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Incêndios da infância. Atrevimento de uma arte cruel
Childhood fire. The daring of a cruel art
Incendios de la infancia. Atrevimiento de un arte cruel
Childhood & philosophy, vol. 12, núm. 23, pp. 27-45, 2016
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

DOSSIÊ


Recepção: 15 Maio 2016

Aprovação: 19 Junho 2016

DOI: 10.12957/childphilo.2016.23404

Resumo: O artigo, na interlocução com a literatura, especificamente com a peça Incêndios de Wajdi Mouawad, (2003), almeja pensar sobre as implicações éticas da noção de origem utilizada nas Ciências Humanas como causa, fonte, início. A questão que move o artigo considera que, à luz de Walter Benjamin (1994), a idéia de origem seria uma criação mítica. Mito no sentido da ausência de análise histórica, do campo conflitivo de forças, do qual emerge esta noção. À luz da contribuição benjaminiana sobre a invenção da Infância, o artigo utiliza o atrevimento infantil como enfrentamento às forças míticas da literatura. A infância que, por meio de experimentações, de modos peculiares de leitura e escuta, põe à prova a obediência e a reprodução do universo mítico. Ato insurgente que impede à história narrada a conclusividade e afirma o seu desdobramento em outras tramas possíveis. Insurgência que interrompe a linearidade do tempo e da história. O artigo é composto por três momentos. No primeiro, são apresentados os contrastes entre a noção de origem, conforme Benjamin, e aquela comumente utilizada nas Ciências Humanas, assim como na vida ordinária. Fragmentos de frases da peça Incêndios são utilizados como experimentação da escrita, no intuito de justapor tempos e sentidos que escapam à linearidade da história. No segundo, a interlocução da literatura de Kafka (2012) com a peça de Wajdi Mouawad se faz presente com o objetivo de pensar sobre a agonística do silêncio e do canto nas personagens de Incêndios. No terceiro momento, é utilizada a categoria de constelação de Walter Benjamin, para intensificar a aposta ética da obra de Mouawad.

Palavras-chave: literatura, infância, história, Walter Benjamin.

Abstract: This paper aims to present a reflection on the ethical implications of the notion of origin - a construct understood in the human sciences in the sense of cause, source, beginning-by way of a dialogue with Wadji Mouawad’s stage play Scorched. Borrowing from Walter Benjamin’s thought, the central literary question in the play is to consider origin as a mythical creation. Benjamin’s contribution to an understanding of childhood helps us to think how infantile dauntlessness can confront the mythical forces of literature. Benjamin’s is a childhood that operates through trials and peculiar modes of reading and writing which put obedience and reproduction as features of a mythical universe to the test. Therefore, a childhood that acts to prevent the conclusiveness of history and to assert its capacity to unfold along different trajectories is an insurgency that interrupts time and history’s linearity. In the first section of this paper, I contrast the notions of origin articulated by Walter Benjamin and by the human sciences or commo­n sense. I also include some fragments from Mouawad’s play as examples of a kind of writing that juxtaposes times and meanings which overtake the linearity of history. In the second part, I put Kafka’s oeuvre together with Scorched in order to reflect on the agonism of silence and song--or chant--that traverses the experience of Mouawad’s characters. Finally, I make use of Walter Benjamin’s notion of “constellation" to highlight the ethical proposal implicit in Mouawad’s work.

Keywords: literature, childhood, history, Walter Benjamin.

Resumen: El artículo, en interlocución con la literatura, específicamente con la pieza Incendios de Wajdi Mouawad, (2003), anhela pensar las implicaciones éticas de la noción de origen utilizada en las Ciencias Humanas como causa, fuente, inicio. La cuestión que impulsa el artículo considera que, a la luz de Walter Benjamin (1994), la idea de origen sería una creación mítica. Mito en el sentido de la ausencia de análisis histórica, del campo conflictivo de fuerzas, de lo cual emerge esta noción. A la luz de la contribución benjaminiana sobre la invención de la Infancia, el artículo utiliza el atrevimiento infantil como enfrentamiento con las fuerzas míticas de la literatura. La infancia que, por medio de experimentaciones, de modos peculiares de lectura y escucha, pone a prueba la obediencia y la reproducción del universo mítico. Acto insurgente que impide a la historia narrada la conclusividad y afirma su despliegue en otras tramas posibles. Insurgencia que interrumpe la linealidad del tiempo y de la historia. El artículo se compone de tres momentos. En el primero, son presentados los contrastes entre la noción de origen, conforme Benjamin, y aquella comúnmente utilizada en las Ciencias Humanas, así como en la vida ordinaria. Fragmentos de frases de la pieza Incendios son utilizados como experimentación de la escritura, con el propósito de yuxtaponer tiempos y sentidos que escapan a la linealidad de la historia. En el segundo, la interlocución de la literatura de Kafka con la pieza de Wajdi Mouawad se hace presente con el objetivo de pensar sobre la agonística del silencio y del canto en las personajes de Incendios. En el tercer momento, se utiliza la categoría de constelación de Walter Benjamin, para intensificar la apuesta ética de la obra de Mouawad.

Palabras clave: literatura, infancia, historia, Walter Benjamin.

Antes do Incêndio

Era uma vez uma aldeia do Líbano onde uma velha senhora chamada Nazira aconselhava a neta a partir daquele lugar. A jovem neta apaixonou-se por Wahab, engravidou e foi banida pela mãe e por todos da aldeia. Chamava-se Nawal Marwan a jovem que partiu levando consigo a cólera implacável da família. A mãe, após o parto, entregou a criança a uma mulher chamada Elhame. O filho de Nawal foi criado em um orfanato ao norte. A velha senhora Nazira rogava à neta para ter coragem e partir. Dizia que é preciso aprender a escrever, a contar, a falar. A avó exigia que Nawal pegasse a sua juventude, a sensualidade, o seu cheiro, a felicidade possível e abandonasse a aldeia. Nos anos setenta o Líbano estava em guerra. O jovem Wahab partiu para lutar. Norte e sul combatiam violentamente. Casas, crianças, aldeias, do sul e do norte do Líbano, foram destruídas pela guerra. Antes de morrer, Nazira pediu à neta que aprendesse a ler e gravasse o seu nome na pedra do seu túmulo. Depois de alguns anos a jovem retornou e escreveu: “Noûn, Aleph, zaïn, ué, rra! Nazira. O teu nome ilumina o teu túmulo” (MOUAWAD, 2013, p. 354). Era nítido o nome da velha senhora cravado na pedra. Após a tarefa, Nawal procurou desesperadamente pelo filho. Certo dia conheceu Sawda, que a viu escrever o nome na pedra. Sawda, também jovem, desejava aprender a ler e escrever. Insistentemente pediu a Nawal que a levasse junto na sua procura pelo filho. Em troca, cantaria quando a nova amiga estivesse cansada. Confessou que na aldeia nada acontecia. Apontavam o céu para ela, o vento, mas nada diziam sobre eles. Falou também que o mundo estava mudo, a vida passava e tudo estava mudo. Almejava aprender a ler porque, segundo ela, com uma palavra, tudo se ilumina. Nawal e Sawda desejavam conhecer o mar. As duas partiram juntas para a procura do filho e para lutar. Foram presas e torturadas. Nawal aprendeu a cantar, e cantava após as torturas. Cantava, cantava, cantava e mantinha perto de si a presença da amiga. Nunca mais encontrou Wahab. Aprendeu a cantar com Sawda, morta após explodir uma bomba que matou o chefe dos milicianos. O filho de Nawal foi criado no orfanato. Adulto, trabalhou na prisão de Kfar Rayat. Torturava os que combatiam as milícias. Durante dez anos Nawal cantava na prisão quando era torturada, ou quando ouvia os gritos dos prisioneiros nas celas. O terror a impelia a cantar. Prometeu à amiga que o canto seria uma forma de coragem. O menino levado para o orfanato, tirado dos braços de Nawal, chamava-se Abou Tareck. Certo dia, este homem violentou a mulher que cantava na cela. Ela engravidou, e seus dois filhos foram entregues a um homem chamado Fahim, que os colocou em um balde para exterminá-los. Fahim entregou os gêmeos para outro homem, chamado Malak. Malak, comovido, não realizou a tarefa e salvou os gêmeos das águas frias do rio. Após longos anos Nawal é libertada e parte para o ocidente. Os gêmeos lhe são entregues pelo homem que os salvou. A menina chamava-se Jeanne, o menino Simon. Nawal partirá com os gêmeos para o ocidente. Próximo da sua morte permaneceu cinco anos em silêncio. Antes de morrer, deixou um testamento onde detalhava a oferta de objetos para os filhos e para o tabelião. No testamento, fez uma exigência para os gêmeos: encontrar o pai e o irmão. Os dois relutaram, mas partiram rumo ao oriente, na incumbência de entregar as duas cartas, para o irmão e para o pai. Jeanne e Simon, com o auxílio do tabelião Hermille Lebel, descobrirão o mistério. No deserto a origem será revelada. O pai e o irmão eram a mesma pessoa. A carta foi entregue.1

Esta história será destruída pelo fogo com crueldade. A sucessão cronológica dos fatos fenecerá. Cuidado, conspira-se uma perigosa história A revelação queimará calendários, mapas, quimeras da esperança. Nomes e tempos ficarão chamuscados. A origem será outra. O era uma vez de uma narração será enfrentado. Quimeras da desesperança serão também queimadas. Das cinzas algo restará. Será encontrado no céu, no perigoso infinito onde residem estrelas.

O que pode uma leitura? Qual o poder da escuta de certa concepção de Infância? O que fazer do mito de uma história que despreza o atrevimento da infância? Qual atrevimento?

A sensação que precede o vômito, a ausência do bálsamo, o mal-estar produzido pela inexistência da conclusão feliz são características da literatura de Franz Kafka destacadas por Theodor Adorno (1998). Incêndios, peça escrita por Wadji Mouawad, mantém este desconforto. Segundo Mouawad (2013, p. 321), seria uma obra sobre origens. A mensagem edificante, a resposta definitiva, inexistem na obra do autor libanês. Assim como em Kafka (2012) e em Artaud (2006), é uma obra cruel. Crueldade de certa aposta da arte, da qual o suporte de um mundo reconhecível, da função das palavras e das imagens como ornamento, é destruído. O cruel desta aposta pede mais, muito mais, a uma agonia. Agonística incessante, desalojada das angústias de um mundo interior alheio aos assombros do mundo. Incessante, segundo Llansol (2011, p. 120), porque atenta aos apelos que criam e desfazem contornos definitivos de vidas e de verdades: “A verdade não é subjectiva, nem objectiva, mas o contorno final e acabado da vida de cada um; a resposta dada, com recta intenção, ao justo apelo. Perguntar ‘ quem sou’ é uma pergunta de escravo; perguntar ‘ quem me chama’ é uma pergunta de homem livre”. Liberdade perigosa para modos de existir onde a vida os põem à prova implacavelmente. Apelo que destroça o conforto do eu, do ser, da morte em vida na afirmação da materialidade de uma verdade.

A crueldade da arte nesta agonística incessante atenta aos apelos do mundo da imanência, recusa a virtude de representar mazelas ou belezas do humano, ou da educação do espírito. Nesta recusa, afirma-se a “ausência de voz para gritar”. Ausência, segundo Blanchot (2005, p. 51), que “não é apenas uma dificuldade metafísica, é o arrebatamento de uma dor”. Arrebatamento de um grito do silêncio, da lacuna, do gaguejar, do ainda não, da falta de ar, da revolta que sufoca a palavra. O grito sem voz perdura, interrompe, corta, persevera rompendo a continuidade de uma sentença, de uma provação, do tempo em direção ao porvir. Crueldade que impede a catarse, rejeita a função dos órgãos do corpo, extirpa da pele, dos dedos, as impressões digitais. Exige atenção ao tremor do corpo antes do regurgitar. Tremor criado por nada pessoal, por nada exterior, mas efeito, segundo Blanchot (2010, p. 23), “do abalo daquilo que o conclama fora da vida ordinária. Entregue assim a uma experiência desmedida, mede-se em relação a ela com espírito firme, difícil e ardente, mas que na chama ainda busca a luz”. Nos comentários de Blanchot (2010) ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, encontra-se o risco de um corpo na experiência. Chamuscado, desfigurado, o corpo será outro. O conclamar para fora da vida ordinária não seria o chamamento ao paraíso onde residiriam ideias condutoras da vida fracassada, a harmonia perdida, mas para o mal-estar disparado pelo estranhamento que põe à prova, testa, queima implacavelmente limites de um horizonte. O estranhar a beleza e o horror a paralisar o corpo. O estranhar que impele ao ato, ao jogo, ao incessante da agonística que não teme o risco. Conclamação ao despedaçamento da compacidade daquilo que dispomos, do que somos. Apelo para compor, montar os pedaços que restam, os escombros das histórias em pedaços. Montagem atenta aos sinais de alarme quando o ar escasseia.

Mouawad (2013) afirma que a peça versa sobre a origem de uma história. Talvez, não. Incêndios apresenta a barbárie da origem2. Obra que em sua trama provoca estranhamento naquilo que a vida ordinária define como o lugar onde tudo procede: a causa, o porquê, a fonte. Violência da origem que impede a fuga a um destino que paralisa e entorpece. Alerta-nos Gagnebin (1994, p. 109), “Graças a essa fuga que podem cessar a insistente repetência do previsível e a sedução triste do totalitarismo, e que algo outro pode advir”. Na vida ordinária, a origem, sua meta e seus valores exibem o brilho da verdade que não queima. Do fogo, temos a combustão de matérias, a ação desencadeada por misturas, emaranhados de restos tornando-se outros. Combustão do tornar-se, da destruição do perene que paradoxalmente destrói e cria. No fogo poderá ser encontrada uma aposta ética onde a destruição é inseparável da criação:

O carácter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma actividade: esvaziar. A sua necessidade de ar puro e espaço livre é maior do que qualquer ódio. [...] O carácter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte, mesmo quando outros esbarram com muros ou montanhas. Como, porém, vê por toda a parte um caminho, tem de estar sempre a remover coisas do caminho. [...] Como vê caminhos por toda a parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que o próximo trará. Converte em ruínas tudo o que existe, não pelas ruínas, mas pelo caminho que as atravessa. (Benjamin, 2004, p.217)

Na verdade do dia a dia, as coisas são porque são, discursos são o que são, protegidos pela pureza de uma luz que ordenará e punirá o desvio. Iluminação que conduz, governa almas, mas não queima, ou destrói para abrir caminhos. Pressupõe que onde pousa manterá intacto o objeto iluminado. Desconhece, ou desdenha a criação e a destruição da sua força. Luz que protege o corpo para a execução das suas funções; protege-o para não escapar, para não ser seduzido, reverberado por algo fora do ordinário. No mundo mítico da natureza, nas diretrizes da razão, no universo do sagrado, encontramos luzes imaculadas, cuja composição de elementos nos escapa. Fora do ordinário, mitos correm perigo, o destino é ameaçado. Fulgores do mundo mítico, brilhos eternos correrão perigo na vida plena de paradoxos. À semelhança da chama soprada pelo vento, nenhum modo de vida, ou de morte, será retido em uma única forma. A luz oferecida pelo mito não se apaga. A do fogo sim. Verdades finitas, compostas por matérias finitas, vulneráveis às forças díspares do vento, poderão ser apagadas, reacendidas, insufladas pela incansável ação da história.

Em Incêndios o horror da guerra corre ao lado da violência da origem de uma trama. Na peça um testamento exige a busca da verdade. Ela será encontrada, mas arderá, queimará cruelmente. Verdade que nega ao corpo a imunidade, o sair ileso após o contato com a sua chama. Wadji Mouawad apresenta o fracasso da procura fadada a ser feliz, ou infeliz. O testamento roga, exige o fato verídico. Uma agonística se fará entrelaçada à força do mito a dizer onde tudo começa e à crueldade do encontro com a verdade que o destrói no uso das suas labaredas. Fogo de uma particular salvação. Trata-se de uma obra que estilhaça o mito do início de tudo, da fonte, do berço. Enfrenta o destino implacável da maldição de uma culpa sem sujeito. Incêndios oferece a laica salvação onde nada começa, nem se encerra. Qual?

Na peça de Mouawad, uma mulher declara no seu testamento que seja enterrada de costas para o céu. No testamento para os filhos gêmeos, Nawal Marwan ordena: “Enterrem-me toda nua. Enterrem-me sem caixão. Sem hábito, sem mortalha. Sem oração. E de rosto voltado para o chão. Deponham-me no fundo de uma cova. Testa-de-ponte contra o mundo” (MOUAWAD, 2013, p. 330). Na obra de Kafka encontra-se a sensação que precede o vômito na falência da esperança, na recusa à moral redentora. Encontra-se também, segundo ele, a força para exigir mais, muito mais, de uma agonística quando é bloqueada por excesso de dor: “Nada disso - atravessando as palavras há restos de luz” (KAFKA, 2012, p. 118). Na peça do autor libanês estes restos são encontrados. Opõem-se a iluminar caminhos, à errância de uma alma, ou a uma história atormentada. É a luz do fogo que queima cruelmente na exigência do escape às amarras do sempre igual, do retorno do mesmo. Os restos de luz ofertados por Kafka diferenciam-se das epifanias de felicidade, das prováveis saídas do desespero. São restos de forças que retiram o corpo da paralisia, do torpor, da inércia da desesperança, e da esperança. Por que os olhos de Nawal Marwan voltam-se contra o céu? No testamento Narwal pede aos filhos gêmeos, Jeanne e Simon, a entrega de duas cartas; uma para o pai, outra para o irmão. Os dois não os conhecem. Terão a missão de descobrir a origem de tudo. Após o cumprimento da tarefa o rosto de Nawal não terá a testa sobre a terra. O rosto fitará o mundo. O corpo nu estará frente a frente com as estrelas. Por quê?

A busca da origem seria uma presença marcante em certas modalidades da arte, assim como nas Ciências Humanas. Provocadas por essa busca, formulam perguntas prontamente respondidas, como se as verdades procuradas fossem imunes aos embates nem sempre visíveis das práticas do poder. A indagação formulada e, logo após, a resposta ofertada sem hesitação dão lugar ao alívio, ao oxigênio reconfortante. Qual a origem do desejo que faz a carne sentir medo? Como nasce a inocência? De onde vem a vontade de matar e de amar? O que move o corpo de uma criança rumo ao ideal de todos? Que predisposições explicariam o ato violento?

Das origens, a história dos homens segue linear, atenta aos percalços que possam interromper a continuidade. Porém o oxigênio reconfortante da resposta poderá ser extirpado por apostas da arte onde o início e o fim serão aniquilados. O mito da origem lega a continuidade de uma missão, a finalidade da Ideia necessitada de florescer, tornar-se realizada. O mundo seria o palco de germinações, de correções do desenvolvimento das potencialidades da alma. Seria também o lugar do aprimoramento de corpos, do fomento à esperança alojada no futuro, das agonias necessárias para o aprimoramento do ser. Neste mito a arte seria a guardiã do inefável adormecido na beleza a ser desenvolvida. Seria a tutora da liberdade a ser conquistada, aprimorada no desenvolvimento do humano no contato com o outro em constantes negociações. Cuidará e zelará pela incansável procura da verdade. Arte do zelo, do cuidado, que não permitirá nenhuma dor desnecessária na procura das verdades anunciadas pelos desígnios do humano. Tudo isso em um mundo onde voz e silêncio alojar-se-iam em corpos dos quais seriam impedidos de recusar a função dos seus órgãos, ou os desígnios da sua existência. Para a arte zelosa, a que transforma e educa, formulações de perguntas teriam a dádiva da resposta. O vômito aconteceria. Nenhum grito ou silêncio interromperia um percurso. O destino realizar-se-ia3. A peça Incêndios enfrenta este mito. O que fazer com o mito da origem?

Atenta ao mito da arte que possui a função de representar e cuidar das potencialidades adormecidas na natureza humana rumo ao desenvolvimento, Castro (2011, p. 176) argumenta:

A verdadeira tarefa tanto da arte quanto da filosofia é a eliminação do mito. A crítica estética define-se, assim, como uma intervenção prática, que visa interromper o curso do tempo histórico, interromper a sua sequência interminável de dominações, para abrir novas possibilidades de sentido. Quando Benjamin escreve na sétima tese Sobre o Conceito de História que ‘nunca há um documento de cultura que não seja ao mesmo tempo, um documento de barbárie’, é ao privilégio das forças míticas que ele está se referindo, pois elas também se insinuam nas obras de arte e da cultura.

Um personagem de Wadji Mouawad afirma: “a infância é uma faca cravada na garganta e não é fácil retirá-la” (MOUAWAD, 2013, p. 416). A infância quando impedida de desvencilhar-se da faca na garganta torna-se submissa aos imperativos de um mundo que subtrai suas forças. A ação da faca a denota como um ente luminoso, pleno de qualidades, mas frágil. Ente alheio ao campo conflitivo da invenção humana. A faca a subtrai da história. Impede a recusa enérgica ao mundo das essências onde o tempo deve seguir continuamente em direção ao futuro. A ausência da lâmina na garganta lhe daria o ar para ser um artefato, uma incansável criação onde os deuses faltam.

A invenção burguesa da fragilidade, da inocência infantil, é contraposta pelo atrevimento formulado por Walter Benjamin4 (1996, p. 215): “O conto de fadas ensinou, há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância”. Enfrentamento próximo da crueldade da arte a estilhaçar a compacidade de uma história, pondo em risco o destino que a move. O gesto infantil burla o final da mensagem, nega à narrativa o fim conclusivo. Joga com os personagens, com as imagens na experimentação do destruir e reconstruir incessantemente. Gesto do desdobramento de sentidos, da decomposição de tempos e espaços. O era uma vez de uma história será convocado a surgir de novo, irreconhecível. O fim, a sucessão cronológica da fábula lida ou ouvida, é atrevidamente interrompido em direção à mensagem edificante. Atrevimento perturbador da harmonia e da continuidade da narração. Ato que torna ruína, restos, cacos o que ela ouve, ou lê; destes restos outra composição será provisoriamente apresentada. Começos e fins do narrado serão suspensos. A grandeza do mito perderá sua força. Segundo Gagnebin (2015, p. 175),

essas brincadeiras essenciais implicam uma noção de ação política que não visa a transformação do mundo segundo normas prefixadas, mas a partir de exercícios e tentativas nos quais a experiência humana - tanto espiritual e inteligível como sensível e corporal - assume outras formas.

A infância, à semelhança de uma “evidência pacificada”,5 excluída da conflitualidade da história, dá lugar, por meio da experimentação dos seus jogos, ao gesto político produtor de cesuras na linearidade da narrativa. Deste gesto é criado o torvelinho do vir-a-ser, do devir, do qual emergem singulares começos, peculiares formas de origem. Segundo Benjamin (1984, p. 67):

A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada que ver com a gênese. O termo origem designa não o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese.

No testamento de Nawal Marwan é solicitada a busca pela verdade. A missão dos gêmeos, Jeanne e Simon, consiste na entrega da carta ao pai e ao irmão. Após o encontro algo irá acontecer. Os gêmeos viverão a sensação que precede o vômito. O grito sem voz será ouvido. Na aldeia, antes da morte de Nawal, o miliciano sentencia: “Vocês são essas duas mulheres: uma escreve e a outra canta degolar-vos e já veremos se aquela que sabe cantar tem uma bela voz e se aquela que sabe pensar ainda tem idéias” (MOUAWAD, 2013, p. 377). Canto e pensamento causavam mal-estar ao torturador. A crueldade da arte lhe incomodava. Por quê? Outro pedido constava no testamento: a mudança do corpo sobre a terra. Após a entrega das cartas o rosto de Nawal fitará o mundo. O corpo nu estará frente a frente com as estrelas. O que verá?

Fogo

Ulisses tapou os ouvidos com cera, exigiu que o prendessem ao mastro da embarcação. Temia o canto das sereias. Desconhecia outros poderes dos seres do mar. Inútil precaução, o canto tinha o poder de perpassar tudo que bloqueasse a sua passagem. Para Franz Kafka (2012, p. 87), o silêncio seria o mais terrível dos poderes.

Acontece que as sereias têm uma arma ainda mais terrível que o canto - o seu silêncio. Na verdade nunca aconteceu, mas é perfeitamente plausível imaginar que alguém se pudesse salvar do seu canto. Do seu silêncio certamente que não. Nada de terreno pode resistir à sensação de as ter vencido com as próprias forças, à arrogância que, na sequência disso, tudo derrubaria. E, de facto, quando Ulisses passou, estas portentosas cantoras não cantaram. Ou porque pensaram que a este adversário só se lhe chegava pelo silêncio, ou porque, à vista da felicidade estampada na cara de Ulisses, que só pensava em cera e correntes, esqueceram de vez a cantoria.

Maurice Blanchot (2005, p. 12), diferenciando-se de Kafka, apresenta o poder do canto das sereias. Poder também terrível como o silêncio.

Ulisses navegava realmente e, um dia, em certa data, encontrou o canto enigmático. Ele pode portanto dizer: agora, isto acontece agora. Mas o que aconteceu agora? A presença de um canto que ainda estava por vir. E o que ele tocou no presente? Não o acontecimento do encontro tornado presente, mas a abertura do movimento infinito que é o próprio encontro, o qual está sempre afastado do lugar e do momento em que ele se afirma, pois ele é exatamente esse afastamento, essa distância imaginária em que a ausência se realiza e ao termo da qual o acontecimento apenas começa a ocorrer, [...] esse acontecimento transtorna as relações do tempo, porém afirma o tempo, um modo particular de realização do tempo, tempo próprio da narrativa.

O silêncio e o canto de Nawal Marwan eximiam-se da exclusividade do peso do mundo em seu corpo. À semelhança do silêncio das sereias de Kafka, desprezava o uso das ceras e correntes dos heróis temerosos das tempestades. O silêncio dizia não ao alarido das palavras onde o temor ao risco afirma-se. Mostrava a dor intensamente. Apresentava no silenciar o acontecimento que sucedeu, e sucederá. Nele um paradoxo habitava quando acolhia o mito da origem da culpa, mas a negava afirmando que algo ainda acontecia fora dos limites exclusivos de seu corpo. O silêncio de Nawal assemelha-se ao silere de outros tempos. Na antiguidade, segundo Barthes (2003, p. 49), utilizavam-se duas modalidades de silêncio, tacere, o não falar, o calar-se, e silere, o silêncio empregado para a noite, para os objetos, para o vento, para o mar. Silere diferenciar-se-ia do silêncio da boca, afirmando nuances, modalidades de pensar, recusa do alarido das palavras onde significados invioláveis imperam. “Sabe-se que em música o silêncio é tão importante quanto o som: ele é um som, ou ainda, ele é um signo” (BARTHES, 2003, p. 58). Nawal, no seu não falar afirmava nuances do tempo justapondo modulações de intensidades do passado e do agora; apresentava o inacabamento de uma agonística que ultrapassava o limite do seu corpo. O deserto, a prisão, a tortura, o fogo, a escrita na pedra, a chuva esperada, o presente fora do Líbano a inquiriam em forma de apelo. Ela respondia silenciosamente, no refazer dos contornos que a delineavam.

Do seu canto estaria a recusa ao presente amordaçado ao inexorável, ao cumprimento de um destino. Canto do movimento infinito, cruel, na medida em que conclamava ao fora, o sair da vida ordinária onde nada acontece, conclamava o escape aos cárceres de si, dos destinos, das origens. A melodia como o fio de uma navalha cortante, cesura insistente. Nawal enfrentava com sua música a falta de ar da vida ordinária onde as coisas são o que são, os discursos são o que são, na qual o hábito assemelha-se ao “lastro que acorrenta o cão a seu vômito” (BECKETT, 2003, p. 17). Na prisão canções eram entoadas como a intensidade do tempo nada apaziguador. Nawal cantava, atormentando torturadores temerosos do canto e do silêncio das sereias.

Uma história que sucedeu no Líbano foi destruída pelo fogo com crueldade. A sucessão cronológica dos fatos feneceu. Pensou-se que um mistério estaria desvendado para sempre. Cuidado, é uma trama perigosa. A revelação queimará calendários, mapas, quimeras da esperança. Nomes e tempos ficarão chamuscados. A verdade será outra. Quimeras da desesperança serão também queimadas. Das cinzas algo restará. Será encontrado no céu, no perigoso infinito onde residem estrelas. Qual?

Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda está viva. Nela uma mulher canta, outra silenciará fora dali. Uma velha senhora pede para ter cravado o seu nome no túmulo de pedras. Na aldeia casas são incendiadas, homens e mulheres pegam fogo, e a velha senhora roga à neta para que aprenda a ler, contar, escrever e a pensar. A neta, certo dia, conheceu um rapaz no rochedo das árvores brancas, apaixonaram-se e foram banidos para bem longe. Os dois sonhavam em ver o mar juntos. O tempo é como uma galinha, a que se cortou a cabeça e que corre para a direita e para a esquerda. A mulher que ficará muda, o seu amante, a velha, não conhecerão o mar. A jovem apaixonada silenciará em um país bem distante. Na aldeia engravidou. A fúria da mãe a expulsou de casa. A avó diz à neta que a cólera da mãe dela é igual à da sua mãe. A mulher que irá silenciar foi expulsa por todos da vizinhança. Na aldeia quase não chove. Certo dia, a banida de casa conheceu a mulher que canta e ficaram amigas. Crianças pegam, pegarão fogo naquele lugar onde ninguém conhece o mar. Na aldeia o tempo se repetia como as estações do ano. Para recusar é preciso falar, disse a velha senhora. A jovem que irá silenciar no futuro contou que no lugar onde todos pegam fogo o mundo está mudo. A que cantava disse à amiga que antes de aprender a ler lhe indicavam o céu, mas não diziam nada sobre ele. Apontavam para o vento, para o mundo, e tudo continuava opaco.

Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda está viva. Dentro dos seus limites o nascimento dos filhos da mulher banida dali é fruto da violação e do horror. São gêmeos, um menino e uma menina. Nasceram e nascerão na prisão e serão jogados nas águas frias do rio. Na aldeia céu é céu, água é água, vento é vento e não seriam mais nada do que isso. A mulher que não sabia ler rogava à amiga, que irá silenciar no futuro, que a terra é ferida por um lobo vermelho. Os gêmeos foram salvos por um homem. Um menino e uma menina escaparam das águas frias. Meninos e meninas não escaparão das águas geladas. A mulher do silêncio aprendeu a cantar, aprendeu com a amiga que olhava o céu, o vento e não sabia nada sobre eles. Todo o dia canta, cantava e cantará no lugar repleto de horror e violação. No passado, no presente, no futuro, dizia a avó à neta, tu és a sensualidade e o seu cheiro, leva-os contigo e separa-te da cólera infinita desta família como quem se separa do ventre da mãe. Milicianos não conhecem o mar. Os gêmeos salvos da água gelada foram levados para longe, muito longe do lugar onde nasceram. As duas mulheres foram presas.

Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda está viva. Nela homens, mulheres, crianças pegarão fogo. O céu, o vento, os pássaros eram o que eram, são o que são, serão o que são e nada mais, antes dela aprender a ler e a pensar. A velha senhora, avó da mulher que irá silenciar na terra estrangeira, tem seu nome cravado na pedra. A aldeia arde, os gêmeos foram salvos, a mãe cantou e ficará muda. A milícia desejava degolar as duas mulheres. Na aldeia refugiados são incendiados. O mundo opaco é ferido por um lobo vermelho. A velha senhora repediu, repete e repetirá: uma palavra tudo salva. Todos diziam que à nossa volta não há beleza, só cólera de uma vida dura e agreste. A mulher mãe dos gêmeos insistia em dizer que agora juntos, é melhor. Os refugiados incendiaram a casa para vingarem os milicianos que tinham destruído o poço. Os refugiados queimam a colheita porque os milicianos incendeiam casas. Milicianos incendeiam ônibus porque refugiados não conhecem o mar. Na aldeia a história prossegue de cólera em cólera. A avó morrerá e não sumirá. Ali quase não choveu. A velha senhora diz para a neta que é preciso quebrar o fio da dor em tristeza, da tristeza em dor, da dor em cólera, da cólera em tristeza. O fio é longo, vai até o começo do mundo, diz a mulher do nome cravado na pedra. A aldeia ardeu, arde e arderá.

Em uma aldeia de qualquer lugar do mundo tempos diversos atravessam suas fronteiras. A morte não tem poros (FREITAS FILHO, 2006, p.52). A aldeia ainda está viva. A mãe dos gêmeos repete, repete, repete: agora juntos, é melhor. Ouviu da avó: leve a sua sensualidade e o seu cheiro, quebre o fio, abandone este lugar. A mulher que cantava desejava saber mais do vento, da chuva e do mundo. A mulher que silencia foi presa e violentada. O homem afirmou que a infância é uma faca cravada na garganta e não é fácil retirá-la. Milicianos queimam refugiados que queimam milicianos na aldeia do rochedo das árvores brancas. Para recusar é preciso falar, falou a velha senhora. Onde as mulheres vivem só existem fios que vão até o começo do mundo. A velha senhora não se transformou em cinzas. Milicianos repetem, repetem, repetem e nada acontece. O vento não soprou o nome da avó para o esquecimento. Ela esteve, está e estará na aldeia e fora dela. Milicianos não cantam e não silenciam. A mãe dos gêmeos aprendeu a ler e a contar histórias na vida dura do agreste e fora dele. Aquele lugar arde, ardeu e arderá e quase não há beleza. O mundo opaco será ferido por um lobo vermelho. Os filhos gêmeos salvos das águas geladas foram para um lugar distante dos animais e da seca. A velha senhora não virou cinzas, tem agora um nome como os ventos, os pássaros, e o mundo quando fala, silencia e pensa. A infância é uma faca cravada na garganta, disse o homem. Uma palavra e tudo se ilumina, torna-se opaco, queima. Ela levou e levará para fora de casa o seu cheiro que destrói o fio. Na aldeia o mundo tem um começo e um fim. Do refugiado à cólera, da cólera à recusa, da recusa ao rio das águas geladas, do rio das águas geladas ao silêncio, do silêncio à faca na garganta, da faca na garganta à palavra, da palavra à milícia, da milícia ao canto, do fogo ao lobo vermelho, da pedra do túmulo ao fogo, do fogo ao canto, do canto à faca, da faca à palavra, da palavra à dor, da dor às cinzas, das cinzas à recusa, da recusa ao incêndio faziam, fazem, farão parte do fio da aldeia onde quase não chove. O tempo é como uma galinha a que se cortou a cabeça que corre para a direita e para a esquerda sem parar, com o seu pescoço cortado onde o sangue submerge-nos e afoga-nos.

Em qualquer lugar do mundo onde as fronteiras são porosas a infância desvencilha-se da faca na garganta; o céu é visto repleto de imagens de animais, de objetos e pessoas, de mares e rios, de pedaços incompletos de dores e alegrias. Imagens que cintilam como estrelas. Nesta constelação o passado, o presente e o futuro brilham juntos, mudam de cor e de tamanho. A origem e o fim de qualquer trama extinguem-se. No infinito do céu o tempo é inquieto como a chama soprada pelo vento. A faca cravada na garganta da infância é difícil de retirar, disse, diz e dirá o homem. Sem a faca ela torna-se o atrevimento de uma arte cruel.

Perigos sinalizados pelo intolerável de uma dor insistem em manter a sua intensidade. Indicam, mostram o céu com seus restos, ruínas, pedaços de narrativas a espera de composições, ou de constelações. A neta aprendeu a escrever e cravará no túmulo da velha senhora, A, z, y, r, a, h, z, n, f, RR, b, g, x., m, j. Nome indefinido, alojado em um corpo sem proprietário, pátria ou lugar definitivo. Nome desenhado pela chama inquieta de uma certa forma de se fazer história. O fogo destruía cruelmente a permanência e a clareza do corpo, do nome, do tempo.

Cinzas

Jeanne e Simon receberam uma carta após o cumprimento da missão delegada pela mãe. Na carta Nawal propõe:

Quando vos perguntarem a vossa história, Digam que a vossa história, a sua origem, Remonta ao dia em que uma rapariga Regressou à sua aldeia natal para gravar o nome Da sua avó Nazira no seu túmulo. (MOUAWAD, 2003, p. 417)

A descoberta do torturador, pai e irmão dos gêmeos, talvez não fosse a grande revelação desejada pela libanesa que cantava e silenciava. Jeanne e Simon conheceram o deserto, o chão da tortura, vestígios do fogo, o rio das águas geladas, sentiram medo como Ulisses, ouviram o canto das sereis, foram contagiados pelo silêncio de Nawal. A origem da trama a ser desvendada não estaria alojada na verdade do passado, mas no torvelinho dos acontecimentos, na intensidade do tempo em cada modulação da experiência. Descobriram a potência do gesto da mulher que canta no lugar onde o horror impera. Viveram a experiência da recusa do outrora em tornar-se cinzas de um passado morto; cinzas sopradas pelo vento rumo ao futuro, em direção ao encontro do esquecimento que enfraquece o corpo e fortalece a barbárie. No túmulo de Nazira existe mais do que um nome, existem letras do alfabeto cravadas na pedra, restos do passado inconcluso que a crueldade, ou o atrevimento da Infância alertada por Benjamin (1994), poderá fazer do deserto o lugar repleto de cânticos e silêncios. Nazira ainda diz: “Também tu deixarás à tua filha a cólera como herança. É preciso quebrar esse fio” (MOUAWAD, 2003, p. 349). A história da mulher que silenciava e cantava não acabou.

O fio foi quebrado. Todos foram atingidos por uma cruel e laica salvação. Nawal poderia virar o corpo e olhar as estrelas. No céu uma constelação brilhava. Qual?

Benjamin (1994), já sugere que estes pontos isolados, os fenômenos históricos,

só serão verdadeiramente salvos quando formarem uma constelação, tais estrelas, perdidas na imensidão do céu, só recebem um nome quando um traçado comum as reúne. [...] Em oposição à narração que enumera a seqüência dos acontecimentos como as contas do rosário, este procedimento, que faz emergir momentos privilegiados para fora do continuum cronológico, é definido, no fim das teses, como a apreensão de uma constelação salvadora. (GAGNEBIN, 1994, p. 18)

Das cinzas do passado, dos restos deixados pela combustão, um sopro de ar, uma lufada de vento, trará novamente o fogo. O atrevimento de certa infância ao mito do fim de uma história o reacenderá. A chama destrói cruelmente a permanência e a clareza de um corpo, de um nome, de um tempo. Refugiados ainda são incendiados. A faca na garganta da infância persiste. Torturadores que não conhecem o mar encontram-se nos desertos das cidades. Crianças são afogadas. Apelos convocam o transtornante exercício, segundo Llansol (2011), de liberdade. Cânticos e silêncios estilhaçam, cortam como o fio de uma lâmina palavras de ordem da esperança e da desesperança. As constelações aguardam composições para que outras histórias possam ser contadas. E queimarão, como o fogo que arde, destrói e ilumina.

Referências

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ADORNO, Theodor. Anotações sobre Kafka. In: ADORNO, Theodor.. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. p. 239-270.

BARTHES, Roland. O neutro. São Paulo: Martins Fontes , 2003.

BECKETT, Samuel. Proust. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

BENJAMIN, Walter. O Carácter Destrutivo. In: BARRENTO, João (org e trad.). Walter Benjamin. Imagens do Pensamento. Porto: Assírio & Alvim, 2004. p. 215-217.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense , 1984.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes , 2005.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro, o fragmentário. São Paulo: Escuta 2010.

CASTRO, Claudia. A alquimia da crítica. Benjamin e As afinidades eletivas de Goethe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

FREITAS FILHO, Armando. Rol. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Limiar, aura e rememoração. Ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Ed. 34, 2014.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em W. Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.

KAFKA, Franz. O silêncio das sereias. In: BARRENTO, João (org e trad.). Franz Kafka. Parábulas e fragmentos. Porto: Assírio & Alvim , 2012.

LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho: Diário I. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

MOUAWAD, Wadji. Incêndios. In: MOUAWAD, Wadji. O sangue das promessas: Céus, Florestas, Litoral e Incêndios. Lisboa: Cotovia, 2013. p. 319-417.

SILVA, Eder Amaral. A cruzada das crianças. Constelações da infância à penumbra. Tese do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. 2016

Notas

1 Escrita inspirada na peça Incêndios (MOUAWAD, 2013).
2 Segundo Gagnebin (1994), Benjamin opõe origem, Ursprung, à gênese, Entstehung. “O Ursprung designa, portanto, a origem como salto para fora da sucessão cronológica niveladora à qual uma certa forma de explicação histórica nos acostumou. Pelo seu surgir, a origem quebra a linha do tempo, opera cortes no discurso ronronante e nivelador da historiografia tradicional” (Gagnebin, 1994, p.13). Neste ensaio a origem posta em análise será a que comumente entendemos por gênese.
3 Sobre o destino em Benjamin, argumenta Castro (2011, p. 111): “O destino, em Benjamin, coincide com a constituição natural do vivente, ou seja, com aquela aparência que, se não for totalmente dissolvida, constrange o vivente na culpa; e a vida culpada, submetida ao direito, é aquela que hesita, que se demora demasiadamente na aparência da vida, antes de se decidir a abandoná-la pela esfera ética.”
4 Sobre a presença da infância nas reflexões de Walter Benjamin, Gagnebin (1994, p. 94) argumenta que as “lembranças que se lhe impuseram quando compreendeu que só podia realmente escrever sobre sua infância quando tivesse abandonado as encenações projetadas pelo ‘eu’, para se consagrar às descrições de um teatro cujo desenrolar não controla. Paradoxalmente, a renúncia à autoridade do autor permite a eclosão de um texto luminoso no qual ele reaparece como voz narrativa única, surgindo do entrelaçamento da sua história com a história dos outros”.
5 Denominação utilizada por Silva (2016). O referido autor, na análise do livro Coir de Schérer e Hocquenghem, aproxima-se das considerações da Benjamin sobre a Infância: “o que torna o livro de Schérer e Hocquenghem completamente distinto [...] é a afirmação de um inominável da infância, que assim é pensada em sua diferença inadestrável, inapreensível senão pela prática de uma sistemática, quer dizer, uma pragmática das paixões, dos afetos, da potência de agir” (p. 109).


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