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Experiências de escola: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica1

School experiences: an attempt to find a pedagogical voice

Experiencias escolares: un intento por encontrar una voz pedagógica

Maarten Simons
University Of Leuven, Belgium
Jan Masschelein
University Of Leuven, Belgium

Experiências de escola: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica1

Childhood & philosophy, vol. 13, núm. 28, pp. 649-669, 2017

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Recepção: 13 Abril 2017

Aprovação: 15 Junho 2017

Resumo: É curioso notar como a aprendizagem e a educação são tratadas por filósofos e teóricos políticos e sociais. Em nossa contribuição, discutiremos os 'filósofos da aprendizagem social' (por exemplo Habermas e Latour), os filósofos-da-infância (como exemplos Lyotard, Agamben e Arendt) e os 'filósofos-do-jogo' (por exemplo Wittgenstein). Desde a perspectiva desses adultos ou amadurecidos filósofos e teorias, a aprendizagem é instrumentalizada e, como consequência, sempre marginalizada, ridicularizada ou - quando admitida - celebrada como um caso, exemplo ou metáfora especial. Na medida em que a importância da aprendizagem é reconhecida, trata-se de aprendizagem 'natural', certamente não de escolarização 'artificial'. Nesta contribuição, queremos exatamente falar pedagogicamente acerca do que está em jogo na aprendizagem escolar. Ao invés de narrar as (boas, más, grandes, loucas) experiências de aprendizagem, esta linguagem pedagógica busca dar voz à experiência enquanto aprendizagem escolar. Não a experiência de uma condição na qual alguém (ainda) não é capaz de, por exemplo, escrever ou contar. Tampouco a experiência de (já) ser capaz de escrever ou contar. Experiência escolar é aquilo experienciado no momento em que escrever ou contar se torna uma possibilidade; o que é experienciado antes de ser capaz de escrever, mas depois de não ser capaz de escrever. Experiências de escola referem-se à experiência comum de 'estar-em-meio-a' (coisas), a experiência de um curso de vida interrompido onde novos cursos se tornam possíveis, a experiência de conhecimento e capacidade depois de cometer um erro. Queremos argumentar que, de uma perspectiva pedagógica, a escola não é uma instituição, mas sim a organização sempre artificial de tempo, espaço e matéria à qual você tem que ir para essas experiências. Todavia, os filósofos e teóricos sociais e políticos (muito) frequentemente esquecem que eles também foram à escola.

Palavras- chave: Escola, Pedagogia, Experiência..

Abstract: It is striking to notice how learning and education are treated by philosophers and political and social theorists. In our contribution we will discuss the 'social learning philosophers' (e.g.Habermas, Latour), the 'enfance-philosophers' (e.g. Lyotard, Agamben, Arendt) and the 'game-philosophers' (e.g. Wittgenstein). From the perspective of these adult or grown-up philosophies and theories, learning is instrumentalized and, as a consequence, it is often marginalized, ridiculed or - when acknowledged - celebrated as a unique case, example or metaphor. To the extent that the importance of learning is recognized, it is about 'natural' learning and certainly not about 'artificial' schooling. In our contribution we exactly want to speak pedagogically about what is at stake in school learning. Instead of narrating about the (good, bad, great, sad) experiences of learning at school, this pedagogical language seeks to give voice to the experience while school learning. Not the experience of a condition where someone is not (yet) being able to, for instance, write or count. But also not the experience of (already) being able to write or count. School experience is what is experienced at the moment that writing or counting becomes a possibility; what is experienced before being able to write, but after not being able to write. School experiences refer to the collective experience of being-in-the-middle (of things), the experience of an interrupted course of life where new courses become possible, the experience of knowledge and ability after making a mistake. We want to argue that from a pedagogical perspective school is not an institution but the always artificial arrangement of time, space and matter you have to go to for these experiences. However, philosophers and social and political theorists often (rather) forget they too went to school.

Keywords: School, Pedagogy, Experience..

Resumen: Es sorprendente observar cómo el aprendizaje y la educación son tratados por filósofos y teóricos políticos y sociales. En nuestra contribución discutiremos los "filósofos del aprendizaje social" (por ejemplo, Habermas, Latour), los filósofos de la enfance (por ejemplo, Lyotard, Agamben, Arendt) y los "filósofos del juego" (por ejemplo, Wittgenstein). Desde el punto de vista de estas filosofías y teorías adultas o crecidas, el aprendizaje es instrumentalizado y, como consecuencia, a menudo es marginado, ridiculizado o -cuando se reconoce- se celebra como un caso único, ejemplo o metáfora. En la medida en que se reconoce la importancia del aprendizaje, se trata de un aprendizaje "natural" y ciertamente no de una escolarización "artificial". En nuestra contribución queremos hablar pedagógicamente de lo que está en juego en el aprendizaje escolar. En lugar de narrar las (buenas, malas, grandes, tristes) experiencias de aprendizaje en la escuela, este lenguaje pedagógico busca dar voz a la experiencia mientras se aprende en la escuela. No es la experiencia de una condición en la que alguien no es (aún) capaz de, por ejemplo, escribir o contar. Pero tampoco es la experiencia de (ya) ser capaz de escribir o contar. La experiencia escolar es lo que se experimenta en el momento en que escribir o contar se convierten en una posibilidad; lo que se experimenta antes de poder escribir, pero después de no ser capaz de escribir. Las experiencias escolares se refieren a la experiencia colectiva del estar-en-el-medio (de cosas), a la experiencia de un curso de vida interrumpido donde nuevos cursos se tornan posibles, la experiencia del conocimiento y la habilidad después de cometer un error. Queremos argumentar que desde una perspectiva pedagógica la escuela no es una institución, sino el siempre artificial arreglo del tiempo, el espacio y la materia a los que se debe ir para estas experiencias. Sin embargo, los filósofos y los teóricos sociales y políticos a menudo (más bien) se olvidan de que también fueron a la escuela.

Palabras clave: Escuela, Pedagogía, Experiencia.

Experiências de escola: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica

Introdução

Como falamos sobre educação escolar hoje? Talvez a questão em si não esteja estruturada adequadamente, posto que crescentemente tendemos a falar de aprendizagem. Como então falamos sobre aprendizagem? Ela é referida em termos de um processo, logo abordada como tendo um início e um fim. O fim é comumente estruturado em termos de conhecimento, habilidades, atitude ou competências. O processo em si é visto como uma força de transformação, ou cada vez mais também como um processo de construção ou produção. Aprendizagem então é sempre vista como um processo de mudança, e dependendo da abordagem o processo de mudança é diferentemente conceitualizado. De uma perspectiva psicológica, os processos de aprendizagem são essencialmente processos de desenvolvimento ou crescimento. Da perspectiva econômica da teoria do capital humano, aprendizagem é sobre acumulação (de capital). De uma perspectiva sociológica, aprendizagem é sobre processos de habituação, reprodução, apropriação ou aquisição, os quais são funcionais para estabelecer ou mudar ordens (existentes). De uma perspectiva biológica ou da neurociência, aprendizagem é sobre processar informação e sobre adaptação, conexão e associação. Educação ou escola são então os arranjos organizacionais ou institucionais para fazer esses processos de aprendizagem possíveis (estimular, promover, evocar ou facilitá-los). Poder-se-ia dizer que nessas abordagens a educação escolar é sempre abordada de uma perspectiva externa; ela é funcionalizada ou instrumentalizada, implicando de uma maneira ou de outra que aprendizagem por si só é algo 'natural', que pode ser concebido sem levar em conta a escolarização 'artificial'. E quando levamos em conta a escolarização, é para avaliar se ela facilita ou melhora a aprendizagem (ou não). E hoje, dessas perspectivas externas, a escolarização é cada vez mais considerada um arranjo institucional ineficiente e não-funcional.

A filosofia da educação ou teoria educacional sempre critica as perspectivas psicológicas, econômicas, sociológicas ou biológicas sobre educação e aprendizagem. Mas é impressionante notar que ela também geralmente se adere a uma perspectiva externa, funcionalizante ou instrumentalizante. Nesta contribuição queremos dar atenção a esta onipresente perspectiva da filosofia da educação mostrando, por um lado, como ela de fato repete a maneira com que grandes pensadores em filosofia e teoria social e política tendem a tratar e, na verdade, a domesticar educação e aprendizagem, e, por outro lado, tentamos oferecer uma perspectiva pedagógica interna, que relacione a aprendizagem explicitamente à escolarização 'artificial'. Ou dito de outra forma, queremos tentar falar pedagogicamente sobre o que está em jogo na aprendizagem escolar. Esta, no entanto, não se refere a narrativas comuns sobre as (boas, más, grandes, loucas) experiências de aprendizagem na escola. A linguagem pedagógica que temos em mente busca dar voz à experiência enquanto aprendizagem escolar.

A nossa contribuição está estruturada em cinco partes. Vamos começar (1) com um caso típico recente de um grande pensador que está explicitamente lidando com 'mudança' e se refere desse modo à aprendizagem: Peter Sloterdijk. Na sequência (2), distinguiremos vários tipos de filosofia e teoria (social/política) de acordo com a 'metáfora' (ou exemplo) que eles mobilizam para conceber o significado de aprendizagem, e indicaremos como isso geralmente se resume a uma instrumentalização ou marginalização da educação. Então indicaremos (3) como a própria filosofia da educação corre o mesmo risco não só de instrumentalizar e marginalizar a educação, mas também de naturalizar a aprendizagem. Tomando distância disso, queremos (4) apontar a importância do meio artificial da escola, a fim de apresentar uma voz pedagógica que propõe pensar sobre a aprendizagem como uma crucial e intrinsecamente experiência escolar. Na conclusão, (5) sugerimos algumas razões pelas quais filósofos (incluindo filósofos da educação) frequentemente parecem esquecer que eles também foram à escola.

Um caso para começar: o tratamento da educação por peter sloterdijk

Se educação é sobre mudança, como podemos pensar nesta mudança que está envolvida na educação? Poderíamos tomar como ponto de partida um trabalho recente de Peter Sloterdijk. Ele se refere ao comando de Rilke que emerge de um torso de pedra, "você deve mudar sua vida", no seu livro com o mesmo título (SLOTERDIJK, 2014a). Nesse livro, que claramente ecoa o trabalho de Nietzsche, Pierre Hadot e Michel Foucault sobre a arte da existência e práticas ou tecnologias do eu, Sloterdijk escreve uma história de técnicas e ideias frequentemente esquecidas sobre como e por que mudar a vida de alguém. Claramente ele aponta também à educação, e particularmente à educação da escola moderna, como o tempo e espaço onde a 'mudança de vida' está sendo organizada, mas ele imediatamente parece entender e desqualificar essas 'práticas de mudança' como sendo institucionalizadas, normalizadas ou governadas pelo Estado. Sloterdijk não reconhece as operações educacionais próprias que estão envolvidas nessas práticas, já que seu interesse é revelar a escolarização como um tipo de 'pedagogia do Estado'. Dessa forma, ele revela que seu interesse (e preocupação) não é em primeiro lugar educacional, mas sobretudo referente à ética e estética, e assim julga mudança educacional e educação escolar com padrões éticos e estéticos.

Em seu livro Os terríveis jovens dos tempos modernos, publicado em 2014, o foco não está na mudança individual, mas sim na mudança intergeracional e como, gradualmente, a preocupação com a desconexão da tradição - pais, cultura comum, normas e valores - tornou-se o tema central da modernidade (SLOTERDIJK, 2014b). Ele traça de volta a rota da modernidade à antiguidade grega, como também ao cristianismo primitivo onde, por exemplo, o foco não está tanto na família e na figura do filho ou filha obediente, mas sim na figura daqueles que se libertam da vida familiar - e tradição como um todo - a fim de dedicar suas vidas a um futuro que não é exatamente a continuação de um passado estabelecido. Segundo Sloterdijk, Jesus ou a figura de Jesus é claramente uma personificação desse movimento antigenealógico. Não é, ele escreve, a lógica do sucessor ou do herdeiro, mas a lógica do bastardo. Embora mais tarde a igreja católico-romana claramente domou essa lógica, é aqui que se assenta, de acordo com Sloterdijk, uma das origens do indivíduo moderno livre e, concomitantemente, quiçá, da figura do empreendedor. Para essas figuras, genealogia, tradição, transmissão geracional e normas e valores transmitidos referem-se a algo que se tem que transgredir, ou aparecem no mínimo como algo que não poderia dar significado e orientação à vida de alguém e ao futuro da sociedade. Essas figuras são, por assim dizer, agentes de mudança. Enquanto antes da modernidade somente poucos tiveram a oportunidade ou a coragem para agir como 'bastardo', desligando-se de suas casas, famílias e comunidades, ser um agente de mudança posteriormente tornou-se, de acordo com Sloterdijk, um modo comum de existência para muitos.

Não vamos entrar em detalhes olhando as pessimistas - ou talvez realistas - conclusões desse livro, mas queremos chamar a atenção para como Sloterdijk aborda o tema da mudança desde uma perspectiva particular. Enquanto poder-se-ia argumentar que o que ele descreve - a interrupção da história, a ideia de partir de casa ou o movimento de distanciar-se dos pais como oferecendo uma coerciva orientação do passado ao futuro - é na verdade acerca do que a educação é, ele raramente aponta à educação como tal. Em vez disso ele foca na cultura, política e religião. Com uma exceção, no entanto. Na introdução de seu livro, ele rapidamente e um tanto enigmaticamente se refere à "aprendizagem" como a "mais negligenciada noção dos tempos correntes". Parece sugerir que deveríamos considerar a noção de aprendizagem muito mais cuidadosamente hoje, mesmo a estimando e celebrando, e - ao menos esta é nossa interpretação - esperar que a aprendizagem seja aquilo que, de alguma maneira, vai nos salvar da condição pós-moderna em que já não confiamos no passado - como nos tempos pré-modernos -, mas tampouco ainda cremos no otimismo futurista da modernidade. Entretanto, são apenas 3 ou 4 sentenças em um livro de 400 páginas. Ainda que sua principal preocupação não seja, então, a respeito de educação, ele parece esperar algo dela. Subitamente, um vocabulário educacional, ausente durante todo o livro, acaba sendo necessário para nos tirar da escuridão da modernidade.

Filósofos de 'aprendizagem social', 'infância', 'ensino' e 'jogo'

Tomamos dois recentes livros de Sloterdijk apenas como um exemplo para mostrar como frequentemente filósofos e teóricos sociais, políticos ou culturais discutem o tema da mudança, transformação e gerações, enquanto não realmente tratam em detalhe da educação, ou ao menos não explicitamente tentam entender que tipo de mudança é típica da educação e aprendizagem. Ao mesmo tempo, um vocabulário educacional tem um papel em seus trabalhos; apesar de frequentemente escrito como comentários marginais, de igual modo todas as esperanças são colocadas nele. A seguir, distinguimos filósofos-da-aprendizagem de filósofos-da-infância/enfance, filósofos-do-'ensino' e filósofos-do-'jogo', e indicamos brevemente que papel questões relacionadas à aprendizagem desempenham em suas cenas teóricas.

Em sua teoria social e política, Habermas (1981), por exemplo, procura entender a mudança e transformação social e política, porém ele simultaneamente precisa colocar noções tais como capacidades cognitivas e processos sociais de aprendizagem para 'explicar' alterações de uma visão de mundo para outra. Seu ponto de vista é sociológico e político, mas ele tem que recorrer a noções do campo da educação para salvar ou finalizar seu projeto sociológico e político. Similar a Latour (2004), que introduz a noção de 'curva de aprendizagem' a fim de explicar como uma mudança gradual de uma constituição social em direção a outra acontece, sem que essa mudança seja imposta de fora (política ou lei) ou de dentro (moralidade e ética). Para Sloterdijk, mas também para Latour e Habermas, educação e aprendizagem parecem ser noções que indicam um processo de mudança, mas sempre de uma forma ou de outra essas noções são postuladas como necessárias para salvar ou fechar seu projeto intelectual ético, político ou social, isto é, para explicar como mudanças éticas, políticas ou sociais acontecem. Portanto, a mudança educacional e o significado educacional de mudança estão ainda sendo ignorados ou ridicularizados. E se é conceitualizada, de uma forma ou de outra, a educação é limitada a uma forma de socialização (habituação, aquisição) ou - em círculos progressivos - a uma tentativa de contrassocialização. Ultimamente, as teorias sociais e culturais desses filósofos da aprendizagem (social) são teorias sobre adultos, sobre como adultos precisam de aprendizagem, mas sem se tornarem crianças.

Com filósofos da infância queremos nos referir a autores tais como Jean-François Lyotard e Giorgio Agamben, e talvez até mesmo Hannah Arendt. Lyotard (1988) especificamente se vale da noção de 'enfance' ou 'infantia' para tratar questões que estão localizadas além da linguagem ou do sistema capitalista, mas que, no entanto, tem um papel-chave ou 'assombram' o sistema. Usando a imagem da infância - ao menos como in-fantia, isto é, não-falante -, sua ambição é conceitualizar condições e eventos que não pertencem (ainda) a nossos discursos e linguagens comuns e, por isso, é um tipo de infância que continua a jogar um papel na idade adulta. Ele se refere a isso como uma falta inicial, uma ausência de determinação que nunca é (pode ser/se torna) preenchida, e continua a ser tomada como refém da idade adulta. Por isso, ele recorre, por um lado, às ideias de Freud sobre a estrutura do trauma e afeto (sempre tendo dificuldades para encontrar uma expressão na linguagem) e, por outro, ao conceito de Arendt de natalidade ou da capacidade de começar. De maneira similar, Agamben (1982) introduz o conceito de 'infância' ('enfance/infantia') para pensar a condição de potencialidade que não está ainda efetivada, e então para pensar sobre a experiência de ser capaz de falar. Mais precisamente, - segundo Agamben - é a experiência da linguagem mesma como a experiência do homem sendo um animal que tem linguagem, sendo capaz de falar e, por isso, sendo também capaz de não falar ou de estar em silêncio. Sem entrar em detalhes, e assim, fazendo injustiça às complexidades dos trabalhos desses autores, pensamos que suas referências à educação e infância frequentemente se tornam imagens ou metáforas para pensar acerca do que está em jogo na vida adulta. Para eles, pelo menos, educação e aprendizagem não são a principal preocupação. E se seus pensamentos são transladados à própria (filosofia da) educação, talvez não seja uma surpresa que a educação corra o risco de ser enquadrada em termos terapêuticos ou éticos. O risco é um tipo de personalização por colocar de uma forma ou de outra uma relação dialógica ou analítica entre pessoas, que é a pessoa do professor e a pessoa do aluno-pupilo, como lugar central. A questão pedagógica chave não é convertida em uma questão de socialização ou contrassocialização, mas se torna o ato de 'fazer justiça' (a alguém, ou ainda à infância mesma) em termos de 'abrirem-se futuros' como 'capacidades de atuar e falar'.

Certamente, de uma maneira diferente, podemos relatar também alguns filósofos do ensino a esse enquadramento ético da educação. Embora não possamos desenhá-lo em toda sua complexidade, poderíamos apontar aqui por exemplo o uso de Levinas da metáfora ensino para descrever a maneira pela qual a demanda ética é inscrita antes do sujeito vir a si próprio (LEVINAS, 1988). É uma descrição que, no contexto da filosofia da educação, é muitas vezes invertida, por assim dizer, para entender o ensino como quase idêntico a uma relação ética. Um enquadramento ético da educação que é muito frequentemente relacionado a um entendimento da ética em termos de ser convocado perante a 'face do outro' como a 'Lei' para além de qualquer lei, etc. Quiçá outra versão dessa filosofia do ensino ético seja o trabalho de Judith Butler (2005) sobre o papel decisivo de um ato de interpelação na constituição da subjetividade. Em conformidade com esse, há a interpretação do ato de ensinar como trabalhar segundo a lógica da interpelação e focando na dimensão relacional e performativa da subjetividade da criança.

Ademais, tais filósofos da infância e filósofos do ensino talvez pudessem ser distinguidos dos filósofos do jogo. Novamente sem declarar fazer uma exposição final sobre a complexidade de seu trabalho, poderíamos pensar em Wittgenstein (1965) com seu conceito de jogo de linguagem sendo o mais revelador. Provavelmente aqui o foco e interesse já são muito mais na prática da educação, ainda que a experiência mesma da educação e a especificidade de acontecimentos e relações educacionais e de aprendizagem sejam muito menos explícitas. Educação, ao longo dessas linhas, não é uma questão de socialização ou capacidade de atuar, mas uma questão de iniciação.

Enquanto todos esses filósofos e teorias reconhecem que a infância e a mudança através da educação são importantes, e enquanto estão postulando a existência de condições de infância e condições infantis, educação e infância são de uma só vez 'instrumentalizadas' como uma condição temporária, um mal necessário, um fator lógico em vista da mudança ética, política ou social, ou como uma imagem ou prática para conceitualizar o que é difícil conceitualizar na vida adulta. Desde a perspectiva de tais filosofias de adultos, e pensando ao longo dessas linhas instrumentais, educação e aprendizagem são frequentemente marginalizadas, ridicularizadas ou - quando reconhecidas - celebradas como um único caso, exemplo ou metáfora.

O risco da/para filosofia da educação

O risco da/para filosofia da educação e a teoria educacional é o de estarem enredadas no mesmo movimento de instrumentalizar ou até de marginalizar a educação, bem como de naturalizar a aprendizagem. O risco é que educação e aprendizagem sejam consideradas prioritariamente um campo de aplicação para teorias desenvolvidas em outros lugares e para outros propósitos, ou um campo de prática com uma função ou significado que é apenas para ser derivado de outras práticas não-educacionais. O risco é real não tanto porque a filosofia e a teoria educacional poderiam recorrer à psicologia (desenvolvimentista), economia (e teoria do capital humano), biologia ou neurociências. Explicitamente tomando distância dessas disciplinas, para uma grande parte ele é (ainda) central a seu próprio autoentendimento e autodefinição. O risco é real precisamente porque filosofia e teoria da educação frequentemente tendem a basear-se em grandes pensadores (incluindo filósofos) tais como Habermas, Wittgenstein, Latour, Levinas, Lyotard, Agamben, Rorty, Arendt etc. Enquanto está muitas vezes engajada em grandes esforços para desembaraçar as complexidades do trabalho desses pensadores mestres, igualmente, a filosofia da educação muitas vezes (implícita ou explicitamente) transforma educação e aprendizagem em um campo de aplicação ou ilustração. Mais ainda, mesmo com um interesse genuinamente educacional, educação e aprendizagem, as vezes são completamente marginalizadas por um interesse político, social ou ético.

O 'imperativo da mudança' - como posto por Sloterdijk (2014a) -, e o discurso sobre mudança, de uma forma geral, ao qual filósofos e teorias da educação são atraídos repetidas vezes, conduz geralmente de fato a um entendimento ética, política ou socialmente 'colonizado' de educação. Ele está colonizando porque o 'você deve mudar sua vida' ou 'nós queremos mudar a nossa - incluindo a sua ou a deles - vida' está sempre envolvido com e inclui um tipo de juízo como seu ponto de partida. A mudança é motivada por um juízo ou avaliação de que algo está de alguma forma errado ou insuficiente ou necessitando de luz e claridade, e que a mudança é querida, necessitada, procurada, aspirada, sugerida, requerida ou desejada. A mudança através da aprendizagem se torna uma questão de necessidade ou uma necessidade. A aprendizagem é motivada por uma obrigação ou chamada (moral, ética) ou por novas regulações ou responsabilidades políticas; ela se torna uma questão de socialização (e seguindo a necessidade de reprodução social). Em outros discursos ela é concebida como uma questão de investimento em capital humano (e seguindo a necessidade de acumulação de capital e preço sobre rendimento), ou como uma questão de desenvolvimento e crescimento cognitivo e afetivo (de acordo com certas normas, estágios e funções cerebrais). Essa mudança sempre é motivada por uma finalidade e/ou por uma falta. Quando a mudança é dirigida a um projetado futuro ou resultado, a mensagem que a acompanha é: "nós/vocês/eles queremos ou temos que chegar a algum lugar". Quando ela é motivada por uma falta, a mensagem é: "nós/vocês/eles sentimos falta ou necessitamos de algo".

A fim de desenvolver uma voz pedagógica (interna) ou dar voz à mudança pedagógica, sugerimos recuperar a antiga distinção entre iniciação/ socialização/ desenvolvimento por um lado, e educação por outro. Para esclarecer por que e como fazer essa distinção, faremos um breve desvio pela distinção ainda influente (mas de fato igualmente velha e tradicional) entre qualificação, socialização e subjetivação (por exemplo Biesta, Hasslöf, Ruitenberg). Para Biesta (2009), por exemplo, há três funções ou papéis da educação, e ele alega que todos os três estão desempenhando um papel. Claramente Biesta quer focar especificamente no papel de subjetivação - e se tornar uma pessoa, vindo à presença por encontrar um lugar no mundo, não por se inserir em ordens existentes, mas por interrompê-las ou perturbá-las -, contra as frequentemente dominantes regras de socialização e qualificação. A questão crítica, no entanto, é se essas três regras ou funções devem ser distinguidas quando olhamos para a educação de uma perspectiva pedagógica/educacional. Pensamos que esse não é o caso, e que a reformulação de Biesta de uma velha distinção é o resultado de combinar três diferentes abordagens, todas elas externas à educação. Parece como se a função de qualificação surgisse quando se olha à educação desde uma perspectiva econômica, enquanto socialização (e o processo de integração em normas e valores sociais) fosse o termo-chave quando se olha através de lentes sociológicas. Subjetivação, então, é o que aparece quando se aborda a educação politicamente (em consonância com uma particular leitura de Rancière: tornar-se alguém, o que é ao mesmo tempo desafiar a ordem social existente, em termos de igualdade) ou eticamente (alinhado com certa interpretação de Levinas: tornar-se alguém, o que é sempre motivado por uma chamada desde o outro, em termos de fazer justiça). Queremos argumentar que qualificação, socialização e subjetivação representam três versões de domar a educação; domar a educação num sentido individualizante-ético ou equalizante-político, que impõe padrões éticos ou políticos sobre a mudança (subjetivação); econômico, que impõe um valor de troca ou cálculo de investimento (qualificação); e sociológico, que domestica a mudança educacional por impor regras de reprodução social e cultural - ou em uma versão progressista -, regras de renovação e mudança social (socialização). Para dizê-lo de outra forma, a distinção entre qualificação, socialização e subjetivação esquece uma perspectiva pedagógica/educacional. Basicamente, ela funcionaliza ou instrumentaliza educação e aprendizagem, domestica aprendizagem ao impor objetivos ou funções externas. Nas próximas seções, sugerimos uma perspectiva diferente, pedagógica, que conduz a aprendizagem ou a educação de volta à escola, e considera a aprendizagem escolar como um estar-em-meio-a, não dirigido por um objetivo nem por uma falta e necessidade.

Formas pedagógicas artificiais

Nossa perspectiva pedagógica não quer revelar o verdadeiro papel ou função da aprendizagem e da educação, nem é uma tentativa de revelar a verdadeira natureza da aprendizagem por meio da sua liberação de suas organizações históricas. Nossa perspectiva pedagógica toma um ponto de partida de algum modo incomum, ela quer dar uma voz à experiência de aprendizagem como sendo a experiência de estar-em-meio-a, através do foco na organização sempre artificial chamada 'escola', que faz essa experiência possível. Em outras palavras, queremos tratar as operações radicais daquilo que chamamos formas pedagógicas e que, sempre artificialmente, permitem que a aprendizagem e a educação aconteçam.

As operações pedagógicas (para realizar o estar-em-meio-a) podem ser resumidas como segue (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014): 1. Operações para transformar alguém em um 'estudante' ou 'aluno-pupilo', isto é, suspender as amarras de não importa qual família, estado ou 'comunidade passada/existente' (refere-se até certo ponto ao bastardo de Sloterdijk). Isso implica fazer com que alguém possa tornar-se parte de qualquer família/comunidade-por-vir. 2. Operações de suspensão da ordem usual de coisas e, assim, pôr seu uso e funções comuns temporariamente fora de efeito. Certas coisas (livros, ferramentas, palavras...) podem tornar-se objeto de estudo, alguém pode começar a se exercitar com essas coisas, precisamente porque seu uso normal está posto entre parênteses. 3. Operações de pôr alguma coisa sobre a mesa (profanação) e fazer 'tempo livre', isto é, a materialização ou espacialização de skholé. Na Grécia antiga, skholé significava a fuga de submeter-se à determinação de fazer. Isso é sobre in-acabar, desfazer a apropriação e destinação do tempo, tanto quanto um catalisador de começos. Escola, nesse sentido, põe alguém na posição de começar. 4. Operações de fazer atento, isto é, formar atenção contando com um 'amor pedagógico' por certas coisas e pelos estudantes. Isso não é apenas uma questão de atitude ou relação, mas de usar técnicas e certos tipos de disciplina para atrair atenção a algo. Disciplina, no entanto, não como uma categoria moral ou política, mas como uma prática de tornar possível. Pense-se, por exemplo, na disciplina produtiva de atletas para que fiquem em forma.

Formas pedagógicas se referem, então, a associações de pessoas e coisas organizadas como uma maneira de lidar com, prestar atenção a, importar-se com alguma coisa - chegar e estar em sua companhia -, em que esse importar-se requer estruturalmente uma exposição porque é confrontado com pupilos ou estudantes. É crucial enfatizar neste ponto que formas pedagógicas não são carentes de uma utopia política projetada ou de um ideal normativo da pessoa educada (para o qual elas deveriam ser funcionais), mas são por si mesmas (na maneira real e específica de estarem reunindo pessoas e coisas) materializações de uma crença utópica: qualquer um pode aprender qualquer coisa. Essa não é uma afirmação factual, mas uma crença. É outra maneira de formular a assunção pedagógica básica de que seres humanos nascem sem (natural, social, cultural) destino, e deveriam dar a si próprios seus destinos. Aquilo que formas pedagógicas fazem é tornar possível o 'qualquer um pode' por um lado, e o 'qualquer coisa' por outro. Em outras palavras, ao invés de pensar em tal coisa como uma escola utópica (como se faz frequentemente), é provável que faça mais sentido olhar a própria aprendizagem escolar incorporando a utópica ideia de que qualquer um pode aprender qualquer coisa. O que a escola como forma pedagógica faz é o movimento duplo de pôr alguém em uma posição de ser capaz (e por isso tornar alguém um aluno-pupilo ou estudante), o que é simultaneamente uma exposição a algo de fora (e por isso um ato de apresentar e expor o mundo). Esse duplo movimento não começa dando às crianças um destino (baseado em suas habilidades naturais ou identidades sociais e culturais), mas permitindo às crianças tornarem-se estudantes e encontrarem seu próprio destino. Poder-se-ia dizer que por isso a decisão de levar as crianças à 'escola' é por si mesma uma intervenção política, e a escola não está carente de um ideal externo ou extra, tampouco de uma função política projetada.

Valendo-se de Michel Serres (1997), esse duplo movimento poderia ser capturado pela ideia de 'ex-posição', e a forte experiência de alguém que aprende a nadar estando em uma condição em que ainda não é (completamente) capaz de nadar, no entanto não está mais constantemente procurando por um refúgio ou chão seguro sob seus pés. Essa é a condição ou experiência 'entre' ou 'em-meio-a', isto é, a condição em que alguém deixou sua casa, vida ou família seguras, e tudo é (ainda) possível quando confrontado com o mundo afora. Nossa tese é que essa condição e essa experiência são uma condição e experiência educacionais, e não deve ser confundida com uma experiência ética, psicológica ou política. Além do mais, nossa tese é que essa condição de exposição é possibilitada ou preparada através de formas pedagógicas específicas, sempre artificiais. Isso é o que está em jogo em aprendizagem 'escolar', merece ter uma voz e está carente de uma linguagem pedagógica.

Ao invés de narrar sobre as (boas, más, grandes, loucas) experiências de aprendizagem na escola, uma linguagem pedagógica procura dar voz à experiência enquanto aprendizagem escolar. Não a experiência de uma condição em que alguém não é (ainda) capaz de, por exemplo, escrever ou contar. Tampouco a experiência de (já) ser capaz de escrever ou contar. A experiência escolar se refere ao momento único, singular em que escrever ou contar se torna uma possibilidade; a experiência enquanto se aprende, antes de realmente ser capaz de escrever ou contar, mas não apenas a experiência de (simplesmente) não ser capaz de escrever ou contar. Pense-se na pequena criança que aprende a escrever. Antes de ser capaz de escrever, a criança experiencia (provavelmente) que ela não é apta, mas não experiencia a aprendizagem. Quando ela é capaz de escrever, talvez se lembre dela aprendendo, mas não experiencia a si própria aprendendo. A experiência de escola é a experiência no momento em que a habilidade de escrever (e, portanto, de não escrever) é experienciada enquanto tal. Experiências de escola referem-se às experiências de estar-em-meio-a coisas, a experiência de um curso interrompido de vida onde novos cursos tornam-se possíveis. Provavelmente, ela diz também a respeito da experiência de conhecimento e habilidade após cometer um erro. Ou o que é experienciado depois de ser forçado ou convidado a cruzar o rio e "separar-se da assim chamada direção natural" (Serres, 1997, p.8).

Queremos enfatizar de novo que, de uma perspectiva pedagógica, 'escola' não é uma instituição ou um tipo de reservatório organizacional, mas sim o arranjo sempre artificial de tempo, espaço e matéria ao qual se deve ir para essas experiências. Como uma consequência, o termo 'escola' não é usado aqui (como frequentemente ocorre) para uma assim-chamada instituição normalizadora ou maquinaria de reprodução nas mãos de elites culturais ou econômicas. Há reprodução e normalização, certamente, mas então a escola não (ou não mais) opera como uma forma pedagógica.

A questão, obviamente, seria: qual é o papel ou objetivo da escola, ou o que está em jogo na experiência escolar? Neste ponto, queremos introduzir as ideias de preparação e prática. A escola não é sobre fazer estudantes melhores operadores - embora isso seja frequentemente pedido das escolas. A escola é sobre oferecer aos jovens o tempo e espaço para deixá-los 'em forma', para trabalhar em sua (intelectual, física,...) 'condição' e, obviamente, alguém pode esperar que essa preparação e essa forma ou condição resultem em performances superiores ou contribuições únicas mais tarde, porém é absurdo fazer a escola responsável por isso. Escola diz respeito à preparação, não à performance. Esse foco em preparação e prática talvez ajude a entender que escolas são também sempre os lugares onde a geração seguinte realmente aparece como uma nova geração e, por isso, onde a sociedade pode ser renovada. As escolas, e não a sociedade, podem ter controle sobre essa renovação ou sobre como a próxima geração realmente usa sua preparação e estudo. Isso parece ser típico da mudança ou renovação pedagógica, e esse tipo de mudança é sempre o risco de uma sociedade que decide organizar ou permitir as formas pedagógicas escolares. Essas sociedades sempre dão seu futuro (e também a continuação de seu passado) para além de suas mãos ou, formulado de outra forma, confiam a mudança pedagógica à próxima geração (a qual poderia tornar-se uma nova geração). Tais sociedades não 'elegem' iniciação ou socialização, mas educação escolar. Ou para sermos mais precisos: é com educação escolar que uma sociedade torna-se, de uma maneira específica, ciente de si mesma. Uma sociedade que permite a forma escolar pensa - ou é provocada a pensar - de outro modo sobre si mesma. A forma escolar faz isto possível: que uma 'nova' e uma 'velha' geração venham a existir, junto com a experiência de não haver uma ligação 'natural' entre elas. Provavelmente isso explica por que há tantas tentativas - dentro de ambas, escolas e sociedade - de domesticar escolas, isto é, de dar à mudança pedagógica uma direção específica, e logo impor normas psicológicas, éticas, políticas ou sociais. Mas essa imposição muitas vezes diz respeito a controlar os riscos da educação escolar e, em consequência, quase sempre já é um reconhecimento do radical, até revolucionário, potencial das escolas. Decidir por ou permitir a educação escolar implica aceitar que aquilo que é valorado por uma sociedade (e seus adultos) está sendo posto sobre a mesa, e assim pode ser fundamentalmente questionado e desafiado. A escola se opõe a todas as afirmações naturalizantes e sacralizantes, e a todos os movimentos de conservadorismo e restauração associados a essas afirmações. É nesse sentido que a escola está realmente afetando a sociedade e é sempre intrinsecamente 'política'. A forma escolar, com sua utopia e assunções antinaturais, é uma intervenção política.

Como conclusão: uma voz pedagógica como uma voz do meio

Começamos com a tendência entre filósofos e teóricos sociais a naturalizar aprendizagem e instrumentalizar educação escolar e, por isso, a mover educação e aprendizagem às margens de suas teorias adultas e suas filosofias maduras. Queremos dar voz ao que está no meio, e que - das perspectivas desses adultos - são provavelmente apenas murmúrios nas margens. Como conclusão, talvez tenha valor refletir sobre por que justamente escola e aprendizagem são frequentemente postas de lado, tratadas como marginais ou ridicularizadas. Pensamos (mas não temos certeza) que foi Bernard Stiegler quem pela primeira vez fez a observação de que os filósofos muitas vezes esquecem que eles também foram à escola, e eles não estão felizes por serem lembrados disso. Mas por que não? Por que esse esquecimento, ou marginalização e ridicularização? Antes de se aprofundar mais nisso, é conveniente relembrar outras manifestações daquilo que é ao menos uma ambivalente relação com a educação escolar (de alguém).

É curioso notar que pessoas - especialmente em momentos em que celebram seus sucessos - não ficam felizes por serem lembradas de como dependeu de escolas ou universidades aquilo que alcançaram. Parece como se o passado educacional de alguém pudesse lançar uma sombra sobre a posição conquistada de idade adulta, e a liberdade que associamos a essa posição. E se recordamos o papel das escolas, bem como o de estudar e se exercitar, para tornar-nos o que somos e aquilo de que somos capazes hoje, enfatizamos que chegamos longe apesar da escola ou universidade (e reafirmando nossa independência), ou contamos histórias daqueles raros, iluminados professores que, apesar do aparato escolar normalizador, foram capazes de nos mostrar o mundo real e nossa liberdade como ela verdadeiramente é (e por isso, essas histórias gratificantes sobre professores inspiradores são muitas vezes também apenas para reafirmar o estado atual de independência).

Outra observação, relacionada a essa prévia, é que aqueles que estão trabalhando em ou sobre educação escolar sempre têm um tipo de posição marginal (uma que de certo modo está perturbando a ordem social). Aqueles que escolhem tornar-se um professor, por exemplo, frequentemente de fato não escolhem pôr seu saber e destrezas a serviço da vida produtiva e econômica, mas sim a serviço da próxima geração. Essa é uma posição entre, isto é, entre a família e a sociedade, a jovem geração e a sociedade adulta, consequentemente uma posição que é difícil de definir e que permanece ambígua. Claro que há tendências, repetidamente, a transformar o ensinar em um trabalho regular ou até mesmo profissão. Mas quiçá, já que ensinar sempre implica estar fora-de-posição - de alguma forma similar à posição de artistas -, essas tendências frequentemente falham, e têm que falhar, se a educação escolar é sobre pôr o mundo à distância a fim de estudá-lo. Nesse sentido, deveríamos quiçá chamar de volta a figura do pedagogus - de onde nossa noção de pedagogo vem. Muitas vezes, essa figura era um escravo, mas um escravo com privilégios por estar autorizado a levar as crianças à escola. Nesse sentido, ele era o escravo liberado, que literalmente levava pessoas jovens ao tempo livre, isto é, a estudar e se exercitar. Da perspectiva da vida econômica de adulto e da sociedade, a posição dos professores, e de todos aqueles que estão implicados em educação (então também pesquisadores educacionais), é estar vivendo uma vida às margens. Como figuras marginais, eles são improdutivos e, por isso, vistos como realmente sem importância. Ao mesmo tempo eles são considerados instrumentais ou funcionais para a vida real e o mundo produtivo real (que quer se reproduzir a si mesmo). Mas poderíamos também considerar esses papéis e posições como liberadas e liberadoras, e consequentemente eles muitas vezes são também invejados nesse sentido.

A questão que deveríamos explorar mais é, no entanto, as razões para a ambivalência, se não diretamente para ridicularizar ou marginalizar (esses papéis). Uma primeira razão poderia ser: se a educação escolar no sentido forte é de fato sobre mudar alguém e, por consequência, sempre também sobre tornar-se outra pessoa, é muito difícil lembrar quem se era antes (implicando também que não há 'um alguém' estável que poderia experienciar a mudança). Ou para pôr isso de outra maneira: é sempre desde a perspectiva de quem alguém se tornou que ele retorna a seu passado. Há um tipo de irreversibilidade em jogo e, consequentemente, a experiência escolar e o próprio processo são difíceis de lembrar. Provavelmente, quando se faz um esforço, alguém poderia imaginar quem ele era antes de aprender a escrever ou ler, e poderia imaginar quem ele era antes de ler ou estudar um assunto, trabalho ou autor específicos. Mas isso é sempre uma projeção de um estado de não-saber ou não-ser-capaz baseado naquilo que é experienciado hoje como saber ou ser capaz. Provavelmente há essa tendência a esquecer, exatamente porque é realmente difícil lembrar a aprendizagem no sentido estrito. Alguém poderia dizer que a aprendizagem, nesse sentido, vem unida à estrutura do trauma e à lógica do inconsciente. Mas há uma diferença fundamental: não é sobre uma lembrança dolorosa, mas sim sobre um esquecimento feliz, e provavelmente isso não precise de analista e terapia, mas de celebração e agradecimento.

A segunda possível razão é que as escolas sempre organizam uma 'desordem fundamental', providenciando um meio sem direção e aceitando que 'menores' e 'novos' possam realmente questionar e desafiar 'adultos' e 'nativos'. A profunda ambiguidade de sociedades que 'decidem' ter escolas está relacionada, poder-se-ia dizer, ao fato de que isso é um ato generoso por um lado; mas o ato é acompanhado, por outro lado, de um forte medo (e não-aceitação) de que aquilo que é realmente valorado e tido como garantido na verdade se torne, de fato, questionado ou contestado por menores ou 'imaturos', até mesmo sem razões ou argumentos. Algo que, para filósofos (ou, pelo menos, para muitos deles), talvez ainda seja mais difícil de lidar: a ausência de razão(ões). Em suma, a ridicularização, marginalização e instrumentalização da escola poderia ser o resultado de um profundo medo de que a próxima geração efetivamente se torne uma nova geração.

Mais razões podem ser formuladas, e algumas delas podem ser encontradas no famoso texto de Adorno (1971) sobre os 'tabus' de ser um professor. Mas em conclusão gostaríamos de retornar à instrumentalização e marginalização, oque é central para a maioria da, se não para toda, filosofia que transforma educação em um campo de aplicação ou a utiliza como um campo para ilustrações. Porventura deveríamos assumir o desafio de reconsiderar uma narrativa filosófica que muitas vezes é usada para articular sobre o que seria a educação: a alegoria da caverna, e a estória sobre o filósofo iluminado que quer levar as pessoas enjauladas ou aprisionadas à luz. Essa não é exatamente uma estória filosófica sobre a educação, sobre como o filósofo-professor tem que libertar as pessoas acorrentadas, e mostrar que aquilo que elas tomam por verdade são meramente sombras e representações? A estória da caverna é uma celebração do prestigioso ethos do filósofo - ou ao menos, de um específico filósofo. Ela é sobre filosofia, uma postura filosófica específica, mas não diz respeito à educação. Talvez necessitemos de uma estória educacional/pedagógica para a experiência de aprendizagem escolar. É uma estória sobre como levar pessoas até uma caverna, isto é, até uma escola e, então, sobre como acorrentar gentilmente as pessoas a fim de dar-lhes tempo e espaço para pensar, para estudar, mas também para apresentar-lhes o mundo e pedir sua atenção. Essa não seria uma história filosófica (crítica) sobre como liberar estudantes da escola, mas sim uma história pedagógica sobre como levar crianças à escola. Sobre como dar a eles a chance de se tornarem estudantes e lhes oferecer a experiência escolar.

Referências

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Notas

1 Este texto é uma versão atualizada e revisada do apresentado em inglês durante o VIII Colóquio Internacional de Filosofia e Educação, UERJ, outubro de 2016. A tradução é de Danilo J. S. Botelho, doutorando em filosofia da educação da Universidade Federal de Santa Catarina, USC. Email: ecoitaipu@gmail.com. Embora alguns títulos de livros citados no texto tenham sido traduzidos, o ano de publicação corresponde ao título da citação original presente nas referências.
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