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"Precisamos falar do recreio!" - a construção do comum pelas crianças na escola
"we need to talk about break-time!": the construction of the common by children in school
"necesitamos hablar del recreo!" La construcción de lo común por parte de los niños en la escuela
Childhood & philosophy, vol. 14, núm. 29, pp. 129-148, 2018
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

DOSSIÊ


Recepção: 27 Setembro 2017

Aprovação: 03 Dezembro 2017

DOI: 10.12957/childphilo.2018.30560

Resumo: O presente artigo analisa as possibilidades de produção do comum na escola pelas crianças. A escola tem favorecido o desenvolvimento de individualidades centradas em objetivos de auto-realização pessoal e desempenho individual e competitivo. Para além destas identificações que promovem os interesses pessoais e a própria sobrevivência, a convivência com os outros na escola coloca desafios e demandas que possibilitam às crianças se mobilizarem na produção coletiva de sentidos e ações, espaços e territórios. Neste trabalho, a questão do recreio se torna o dispositivo pelo qual as crianças instituem pontos de vista singulares que refletem, ainda que de forma efêmera, pontual e transitória, seu lugar geracional distinto na escola. Ao discutir os resultados de uma pesquisa empírica em uma escola municipal do Rio de Janeiro, buscamos argumentar pela presença da "voz pública das crianças" nos processos de coletivamente se engajarem na recriação da vida escolar. Concluímos pela relevância de se pensar a aproximação entre o campo da infância e o da política/o quando se torna necessário responder à pergunta sobre o que a infância deve ter a ver com a democracia.

palavras-chave: infância, comum, recreio, escola, subjetivação pública.

Abstract: The present article analyses the possibilities of producing the common in school by the children. Schools have favoured the development of individualities centred on aims of self-realization and individual competitive performance. Beyond these identifications that secure personal interests and survival, the conviviality with the others in school poses demands that allow for children's mobilization in the construction of collective senses, actions, territories and social spaces. In the present work, the issue of the break-time constitutes the dispositif whereby children institute, however ephemerally and punctually, singular points of view on their particular gerational position in school. We discuss the results of an empirical research carried out in a municipal school in Rio de Janeiro and argue for the "public voice of children" in their process of collectively engaging to recreate the school context. We conclude considering the relevance of bridging the distance between the fields of politics and childhood as it seems necessary to give an answer to the question about what childhood has to do with democracy.

Keywords: childhood, common, break-time, school, public subjectivization.

Resumen: El presente artículo analiza las posibilidades de producción de lo común en la escuela por parte de los/las niños/as. Las escuelas han favorecido el desarrollo de las individualidades centradas en objetivos de auto-realización y desempeño individual y competitivo. Más allá de esas identificaciones que promueven los intereses y la sobrevivencia personales, la convivencia con los otros en la escuela plantea desafíos y demandas que le posibilitan a los/as niños/as la movilización en la construcción colectiva de sentidos y acciones, espacios y territorios. En ese trabajo, la cuestión del recreo se vuelve el dispositivo por el cual los/las niños/as instituyen puntos de vista singulares que reflejan, aunque sea de forma efímera, puntual y transitoria, su particular lugar generacional en la escuela. Al analizar los resultados de una investigación empírica en una escuela municipal de Rio de Janeiro, se busca presentar la "voz pública de los/las niños/as" en su proceso de movilizarse colectivamente en la recreación de la vida escolar. Finalizamos esa contribución con la consideración de la relevancia de aproximar los campos de la infancia y de lo/la político/a, una vez que parece necesario responder a la pregunta sobre lo que la infancia tiene que a ver con la democracia.

Palabras clave: infância, común, recreo, escuela, subjetivación pública.

"Precisamos falar do recreio!" - a construção do comum pelas crianças na escola

Introdução

Fazer do recreio das crianças na escola o foco explícito da reflexão no presente trabalho significa perguntar-se sobre as diversas formas de as crianças habitarem e criarem o espaço escolar. Estudar é, sem dúvida, o mais óbvio motivo, entre crianças e adultos, de ir para a escola. No entanto, pretendemos inquirir sobre motivos menos óbvios, e mais do que isso, como tais motivos de estar e conviver na escola possibilitam experiências de participação coletiva e de construção do que pode ser comum.

Afinal, de que se trata quando aludimos à ideia do comum? Recentemente, o resgate da noção do comum (DAVID; DÉVÉDEC, 2016; DARDOT; LAVAL, 2014; BOLLIER, 2013; KLEIN, 2001) tem nos inspirado para pensar alguns caminhos de aproximação entre a infância e o político (CASTRO; GRISOLIA, 2016). Dardot e Laval reivindicam o comum como o princípio da atividade política que permite construir uma relação e uma comunidade de ação. Certamente, estes autores nem de longe estariam aludindo ao mundo das crianças, considerado pré-político para teóricos à esquerda ou à direita; a perspectiva em questão foca-se nos percalços atuais da democracia representativa e como as lutas contemporâneas tem posto em questão os limites do Estado enquanto ator encarregado de promover o comum. As contribuições recentes têm enfatizado a importância desta noção tendo em vista que é impossível combater o 'sistema' sem inventar outras formas de fazer sociedade e política. O comum destaca-se, portanto, como o público não-estatal (DARDOT; LAVAL, 2014), porque institui comunicação, ação e partilha entre as pessoas, não necessariamente iguais, mas quem, operando pela reciprocidade e cooperação (LAVAL, 2016), criam comunidade. Não cabe aqui uma longa tratativa deste conceito, mas apontar como ele fertiliza a interface, que nos parece possível construir, entre a infância e o político. No sentido que queremos avançar neste trabalho, as crianças poderiam incluir-se também em práxis instituintes de produção do comum na medida em que estabelecem conexões entre as atividades que as engajam coletivamente frente ao mundo externo, as coisas e pessoas que a rodeiam.

A divisão público-privado da sociedade moderna colocou as crianças como objeto de cuidados e proteção dentro do espaço privado da família. Como sujeitos sociais cuja ação não se incluía nas deliberações sobre os destinos comuns, seu valor como cidadãs estava atrelado a ser no futuro. Desta forma, as crianças ficaram marginalizadas da participação em diversas esferas da vida pública. Essa foi construída por adultos e para os adultos, e considerando o próprio bem das crianças, elas deveriam se afastar do enfrentamento dos dilemas e embates do mundo público ao longo do período em que, se supunha, não possuíam condições psicológicas e morais de enfrenta-lo. Nesta veia, a política e a construção do que é público sempre foram pensadas como avessas à condição de incluir a participação das crianças.

A escola é um contexto relevante para se investigar como as crianças se engajam em ações coletivas que, a despeito de serem autorizadas ou não pelos adultos, recriam o espaço escolar e as relações entre elas e com os adultos. Ainda que a participação das crianças na escola esteja sob a égide da autoridade e da posição hierarquicamente superior dos adultos, hoje parece haver disputas quanto aos sentidos e prerrogativas relacionadas a ser mais velho e a ter autoridade. Novas gramáticas intergeracionais são experimentadas na escola, quando a criança tem que enfrentar os desafios da convivência com adultos não familiares, e com pares que suscitam emoções intensas e diversas, agradáveis ou não (MEJIA-HERANDEZ, 2017). Hoje a convivência harmônica na escola não é um dado, um aspecto institucional de onde se parte, mas algo a se construir tenazmente por todos os que nela convivem.

O objetivo deste trabalho é inquirir sobre as possibilidades de produção do comum na escola pelas crianças. Neste âmbito, considera-se que estão em curso não somente processos sociais e políticos, mas, necessária e concomitantemente, processos de subjetivação. Ou seja, o comum, o público-não estatal, não abrange apenas operações que evidenciam a produção de uma comunidade em ação, mas, também, aquelas disposições subjetivas implicadas neste movimento de mobilização e ação em torno de um mesmo objeto. Assim, buscamos compreender o processo de produção de subjetividades públicas infantis no espaço escolar tendo em vista o quê ele oportuniza em termos de deslocamentos subjetivos demandados pelo processo de identificação com o comum. A escola tem favorecido o desenvolvimento de individualidades centradas em objetivos de auto-realização pessoal e desempenho individual e competitivo. Para além destas identificações que promovem os interesses pessoais e a própria sobrevivência, a convivência com os outros na escola coloca desafios e demandas que possibilitam às crianças se mobilizarem na produção de sentidos e ações, espaços e territórios, quando a escola se recria, então, segundo seus pontos de vista, ainda que de forma efêmera, pontual e transitória. Neste sentido, elas habitam a escola de formas inesperadas e singulares, deslocando as expectativas dos adultos e promovendo modos distintos de estar na escola. É nesta trilha por onde enveredamos neste trabalho visando dar lugar aos modos como as crianças coletivamente se engajam na recriação da vida escolar.

A escola como espaço público? Pode-se estar longe dos infortúnios da vida coletiva?

A escola é um 'mundo' fundamentalmente construído por crianças e adultos. Neste sentido, é um contexto ímpar que coloca as duas gerações em confronto e em diálogo frente ao objetivo comum, que é a transmissão educacional. Compreender tais confrontos e diálogos hoje - suas vicissitudes, afetos e emoções, e seus impasses - possibilita compreender como o objetivo comum se torna efetivo e real nas suas consequências para os atores envolvidos, estudantes e profissionais da educação. São eles que devem entender, precipuamente, o que é deles demandado, e como devem caminhar em prol da consecução deste objetivo. A transmissão se faz não sem lacunas e embates. Melman (1994) coloca que quando o adulto educa, evidencia-se a distância entre ele e o ideal que ele prega, ao qual ele remete o aluno. Assim, os adultos e as crianças estão juntos no processo de transmissão, educando-se simultânea e reciprocamente. Os adultos devem se lembrar que o que dizem às crianças representa o que eles mesmos devem buscar, ao mesmo tempo em que as crianças são lembradas do que devem almejar como ideal.

Frequentemente, a escola foi vista como extensão do lar. Sobretudo, no âmbito de uma concepção liberal em que a educação escolar se constitui um valor sobre o qual a decisão parental é decisiva e fundamental, a escolha da escola deve dar continuidade ao que os pais desejam para seus filhos. Nesta perspectiva, espaço escolar e doméstico compõem um conjunto contínuo de interesses privados das famílias. Deve-se perguntar, no entanto, o que acontece quando é o Estado que, fundamentalmente, decide como, onde e quando deve acontecer a educação das crianças. Neste sentido, vai haver dilemas e conflitos entre o espaço privado doméstico e o espaço público da escola, uma vez que este último se torna menos harmonioso ao abrir porosidades para a entrada das diferenças e embates do mundo público para dentro da escola.

Foi exatamente este cenário que provocou a reflexão arendtiana no seu texto Reflexões sobre Little Rock (2004). Arendt argumenta contrariamente à exposição das crianças aos dilemas das relações raciais conturbadas nos EUA. Pelo fato de se haver promulgado uma lei que obrigava o acolhimento de crianças negras nas escolas públicas, como uma política de integração social, Arendt (2004, p.275) assinala a inadequação da medida já que as crianças teriam que enfrentar problemas que pertenciam à sociedade adulta, e não a elas: "pretendemos ter as nossas batalhas políticas travadas nos pátios das escolas?", pergunta ela. Resolver o problema do racismo trazendo os conflitos e tensões do mundo público para dentro da escola seria, para a autora, intrometer indevidamente a política em um espaço destinado à transmissão da tradição e à proteção da infância que deveria ter a família e a escola como escudos "contra o aspecto público do mundo" (ARENDT, 2005, p. 234). O que é importante notar no texto de Arendt é como a autora concebe as leis de des-segregação racial como causa de um conflito desnecessário entre lar e escola, embora tais conflitos estivessem fartamente presentes no mundo público, nas ruas, em todos os lugares. Conflito desnecessário porque a escola deveria ser um mundo que protege a criança, tal como o lar; visão, sem dúvida, conservadora e inadequada de Arendt, como se se pudesse atribuir à família, e também à escola, este lugar de santuário (VULBEAU, 2001), livre de tensões, conflitos e violências. Além disso, para Arendt (2004, p. 281), as crianças deveriam ser protegidas, já que, como sujeitos incapazes de ter "voz pública própria", têm que se fazer representar pelos pais quanto a seus interesses. E os pais, para Arendt, não desejam que as crianças sejam expostas a dilemas do mundo público que os próprios adultos não sabem como solucionar.

Arendt argumenta que o mundo escolar e o mundo político devem andar separados: no primeiro, parte do mundo social, vigem as simpatias e antipatias, as distinções e diferenças entre pessoas e grupos. Aí, as pessoas se associam conforme seus gostos, semelhanças e inclinações pessoais. Por isso, os pais devem zelar para que a escola não onere as crianças com conflitos desnecessários - o que legitima a escolha de escolas cujos valores se assemelham aos dos pais. As crianças estão na escola para se preparem para o futuro e não para sofrerem indevidamente os desgastes da vida pública. Apenas no mundo político vige a igualdade, princípio que aí se origina e aonde ele deve estar circunscrito: nele todos somos iguais, e a igualdade se encarna na possibilidade de votar e ser votada, quintessência da cidadania moderna.

O que é relevante na discussão arendtiana para este trabalho concerne dois aspectos principais: em primeiro lugar, nos propomos a problematizar e discutir, a partir do estudo empírico que se segue, a visão de que as crianças "não teriam voz pública própria", ou seja, seriam incapazes de se mobilizar e enunciar para o outro seus interesses, causas e experiências a partir da posição singular em que se encontram. Em segundo, queremos problematizar a visão da escola apenas como mundo social, em que as questões do mundo público - condicionadas pelos conflitos e desgastes instaurados pelo princípio da igualdade - não lhes dizem respeito. Ao contrário, parece que ao evadir-se das questões dilemáticas do mundo público, se é que consegue faze-lo, a escola aposta em uma formação conteudista e alienada do que se passa ao redor, privilegiando igualmente uma cidadania exercida apenas quadrienalmente pelo voto. Nesta veia, nos distanciamos de Arendt quando esta afirma a igualdade como princípio do mundo político/público, já que esta concepção formalista da igualdade não leva em conta as desigualdades de ordem econômica e cultural que estruturam o mundo político e o entranham de assimetrias e desigualdades (FRASER, 1992).

Parece que o mundo da escola, público como estamos propondo neste trabalho, está entranhado dos conflitos inerentes à convivência coletiva - entre pares e entre adultos e crianças. Sabemos que para as crianças é especialmente difícil construir uma voz pública neste contexto, uma vez que as posições hierárquicas que o caracterizam em detrimento da criança, qualificam as crianças, justamente, por sua inferioridade e incapacidade. No entanto, supomos haver processos de subjetivação pública na escola que ocorrem em torno de inúmeras situações em que as crianças, ao compreenderem o caráter compartilhado de situações de injustiça ou humilhação, mobilizam-se na direção apontada por Palshikar (2009) - aquela de transformar o evento traumático num embate, ou o sofrimento solitário e psíquico na ação coletiva. No entanto, no cenário hierarquizado e individualizado da transmissão escolar nem sempre as situações de constrangimento encontrarão formas explícitas de contestação e/ou revolta, mas podem ser matrizes para fazer decantar e emergir sentidos comuns que atravessam a experiência individual de sofrimento. Frequentemente, quando tal compreensão emerge, ela justifica a indignação e o sentido de que "algo está errado" ou "isto não deveria ser assim". Estas expressões veiculam uma demanda por justiça e reciprocidade pelas crianças conduzindo à visão das relações inter-geracionais como uma ordem política e ética (GARNIER, 2014). É neste sentido que pretendemos avançar na noção de subjetivação pública discutindo algumas situações de pesquisa.

Na escola com as crianças: precisamos falar do recreio!

Vamos analisar uma situação de pesquisa que se desenvolveu em uma escola pública municipal entre meados de 2015 e início de 2017, situada na Zona Norte do Rio de Janeiro. A escola funciona em um prédio antigo, tombado, fato que não permite uma reconfiguração de suas características físicas e espaciais. Segundo estimativa da Direção, há um total de 630 alunos na escola, considerando as turmas do período da manhã, que é compreendido das 7h30 ao 12:00, e as do período da tarde, das 13:00 às 17:30. Existem na escola quatro turmas de jardim, duas de 1º ano, duas de 2º, uma de 3º, duas de 4º, duas de 5º, uma de 6º, duas de 7º, duas de 8º, duas de 9º, uma de realfabetização e uma de reaceleração. A entrada na escola pela equipe de pesquisa foi solicitada às autoridades educacionais e autorizada.

Ao longo de 2015 a equipe de pesquisa esteve na escola semanalmente, participando das atividades de forma informal: conversando com as crianças no pátio, nos horários do recreio e merenda; participando das salas de aula com alguns professores dos turnos da manhã e tarde; conhecendo e conversando com professores/as, coordenação, funcionários e inspetores/as. Neste período foi possível entrar em contato com o funcionamento da escola e conhecer as crianças e os adultos. A equipe visou mapear algumas pistas de investigação levando em conta na observação os seguintes aspectos gerais: o que parece relevante na vida escolar para os seus diferentes atores, como os espaços são compartilhados, como as crianças relatam sobre o que vivem na escola, do que se queixam, quais suas dificuldades; como se apresenta o relacionamento entre adultos e crianças, do que se queixam os professores/as, como os pais frequentam a escola. Objetivamos olhar tanto para o que aparecia como para o que ficava latente na comunicação e no compartilhamento entre crianças e adultos e entre elas; quais práticas se revelavam constrangedoras, difíceis, prazerosas e elogiáveis; o que era permitido, o que gerava desconforto e repreensão.

Ao final de 2015, pudemos sistematizar as observações e extrair dois eixos de interesse para a continuidade do trabalho. Estes dois aspectos se destacaram porque se caracterizaram pelo modo particular de as crianças qualificarem algumas experiências escolares. É como se elas pudessem mostrar que tinham 'opiniões próprias' sobre alguns aspectos do funcionamento escolar, provendo, inclusive, justificativas sobre como suas opiniões divergiam daquelas dos adultos. Um dos aspectos foi o recreio, situação bastante referida pelas crianças como gerando queixas pelos seguintes motivos: ser curto - apenas 15 minutos; por não haver espaço na escola para brincadeiras, por conta das diversas proibições relacionadas a ele - por ex. não poder correr na escola, muito menos no horário de recreio; por não haver bola para jogarem. Além disso, o recreio, segundo as crianças, concorria com a merenda já que os dois ocorriam juntos no mesmo horário, o que muitas vezes fazia com que tivessem que escolher entre merendar ou brincar. O outro aspecto referia-se à representação de turma e aos representantes de grêmio: as duas situações de representação não eram bem compreendidas na sua função e qual a sua importância na escola. Neste trabalho, vamos nos deter na análise do recreio.

A segunda etapa do trabalho, ao longo de 2016, teve como objetivo aprofundar a questão do recreio na escola, junto às crianças. Foram escolhidas as turmas de 5o e 6o anos, dos dois turnos, quando a equipe buscou focar a temática do recreio tanto nas conversas como nas diversas atividades. As crianças puderam se expressar de diferentes modos: fazendo histórias sobre "um recreio diferente"; vendo filme sobre o tema e conversando depois; tirando fotos do recreio; fazendo colagens e desenhos sobre temas relacionados ao recreio; conversando sobre o que fizeram. Todo este material foi analisado tendo em vista poder qualificar como as expressões das crianças demarcam uma posição distinta e particular que sinaliza uma recriação da práxis escolar, uma forma de trazer para si a prerrogativa de habitarem este espaço de forma própria, como elas creem que podem e devem fazê-lo.

Na discussão que se segue, exploramos como o recreio é produzido como um comum das crianças na escola.

I - O comum é construído na vivencia intensa e móvel do corpo, do movimento, do estar junto com o colega: na criação de um espaço-tempo denso, anímico e coletivo

Nas várias atividades que as crianças realizaram sobre o recreio se mostram práticas compartilhadas do brincar, do interagir, do estar livre e sem o controle dos adultos; do jogar, do correr e do conversar e conhecer os colegas. É o espaço-tempo da diversão - ação que diverge em relação ao corpo parado, mudo e imóvel da sala de aula; espaço-tempo das emoções compartilhadas e da experimentação. O recreio não se constitui, prioritariamente, como um objeto discursivo sobre o qual as crianças discorrem e convergem nas suas apreciações. É, antes de tudo, um espaço-tempo vivido com intensidade e emoção, coletivamente construído como adesão entre crianças, pertencimento e identidade. No recreio e por meio do recreio, as crianças conseguem afirmar a escola como sendo delas: aliás, como disse uma delas, "sem recreio a escola não existe". No entanto, não é a escola do dever, do obedecer à professora, do escrever e ficar calado: é a escola recriada pelo estar junto e poder conhecer-se e conhecer o outro por meio da brincadeira e da interação autotélica.

Ao serem demandadas a fotografar aspectos do recreio, as crianças focam o movimento dos corpos, nos jogos, e no seu enlaçamento com o outro. O recreio é partilha do espaço e do território da escola, e também é reinvenção destes, porque, por exemplo, não dá para seguir literalmente a regra de é proibido correr na escola. Neste sentido, no recreio se instituem outras práticas de convívio e o uso de espaços de forma menos constrangida pela autoridade do adulto.

Nas fotos que se seguem, as crianças expõem a vivacidade da hora do recreio, no que esse potencializa a descoberta, a experimentação livre e a interação entre pares.


Figura 1:
No recreio: correndo com os amigos


Figura 2:
No recreio: interagindo com os amigos


Figura 3:
No recreio: jogando bola sem bola

Foi unânime como as crianças se referiram ao fato de o recreio reinstituir o sentido da escola, suplementando o sentido de aprender com o professor a partir da perspectiva da própria criança. Uma criança diz: ... (o recreio) serve pra descansar a mão pra depois do recreio entrar na sala com mais energia pra fazer as tarefas sem reclamar... Ou outra: ... o recreio para mim é brincar e ser feliz. Nesta veia, as crianças recusam a promessa de uma felicidade a ser obtida muito mais tarde já que elas têm a oportunidade de ser feliz no agora. Mesmo que comprometidas com a tarefa - que cansa a mão (!), é o recreio que traz vida e vigor tornando-as capazes e abertas para o aprender. Foi também unânime a expressão das crianças de que a melhor parte é quando o recreio começa, e a pior, quando o recreio termina. É como se a demarcação do melhor, pelo seu início, sinalizasse o quanto há de bom para se usufruir ainda, a boa perspectiva de um horizonte de possibilidades. Portanto, a melhor parte não está essencializada em alguma brincadeira ou atividade, ela reside, sobretudo, na expectativa que a abertura à experimentação provoca. A pior parte é quando se fecham as possibilidades desta experimentação - o fim do recreio. A figura abaixo ilustra estes afetos e emoções.


Figura 4:
A melhor e a pior partes do recreio

II - As crianças produzem o comum ao instituir o lugar singular de sua experiência coletiva na escola

De forma afirmativa, as crianças se posicionam frente as opiniões dos mais velhos de quem, frequentemente, divergem. A experiência das crianças na escola não se assimila à dos adultos - professores e pais, e sua narrativa expõe de forma bastante clara e lúcida as razões pelas quais elas desafiam o ponto de vista dos adultos. A situação colocada pelo recreio é um exemplo. As crianças expõem a limitação da escola que não oferece espaço adequado, como um pátio ou uma quadra onde poderiam brincar mais livremente no recreio. Por outro lado, queixam-se da exiguidade do tempo de que dispõem, somente 15 minutos, quando têm que merendar e recrear ao mesmo tempo. Denunciam a injustiça de ficar sem recreio desaprovando a atitude dos professores que usam desta prerrogativa para lhes subtrair o que sentem como "delas", algo que demarca seu lugar como criança, sua forma particular de existir na escola.

Em algumas narrativas, conversas e descrições mostradas nas figura abaixo, podemos ver estas opiniões das crianças.


Figura 5:
A visão singular das crianças sobre o recreio

Além disso, as crianças reiteradamente afirmam que suas opiniões sobre a importância do recreio não decorrem de interesses estritamente pessoais. Elas nomeiam o caráter coletivo desta experiência como se ela não pudesse se conceber como algo que pertence somente a um ou alguns poucos. Neste sentido, destacamos que as narrativas sobre o recreio não conduzem a que percebamos o recreio como um "bem comum" das crianças, algo que elas possuem e é só delas. Até porque em muitas histórias que fizeram sobre o recreio, as professoras e a diretora acabam participando da "festa do recreio", do que esse promove de experimentação e aventura. Assim, precisamente, percebemos o recreio como o princípio que lhes permite a experimentação livre e estar fora do comando do adulto, a mobilização coletiva que instaura uma alternativa às rotinas e ao status quo da escola. Essa alternativa é o que as sustenta e as energiza frente ao que pode ser enfadonho e não ter sentido na experiência escolar.

III. A produção do comum na escola pelas crianças: o difícil endereçamento ao adulto do que concerne às crianças

Na escola, as crianças parecem ser capazes de emitir suas opiniões, valoriza-las e, até mesmo, confrontar o adulto quando esse pensa diferentemente delas. Por outro lado, o endereçamento ao adulto que, frequentemente não a escuta (CASTRO; COLS, 2010), é espinhoso para a criança. Crianças e adultos se posicionam em posições distintas, assimétricas e hierárquicas, para a desvantagem da criança. Mesmo assim, o campo de controvérsias que se cria em torno do que as concerne se estabelece, embora camuflado. O enfrentamento do adulto, que sabe e pode mais, parece acontecer de forma velada em que os conflitos são desdramatizados: as discordâncias, no seu potencial de agredir o outro, tornam-se brincadeiras, quase piadas.

Ao se aproximar a infância e a/o político, como dois campos conceituais que sempre estiveram apartados, coloca-se a tarefa de revisitar a noção de político/a tal como foi produzida nas teorias políticas cujo modelo subjacente de subjetividade se circunscreve à pessoa adulta. Assim, na escola, e com crianças, a emergência do político se reveste de aspectos particulares relacionados às distinções cada vez mais acentuadas nas posições da ordem geracional. Considerando que a formação de um campo adversarial em que se disputam diferentes visões e concepções - de ser e conviver - constitui condição de produção do político, pensamos que tais antagonismos entre crianças e adultos advêm, principalmente, da lenta transformação do processo de filiação. A ordem das identificações parentais se transforma e passa a abrigar identificações outras além daquelas das crianças com a geração dos mais velhos. Assim, sobrepõem-se às identificações com os mais velhos as identificações com os pares, os semelhantes, criando outros vetores de ação e mobilização (KEHL, 2000). As crianças, ao extraírem possibilidades de identificação horizontal, criam outros laços e recriam o mundo diversamente de como posto e comandado pelos adultos. As posições geracionais - jovens e adultos - passam a distinguir-se como lugares que detêm diferentes perspectivas, algumas vezes opostas. Neste sentido, podemos falar de um processo de "politização das relações intergeracionais" (CASTRO; NASCIMENTO, 2013) na medida em que a singularidade da posição geracional dos mais novos tem surgido como um novo aspecto que matiza as relações sociais. Até hoje a geração mais velha tem assegurado sua posição de vantagem sobre os mais novos nas decisões que os concernem; contudo, lentamente, outros cenários se anunciam em que a geração mais nova tem questionado sua posição de desvantagem de participar na construção do mundo ao redor.

Abaixo trazemos dois momentos desta pesquisa que ilustram os embates velados que as crianças têm com os adultos no processo de afirmar um ponto de vista geracional distinto. Entretanto, estes embates mostram a tortuosidade dos conflitos, sempre minimizados, mas que não deixam de se apresentar.

O seguinte fragmento da discussão entre as crianças (A) de uma turma, seu professor (F) e a assistente de pesquisa (C) apresenta as tentativas do professor de convencer os alunos de que o recreio serve também para estudar e ler. Uma das crianças anui ao desejo do professor, enquanto outras resistem o quanto podem. O professor resiste também escutar e dar lugar às discordâncias expressas pelas crianças.


Figura 6:
O difícil endereçamento do comum pelas crianças frente ao adulto

No excerto seguinte, as crianças falam abertamente de como veem a importância do recreio. Usam expressões em que se pode notar alguma hostilidade que é logo depois minimizada pelos risos e disfarçada com outras respostas.


Figura 7:
O difícil endereçamento do comum das crianças frente ao adulto.

Em ambos os excertos, os risos aparecem para aliviar a tensão provocada pelas oposições verbalizadas pelas crianças e que podem ser sentidas como hostis pelo professor. Aqui se trata de crianças entre 10 e 12 anos que tentam, de forma velada, colocar seus pontos de vista sabendo que esses divergem do que é delas esperado. Assim, o endereçamento que parece possível às crianças fazerem sobre suas demandas comuns aparece na sua fugacidade e "deformação", quando se disfarça seu potencial de opor por meio de expedientes como a ambiguidade, o humorístico e a obliquidade.

Considerações finais

Buscamos analisar neste trabalho a existência de práticas instituintes de produção de um comum na escola pelas crianças, quando essas assumem um lugar geracional distinto capaz de qualificar singularmente sua experiência. Faz sentido, portanto, argumentar pela "voz pública das crianças" cuja produção assume, sem dúvida, aspectos muito particulares: antes de tudo, não se faz de modo precipuamente discursivo, resultado de deliberações racionais e calculadas. Pelo contrário, tal "voz" assume características relacionadas à condição de existência das crianças e se distingue como um processo de produção de sentidos por meio de movimentos do corpo, afetos, enlaçamentos no espaço-tempo com o outro, territorialização de espaços. Argumentamos, também, que esta "voz pública" da criança parece ser condição de um processo de transformação das relações geracionais em que as identificações horizontais - com os pares - deslocam a centralidade das identificações com a geração dos mais velhos. Neste sentido, torna-se questão o lugar geracional em que cada um se coloca, e como a posição geracional pode constituir a perspectiva que determina e informa a visão de mundo e dos valores. Neste sentido, propomos conceber este processo como uma "politização das relações geracionais" cuja compreensão mais aprofundada ainda se torna necessária no cenário atual das relações entre crianças e adultos.

Enfim, compreendemos que a aproximação do campo da infância com o campo da política/do político requer ainda esforços. Colocar a relevância da participação das crianças na vida social tem sido quase um lugar comum nos estudos atuais sobre infância (ALDERSON, 1999; HILL et al., 2004; SINCLAIR, 2004). No entanto, a aproximação de que estamos falando demanda o trabalho teórico-conceitual de revisitar noções caras às teorias da sociedade e da política, como as noções de democracia, espaço público, e mais recentemente, a noção do comum, para se perguntar: o que a democracia (....) tem a ver com a infância? O que a infância deve ter a ver com a democracia? Responder a tais perguntas torna-se, hoje, necessário e urgente.

referências

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