Resumo: O objetivo neste artigo é compreender a emergência dos discursos em torno do “sujeito cerebral” e seus eventuais vínculos com a biopolítica contemporânea e as formas de condução da conduta dos indivíduos que são instados a estarem à altura das demandas competitivas do mercado de trabalho, a investirem em si mesmos, a se tornarem pequenos empreendedores de si mesmos. O que parece ficar evidente nos discursos acerca do “sujeito cerebral” é a certeza de que se poderá corrigir e potencializar capacidades e habilidades dos indivíduos, em função de torná-los mais produtivos e eficientes. Há uma clara relação entre os modos como se caracteriza e se deve investir na constituição desse “sujeito cerebral” e o investimento em capital humano. Numa sociedade estruturada pela lógica do desempenho, torna-se evidente que os processos de medicalização, orientados pelos critérios da eficiência cerebral, visam a aumentar a performance no trabalho, nos processos de aprendizagem, criando uma espécie de “mais valor comportamental” e um “superávit de desempenho”. É também com base nessa lógica de desempenho que se define ou se busca reparar os cérebros ineficientes (sujeitos ineficientes/deficientes). Parece ser razoável reconhecer que as descobertas no campo da neurociência cognitiva e a proliferação dos discursos em torno dessas descobertas têm produzido um novo tipo de vida emergente, baseada no funcionamento cerebral.
Palavras-chave:sujeito cerebralsujeito cerebral,educaçãoeducação,capital humanocapital humano,biopolítica.biopolítica..
Resumen: El objetivo del artículo es comprender la emergencia de los discursos alrededor del “sujeto cerebral” y sus eventuales vínculos con la biopolítica contemporánea y las formas de conducción de los individuos que son, en todo instante, instados a estar al tanto de las demandas competitivas del mercado de trabajo y, al hacer inversiones en sí mismos, se convierten en pequeños empresarios de sí mismos. Lo que parece ser evidente en el discurso sobre el "sujeto cerebral" es la seguridad que se podrá corregir y potencializar capacidades y habilidades de los individuos en función de hacerlos más productivos y eficientes. Hay una clara relación entre los modos como se caracteriza y se debe invertir en la constitución de este “sujeto cerebral” y en la inversión en capital humano. En una sociedad estructurada por la lógica del desempeño se hace evidente que los procesos de medicalización, orientados por los criterios de la eficiencia cerebral, tienen por meta aumentar el rendimiento en el trabajo y en los procesos de aprendizaje, creando una especie de "plusvalía comportamental" y un "superávit de desempeño”. Es también con base en esa lógica de desempeño que se define o se busca reformar los cerebros ineficientes (sujetos ineficientes/deficientes). Parece razonable reconocer que los descubrimientos en el campo de la neurociencia cognitiva y la proliferación de discursos en torno a estos descubrimientos han producido un nuevo tipo de vida emergente, basado en el funcionamiento del cerebro.
Palabras clave: sujeto cerebral, educación, capital humano, biopolítica..
Abstract: The goal of this paper is to comprehend the rise of discourses about brainhood and its eventual relationto contemporary biopolitics and the ways in which individuals conduct themselves once called to answer the competitive demands of job market, to invest in themselves, and become small entrepreneurs of themselves. Through the discourses on brainhood, it seems that the possibility to review and strength individuals’ capacities and skills is a certainty, so they become more productive and efficient. There is a clear relation between the ways in which brainhood is characterized and supported, and the investments on human capital. In a society structured by the logic of performance, it becomes clear that the processes of medicalization for brain efficiency aim at the increase of work performance and learning processes. It creates a kind of “behavioral extra value” and “performance surplus.” It is also based on this logic that it is stated that inefficient brains ought to be repaired. It seems reasonable to recognize that the findings in the field of cognitive neuroscience and the proliferation of discourses around these discoveries have produced a new type of emerging life, based on brain functioning.
Keywords: brainhood, education, human capital, biopolitics.
DOSSIER
A emergência do sujeito cerebral e suas implicações para a educação
La emergencia del sujeto cerebral y sus implicaciones para la educación
The rise of brainhood and its implications to education
Recepção: 28 Maio 2016
Aprovação: 10 Junho 2016
No contexto das abordagens sobre o cérebro, na atualidade, sobretudo nas suas interfaces com a educação, o que parece emergir como questão que mobiliza o debate é o intenso investimento sobre ele, com o intuito de torná-lo mais eficiente, conferindo aos indivíduos mais poder de concentração, atenção mais aguçada e maior capacidade em exercer domínio sobre seus humores e emoções. Na “sociedade do conhecimento”, movida pelo lema do “aprender a aprender”, o cérebro deixa de ser uma espécie de “caixa preta”, para ser transformado em objeto de práticas discursivas que buscam conferir-lhe transparência. As representações gráficas ou imagéticas sobre ele estão estampadas em capas de revistas, sites e redes sociais, sempre acompanhadas por manchetes que prometem explicar o seu funcionamento e, ao mesmo tempo, indicam uma série de atividades e exercícios para se “ter uma mente brilhante”. Tendo em vista esse quadro aqui brevemente descrito, temos como objetivo pensar, neste texto, o que autores como Nikolas Rose (2010; 2013), Erhenberg (2009) e Ortega e Vidal (2007) têm denominado emergência do sujeito cerebral, e algumas de suas implicações para o campo da educação, em interface com as novas demandas por capital humano, identificado também como capital mental. Busca-se identificar que tipo de orientação de conduta e de governo da vida se delineia com o protagonismo conferido às ciências biológicas, especificamente com a neurociência cognitiva, a qual tem conferido protagonismo ao cérebro, na atualidade.
Numa longa entrevista concedida ao psicanalista Jean-Pierre Lebrun, depois transformada em livro, Charles Melman (2003), também psicanalista, destaca que, na cultura contemporânea, por ele denominada cultura do gozo, tudo tem que ser exibido. Não só nossa intimidade psíquica, nossas emoções, mas também as particularidades do corpo, nossas entranhas e vísceras, são mostradas em revistas e programas de televisão. Assim escreve Melman (2003, p. 23): “Hoje a questão é exibir. O que se chama de gosto pela proximidade vai tão longe que é preciso exibir as tripas, e o interior das tripas, e até o interior do interior. Não há mais limite algum à exigência de transparência.” Esta constitui a marca do tempo presente: a exigência de transparência. Nada pode ser dissimulado ao olhar.
Assim, parece razoável dizer que a busca pela transparência do corpo o transformou em signo de identidade. A tendência tem sido reduzir a explicação para grande parte das doenças, gostos e comportamentos a causas orgânicas. É nesse registro que o cérebro assumiu protagonismo, especialmente, com a crescente ampliação e aplicação de conhecimentos oriundos das neurociências ao campo dos comportamentos dos indivíduos. O avanço das neurociências permitiu “[...] a ascensão da ideia de que o cérebro é um agente determinante de características do agir humano, desde seu aspecto saudável até o patológico”. (ORTEGA; ZORZANELLI, 2010, p. 12).
Essa exigência de transparência do corpo e o fascínio pela sua visceralidade fizeram com que se desenvolvessem, desde o século XVI, diversas tecnologias tendo em vista o acesso ao interior do organismo. “O conhecimento do interior do corpo representa uma metáfora eficaz do conhecimento de si.” (ORTEGA, 2006, p. 91). Do início da era moderna, com os anfiteatros anatômicos holandeses e as teorias da circulação sanguínea pós-renascentistas, até nossos dias, as estratégias de visualização médica ganharam em qualidade e precisão. Das tecnologias de raio x consideradas invasivas da intimidade e da sentimentalidade dos indivíduos, sobretudo na época vitoriana, marcada pela repressão sexual e negação do corpo e de seus perigos, até os aparelhos de ultrassonografia, tomografia computadorizada (TC), tomografia de ressonância magnética (IRM) e tomografia por emissão de pósitrons (PET), há um caminho longo, cujos resultados são recebidos com euforia. Ainda que, num primeiro momento, haja muitas controvérsias sobre a interpretação das imagens do corpo, principalmente daquelas do cérebro, as técnicas de visualização e produção de imagens do corpo passaram a produzir “verdades”. Assim, “[...] as imagens médicas lentamente foram assumindo uma relação autoevidente com as patologias, como se revelassem as doenças por si mesmas”. (ORTEGA; ZAZORNELLI, 2010, p. 17). As imagens passam a ter uma força persuasiva desmedida.
As tecnologias de imageamento do corpo produziram sua objetivação. Importa mais o que se pode visualizar acerca do corpo do que aquilo que a nossa experiência subjetiva dele diz. A experiência subjetiva é suplantada pelo que é quantificável e mensurável, no corpo objetivo. O corpo teria perdido sua capacidade de transmitir sentidos. O relato subjetivo do paciente foi substituído por imagens, por algoritmos e números. Há a crença de que, por meio de tecnologias, o corpo pode se revelar sem mediações subjetivas que seriam, como tais, enganosas.
É no contexto desses processos de imageamento do corpo, no final do século XX e início do século XXI, que autores como Rose (2010, 2013), Erhenberg (2009), Ortega e Zazornelli (2010), Ortega e Vidal (2007) situam o protagonismo do cérebro, momento em que se busca oferecer evidência visual, materialidade e objetividade às doenças cerebrais. As novas tecnologias de ressonância possibilitaram acompanhar quase em tempo real a ativação cerebral, por meio da observação do deslocamento do fluxo sanguíneo. Ao se ampliaram as possibilidades de se acessar o cérebro e de conhecer sua fisiologia e aspectos de seu funcionamento, emerge uma série de questionamentos a esse protagonismo do cérebro.
O fato de o cérebro ter assumido o status de agente etiológico de diferentes doenças está relacionado, conforme Ortega e Zorzanelli (2010), aos avanços dos estudos neurocientíficos e às relações que se estabelecem entre cérebro, perturbações mentais comportamentais. Além desses aspectos, imediatamente ligados às doenças e ao comportamento, há, como já mencionado, um poder de convencimento sobre o público que se acentua com as tecnologias de autoimagem. Ademais, tem-se a inclusão dos comportamentos sociais e morais ao campo das neurociências, no qual as psicopatologias passaram a ser tratadas como neuropatologias. A expectativa em voga é a de que se pode ampliar as performances cerebrais. O cérebro se transforma na figura antropológica do sujeito cerebral. Ortega e Vidal (2007, p. 257) o definem assim: “[...] chamamos de ‘sujeito cerebral’ a figura antropológica que incorpora a ideia de que o ser humano é essencialmente reduzível a seu cérebro”. O cérebro é compreendido como a parte do corpo na qual está localizado o que nos delimita como pessoa. Esta, por sua vez é “[...] caracterizada pela propriedade da ‘cerebralidade’, isto é, a propriedade ou qualidade de ser, ao invés de apenas ter, um cérebro”. (ORTEGA; VIDAL, 2007, p. 257). É nesse registro que os problemas atinentes ao self, à individualidade, são atribuídos ao funcionamento do cérebro e aos seus aspectos estruturais. Tornou-se quase lugar comum aceitar que cada pessoa se define pelo seu cérebro. A expressão “você é seu cérebro” alcançou autoevidência. Isso confere ao cérebro mais do que a posição de mediador, a de um agente social (ERHENBERG, 2009; ROSE, 2013).
Os novos saberes sobre o cérebro lhe conferem um lugar privilegiado no que se refere às representações acerca da individualidade e da subjetividade tratadas como fenômenos estritamente ligados ao corpo. A linguagem adequada para tratar dos desejos, paixões, crenças, comportamentos, cognição e humor, deve ser expressa no registro do vocabulário cerebral, portanto, em termos de excesso ou falta de neurotransmissores e de patologias que afetam o cérebro. Erhenberg (2009) e Rose (2013) vão identificar no campo das neurociências a representação do cérebro como esse sujeito que condensa um self neuroquímico, o qual confere individualidade somática a cada pessoa.
Se, ao longo do século XX, a pergunta acerca do que somos, feita na tentativa de capturar o nosso eu, encontrava resposta nas ciências psi, hoje as respostas oferecidas pelos saberes psi já não se apresentam mais como satisfatórias. Afinal, agora não se mostra mais suficiente entender os indivíduos no plano da sua interioridade e como que “[...] habitados por um profundo espaço psicológico interior e avaliar a si mesmos e a agir sobre si mesmos em referências a essas crenças”. (ROSE, 2013, p. 45). Se a fonte secreta dos nossos problemas podia ser decifrada aí, e se os cuidados que se deveria tomar consigo mesmo eram definidos nessa instância, hoje essas relações sofreram alterações e passaram a ser definidas também por outros jogos de verdade que atuam sobre os neurotransmissores, dos neurônios e de seus pontos receptores.
Há, obviamente, um longo caminho percorrido entre as ciências psi até se chegar às neurociências. Não nos ocuparemos em reconstituir a história desse processo de somatização da vida, limitando-nos a sumariá-la seguindo as indicações Rose (2013). A descoberta e a valorização do funcionamento cerebral têm forte vínculo com o desenvolvimento da psiquiatria biológica que estivera interessada em conhecer a relação existente entre o cérebro, o comportamento dos indivíduos e a base somática das patologias, as quais são definidas pelas pesquisas no campo da medicina e da neurologia. Os cérebros passam a ser estudados, dissecados, suas substâncias químicas analisadas. Descobre-se as funções cerebrais que se definem a partir de estruturas celulares, de receptores, sinapses, metabolismo etc., que passam a ser aceitas como processos. Descobre-se igualmente remédios que podem imitar as funções cerebrais e eventualmente corrigi-las. Enfim, as formas de diagnosticar distúrbios de humor, emoção e cognição são aprimoradas, bem como, por exemplo, a possibilidade de se diferenciar indivíduos que são depressivos daqueles que têm esquizofrenia, ou que são acometidos pela doença de Alzheimer ou Parkinson. Todas essas mudanças conduziram a novos modos de interpretar e entender a personalidade. Assim escreve Rose (2013, p. 268):
Nessa nova explicação da personalidade, a psiquiatria já não distingue entre distúrbios orgânicos e funcionais. Já não se preocupa com a mente ou com a psique. A mente é simplesmente o que o cérebro faz. E patologia mental é simplesmente a consequência comportamental de um erro ou anomalia identificáveis, e potencialmente corrigíveis, em alguns daqueles elementos agora identificados como aspectos daquele cérebro orgânico. Isso é uma mudança na ontologia humana - nos tipos de pessoas que nos consideramos ser. Implica novo jeito de ver, julgar e agir sobre a normalidade ou anormalidade humanas. Possibilita-nos sermos governados por novos caminhos. E possibilita-nos gerenciar-nos diferentemente.
No caso da psiquiatria há o deslocamento da interpretação dos sintomas visíveis na superfície do corpo, própria da análise anatomoclínica, para uma análise do organismo em suas profundidades. Não se ocupa mais em entender a doença a partir de uma série de sintomas e da escuta do paciente, mas a doença está identificada com o próprio organismo. Todas essas mudanças foram possibilitadas pela neuroanatomia e pelas técnicas de imageamento do cérebro. É “[...] como se agora pudéssemos visualizar o interior do cérebro do ser humano vivente e observar sua atividade em tempo real, à medida que ele pensa, percebe, emociona-se e deseja - podemos ver a ‘mente’ nas atividades do cérebro vivo”. (ROSE, 2013, p. 273).
Rose (2013) e Ortega (2009) sugerem que se deve fazer uso dos termos sujeito cerebral ou self neuroquímico como derivados da noção de sujeito que Foucault adota, em sua análise da história da subjetividade, principalmente nos livros Os normais (2010) e Em defesa da sociedade (1999) e nos volumes dedicados à história da sexualidade. A ênfase nestas obras recai sobre os processos de subjetivação e sobre as tecnologias de si. Afirmar a existência do sujeito cerebral não significa dizer que as formas de relacionar com nós mesmos tenham sido substituídas ou extintas por esse novo sujeito. Permanecem ativas diferentes práticas e lugares que impõem distintos sentidos de individuação. Conforme assinala Ortega (2009, p. 249), “[...] os sujeitos cerebrais se formam e são formados mediante tecnologias do self sustentadas, em parte, pelo conhecimento especializado e sua divulgação pela mídia e pela cultura popular”. É importante ressaltar que o sujeito cerebral não constitui uma figura hegemônica de nosso tempo, e os processos de subjetivação não ocorrem do mesmo modo em todos os indivíduos. É evidente que as práticas discursivas cotidianas e seus dispositivos produzem novos modos de pensar, agir e de falar acerca de si mesmo e dos outros. O que importa reter, nesse caso, é que diferentes vocabulários e processos de subjetivação podem conviver nos mesmos espaços e serem postos em movimento, dependendo das circunstâncias, do contexto e das necessidades dos sujeitos.
A emergência do sujeito cerebral e do si mesmo neuroquímico tem marcas evidentes em nosso presente, as quais passaram a ocupar o lugar das formas mais antigas de compreensão de nós mesmos. Com relação ao uso de psicofármacos e à compreensão neuroquímica de nós mesmos, foi desencadeado um processo de recodificação dos humores, das emoções, dos processos cognitivos e volitivos, baseando-se no funcionamento químico do cérebro. Essas intervenções têm como pressuposto a ideia de que os distúrbios psíquicos são decorrentes de alguma disfunção cerebral que só pode ser corrigida, gerenciada e modulada por meio de processos neuroquímicos. Além da crítica que deve ser feita ao mercado pela motivação bioeconômica, deve-se atentar ainda para o quanto os remédios funcionam como agentes que controlam as condutas nossas e as dos outros (ROSE, 2013).
Outros aspectos inerentes a esse gerenciamento de condutas ou governos de condutas podem ser identificados em discursos e práticas que visam a maximizar as performances cerebrais, funcionando como técnicas de si cerebrais. Esses discursos e práticas médico-científicas produzem modos de ser objetivos, “selves objetivos”, que remetem a uma compreensão da subjetividade. A proliferação de discursos sobre si mesmos, sobre seus corpos, suas mentes e cérebros, são situações objetivas veiculadas pela mídia, as quais são incorporadas pelos indivíduos na descrição de si mesmos, acerca do funcionamento do cérebro e sua relação com a mente. Boa parte das revistas científicas ou de popularização de resultados de pesquisas científicas sobre o cérebro, bem como jornais e a televisão, divulgam imagens que associam mente e cérebro (ROSE, 2013).
É também no rastro das discussões a respeito do sujeito cerebral que as descobertas acerca da chamada neuroplasticidade ganharam maior visibilidade, sobretudo, com o aumento do o número de publicação de best-sellers voltados para o aprimoramento das funções cerebrais. Muitos desses livros, de embasamento científico duvidoso, prometem o desenvolvimento de regiões específicas do cérebro, o que possibilitaria melhorar o raciocínio, a memória, e combater a depressão, a ansiedade e outros tipos de transtornos. Incluem-se, nessa literatura, desde obras escritas por neurocientistas, psicólogos e psiquiatras respeitados no meio científico, os quais explicam de que forma prevenir-se contra os problemas mentais, até livros de escritores de autoajuda, os quais prometem “mundos e fundos” com suas técnicas de neuroascese e de aconselhamento. Na realidade, boa parte destes livros se voltam para a ideia de um cultivo do “eu interior” que pode ser alcançado trabalhando a habilidade de controle e autodomínio. Os discursos e práticas divulgados pelos best-sellers de fitness cerebral repetem, como indica Ortega (2009), os discursos e as metáforas das academias de ginástica. O próprio título desses livros já denuncia as semelhanças. Há neles a promessa de que os exercícios e técnicas cerebrais podem revigorar certas funções do cérebro, situação que lembra muito as recomendações de prática de exercícios físicos. Embora estas recomendações e práticas não estejam erradas, o problema é a sua condição de panaceia para todos os males, bem como a vulgarização e simplificação de resultados de pesquisas, os quais são apropriados e transpostos para outros campos de aplicação, sem que se leve em conta o contexto em que tais descobertas foram alcançadas. Enfim, o que importa, por ora, é constatar a visibilidade que é dada ao cérebro, na atualidade, e o quanto se deve investir em seu desenvolvimento e aprimoramento, como condição para se manter o autodomínio, a eficiência e a maximização de sua potência.
Ao fazer o contraponto entre o sujeito falante da psicologia e o sujeito cerebral das neurociências, Ehrenberg (2009) destaca que os discursos sobre o cérebro produziram a naturalização da linguagem na vida social, em que aparecem rearticulados os vocabulários de diferentes campos do saber, da psicologia, da psicanálise e das técnicas espirituais, com a neurologia. Tudo isso teria conduzido, segundo o autor, a uma espécie de reprogramação do cérebro ou constituição do cérebro emocional, o qual não pode ser acessado pela linguagem ou pelo sujeito falante, mas pelas descobertas da neurociência.
Diante das mais variadas opiniões e usos que se pode fazer das descobertas científicas, na atualidade, sobretudo no campo da biomedicina, das neurociências e da biologia em geral, o que se verifica é emergência de uma nova forma de vida, em que se delineia um novo modo de governamentalidade biopolítica, a qual “[...] não está delimitada nem pelos polos de doença e saúde, nem focalizada em eliminar patologias para proteger o destino da nação. Ao contrário, está preocupada com nossas crescentes capacidades de controlar, administrar, projetar, remodelar e modular as próprias capacidades vitais dos seres humanos enquanto criaturas viventes.” (ROSE, 2013, p. 16).
O que há de novo nessa biopolítica contemporânea é o aumento das capacidades de manipulação e de interferência sobre os processos vitais, os órgãos e os cérebros. A nossa vitalidade está aberta à manipulação e intervenção calculadas, implicando novos riscos, pois os seres humanos podem experimentar como si mesmos biológicos, sujeitos ao governo de diferentes formas de expertises, que mobilizam uma variedade de saberes vindos da medicina e da biomedicina, em que o corpo é visualizado no nível molecular. A vida ou o corpo vivente é analisado em seus mecanismos vitais, os quais adquirem inteligibilidade e são isolados e recombinados por meio de intervenções que rompem com sua aparente normatividade natural. Isso permite um replanejamento do si mesmo biológico e de sua otimização, atuando, portanto, tanto na identificação das suscetibilidades como no aprimoramento do corpo (ROSE, 2013). O protagonismo assumido pelo cérebro, hoje, situa-se, portanto, no contexto das novas tecnologias de aprimoramento do corpo.
Tem-se também a emergência de novos modos de vida decorrentes desse processo de cerebralização da vida que passa a produzir estilos de vida. Rose (2013) fala mesmo na emergência de uma ética somática que não se define em termos de princípios, senão em termos de valores que orientam formas de condução da vida. A existência biológica, física e corporal ocupa centralidade nessa ética somática. Ela baseia-se na maximização da saúde e da qualidade de vida como modo de viver, como estilo de vida. A nossa individualidade passa a ser definida, em parte, pelos aspectos do corpo. A crença no sujeito psicológico habitado por desejos, mas também por uma consciência que avalia e determina formas de agir, foi deslocada para o cérebro que determina as nossas escolhas éticas. Com as ciências neurológicas e comportamentais, o que fazemos e o que somos se define pelas atividades cerebrais. Os nossos destinos são decididos e imaginados em termos da nossa corporalidade em escala molecular.
Os desdobramentos dessa centralidade do corpo e de seu desempenho tendem a ocupar o lugar das virtudes morais. As performances corporais passaram a ser garantia de admiração moral. Nessa cultura somática, assinala Costa (2004), não nos resta outra opção senão correr atrás, e sempre com atraso, do corpo idealizado. Essa mesma lógica parece se aplicar à busca ou à corrida pelo investimento no cérebro perfeito, saudável, eficaz, produtivo e atento. A mesma lógica que orienta a modelação do corpo perfeito, do corpo saudável, parece nortear o investimento que se assiste no sujeito cerebral. Aliás, ambos são investimentos sobre o corpo biológico, com a diferença, talvez, de que agora o cérebro adquiriu o status de lugar de onde se pode exercer o controle e o domínio da volição, das emoções, da cognição e do sofrimento. Reside aqui a possibilidade de se combater a dificuldade para exercer a vontade no domínio do corpo e da mente, em conformidade com as normas que definem a qualidade de vida. É por essa via que se pode corrigir as condutas que não se encaixam no padrão da personalidade somática contemporânea.
O que se critica não é a importância que o cérebro tem no desenvolvimento das funções e capacidades humanas, mas o fato de se admitir ou buscar identificar que particularidades do seu funcionamento explicam unilateralmente o modo de agir humano: práticas sexuais, decisões morais, patologias mentais, a delinquência, o crime etc. Tais constatações têm efeitos para além do campo específico das neurociências e da psicologia, incidindo também em outras disciplinas das ciências humanas. É o caso da neuroeducação, área de conhecimento híbrida, ainda em processo de formação, a qual se dá na interface entre neurociências e ciências da educação. O pressuposto básico da neuroeducação, afirmam Ortega e Zorzanelli (2010, p. 106-107),
[...] se assenta na ideia de que conhecer as bases neurobiológicas da aprendizagem pode levar ao seu aprimoramento. Ou seja, os conhecimentos neurocientíficos seriam utilizados como forma de aperfeiçoar métodos e corrigir limitações da aquisição de conteúdos. A partir dessa premissa, desdobram-se práticas de neurodidática e neuropedagogia, para a proposição de melhores formas de o cérebro aprender.
Não se trata, nesse caso, de se negar a importância das neurociências para se aprimorar as maneiras de aprender: o que não se pode aceitar são algumas conclusões apressadas, que reduzem os processos de aprendizagem à funcionalidade cerebral, perdendo de vista que são eles realizados por uma pessoa que está inserida num contexto histórico, cultural, econômico e social, o qual oferece moldura e conteúdo a esses processos. Além desse caráter reducionista na abordagem dos processos de aprendizagem, há o risco de simplificação dos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro, quando se dá a transposição de resultados de trabalhos de pesquisas sérios e muito complexos para o campo da educação ou outras áreas, em que se ampliam as inferências acerca de uma determinada descoberta científica de maneira muitas vezes grosseira, criando o que os autores denominam neuromitos. (ORTEGA; ZORZANELLI, 2010; EHRENBERG, 2009; ROSE, 2013).
Essas constatações a respeito das neurociências e seus desdobramentos para o campo da educação e seus efeitos sobre a vida dos indivíduos, particularmente daqueles que estão submetidos aos processos de ensino-aprendizagem, podem ser lidas na perspectiva da análise que Foucault (2008) faz dos vínculos entre teoria do capital humano e amplificação de “bons equipamentos” (p. 313), não só genéticos, mas equipamentos que podem ser adquiridos via investimento em educação, para que os indivíduos se tornem competitivos no mercado de trabalho da sociedade empresarial e ou adaptados às exigências morais e sociais de uma determinada realidade. Essa articulação entre neurociências e neuroeducação só vem reforçar as formas eficientes de controle e gerenciamento da vida, conferindo mais sutileza aos dispositivos da biopolítica contemporânea e sua inserção no contexto escolar. Com os novos dispositivos empregados pela neuroeducação, o indivíduo está mais exposto às tecnologias de controle e, ao mesmo tempo, mais vulnerável à dissecação cerebral de sua particularidade, a qual pode ser modificada, ampliada, em função de transformá-lo num gestor de si mesmo e viver de acordo com a cultura da performance eficiente. Nesse jogo de performance, o fracasso, quando ocorre, já está justificado de antemão: ou o indivíduo não investiu em capital humano ou não nasceu dotado de equipamento genético suficiente para concorrer nesse mundo.
Os argumentos de Foucault (2008) acerca da biopolítica, particularmente de suas últimas interpretações sobre este conceito, têm sido relidos sob a perspectiva dos avanços recentes ocorridos no campo das ciências da saúde e da biologia, em que, segundo Nikolas Rose (2013, p. 16), as preocupações não se limitam ao cuidado com a saúde e constituição biológica das populações, como já assinalado, mas se ocupam hoje em administrar e controlar as capacidades vitais dos seres humanos, adquirindo características de uma nova política que cuida da vida em si mesma e que recai sobre o corpo vivente.
A relação dessa forma biopolítica com a educação escolar passa pela potencialização dos processos de aprendizagem, os quais são pensados no registro dos avanços das neurociências cognitivas, cuja preocupação se volta para o entendimento sobre como acontece a aprendizagem e, por suposto, para o funcionamento do cérebro nesses processos. Mesmo que as discussões a propósito dos processos cerebrais e da aprendizagem sejam complexas e controvertidas, é importante destacar que esses discursos se fazem presentes no debate educacional e passam a produzir novas formas de subjetivação, que, obviamente, estão para além dos discursos educacionais contemporâneos, incidindo, contudo, sobre eles. O aspecto mais evidente dessa incidência recai sobre o risco de se reduzir as pessoas (os aprendizes) ao seu funcionamento neurobiológico, quando são pensadas e analisadas meramente como produtos de sua neuroquímica.
A emergência dessa política sobre a vida coloca à educação escolar e aos seus processos de ensino aprendizagem a demanda para que os sujeitos aprendizes sejam mais eficientes na apropriação e incorporação dos conhecimentos disponíveis, tornando-os mais úteis e adaptados à lógica da produção e do consumo. A produção dessa demanda por eficiência nos processos de aprendizagem emerge de uma nova maneira de pensar os problemas de aprendizagem, os quais devem ser entendidos e gerenciados de uma maneira também particular, o cérebro se apresentando como uma espécie de sujeito e como recurso social de grande importância. É a partir dessa perspectiva que, segundo Rose (2013), os governos e empresas, particularmente nos países desenvolvidos, falam tanto em maximizar o capital mental dos indivíduos:
No Reino Unido a soma dessa ideia e a de capital mental, o argumento é que as sociedades e os políticos têm que maximizar o capital mental de suas populações encorajando as pessoas a maximizar seu bem-estar por meio da compreensão de todo tipo de problemas sociais - quer sejam problemas de práticas educativas na infância, ou problemas de agressão - em termos de coisas do cérebro; procurando agir sobre, por meio do cérebro - governar pelo cérebro. (ROSE, 2013, p. 311).
Tudo isso nos remete à leitura de Foucault sobre a teoria do capital humano, em Nascimento da biopolítica (2008) ; obviamente, o argumento ganha aqui uma ampliação, pois agora as interferências se dão nos neurônios e neurotransmissores, onde se localiza o si mesmo biológico de cada indivíduo. Esses jogos de verdade ou essas técnicas não prometem somente a cura ou o combate de doenças, mas o incremento ou o aprimoramento dos tipos de pessoas que somos ou queremos ser.
As relações entre os indivíduos passam a ser mediadas pela lógica do homo oeconomicus, como assinala Foucault (2008). Cada sujeito é responsável pelo controle de si mesmo e por gerir os riscos implicados em suas escolhas e formas de atuar no mercado. Por isso mesmo, deve desenvolver habilidades e capacidades que o adaptem à competitividade do mercado. É nesse contexto que as tecnologias de aprimoramento cognitivo, os discursos e os saberes que as sustentam passam a ocupar e a determinar novas práticas e modos de condução dos indivíduos. Essas práticas são indutoras e produtoras de novas subjetividades e de novas formas de sujeição atreladas ao exercício da biopolítica e do governo da vida, na atualidade.
Uma série de mecanismos, tecnologias e dispositivos são mobilizados na produção e na condução desse modo emergente de vida, que tende a reduzir o comportamento, os humores, as emoções e desejos dos sujeitos, aos aspectos cerebrais, os quais se sustentam nos saberes e verdades oriundos do campo das neurociências e da produção da biotecnologia. Já não se trata apenas de exercer o domínio disciplinar dos corpos, mas de ordenar a vida, localizando-se nas suas dimensões biológicas. É dessa perspectiva que as patologias passam a ser definidas como inerentes ao corpo biológico. Assim, “[...] o sentido do sofrimento humano está inscrito nos genes ou nos circuitos neuro-hormonais”. (COSTA, 2004, p. 196). O biopoder passa a se ocupar da vida em seus aspectos moleculares, em que o sofrimento existencial, o mal-estar e as angústias são tratados como anomalias biológicas.
É importante demarcar que a nossa preocupação, ao longo deste texto, não foi demonizar as descobertas das neurociências e muito menos desprezar a importância que elas têm para a compreensão dos processos de aprendizagem na atualidade. O que buscamos foi matizar os efeitos de verdade decorrentes da apropriação, divulgação e popularização desses discursos, que tendem a gerir a vida em seus diferentes domínios, desde a administração dos afetos e cura de doenças graves, até a potencialização de habilidades e competências úteis para a concorrência no mercado de trabalho.
No início deste texto, destacamos que, com as descobertas científicas sobre o cérebro e os diferentes discursos que investem na divulgação dessas descobertas, quer em veículos especializados, querem não especializados, o que parece ficar evidente é o desejo de tornar o corpo transparente. No entanto, articulada a essa necessidade de transparência, há uma outra prática muito valorizada na análise das formas de vida atual, que é a prática diagnóstica, presente nos discursos do chamado terceiro setor, o qual se organiza em torno de três processos: diagnóstico, intervenção e avaliação. O papel dos consultores, nesse contexto, é o de diagnosticar problemas e processos relacionados ao comportamento dos indivíduos, reorientando-os para práticas que potencializem disposições e qualidades para o planejamento no trabalho e na vida. Conforme Christian Dunker (2015), vivemos numa sociedade diagnóstica que administra a vida em todas as suas instâncias. Tais formas de diagnósticos adquiriram força impositiva, capaz de gerar interdições, formas coercitivas e de tratamentos os mais variados, particularmente no campo da medicina e da psiquiatria.
O diagnóstico tende a submeter distintas formas de existência a uma unidade regular e classificatória, tratando-as apenas como fatos clínicos sujeitos ao tratamento médico. Aqui é preciso enfatizar que a medicina e, particularmente a psiquiatria, são campos do diagnóstico por excelência. Os diagnósticos clínicos se baseiam no que define o patológico, ao mesmo tempo em que o estende, como metáfora ou como campo que funda o patológico, para outros campos da vida humana. Assim, “[...] cada vez mais, o âmbito do patológico, mesmo em práticas de saúde, expande-se para comportamentos de risco, atitudes inadaptadas, predisposições para o desenvolvimento de doenças, qualidades e estilos de vida, vulnerabilidades sociais, situações laboratoriais críticas, configurações ergonomicamente indesejáveis, propensões genéticas, disfunções cerebrais”. (DUNKER, 2015, p.22). Qualquer pessoa hoje se sente enquadrada num conjunto de princípios diagnósticos ou é incitada a se colocar nesse lugar. O campo da psiquiatria, na interface com as neurociências, ampliou sua incidência sobre práticas diagnósticas no campo da saúde mental e do desempenho cerebral, com desdobramentos claros para o campo da educação.
As políticas públicas de gestão escolar pautam as suas formas de avaliação de desempenho dos alunos adotando critérios diagnósticos de maneira, senão idêntica, pelo menos próxima daqueles adotados pelo modelo empresarial presente no terceiro setor, haja visto que o sistema de certificação de desempenho escolar se replica em várias modalidades de provas, com alcance em nível estadual, nacional e internacional. Essas formas de demandas por desempenho têm produzido efeitos perversos no contexto escolar. Cada vez mais se exige que crianças e adolescentes respondam às exigências avaliativas com eficiência e que atendam às metas estabelecidas por organismos internacionais. Há uma demanda por sucesso escolar que é desproporcional aos suportes oferecidos a esses sujeitos, na escola. Por outro lado, cada vez mais, a escola, os pais, a sociedade e o Estado têm interpretado os problemas de desempenho como patologia. Da mesma maneira que se ampliaram as formas de diagnóstico de desempenho, incrementaram-se igualmente os modos de se diagnosticar patologias relacionadas aos contextos de ensino e aprendizagem.
Esses diagnósticos de psicopatologias tendem a simplificar os aspectos que determinam os sofrimentos, nessa fase da vida. Há, na educação, uma tendência em se diagnosticar, cada vez mais cedo, as patologias infantis. Nesses diagnósticos, escreve Christian Dunker (2015, p. 20): “A medicalização da infância passou da disfunção cerebral mínima, nos anos 1970, para deslexia, nos anos 1990, chegando agora ao déficit de atenção (com ou sem hiperatividade)”. Nesse sentido, um número cada vez mais elevado de crianças é medicado em função de se combater sintomas expressos por meio de comportamentos e humores, sem que se leve em conta o contexto, as experiências e a singularidade de cada sujeito. Tudo tende a ser reduzido ao funcionamento cerebral. Cria-se ou reinventa-se, desse modo, uma nova autoridade em termos da educação das crianças, baseada no discurso científico das neurociências e na popularização desses discursos, via diferentes mídias, o que parece confirmar a história da “[...] própria formação do campo escolar que esteve pautada, a partir da modernidade, pela administração de uma intervenção do estado e dos especialistas na educação das crianças”. (GUARIDO, 2011, p. 36).
Tornou-se corrente o uso de psicofármacos para estimular a cognição e aumentar a concentração, como é o caso do uso de metilfenidato -cujo nome comercial mais conhecido é ritalina - em crianças, com o intuito de melhorar o rendimento escolar, ao ponto de alguns estudiosos discutirem hoje o doping cerebral como um problema ético (bioético), sobretudo num momento em que se intensificam as manifestações a favor da liberação mais ampla do uso de medicamentos, tendo em vista o melhoramento de performances cognitivas. No entanto, esses processos de intervenção não ficam restritos ao uso de medicamentos, mas se estendem ao emprego de técnicas para obter imagens cerebrais que possibilitam reconhecer as conexões cerebrais utilizadas na atenção ou na emoção, a partir das quais se pode selecionar o tipo de intervenção clínica ou pedagógica a que deve ser submetido o indivíduo, a fim de restaurar lacunas, conexões e funções cognitivas estratégicas para o desenvolvimento (PROUST, 2009).De novo, vale ressaltar que o problema está na ênfase e na configuração do sujeito cerebral, e não nos avanços e descobertas realizadas no campo das neurociências.
O uso das imagens cerebrais no campo da neuroeducação está direcionado, ressalta Proust (2009), para o treinamento da atenção, pois esta, como as emoções, ocupa o centro da atividade mental. A mobilização da atenção voluntária traria, segundo esses discursos, benefícios imediatos ao estudante, tais como eficácia na aprendizagem, aumento da capacidade de manifestar preferências e organização autônoma do tempo. Tudo isso pode ser confirmado pelo uso de técnicas de treinamento da atenção e seus efeitos sobre a inteligência humana individual. Ao analisar as pesquisas desenvolvidas pelos americanos Rueda e Posner, usando sessões de videogames com crianças, comenta Proust (2009, p. 362):
A criança de 4 anos treinada em cinco sessões de meio dia em videogames concebidos para desenvolver sua memória executiva (inibição das distrações, reconhecimento dos sucessos e dos fracassos, concentração da atenção em sua tarefa) internaliza por longo tempo os métodos de exploração e de fixação da atenção que lhe são propostos e atinge dois anos antes, ou seja, aos 6 anos - a capacidade de atenção de uma criança de 8 anos não submetida a esse treino.
A incidência desses saberes neurocientíficos extrapola o campo da educação escolar e se faz presente em diferentes instâncias do vivido, compondo estratégias de gestão da vida: controle da saúde, controle da conduta moral, controle dos processos de aprendizagem, produção de novos hábitos e disciplina para o trabalho. Essas questões indicam mutações em torno da experiência humana contemporânea que exige o trabalho de reflexão acerca das implicações desses saberes sobre a nossa condição humana. Talvez seja este o desafio mais imediato posto às ciências humanas e à filosofia, em particular, que é refletir sobre a condição humana, no contexto da civilização tecnocientífica.
Para finalizar, parece ser razoável reconhecer que as descobertas no campo das neurociências cognitivas e a proliferação dos discursos em torno dessas descobertas, quer em veículos de divulgação científica, quer não, têm produzido um novo tipo de vida emergente, baseada no funcionamento cerebral. É importante destacar que a produção e ressignificação desses discursos escapam a qualquer limite, pois eles são relidos, apropriados e adaptados por diferentes campos de saberes e mídias com interesses os mais variados, sintetizados na definição de estilos de vida e dos modos de se investir em capital humano. Numa sociedade estruturada pela lógica do desempenho, parece ficar evidente que os processos de medicalização, orientados pelos critérios da maior eficiência cerebral, visam aumentar a performance no trabalho, nos processos de aprendizagem, criando uma espécie de “mais valor comportamental” e um “superávit de desempenho” (DUNKER, 2015, p. 23). É também por essa lógica de desempenho que se define ou se busca reparar os cérebros ineficientes (sujeitos ineficientes/deficientes). A palavra eficiência refere-se, como bem o identificam os dicionários, à capacidade de realizar bem uma tarefa. O contrário da eficiência pode ser tanto a ineficiência, enquanto incapacidade de ser produtivo e eficaz na ação, como pode também definir, caracterizar, a ação de alguém cujo desempenho é considerado não satisfatório, portanto, deficiente.
O curioso é que, nessa busca pelo cérebro eficiente, o que interessa é o combate imediato aos sintomas da inadaptação e das disfunções cerebrais, os quais podem ser corrigidos por via medicamentosa ou por meio de técnicas de treinamento da atenção, da concentração e das emoções. A narrativa que eventualmente o sujeito que sofre constrói sobre si mesmo não é ouvida. O sofrimento não chega a ser designado no registro do discurso daquele que sofre, todavia, é codificado pelos sintomas, os quais são, via de regra, no caso de algumas “patologias escolares”, identificados por critérios diagnósticos, que são, muitas vezes, por sua vez, indutores de patologias.