DOSSIÊ

Infância é Corpo Encarnado /uma Perspectiva Poético-Existencial para o Ser Criança

Childhood is Body Incarnate: a Poetic-Existential Perspective in Being a Child

Infancia es Cuerpo Encarnado/ Una Perspectiva Poético Existencial Para Ser Niño

Marina Marcondes Machado
Universidade Federal de Minas Gerais, Brazil

Infância é Corpo Encarnado /uma Perspectiva Poético-Existencial para o Ser Criança

Childhood & philosophy, vol. 12, núm. 24, pp. 455-468, 2016

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Recepção: 25 Agosto 2015

Aprovação: 23 Outubro 2015

Resumo: Este texto visitará importantes noções da psicanálise de crianças, para depois relacioná-las, de modo reflexivo, à fenomenologia do cotidiano e à fenomenologia das relações ordinárias adulto-criança. As noções psicanalíticas aqui discutidas são: imagem do corpo (Françoise Dolto, 1984) e sentimento do real (Donald Woods Winnicott, 1982; 1990). Dolto nos apresenta uma espécie de gênese da concretude corporal da criança, nomeando as zonas erógenas como “lugares do corpo” e revelando o propiciar da capacidade humana de fantasiar, enquanto que Winnicott afirma que o sentimento do real é algo a ser experienciado, construído e mantido, por meio de um fluxo de continuidade dos cuidados (maternagem) e das relações, bem como a oferta, por parte da comunidade adulta, de experiências totais às crianças. Em busca de um olhar híbrido em termos teóricos - entre a psicanálise e a fenomenologia - a autora entretece os conceitos à luz dos Cursos na Sorbonne, lecionados por Maurice Merleau-Ponty, nos meados do século XX. Assim, pode-se engendrar uma terceira via: a perspectiva poético-existencial para o ser criança, apresentada como algo plural que nos mostra modos de ser, estar e habitar o espaço corpo próprio bem como o mundo circundante. Trata-se de uma compreensão fenomenológica da criança, apresentada, particularmente, a partir da leitura da díade adulto-criança e em constante diálogo com o olhar merleau-pontiano para a pequena infância. Disso resultam atitudes relacionais, nas quais o adulto apura sua escuta e acolhida para as maneiras de ser da criança pequena, procura positivar os fenômenos dos mundos de vida infantis, e sintoniza com algo que Winnicott definiu como concomitantes ausência e presença. Há que estar lá quando for preciso; bem como ser capaz de ausentar-se, gradualmente, de modo que a criança descubra, a seu modo e em seu ritmo, a si mesma, ao outro e às coisas do mundo, em nome do que Winnicott nomeou “o brincar livre e criativo”.

Palavras-chave: imagem do corpo, sentimento do real, corporalidade, intersubjetividade, mundaneidade.

Abstract: This essay ponders notions of child psychoanalysis and relates them to the phenomenology of the quotidian and the phenomenology of ordinary adult-child relationships. The notions are: body image (Françoise Dolto, 1984) and the feeling of real (Donald Woods Winnicott, 1982; 1990). Dolto presents us the genesis of the child’s body concretude, naming the erotic zones as “places of the body” and revealing the human capacity for fantasizing. Meanwhile, Winnicott states that the feeling of real is something to be experienced, built and maintained alive by a fluxus of continuous care caring and relationships as well as the supply, on the part of the adult community, in providing “total experiences” in the child’s daily life. Searching for a hybrid theoretical vision between psychoanalysis and phenomenology, the author entwines the concepts in the light of the Sorbonne Courses, taught by Maurice Merleau Ponty in the mid 20th century. In this way, a third way forward may be engendered: a poetic-existential perspective for a child being, presented as something plural, which considers ways of being and inhabiting the space own body and surrounding space. This is a phenomenological comprehension of childhood - presented particularly in the reading of the dyad adult-child relations, in dialogue with Merleau-Ponty’s works about the human early life (The Sorbonne Lectures). This has led to relational attitudes, in which the adult develops his listening and acceptance towards the ways of being of a child, gives positive values to the phenomena of childhood and harmonizes with something that Winnicott has defined as a concomitant “presence and absence” state of mind. It is necessary to be there when it is needed, as well as to be gradually absent, so that the child can find out, on her own ways and rhythm: herself, the others and the things of the world, acting according to Winnicott’s conception called “the free and creative playing”.

Keywords: body image, feeling of real, corporality, intersubjectivity, mundaneity.

Resumen: Este texto visitará importantes nociones del psicoanálisis del niño, para después relacionarlas, de modo reflexivo, con la fenomenología de lo cotidiano y la fenomenología de las relaciones habituales adulto-niño. Las nociones psicoanalíticas aquí discutidas son: imagen del cuerpo (Françoise Dolto, 1984) y sentimiento de lo real (Donald Woods Winnicott, 1982; 1990). Dolto nos presenta uma espécie de génesis de la concretud corporal del niño, nominando las zonas erógenas como “lugares del cuerpo” y revelando el propiciar de la capacidad humana de fantasiar, en tanto que Winnicott afirma que el sentido de lo real es algo a ser experenciado, construido y mantenido por medio de un flujo de continuidad de los cuidados (maternage) y de las relaciones, bien como la propuesta, por parte de la comunidad adulta de experiencias totales, a los niños. En busca de un mirar híbrido en términos teóricos - entre psicoanálisis y fenomenología- la autora entreteje los conceptos a la luz de los Cursos de la Soborna dictados por Maurice Merleau Ponty a medidados del siglo XX. Así, es posible engendrar una tercera vía: la perspectiva poético-existencial para el ser niño, presentado como algo plural que nos muestra modos de ser, estar y habitar el espacio cuerpo propio bien como el mundo circundante. Se trata de una comprensión fenomenológica del niño, presentada particularmente a partir de la lectura de la díada adulto-niño y en el constante mirar merleau-pontiano respecto de la primera infancia. De esto resultan actitudes relacionales, en las cuales el adulto mejora su escucha y acogida para las maneras de ser de los niños pequeños, intenta positivar los fenómenos de los mundos infantiles, y sintoniza con algo que Winnicott definió como concomitantes ausencia y presencia. Hay que estar ahí cuando sea preciso; bien como ser capaz de ausentarse, gradualmente, de modo que el niño descubra, a su modo y en su ritmo, a sí mismo, al otro y a las cosas del mundo en nombre de lo que Winnicott llamó “el jugar libre y creativo”.

Palabras clave: imagen del cuerpo, sentimiento de lo real, corporalidad, intersubjetividad, mundanidad.

Introdução

Este texto foi escrito inicialmente para ser comunicado no “Colóquio Corpo-Encarnação”, evento acontecido em agosto de 2015 na Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil). Ao ser convidada a participar do colóquio, fiquei apreensiva: como contribuir para um evento com evidente recorte religioso, cujo acontecimento seria em uma instituição jesuíta? Foi a partir daquela apreensão inicial que criei o título “Infância é corpo encarnado” - e, ao fazê-lo, me aquietei. Percebi também que poderia ser interessante fazer uma contribuição laica bem como enfrentar o desafio do encontro com uma audiência totalmente diferente daquelas com as quais me deparo em meu cotidiano, como pesquisadora das relações entre infância e cena contemporânea e docente em teatro.

Aos poucos, desenhei um percurso que visita importantes noções da psicanálise de crianças, para depois relacioná-las à fenomenologia do cotidiano e à fenomenologia das relações ordinárias adulto-criança. As noções são: imagem do corpo (DOLTO) e sentimento do real (WINNICOTT), discutidas a seguir por nós à luz dos Cursos na Sorbonne lecionados por Merleau-Ponty nos meados do século XX. Em busca de uma perspectiva híbrida em termos teóricos, e polimorfa, onírica e não-representacional em termos filosóficos, procurei apresentar a condição poético-existencial como modo de habitar o mundo circundante: clareira passível de ser presentificada junto às crianças pelos adultos responsáveis por elas, de modo que a morada em seus corpos possa ser concebida como direito assegurado, sempre.

Proponho que o leitor imagine comigo o desenho de um primeiro contorno para esta reflexão, que iremos colorir juntos - de início conectando-nos a uma intrigante pergunta feita na forma escrita pela psicanalista francesa Françoise Dolto: “Onde está isso que me dá a condição de ser?” (DOLTO, 1984, p.53)

Esta pergunta - mesmo aqui, escrita sobre o papel, descontextualizada - me provoca um tipo de espanto, dor e alegria. Sempre que a lembro, são recorrentes os mesmos sentimentos. Lembrar a dor e a delícia de ser… assegura-me que sou, e me faz querer nomear o “isso”. (Algo que Dolto coloca em um lugar, ao perguntar “onde está”?, e esta perspectiva espacial me interessa, como pesquisadora das dramaturgias do espaço).

O título do texto de Dolto que contém aquele enigma é “Personalogia e imagem do corpo”, capítulo do livro No jogo do desejo. Em outra obra, Dolto também disse: “A solidão dos bebês existe.” (DOLTO, 1998, p. 433)

Este artigo fará interlocução com Dolto, bem como com Winnicott e também com a noção de infância merleau-pontiana, registrada nos dois volumes que trazem compilações escritas por alunos do filósofo, em seus Cursos na Sorbonne1. Posso agora começar a introduzir minha contribuição pessoal: arvorada no tripé “isso que me dá a condição de ser” / “solidão dos bebês” / “ciclos de alegria-luto” (discutido logo em seguida) - visitaremos juntos parte da obra de Winnicott e de Merleau-Ponty, no que diz respeito ao sentimento de ser real e ao corpo encarnado, para defender o direito das crianças a habitar seu corpo próprio, condição a ser garantida de modo inalienável.

Breve visita à psicanálise francesa

Ciclos de alegria-luto

O ser humano que sobreviveu à ruptura umbilical do cordão vital em sua forma de feto procura às cegas fora de sua forma própria, estendendo a boca em todos os sentidos, a fonte do líquido quente que apaziguará o vazio que ele contém em suas entranhas. O ciclo de alegria-luto está iniciado, sinônimo de vida e trazendo seu fruto.

Françoise Dolto

Françoise Dolto (1908-1988) teve formação médica inicialmente, depois tornou-se psicanalista, especializando-se na análise de crianças. Seu texto “Personalogia e imagem do corpo” foi publicado em 1961. Chama atenção a capacidade de Dolto para traduzir as noções freudianas de modo muito particular, e seus comentários permanecem extremamente atuais; conceitua as “fases da libido” nomeando-as os “lugares do corpo”. A própria oralidade da psicanalista, sua capacidade para dizer em palavras, nos leva aos lugares da primeira infância; os ciclos de alegria-luto acontecem, do parto em diante, até o final de nossas vidas; entretanto cada ciclo é também vivido como morte, daí o luto:

[…] O “sentir” desse corpo, relaxado ou tenso no lugar em que se coloca a questão única - “onde está isso que me dá a condição de ser?” -- esse sentir se modifica sob o impacto da atração do objeto, do qual espera a conjunção iminente com ele: a percepção do peso anterior é substituída por uma percepção da forma que acompanha a fonte desta modificação, e a imagem dessa forma substitui aquilo para que ele se dirigira. E é essa ausência instantânea da percepção sensorial, concomitante à conjunção que permite a satisfação, é a essa modificação do sentir pela perda do todo ou parte do corpo, suporte mediador da pergunta, que chamamos viver: ao passo que se trata precisamente de morte. (DOLTO, 1984, p. 55)

Quando absorvemos e saboreamos o vocabulário de Dolto, seus modos de dizer, tornamos possível a compreensão da sexualidade infantil em nós; “[…] depois do apaziguamento, a mãe continua a ocupar-se do bebê num dom de presença […]” (DOLTO, 1984, p. 55): a amorosidade do ato de amamentar, ou alimentar seu bebê, a visão do bebê do rosto da mãe, “cada descoberta de sensação que o rosto materno autentica”, são constitutivos da corporalidade e da temporalidade da criança. Aos poucos, instaura-se o tempo vivido:

[…] Entre sonos e despertares, no clima da presença afetiva materna, a imagem do corpo se enriquece com novas descobertas de zonas erógenas que desaparecem e reaparecem no contato com nosso objeto de amor, donde nosso nascimento para a noção do tempo vivido ao mesmo tempo que para nossos afetos correlatos. […] Assim se constrói a imagem do corpo, naquilo que tem de perdurável, nos tormentos e nas alegrias do corpo e, depois, do coração. (DOLTO, 1984, p.56)

Dolto também nos dá pistas daquilo que acontece com o casal parental, quando do nascimento de uma criança:

A imagem do corpo do genitor que ama se amplia, confrontada com as necessidades de seus filhos, num lugar que, por sua vez, é armadilha para um narcisismo sadiamente ligado às referências atuais e um perigo para o coração, pois o desenvolvimento da geração mais jovem desespacializa e destemporaliza o adulto que nela se mira. […] (DOLTO, 1984, p.57)

Instaura-se o caminho de mão dupla da outridade: relação adulto-criança, cujas realizações bem como riscos são cotidianos, e haverá um momento no qual

[…] a última realização se afirma na transcendência do “Eu” finalmente livre, em sua coincidência total com o grito expiratório que o desvencilha do retorno ao jogo das imagens ilusórias nascidas do condicionamento sensorial. É a morte, liberadora da armadilha da imagem do corpo e de suas mutações. (DOLTO, 1984, p.57, grifo meu).

Os ciclos de alegria-luto serão revisitados, inclusive e especialmente por aqueles que se dispõem a ser psicanalisados; e por meio da relação de transferência, será explicitado ao paciente “o modo de relação exemplar que ele busca ou de que foge” (idem ibidem). Dolto afirma que pode ser que a transferência se manifeste, justamente, por meio de sensações cinestésicas e corporais.

Imagem do corpo

Para Dolto, “imagem do corpo” não é sinônimo de “esquema corporal” - “ainda que o esquema corporal contribua para sua elaboração” (1984, em nota de rodapé, p.63). Seu conceito para imagem do corpo fica assim explicitado:

Qualquer representação de uma dada coisa, ser, criatura ou ideia que reconheçamos como conforme, isto é, como atingindo seu objetivo evocador ou representativo para nós mesmos e para outrem, é a imagem ou uma das imagens que podemos fazer disso para nós mesmos, revestidas (ou contaminadas) por nossas sensações em relação a essa coisa, esse ser, essa criatura ou essa ideia. A imagem inconsciente do corpo é uma síntese viva, atual a cada momento, de nossas experiências emocionais repetitivamente vividas através de sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais de nosso corpo; uma emoção evocadora atual orienta a escolha inconsciente das associações emocionais subjacentes que ela permite que aflorem. […] (DOLTO, 1984, p.62)

A imagem do corpo é, para Dolto, mediadora de presentificações; haveriam “instâncias ou forças presentificantes”, “diretamente tangíveis em todas as composições livres, gráficas ou plásticas”: “verdadeiros fantasmas representados” (1984, p.63).

Dolto explicita: mesmo que não se encontre no desenho, ou na modelagem, formas do corpo humano, estaremos diante da “imagem do corpo” mediando algo - ouso dizer, presentificação do “isso” que me dá a condição de ser. Percebo, em seu pensamento, grande abertura para ampliar e renovar a noção de representacionalidade, especialmente no que tange as relações adulto-criança, quando o adulto “quer ver” formas e figuras nas produções infantis - e considera o campo figurativo como sinônimo de maturidade. Do ponto de vista psicanalítico, levando em conta a noção de inconsciente, nossa “imagem do corpo” é mediadora de nossos “fantasmas representados”. Nas crianças pequenas, em seus jogos de faz de conta, em situações não-analíticas estrito senso, fantasmas vividos, encarnados, corporeificados, presentificam-se a cada momento vivido, sem nenhuma necessidade de realismo estrito senso.

Por fim, perceberemos como Dolto formula a díade do que os psicanalistas nomeiam “conteúdo manifesto” e “conteúdo latente”:

O corpo material, lugar do sujeito consciente, a todo instante o espacializa e o temporaliza. A imagem do corpo, ao contrário, está fora do lugar e fora do tempo, como imaginário puro e expressão dos investimentos da libido. (DOLTO, 1984, p.63, grifo da autora).

Breve visita à psicanálise inglesa

Aqui me distanciarei parcialmente da interessante visita ao modo de Dolto teorizar psicanaliticamente os anos iniciais de vida, uma vez que o referido ensaio segue discutindo fragmentos de análises de crianças, e meu foco aqui residirá na cotidianeidade, ou, ainda, nas relações ordinárias entre adultos e crianças - mais especificamente, no brincar “livre e criativo” tal qual Donald Woods Winnicott (1896-1971), também psicanalista, nomeou a ocupação das crianças que chamamos de faz de conta. Quero seguir tematizando a criança ‘comum’; a criança e seu ser-no-mundo; a criança como um “quem”: Pedro, Paulo, Maria, Antonieta… pessoalidades, antes que “sujeitos” e “objetos” de pesquisa e de estudo.

Winnicott trabalhou durante toda sua vida em um hospital público londrino, e sua obra tem uma característica importante: a acessibilidade para os leitores leigos. Winnicott fez inúmeras conferências para interessados em psicanálise e manteve um programa de rádio na BBC de Londres. Muitos dos seus princípios, muito da sua percepção da psicanálise tematiza “a mãe comum”: a maternagem, os cuidados com crianças pequenas, nos termos da saúde psíquica. Nesse sentido podemos dizer que Winnicott desenhou um campo fenomenológico na psicanálise de crianças - campo que aproximo, em meus estudos, à obra de Merleau-Ponty acerca da primeira infância.

Será de especial interesse aqui o modo como Winnicott descreve a gênese da psique humana, e farei foco em um dos aspectos: aquilo que Winnicott nomeia “o sentimento do real” no corpo (the feeling of real). Para atingirmos este modo de ser e estar, é preciso continuar existindo (go-on-being), e esta é uma questão existencial das mais instigantes e importantes; Winnicott a associa diretamente ao funcionamento corporal (coração, respiração), algo que advém da vitalidade dos tecidos corporais, e da atuação em nós, de modo relacional, das funções corpóreas. A experiência imaginativa, para ele, é enraizada na experiência corporal dos anos iniciais.

Em um interessante e enigmático filme chamado O Duplo2, duas personagens se sentem como Pinóquio - amarrados em fios e com dificuldade para sentirem-se / tornarem-se humanos. O personagem humano, adulto jovem, diz tal qual Pinóquio: I am a wooden boy / Sou um menino de madeira. Penso não ser por acaso esta uma temática recorrente no âmbito da ficção (filmes, poemas, dramaturgias): e, por vezes, o sentimento de realidade nos chega, paradoxalmente, a partir de um estado de ilusão - por exemplo, o apaixonamento.

Há também exemplos terríveis como o dos cutters - aqueles que se cortam, que sentem prazer, e necessidade, de fazer cortes em suas peles. Ver o sangue escorrer, sentir a dor, são lidos, por Winnicott, como atos de busca do sentimento do real (feeling of real). No entanto, no caso dos cutters, a busca está dada na chave do que o psicanalista nomearia o falso self3. A construção de nosso verdadeiro self depende da possibilidade de continuidade de cuidados e de maternagem; é preciso que os adultos propiciem experiências totais às crianças, em um campo relacional de necessária e concomitante presença e ausência. Precisamos estar lá, caso a criança necessite; mas é fundamental que ela descubra o mundo por conta própria, na sua medida. São os cuidados corporais contínuos, em gesto e palavra, e a independência gradual que asseguram o sentimento do real.

Infância é corpo encarnado?

Para Merleau-Ponty e a tradição fenomenológica, nosssa corporalidade revela nossos modos de ser e estar no mundo, aspectos de uma totalidade ou da culturalidade dos viventes:

[…] o sexual não existe em si. É um sentido que dou à minha vida e, se a história sexual de um homem fornece a chave de sua vida, é porque na sexualidade se projeta a sua maneira de ser em relação ao mundo, ou seja, em relação ao tempo e aos outros homens. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.70).

Argumentarei, aqui, que a noção merleau-pontiana do corpo encarnado, e desta experiência na infância, é um construto árduo e baseado na cumplicidade dos adultos, do mundo circundante. Conheci uma garota de oito anos cuja mãe insistiu, pela primeira infância afora, que tomasse três banhos ao dia. Digamos que, para esta menina, na puberdade e adolescência, sua totalidade psíquica se veja ameaçada e, para reafirmar-se, ou (re)encontrar-se, ela se recuse a tomar banhos e lavar seus cabelos, por muitos e muitos dias seguidos. Afinada com Winnicott, poderei dizer que a recusa em tomar banho consistirá em uma forma de autenticidade da garota - modo de preservar o cerne do self, inicialmente invadido por noções higienistas da mãe.

O “cerne do self” é uma poderosa e interessante noção elaborada por Winnicott, a partir de sua clínica. O psicanalista assim define o que é o self:

[…] o Self, que não é o Ego, é a pessoa que sou, que é apenas eu, que possui uma totalidade baseada nas operações do processo maturacional, cuidada como deve ser (maximizado no início) pelo ambiente humano que segura e maneja e que de modo vivo é facilitador). O self localiza-se naturalmente no corpo, mas pode em determinadas circunstâncias dissociar-se do corpo ou o corpo dele. O self se reconhece essencialmente nos olhos e na expressão facial da mãe e no espelho que pode vir a representar o rosto da mãe. Eventualmente o self chega a um relacionamento significativo entre a criança e a soma de indentificações (depois de incorporar e introjetar suficientes representações mentais) tornando-se organizado na forma de uma realidade interna viva. As relações entre o menino ou a menina com sua organização psíquica interna é reforçada ou modificada de acordo com as expectativas desempenhadas pelo pai e pela mãe e por aqueles que se tornaram significativos na vida exterior do indivíduo. É o self e a vida do self que por si só dá sentido à ação e à vida do ponto de vista do indivíduo que cresceu até agora e continuará crescendo, da dependência rumo à independência e à capacidade de identificação com objetos de amor maduros, sem a perda da identidade individual.

O texto acima, aqui em livre tradução minha, foi elaborado por Winnicott para esclarecer sua tradutora na língua francesa. Considero-o uma espécie de verbete extremamente esclarecedor da particularidade da obra do autor. Seria central para o self, justamente, o sentir-se real: e adquirimos isso por meio de um lento, paciente e depurado trabalho existencial e relacional nos primeiros anos de vida.

De modo inconsciente e complexo, processos reativos e defensivos para preservar o “cerne do self” levam-nos, ainda nos anos iniciais, a uma organização psíquica que Winnicott nomeia “o falso self”; segundo ele, todos possuímos um “falso self”, mas sua atuação (acting out) pode ser tão nociva a ponto deste modo de funcionamento prevalecer como único modo de sobreviver/proteger o verdadeiro self e tornarmo-nos adultos “produtivos” - quase sempre, na aparência, adultos muito bem sucedidos, pois, nesta chave, sentir-se real é ser reconhecido socialmente, ser aplaudido e aceito: existir será sinônimo apenas deste tipo de reconhecimento. No entanto o aspecto “verdadeiro self” permanece em nós, e poderá trazer à tona o sentimento de não sentir-se real, em sintonia com nosso falso self.

Winnicott teria dito a um paciente: “Você ainda não começou a existir4” - e, a partir deste dizer, o paciente pode comunicar-se a partir daquilo que o modo falso self escondia: as capacidades da espontaneidade e da criatividade; a capacidade para brincar.

De volta ao começo: a corporalidade como biografia encarnada

A mulher dá a luz. O bebê recebe o sopro de vida. E eis que os pulmões se enchem de ar: respiram. A passagem do corpo da mãe para o lado de fora, em direção ao mundo, deu início à sacralização da experiência corporal; sacralização profanada pela cotidianeidade da vida: “Lugar sacralizado é profanado pela contingência, que rói toda a expectativa existencialmente projetada, corrói a capacidade humana, destrói o escolhido” (Lopes, 1993, p.77). A sacralização que será ritualizada pelo cuidado do adulto: alimentar, banhar, dar colo, segurar a mão, acolher, conter… Sacralização rompida, abortada pelo descuido do adulto: maltrato, equívoco, perversão, impossibilidade de contato. (MACHADO, 2010, p.37)

Um menino inteligente e muito vivo, hoje com quatro anos de idade, apresenta, desde bebê, dificuldade para defecar. A partir dos quatro meses de vida foi levado, por muitas e muitas vezes, de modo intermitente, ao hospital para fazer lavagens intestinais. Sofre de grave constipação, é medicado para isso, e a atitude relacional da mãe com suas questões o leva a só conseguir defecar dormindo, e, portanto, mediante o uso de fraldas. Os procedimentos invasivos das lavagens, a dor para defecar, o deixaram bastante temeroso: “tem medo de seu coco”. Um belo dia, com três anos e alguns meses, teve a seguinte ideia: colocar o amigo e colega de creche na privada, e testar puxar a descarga; em seguida, o amigo fez o mesmo com ele. Penso ser a frase-síntese desta [incrível e inusitada] performance5: Eu sou o coco.

Eu sou, encarno, encorpo, fisicalizo as hipóteses somáticas e psíquicas da encoprese. Com apenas quatro anos de existência, quero me livrar de mim, jogando fora meu melhor amigo pela privada, e sugerindo que faça o mesmo por mim e comigo. Dosam em mim laxantes. O produto de mim, meu coco, me doi, me machuca, e me faz raiva, medo e angústia. Preso meu corpo em um dos seus buracos, duvido de mim, de minha capacidade para ir com autonomia no penico ou no vaso feito do meu tamanho; durmo. Esqueço. Adormeço. Entrego minha forma e não-forma às fraldas e à minha mãe, que me limpa e me veste novamente. Durmo e perco meu contorno de menino vivo e inteligente de quatro anos de vida. Me esvaio em merda. Talvez para devolver ao mundo aquilo que o mundo entuchou em mim.

A sacralidade do corpo é uma imagem suficientemente forte e empática para discutirmos o ato de dar descarga no amigo. Há algo de sagrado no brincar de faz de conta, no ato imaginativo, nas conexões das quais as crianças são capazes, mesmo as muito pequenas. Mandar embora o menino e sugerir o mesmo consigo próprio, interpreto aqui como busca por um livramento. Atos performativos sacralizados, ritualizados, podem significar livramento, expurgo, liberação, soltura.

E… quando prometido um tablet de presente, o pequeno menino tentou evacuar no vaso, “apropriadamente”. Eis que suas fezes se prenderam no ânus de tal forma que ele urrava:

tira isso de mim! tira isso de mim!

E assim o pai procedeu, enquanto a mãe o segurava forte, imagino que mergulhada em dúvida, sofrimento, comiseração, talvez arrependimento: questão corporal profanada, em nome da troca por um presente desejado.

Tudo continuou igual. Até mesmo a tese do menino foi confirmada: fazer coco no vaso doi demais. Nova profanação de um dos orifícios do corpo próprio.

Como agir diferente, do ponto de vista adulto?

Talvez o pequeno menino necessite de ajuda psicoterápica, sua mãe também (seu pediatra já vem indicando este encaminhamento); mas a hipótese que quero aqui esboçar recomendaria muito jogo, muita brincadeira, muita inferência, por parte dos seus educadores, de analidades: jogos de reter e expelir; argila, massa para modelar, bolinhos de lama; que todos os faz de conta disponíveis para o gesto de “tirar isso de mim” ganhassem suas formas-conteúdo no mundo. Desenho, tinta, plasticidade6 que proporcione livramento, expurgo, liberação, soltura. Incluindo bons alimentos; literal e metaforicamente.

No jogo, no brincar “livre e criativo”, nosso menino encontraria meios de procurar por isso que lhe dá condição de ser. E na multiplicidade de bons vínculos, na ampliação da rede de cuidadores, a mamadeira e a fralda perpetuadas pela mãe talvez pudessem se tornar coisa do passado, acessórios desnecessários, pertencentes a outro tempo e lugar. Nas possibilidades expressivas e construtivas, o menino talvez veiculasse a alegria e o luto de deixar de ser bebê.

Em busca de uma reflexão ampliada acerca dos comportamentos dos adultos, “comportamentos” aqui vistos como modos de ser, estar e habitar o mundo, proponho o foco na existência do ser criança a partir das relações adulto-criança. Como disse Lopes na epígrafe escolhida: o corpo é lugar sacralizado; corpo próprio, envelope do self, abrigo de seu cerne, espacialidade vivida, presentificada, ao longo de nossa vida. E, como também disse Lopes, o corpo é sacralidade profanada pelo apelo da contingência.

Especialmente durante a pequena infância, a contingência é relacional; dependemos absolutamente da mãe e dos adultos cuidadores, e neles cremos. Três banhos diários ou lavagens intestinais podem ser profanações. Seremos dessacralizados, tornados demasiado humanos, por contingências adversas, por geografias acidentadas, por circunstâncias das mais diferentes naturezas culturais.

Um retorno às situações iniciais imaginadas, espacializadas, musicalizadas, teatralizadas, corporeificadas, é o que um tipo de liberdade pode proporcionar às crianças. Liberdade de ir e vir, o que permite o construto de espaço corpo próprio e espaço mundo compartilhado; muito contato com água, terra e ar, e as possibibidades do fogo no banho de sol e na fogueira de São João; liberdade situada pela mão adulta que se dá para atravessar a rua, atravessar a ponte, sair do ônibus, entrar no trem fantasma do parque de diversões; desejo, fantasia e muito jogo: “um pouco de proibição, muito jogo; designar o desejo, e depois deixá-lo, como esses nativos amáveis, que mostram bem o caminho [a você], sem no entanto se oferecerem para acompanhá-lo” (BARTHES, 1985, p.3).

Presença e ausência concomitantes, atitude de estar-com, estar ali caso seja necessário - mas permitindo à criança a crença, de algum modo sagrada, por preservar o cerne do self, de que sim, o mundo ali estava para ser descoberto e recriado por ela. E que assim, neste fluxo, (re)encontre “isso”, que lhe dá a condição de ser. No mesmo fluxo, que os adultos que a acompanham reaprendam a morar: habitar, resguardando, cuidadosamente, o respeito ao ser que brinca.

Disse o poeta Hölderlin: “É poeticamente que o homem habita a terra” (apudNUNES, 2011, p.158). Poiesis própria da criança, o brincar imaginativo há que ser resguardado com serenidade pelos adultos do mundo circundante, compartilhado: abertura para ciclos de alegria-luto, chuva no rosto. Fogo que transforma o alimento. Terra para o errante navegante. Ar para o primeiro necessário movimento: inspiração ou susto diante do corte do cordão umbilical. Caminhos míticos, ou rotas pré-socráticas nas quais deslizam os pés dos meninos e meninas. Na queda, dê a mão.

Referências

BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1985.

DOLTO, F. No jogo do desejo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.

DOLTO, F. Solidão. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LOPES, R. G. Clínica Psicopedagógica. Perspectiva da antropologia fenomenológica e existencial. Porto: Hospital do Conde de Ferreira, 1993.

MACHADO, M. M. Merleau-Ponty & a Educação. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.

MACHADO, M. M. Fenomenologia e infância: o direito da criança a ser o que ela é. Revista de Educação Pública. V. 22, n. 49/1. p. 249-264. Cuiabá: EDUFMT, maio/ago 2013.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes , 1999.

NUNES, B. A “proximidade” entre filosofia e poesia. In: Hermenêutica e poesia / O pensamento poético. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011. 1a reimpressão.

WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar Editores , 1982.

WINNICOTT, D. W. The maturational process and the facilitating environment. Londres: Karnac Books e Institute of Psycho-Analysis, 1990.

Notas

1 Maurice Merleau-Ponty ensinou psicologia e pedagogia da criança na Sorbonne por quatro anos, e revisou, ainda vivo, os textos de seus alunos, para serem publicados.
2 Filme dirigido por Richard Ayoade, co-produção inglesa e irlandesa e produzido em 2013.
3 Ver discussão acerca do verdadeiro e do falso self para Winnicott no artigo “Fenomenologia e infância: o direito da criança a ser o que ela é”. Revista de Educação Pública, maio/ago 2013.
4 “You have not started to exist yet” (1990, p.152).
5 Foi meu ponto de vista que o ocorrido revelou um verdadeiro ato performativo do menino que encarnou sua condição. Os adultos da creche não compreenderam assim: deixaram os dois meninos de castigo, de roupas molhadas até serem buscados, no final do período. Talvez confirmando: sim, vocês são cocos.
6 Infelizmente tenho a informação que o pequeno menino ‘faz lições’ e está sendo alfabetizado precocemente, e o brincar não é absolutamente prioridade em sua escola.
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