é auto-referencial, postulando-se juntamente com o seu objeto no momento de sua própria criação. Um mapa, ou um diagrama, gera o território em que é suposto se referirem; uma representação estática da ordem das referências dando lugar a uma dinâmica relacional da ordem de significados.
E se nós compreendermos que o diagrama é apenas a menor parte de um plano desenrolado infinitamente, poderíamos planificar nossa perspectiva para obter uma ideia distinta da de uma superfície que recebe e absorve as forças do fora; seria, sim, uma zona estratégica onde relações estão constantemente concatenadas entre as singularidades, e, finalmente, um estrato abaixo, onde se pode dizer que algum conhecimento foi armazenado. Um infinito movimento do movimento infinito, como nos dizem Deleuze e Guattari. Imagem e pensamento coexistem nesse diagrama para oferecer insights para o potencial da vida.
A invenção contínua da infância, pelas imagens que neste texto temos como companhia ao pensamento, acontece por "traçados ou trajetos que não são formados, [e] são um trabalho preparatório, invisível, silencioso e muito intenso, profundamente instável e flutuante" (GODINHO, 2007, p. 194).
As fotografias e as imagens do cinema, que movimentaram nossas análises e composições, podem ser postas a vibrar seus sentidos e significações no encontro com o diagrama - um delineamento sem forma nem substância, nem conteúdo ou expressão - que ou transforma-se em código, e tem uma posição na tela que poderia ser considerada minimalista, ou ocupa toda a tela, evitando o caos, e não deixando que germinem as linhas menores, e o que a mão consegue fazer 'às cegas', segundo Amorim (2012).
É no estudo das pinturas de Francis Bacon que Gilles Deleuze encontra uma possibilidade de o diagrama ser outra coisa, que não o máximo e o mínimo da intensidade, mas que sua presença é que permite que algo saia dele. Essa ideia do efeito do diagrama, como algo que rompe ao que um código quer significar e poder dar sentido, são linhas de pensamento intensas para uma pragmática (e seus conjuntos de signos) que retém o valor dos ícones de relação, mas não se funda na similaridade, um dos nossos principais argumentos para criarmos uma zona de afastamento e indiscernibilidade entre infância e criança, pelas vias das imagens.
Como apreendemos esses "efeitos do diagrama" sobre as imagens de infância nas fotografias da revista-magazine Eu sei tudo e nos entremeios das narrativas do cinema de Tarkovski e Truffaut?
Basicamente ainda por um exercício diagramático ao encontro das diferenças tornadas visíveis, a partir do trabalho do diagrama como uma forma de analogia muito particular - produção de semelhança por meios não semelhantes.
Outra possibilidade, também aprendida com Carvalho (2007), é o diagrama ser a matriz de modulação; "um modulador é um molde temporal contínuo...Moldar é modular de maneira definitiva, modular é moldar de maneira contínua e perpetuamente variável" (CARVALHO, 2007, p.50). O conceito de modulação permite pensar o fazer artístico não como a imposição de uma forma a uma matéria, mas como "elaboração de um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto desde logo a captar forças cada vez mais intensas" (CARVALHO, 2007, p.50). Nitidamente, neste caso, percebemos a ênfase nas forças hápticas e não se centrando no poder da visão, da perspectiva e da operação visual das imagens. As imagens de infância são o material intensivo, derivado das forças que as atravessam.
Se nas imagens estudadas neste artigo, foge-se à "ilustração de um objeto horripilante o a narração de uma história aterradora, o que corresponderia a uma figuração ou aspecto sensacional da imagem" (CAVALCANTI, 2005. p. 18), é com a sensação do grito, da dor e solidão, do sufocamento que experimentamos a infância.
Por fim, e para retornar à ideia que nos é cara na leitura das obras de Gilles Deleuze, o paradoxo da relação diferencial, sem ir à busca das similaridades, é a potência de se entrecruzarem os conceitos de diagrama, analogia e modulação, trabalhados por Carvalho (2007) e apropriados por nós neste artigo na extensão dos territórios das imagens de infância em contextos da guerra. O que percebemos foi a constituição de um bloco de devir entre as imagens, tão distintas entre si e que, pelos traços de inacabamento e da variação contínua, capturam as forças uma da outra, estabelecem relações entre as suas singularidades num plano virtual.
O artista é o mestre do devir, feiticeiro do acaso diagramático em busca da semelhança mais profunda que nada no modelo deixava adivinhar e que nenhum método teleológico consegue alcançar, semelhança que não é conformidade do quadro aos clichés e formas do visível, mas que se define unicamente pela intensidade da sensação com que se compõe
A sensação é força desejante no traçado de diagramas que nos propusemos a realizar. Entre palavras e imagens, trabalhamos o conceito de infância juntamente com outros conceitos, mostrando como eles relacionam-se com todo um processo de produção de transformações. Ao final, o que se coloca como questão em aberto são as potências das imagens da infância como produtoras de um sujeito resultante de experimentações de intensidades.
Trabalhamos, no traçado de diagramas, muito mais com heterogeneidades disjuntivas postas em planos de composição por fotografias, pintura e cinema. Aprendendo com Basbaum (2006), a experimentação das intensidades das experimentações inclui a metamorfose em um novo sujeito como possível resultado deste processo.
As imagens de infância que nos são tateadas pelas crianças nas obras apresentadas neste artigo são atravessadas pelo 'sim' que ganha uma nova força e função. "A criança diz sim ao que ainda não está dado, querendo dizer como isso que aquilo que está dado tem que ser superado para o que o novo aconteça e se torne real, tanto ao nível pessoal como ao nível coletivo e político" (LUIZ, 2008. p. 20).
As imagens de infância debruçam-se sobre os acontecimentos como superfície que se inscreve o sentido em multiplicidades. Nosso trabalho criativo, de invenção de conceitos de infância com imagens tão diferentes entre si, indica que, politicamente, a possibilidade de se encontrar nas multiplicidades algum tipo de reconhecimento e de recognição dos "sujeitos culturais" será tão mais profunda quanto maior a intensidade de sensação que se conseguir apresentar com tais imagens.
As imagens são, especialmente, um motivo para se estender um território vivo para o pensamento paradoxal persistir. Sem resolver entre uma e outra parte, apostando-se no meio, nas fendas e nos interstícios da criação.



