Resumo: Considerando Incêndios (MOUAWAD, 2013) como um fazer ficcional no sentido proposto por Foucault (1994) para o fazer história, o texto tem por objetivo geral investigar como um conjunto de experiências heterotópicas pode suscitar um conjunto de problematizações acerca das filiações histórica das infâncias com as verdades. Para tanto, o texto percorre dois momentos. No primeiro, investiga a problemática questão do nascimento das verdades (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT, 2006), visando provocar uma interferência nos vínculos com as verdades, a partir de outras experiências, para se pensar a infância numa dimensão plural, eivada de e por outras histórias. A seguir, o texto foca no aspecto de uma construção nocional das infâncias como heterotopias (FOUCAULT, 2009), destacando alguns alcances e algumas consequências desta abordagem para as experiências das infâncias contemporâneas. Destacam-se, neste sentido, o direito à infância, a singularidade dos mundos das infâncias e a dimensão micro revolucionária de cada infância como campos problematizadores na elaboração de um duplo exercício. De um lado, trata-se de mostrar como a temática da infância se atualiza como problematização política e, de outro lado, como é urgente a produção de outras políticas para as infâncias. Ao cabo, o texto propõe nomear de infâncias incendiárias aquelas capazes de se realizarem com outras verdades e outras histórias, isto é, com suas próprias heterotopias, fazendo desta questão algo contemporâneo.
Palavras-chave:infânciasinfâncias,verdadesverdades,heterotopiasheterotopias,infâncias heterotópicasinfâncias heterotópicas,FoucaultFoucault.
Abstract: This paper considers the play Incendies (MOUAWAD, 2013) as a fictional “making" in the sense proposed by Foucault (1994) of writing history. It aims to investigate how a set of heterotopic experiences can give rise a corresponding set of problematizations concerning the historical connections of childhoods with truths. For this purpose, the paper describes two moments. The first investigates the problematic issue of the birth of truth (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT, 2006), with the aim of awakening some interventions at the truth's bonds by other experiences, to think childhood in a plural dimension, covered by and other histories. In the second moment, the paper focuses on the question of a notional construction of childhoods as heterotopias (FOUCAULT, 2009), highlighting some achievements and some consequences of this approach for the experiences of the contemporary childhoods. We highlight in this regard the right to childhood, the singularity of the worlds of childhood, and the micro-revolutionary dimension of each childhood as a field of problematization, and thereby 1) show how the theme of childhood is a political one and, 2) recognize the urgent need to produce alternative policies that address the multiplicity of childhoods. Finally, this paper proposes the term "incendiary” for those childhoods that live and work with other truths and other histories-that is, with their own heterotopias.
Keywords: childhoods, truths, heterotopias, heterotopical childhoods, Foucault.
Resumen: Teniendo en cuenta Incendios (MOUAWAD, 2013) como un hacer ficcional en el sentido propuesto por Foucault (1994) para hacer historia, el texto tiene el objetivo de investigar cómo un conjunto de experiencias heterotópicas puede plantear un conjunto de problematizaciones sobre afiliaciones historicas de la infancia con las verdades. Por lo tanto, el texto pasa por dos etapas. En la primera, investiga la problemática del nacimiento de la verdad (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT, 2006), con el objetivo de provocar interferencias en los vínculos con las verdades de otras experiencias, para pensar acerca de la infancia en una dimensión plural, y plagado de otras historias. En segundo lugar, el texto se centra en el aspecto de una construcción teórica de la infancia como heterotopía (FOUCAULT, 2009), destacando algunos logros y algunas consecuencias de este enfoque para las experiencias de las infancias contemporáneas. Se destacan en este sentido, el derecho a la infancia, la singularidad de los mundos de la infancia y la dimensión micro revolucionaria de cada infância como campos problematizadores para se realizar dos ejercicios. Por un lado, se trata de mostrar cómo el tema de la infancia se actualiza en una dimensión política y, por otro lado, cómo es urgente una producción de otras políticas para las infancias.. Para terminar, el texto propone llamar infancias incendiarias a aquellas que se pueden realizar con otras verdades y otras historias, es decir, con sus propias heterotopias, haciendo de este tema algo contemporáneo.
Palabras clave: infancias, verdades, heterotopías, infancias heterotópicas, Foucault.
DOSSiê
Foucault e as Infâncias Incendiárias: Experiências de Outras Verdades e de Outras Heterotopias
Foucault and incendiary childhoods: experiences of other truths and other heterotopias
Foucault y las infancias incendiarias: experiencias de otras verdades y de otras heterotopias
Recepção: 15 Maio 2016
Aprovação: 13 Junho 2016
O silêncio é para todos diante da verdade
Mouawad (2013, p. 126)
Nawal, Wahab, Nihad, Abu Tarek, Jeanne, Simon, Chamseddine, Kfar Rayat, poderiam ser atribuições semelhantes àquela profusão de seres inclassificáveis armados numa certa “extravagância de encontros insólitos”, como destacava Foucault (1999), acerca da enciclopédia chinesa de Borges, em As palavras e as coisas. Longe disso, contudo. Tais nomes são experiências de heterotopias porque, antes de mais nada, solapam toda possibilidade de compreensão imediata entre enunciado e efeito enunciador, impossíveis de serem localizados em um espaço que os margeia por um jogo referencial reconhecido.
Essas heterotopias, no entanto, trazem na singularidade de seus nomes, de suas feições, na coextensão de como se relacionam com os acontecimentos e entre si mesmos, a corrente subterrânea de fluxos de verdades quase sempre despercebidas pelos feixes de visibilidade encontrados apenas nos escaninhos dos arquivos constantemente revisitados. Mas nem por isso estamos fadados a seguir no mesmo sentido de como as verdades são contadas e dadas a conhecer.
Este texto surge com o propósito de considerar a obra de Wouawad (2013), Incêndios, como uma experiência heterotópica capaz de ensejar um conjunto de problematizações acerca de nossas filiações com o nascimento das verdades. Para tanto, elegemos a infância como objeto de análise coextensiva aos próprios questionamentos acerca do nascimento de certa infância com as verdades tramadas na obra. As personagens de Wouawad, bem como os seus lugares, nesta dimensão, são considerados não no âmbito da ficção alusiva à criação fantasiosa do autor, mas como condição ficcional do fazer histórico proposto por Foucault (1994). O mais consequente, digamos, neste procedimento, é o fato de como podemos extrair e fazer circular da produção ficcional a inquietação acerca do que nos destina a crer como ordem inevitável suscitada das verdades que intentam amarrar o sentido de nossas origens, congelando a múltipla possibilidade de nossas experiências numa representação, aí sim, que não passa de uma ficção de mal gosto.
Para tanto, o texto percorre dois momentos. No primeiro, investiga a problemática questão do nascimento das verdades (NIETZSCHE, 2001; FOUCAULT, 2006), visando mostrar a derivação possível, a partir da consideração da verdade por outras experiências, por outro vínculo fundamental com a verdade, para pensarmos a infância numa dimensão plural, eivada de e por outras histórias. A seguir, o texto foca no aspecto de uma construção nocional das infâncias como heterotopias (FOUCAULT, 2009), destacando alguns alcances e algumas consequências desta abordagem para as experiências das infâncias contemporâneas.
Mas que não haja engano, Nawal, Wahab, Nihad, Abu Tarek, Jeanne, Simon, Chamseddine, Kfar Rayat, como veremos, não são desculpas para mais um exercício teórico publicável. São ressonâncias concretas de uma série de histórias: histórias de homens, de mulheres e de crianças sem aparências, mas cujas verdades, assim como nossos olhos, não têm fundura. E se, ao cabo de tudo, nada nos comover e nada nos mobilizar na direção contrária dos gestos reclusos às mesmas verdades, em favor de um urgente comprometimento com outras infâncias, teremos passado ao largo do fato de que “o menor gesto tem uma história” (DELIGNY, 2008, p. 11), e de que a menor fagulha é capaz de fazer os maiores Incêndios.
Incêndios e o nascimento da verdade em torno de várias infâncias: outras histórias
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos
Nietzsche (2001, p. 7)
Amarga, amarga é a verdade que deve ser dita
Mouawad (2013, p. 104)
Foi preciso empreender muita torção nos encadeamentos das convicções a respeito dos processos pelos quais chegamos até aqui para compreender que a nossa história nunca conheceu um único acontecimento capaz de datar a sua origem. Somos, assim, conspurcados. Devemos principalmente a Nietzsche (2001) a descoberta, ao mesmo tempo inconveniente e desconfortável, acerca dos enganos com os valores que o homem ocidental ajuizou para anunciar a sua vontade de principiar origem à sua própria história, ao seu pensamento e às coisas. Em pleno sol do meio-dia na história da razão, vimos eclipsar as nossas certezas ao saber que a invenção histórica (Erfindung) crível acerca de nossas origens repousava na falsificação de valores inventados, na mesma proporção, para nos fazer crer nas avaliações atribuídas a todo tipo de origem. Mas ao se desfazer do próprio valor desses valores, Nietzsche colocou em questão a forma e o procedimento com os quais as convicções e as verdades pudessem assentir no fazer de nossa história. Sob o silêncio conivente de nossas certezas, tratava-se de indagar por que ignoramos um outro tipo de “conhecimento das condições e das circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram um conhecimento tal como até hoje nunca existiu e nem foi desejado” (NIETZSCHE, 2001, p. 12).
Ainda que o nosso conhecimento tenha operado desta maneira, a latência da verdade circunscrita às miríades dos acontecimentos julgados por inexistentes ou até mesmo indesejados não deixou de emergir e de propagar com outro sentido nos contornos de nossa própria história. Para tanto, foi necessário que “esses pesquisadores e microcopistas da alma”, na bela alusão de Nietzsche (2001, p. 18), se implicassem na produção de uma Erfindung, a respeito de nossas verdades originais. O vasto trabalho de Foucault é uma das rubricas inequívocas empenhadas em mostrar o lado avesso da história de como chegamos até aqui, pagando o preço que pagamos por chegar até aqui e com quais consequências.
Tal como Nietzsche, seria preciso deixar de ignorar o que passa despercebido na soma ínfima das frações de nossas experiências. Desta maneira, enganar-se-iam aqueles que tomassem apenas a suposta condição real dos fatos por circunstâncias cabais, provas monumentais da verdade e incontornável da história. Com a crítica dos valores históricos, Foucault atualiza o esforço nietzschiano para nos fazer ver a emersão de outras condições materiais, por sua vez, menores, marginais, impensadas, esquecidas, reduzidas ao infame, cotejadas por uma operação de livramento da desqualificação de tudo o que sujeitava a capacidade de um acontecimento se anunciar como outro tipo de verdade. Por isso mesmo, o que importa, desde Foucault, é a consistência de uma experiência e não a consolidação de sua materialidade à lógica de uma verdade positivista.
A difícil relação que temos com qualquer verdade fez com que Foucault (1994) chegasse ao limite de afirmar ser o seu trabalho um tipo de ficção histórica. Neste caso, não se trata de tomar a ficção por mentira ou não veracidade. Mas o seu trabalho é uma ficção justamente porque engendrou na história as consequências ulteriores da fortuna crítica de Nietzsche. Com efeito, alterando-se as condições pelas quais acessamos o que é considerado por verdadeiro e universal, como pressupostos de verdade de nossas experiências históricas, alterar-se-ia também os condicionantes e as maneiras com os quais podemos nos inventar. O que conta, daí, é toda e qualquer experiência, uma vez que “uma experiência é qualquer coisa da qual se sai, a si mesmo, transformado” (FOUCAULT, 1994, p. 41). E são as experiências inventadas na história, e nela mesma esquecidas, e são as experiências que precisam ser inventadas e anunciadas na história para que não sejam esquecidas, o exercício ficcional porque inventivo. Por ser assim, a ficção é capaz de produzir a experiência com o inimaginável, com tudo o que é potente o suficiente para transformar quem de tais experiências se acerca e é perpassado. Não sem sentido, para Foucault (1994, p. 45), “uma experiência é sempre uma ficção; é algo que se fabrica para si mesmo, que não existe antes e que existirá apenas depois”.
Sob tal horizonte, Incêndios (MOUAWAD, 2013) deixa de ocupar o lugar da mera ficção e entra no âmbito da experiência. A teia de seu drama participa de uma série entrecruzada de acontecimentos que, a despeito do desfecho final, não consola ninguém, pois causa uma abertura de expectativas e de perquirições sob o choque da experiência com uma verdade que faz qualquer um indagar: e agora? Incêndios não pode ser lido, mas apenas experimentado. O que sucede com quem o experimente em seguida, tal como o ocorreu com Prometeu abandonado à própria sorte pelos deuses após roubar o fogo sagrado, é a descoberta de que não se entra e nem se sai impunimente de uma experiência qualquer. E isto já é o suficiente para sabe o que é estar “na” história.
Uma mulher Nawal, concebe com Wahab um filho. Este lhe é tirado, em nome da respeitosa tradição familiar de seu povoado, e lançado obscuramente à sorte do destino da adoção. Anos depois, e sem nunca mais reencontrar Wahab, que saíra fugido de seu povoado, Nawal parte em busca do filho perdido. Lança-se a uma jornada infinda. Vagando entre um território e outro, investigando como pode, acaba se deparando com a experiência-limite de uma guerra civil. Trama a morte de um chefe miliciano e a executa. Como consequência, é detida na prisão de Kfar Rayat. Ali é violentada incessantemente por Abu Tarik, o seu carrasco. Ali ela dá à luz aos gêmeos Jeanne e Simon, fruto de sua violação. Ambos são tirados dela para serem afogados. Mas o encarregado desta tarefa não tem a coragem de fazê-lo e os entrega para Malak, que cria os gêmeos. Tempos depois, Malak reencontra Nawal e restitui a ela os seus filhos, os gêmeos. Ao morrer, Nawal deixa aos seus filhos, Jeanne e Simon, pela força testamentária, a missão de encontrar o seu irmão perdido e, para o maior espanto deles, um pai que não conheciam.
Desta maneira, toda a história entra em uma cartografia aberta e movediça, repleta de acontecimentos surpreendentes e inesperados. É sobre o destino da verdade que a experiência das personagens se chocam, sendo esmagados por descontinuidades abruptas. Pouco a pouco, tal como na ilusão do ponto de nascimento do arco-íris, o que se tomava por verdade se desmancha, cedendo lugar para a aposta em uma nova e outra procura. É assim que descobrimos que o filho perdido de Nawal e Wahab foi batizado de Nihad Harmanni; que mais tarde haveria de mudar o seu próprio nome para Abu Tarek, fazendo jus à mudança de sua identidade: tornara-se um militante assassino e violento; que Abu Tarek, sendo o filho de Nawal, era o carrasco da prisão na qual estuprara a sua mãe, sem que ambos soubessem de seus laços. Por sua vez, os filhos gêmeos de Nawal, Jeanne e Simon, são frutos do estupro por parte de Abu Tarik. Portanto, Abu Tarek é, ao mesmo tempo, o irmão perdido e o pai desconhecido de Jeanne e Simon.
Espantoso seria se supuséssemos encontrar na descrição acima da trama, ou mais precisamente, da tragédia, elementos suficientes para dar conta do acesso às verdades da história. Dentro da ficção há outras ficções, todas derivadas da defasagem intransponível de quem anuncia, dentro de uma história, a sua versão da história. O que haveria de preciso aí? O que escaparia aos acontecimentos narrados? O que seria esquecido, deixado sob os escombros das opções discursivas para pôr em evidência a face luminosa dos acontecimentos? E não estaria em tudo isso uma ficção projetiva e inventiva do que se pretende anunciar? Mas e o que deixou de ser anunciado, não existiria? Malak, o camponês que criou os gêmeos haveria de dizer à Jeanne: “no jogo de perguntas e respostas a gente chega facilmente ao nascimento das coisas, e eis que chegamos ao segredo do teu próprio nascimento” (MOUAWAD, 2013, p. 102).
Condicionado ao jogo de perguntas, o nascimento das coisas não revela as coisas em si. No final, é de um jogo de verdade que se trata, isto é, da visibilidade intentada a partir daquilo que se pretendeu acessar. Por isso mesmo, para Foucault, durante muito tempo, perguntas essenciais para revelar o nascimento de nossas experiências históricas não eram consideradas interessantes de serem feitas. Mas ao engendrá-las, começou-se a produzir um tipo de arquivo antes ignorado, arquivo responsável por liberar não apenas a emersão outra do nascimento das coisas, mas também das palavras, das instituições, de uma série de práticas, de nós mesmos. Ao cabo, estaria em jogo o nascimento de nossos próprios valores ao redor de nossas próprias verdades. O que importa na indagação pela verdade não seria, assim, a força capaz de revolver o fundo sobre o qual se assentaram e se apaziguaram miríades de acontecimentos capazes de revelar a nossa filiação com a história de outra verdade? Quem seria nosso irmão, quem seria o nosso pai nessa tragédia? “Onde começa a verdade de vocês?” (MOUAWAD, 2013, p. 131), indagava Nawal à Jeanne.
Onde começaria a nossa verdade, a minha e a sua? Onde começaria o peso de todos os pesos, a valoração de todos os valores, a enunciação entre todas as possibilidades de enunciação da verdade? Era preciso levar a sério o fazer ficcional, criativo, dramático, trágico acerca de nossas origens. Era preciso
Mostrar que a demonstração científica no fundo nada mais é que um ritual, mostrar que o sujeito supostamente universal do conhecimento na realidade nada mais é que um indivíduo historicamente qualificado de acordo com certo número de modalidades, mostrar que a descoberta da verdade é na realidade certa modalidade de produção de verdade, trazer assim a demonstração para o embasamento dos rituais, o embasamento das qualificações do indivíduo cognoscente, para o sistema da verdade-acontecimento - é isso que chamarei de arqueologia do saber (FOUCAULT, 2006, p. 305-306).
Mas isso tudo não era suficiente. Não dava conta das reviravoltas de uma história. Há também história na carne viva daquilo que foge à prova da demonstração científica. A produção de verdade também é rara, como rara é a história de Nawal, Jeanne, Simon, Abu Tarek; como é rara a história dos homens infames, como enfatizava Foucault, quer dizer, a de cada um de nós. A raridade está para a verdade por sabermos ser ela diluída e infiltrada em todo conjunto de experiência dos indivíduos históricos. Em jogo, encontrar-se-ia uma “rarefação que, justamente, já não incide sobre o aparecimento, a produção da verdade, e sim sobre os que são capazes de descobri-la” (FOUCAULT, 2006, p. 316), tal como Jeanne e Simon foram capazes de fazê-lo. Para tanto, tiveram de confrontar a verdade parasitada em suas próprias convicções e certezas; tiveram de dissolver a verdade-conhecimento, aquilo que insistiam em demonstrar por uma lógica de autoengano, até os fundamentos da origem que não passava de uma certeza equivocada. Por conseguinte, Jeanne e Simon acabaram fazendo também a genealogia de suas próprias vidas. Em todo caso, Jeanne e Simon são testemunhas das implicações para a singularidade de suas experiências quando se trata de
Mostrar como ela [a verdade-conhecimento] colonizou, parasitou a verdade-acontecimento, como acabou exercendo sobre esta uma relação de poder que talvez seja irreversível, em todo caso que é por ora um poder dominante e tirânico; como essa tecnologia da verdade demonstrativa efetivamente colonizou e agora exerce uma relação de poder sobre essa verdade cuja tecnologia está ligada ao conhecimento, à estratégia, à caça. É isso que poderíamos chamar de genealogia do conhecimento, reverso histórico indispensável da arqueologia do saber [...] (FOUCAULT, 2006, p. 306).
Quem qualifica a verdade? Como e sob que preço? Quem pode descobrir a verdade? Como e sob que preço? Na passagem da aula de 23 de janeiro de 1974 de O poder psiquiátrico, em que Foucault (2006) faz o que ele chamou de breve história da verdade em geral, a insuficiência e os limites das verdades eivadas das práticas científicas em geral são destacados. Contudo, ocidentais que somos, acabamos por acreditar apenas no poderio das demonstrações lógico-científicas, capazes de franquear um nível de constatação em direito universal da verdade coincidente com a modalidade da prática científica. Era assim que Jeanne, por ser matemática, buscava provar em suas experiências com a verdade um encadeamento irrefutável dos fatos. Para ela, a visibilidade da realidade era apenas compatível com o lugar em que cada um pudesse ser capaz de ocupar em um polígono ao qual pertence. Foucault insistia no fato de termos de enxergar a insuficiência das provas de verdades demonstrativas pela força do acontecimento, de tudo aquilo que é capaz de produzir descontinuidades, de ser disperso, desqualificado e imprevisível. No final, a verdade toca é a carne de cada um e não vem apenas pelo jogo astuto do conhecimento lógico-racional. Jeanne dá prova disto: “Hoje, aprendi que é possível que do ponto de vista que ocupo, eu possa ver também meu pai; aprendi também que existe um outro membro desse polígono, um outro irmão. O grafo de visibilidade que sempre tracei está errado. Qual é o meu lugar no polígono?” (MOUAWAD, 2013, p. 38).
O que Jeanne experimenta é a verdade-raio. Foucault utiliza esta expressão para fazer a contraposição ao que ele denominou de verdade-céu. A verdade-céu é da ordem universal, demonstrável, científica, lógica. A verdade-céu açambarca “a série de verdade descoberta [cientificamente], constante, constituída, demonstrada” (FOUCAULT, 2006, p. 304). Mas o raio corta, invasivamente, o céu. Apesar de sua brevidade, ele é potente, capaz de cindir, de traçar rompimentos, e até de incendiar. Nele, a verdade é sempre um risco e uma ameaça, pois é uma relação de força que se revela. A verdade-raio diz respeito a uma outra série de experiências na história ocidental da verdade:
(s)érie da verdade que não é da ordem do que é, mas que é da ordem do que acontece, uma verdade portanto não dada na forma da descoberta, mas na forma do acontecimento, uma verdade que não é constatada mas é suscitada, perseguida, muito mais produção do que apofântica, uma verdade que não se dá pela mediação de instrumentos, mas que se provoca por rituais, que se capta por artimanhas, que se apreende de acordo com as ocasiões (FOUCAULT, 2006, p. 304).
Ora, se o céu é apenas um, os raios sempre serão incontáveis debaixo do mesmo céu. Em outros termos, em Incêndios (MOUAWAD, 2013) tem-se lugar a verdade-acontecimento, indiciando em cada experiência de suas personagens uma ruptura com a impossível conciliação da convicção presente e da incerteza vindoura. Esta descoberta é de outra ordem: demanda a perseguição, o de chofre, a artimanha na penetração do meandro da história esquecida e ignorada; implica o pressuposto de que as coisas não estão dadas e não serão dadas, e que é preciso lutar por elas, lutar pela verdade, pela origem do que não se sabe: “Por que não ter contado a vocês?”, menciona Nawal em carta para Jeanne, porque “há verdades que só podem ser reveladas se forem descobertas” (MOUAWAD, 2013, p. 132).
Mas nem tudo se revela, nem tudo se descobre, e a verdade sempre possuirá a sua latência inalcançável, a origem sempre derradeira debaixo de outra ainda e ainda outra. Na história-ficção e na ficção-história, ainda que supuséssemos algum desfecho, é inimaginável conceber o acabamento final para o que os acontecimentos pudessem abrigar. A produção apofântica da verdade-raio, como destacou acima Foucault (2006), não cessa de manifestar os aguilhões do seu fulminante descontentamento: ainda haverá um outro fato, latejará um outro acontecimento, deparar-se-á com mais um arquivo; e também terá o que não se sabe, e, entre raios e trovoadas, o não-dito da verdade causando tormento na ordem do mesmo - e “o céu cai”, dizia Chamseddine a Simon, ao revelar a este que seu irmão era também o seu pai (MOUAWAD, 2013, p. 124).
O céu que cai sob Simon e Jeanne diz do lugar das incertezas acerca da origem de suas próprias histórias. De modo mais específico, indica as plausíveis reviravoltas de suas filiações com as suas verdades fincadas no mais distante chão de suas infâncias. De onde se encontram, Simon e Jeanne, ao se depararem com outras verdades a respeito de suas vidas, deparam-se também com a dimensão irrefutável de que não conhecem a si mesmos e de que as verdades de suas histórias não passavam de invenções para fazer encaixar origem e destino. E com relação a tal aspecto, nenhum conhecimento seria o suficiente para resgatar o que não pôde se consagrar como acontecimento. Doravante, alterando a origem de suas experiências com a verdade, por efeito, eles poderão alterar a disposição de suas experiências para as quais, anteriormente, estavam destinados.
Em Incêndios (MOUAWAD, 2013) tudo está maculado desde a infância. As experiências que Jeanne e Simon puderem saber ter quando crianças não foram as que, de verdade, eles tiveram. Filhos de um pai que é também irmão, os gêmeos tiveram uma primeira criação, uma primeira experiência com a infância, longe das pretensas certezas parentais as quais criam possuir. Mas o mesmo é válido para Nihad, o irmão-pai, o filho tomado do primeiro amor de Nawal e de Wahab. Criança perdida, transformada em soldado fiel a Chamseddine para, depois, deambular com os seus atos de violência, matando crianças por esporte, tiro ao alvo, até se especializar no requintado torturador e carrasco Abu Tarek. Mas Nawal e Wahab também tiveram as condições locais de suas infâncias. O que sabemos delas? Ainda que alguma coisa, isto nada seria. A vila pobre, a vida analfabeta, os amores proibidos, a origem da vida marcada pelas guerras, pelas migrações, pelos refugiados. A infância provada por cada uma dessas personagens não sorve em nossas bocas com o mesmo amargor e a mesma doçura que apenas eles, e tão somente eles, puderam experimentar.
No entrecruzamento dessas vidas há uma sucessão de cortes que fogem do domínio de cada uma delas. É o corte da verdade-raio sob a verdade-céu. Também é a cisão efetiva das descontinuidades de histórias que fogem dos cálculos de qualquer compreensão. Em cada nascimento de história uma origem diversa e singular de verdade; em cada verdade-acontecimento uma infância latente cuja revisitação pelo desfiar da história não apenas assinala a movediça base de como os acontecimentos podem fundar distintamente as experiências de cada um. Wahab pressente o assalto ao seu amor, à concepção de seu filho junto de Nawal: “Nawal, hoje à noite, a infância é uma faca que estão enfiando no meu pescoço” (MOUAWAD, 2013, p. 45). O tempo é o hoje, a experiência está neste agora escapável que agita um processo do qual ainda não se mede as consequências: a faca que estão enfiando no pescoço de Wahab, presente contínuo, será a mesma faca para Nawal? Que infância é esta? Para Wahab, que foge na mesma noite, a infância é derivada de todo processo em curso ao qual se consagra porque é experiência única, sem comunhão, intransferível, única: infância acontecimentalizada até a emersão de seus efeitos igualmente singulares, mas que não sentirá e nem vivenciará como Nawal. Ela, suspensa no intervalo de uma ação, tão única e sua, na mesma noite, faz do acontecimento em curso a certeza vindoura. A infância, para Nawal, de repente, não é mais um presente contínuo, mas um futuro do qual não se escapa: “a infância será uma faca que vou enfiar no meu pescoço” (MOUAWAD, 2013, p. 46).
Não se trata de interpretar ou de buscar a verdade oculta, exercício hermenêutico, no sentido da faca no pescoço. A infância definida assim conjuga uma experiência da qual não podemos fazer parte, nem avaliar, o que demandaria julgamento, muito menos mencionar que sabemos do que se trata, o velho “eu sei disso”. Esta experiência única incendeia as regras da própria infância. O nascimento da infância, sendo assim, deixa de ser uma experiência modelar de captura e de definição subjetiva atinente ao que deve fazer uma criança ou o que se deve fazer com uma criança em sua infância.
A esta altura, a verdade-raio é capaz de incendiar as expectativas consoladoras em torno dos fatos e das mais longínquas idiossincrasias em torno da infância. A tragédia de Wahab-Nawal-Nahin-Jeanne-Simon, por ora, denota o nascimento da verdade em torno de várias infâncias e como, de história em história, devemos perder por completo aquela postura pretensiosa, como bem nos alertara Deligny (2008), de que conhecemos a Infância, com maiúscula inchada por emanações de uma sociedade em decomposição.
A história com as suas múltiplas verdades, como vimos, também é uma entrada e uma saída para outras histórias e outras experiências com as verdades. A infância deveria ser pensada nesta direção, como experiência arredia aos qualificadores que a destina aos mesmos padrões de toda ordem, capazes de estancar, em nome de modelos constituídos - família, instituições, sociedades, consumo, semiótica - a potência criadora de suas outras verdades. E não seria, por isso mesmo, a infância a experiência mais heterotópica capaz de incendiar toda a história da verdade?
Incêndios e o mundo vário: as heterotopias das infâncias
Onde estaremos, você e eu, daqui a cinquenta anos?
Mouawad (2013, p. 41)
Não há uma infância. Existem muitas infâncias, pois as infâncias são heterotopias. O encontro com o mundo, por parte de toda criança, já é uma experiência múltipla de inserção no espaço-temporalidade jamais isenta de neutralidade. “Não se vive em um espaço neutro”, argumentava Foucault (2009, p. 23), com o intuito de decompor a política espacial de nossa circulação. Apesar de podermos habitar na mesma cidade, não vivemos na/a mesma cidade. O mesmo é válido para a consistência de nossa história, pois não há história sem circulação de indivíduos em seus espaços.
A heterotopia é uma estratégia invasiva na política do espaço e também na política do tempo. Em toda heterotopia repousa uma heterocronia: não se vive a mesma temporalidade nos mesmos espaços; não se vive a mesma espacialidade na mesma temporalidade. O muro a segregar, a delimitar, a demarcar o bem privado, também pode ser objeto de contenção, de encarceramento, de exclusão, de cisão, de controle de fluxos de bens, de pessoas, de animais. Qualquer indivíduo de dentro do muro pode ser alguém distante e inacessível para quem estiver de fora. O muro pode se transformar, ainda sob a égide de cada um de suas funções, em arte, muro de protesto, muro de mictório, muro amparado de bêbados, muro ponto de pedintes, muro apoio de revista policial, muro recanto da trepadeira, muro das lamentações, muro ideológico, e sucessivamente. Estaríamos assim diante de uma experiência de contra-espaço. A heterotopia é um contra-espaço em um contra-tempo. O que ocorre sob o influxo da heterotopia pode acabar sendo deslocado de uma função normalizadora, dando lugar ao imprevisível, mas também ao que não é desejado pela lógica daquele mesmo espaço. Assim nasceriam as utopias, por exemplo. Mas assim também nasceram os asilos, os manicômios, os quarteis, as escolas, os hospitais: utopia de resgate e de cura, utopia de aperfeiçoamento humano num quadriculado de muro que se reduplicava de desconstrução em desconstrução de funções para forjar outras.
No caso da infância, Foucault argumentava ser ela lugar precípuo da heterotopia pois as crianças têm a capacidade de assaltar a lógica das funções e subvertê-las por completo e, por isso mesmo, transbordar nos limites estabelecidos também uma hetero-utopia. Assim é que a criança depara com a sua infância:
Esses contra-espaços, essas utopias localizadas, as crianças conhecem perfeitamente. É o fundo do jardim, claro está, o celeiro, ou melhor ainda, a tenda dos índios armada no meio do celeiro, é também - na quinta-feira à tarde - a cama dos pais. Sobre esta cama se descobre o oceano, porque se pode ali nadar entre as cobertas; mas também é o céu, uma vez que se pode pular no colchão; é a floresta, porque ali se esconde; é a noite, já que é possível se tornar um fantasma entre os lençóis; é o prazer, e enfim, na volta dos pais a punição (FOUCAULT, 2009, p. 24).
Mas há aí um ponto problemático que não deve ser ignorado. Os adultos são cúmplices ou não na produção das heterotopias na infância. Igualmente, os adultos podem ser potencializadores ou não dessas heterotopias, das experiências de contra-espaços na infância. Guattari (1985), ao escrever sobre As creches e a iniciação, mostra com muita clareza que os adultos tendem, de maneira muito precoce, a barrar as polivocidades de expressão e de competências das crianças, forjando para elas um tipo de infância modelar, repleta de iniciações de captura de suas espontaneidades e de suas singularidades. A inserção em um conjunto de semióticas dominantes, entendidas como formas de expressar e de fazer circular feixes de valores que organizam e orientam os sentidos e as apetências das crianças, constituiria a primeira barragem a uma experiência de infância heterotópica.
Ora, quando Jeanne e Simon, infligidos pela promessa de serem confrontados com experiências absolutamente impensadas acerca do nascimento de suas verdades, veem, pouco a pouco, avançarem-se em espaços outros, dantes inexistentes para eles, deslocando-se dos limites de suas vidas, acabam refundando para si mesmos uma série de novas experiências que somente serão possíveis com o encontro de suas heterotopias. Ao experimentarem, contudo, tal dimensão, deparam-se, concomitantemente, com a refundação de suas próprias infâncias.
Em primeiro lugar porque a heterotopia indica distintas denotações de mundo. A mesma praia pode ser o belo lugar de veraneio, bem como o sepulcro de Aylan Kurdi, a criança síria de 3 anos encontrada morta na praia de Bodrun, Turquia, como consequência da tentativa frustrada de sua família de encontrar guarida longe dos conflitos armados na Síria. É assim que Jeanne e Simon passam a trafegar por um mundo com “soma monstruosa de dor” (MOUAWAD, 2013, p. 89), antes sem significado algum para eles. Por isso mesmo, em segundo lugar, a heterotopia pode ser criada, assim como pode ser desaparecida. A prisão de Nawal, a mãe de Jeanne e Simon, não existe mais, transformou-se em museu. Embora assim, eles encontram ali, pelo fio da história, fio que passa a existir por uma verdade-raio, a prisão, o lugar da tortura, o lugar onde foram gestados. Toda heterotopia, desta forma e em terceiro lugar, supõe a possibilidade de que vários espaços sejam justapostos, ainda que sejam incompatíveis. A prisão é lugar de nascimento de Jeanne e Simon; é também cumplicidade de quem ensina Nawal a cantar para sobrepor-se à toda dor - Nawal, tornando-se a mulher que canta; a prisão é pacto da promessa e secreta, em outra modulação espacial, a tortura e o estupro: uma prisão não é apenas uma prisão. Não é difícil de notar que a relação do tempo com o espaço tem a sua variação conforme a intensidade do que é vivido e experimentado nos limites do próprio espaço.
Assim, finalmente, a heterotopia está ligada aos cortes singulares do tempo, à sua heterocronia. Um minuto de dor que suspende Nawal sobre o abismo da eternidade é um tempo que não passa. A busca pela outra verdade, por parte de Jeanne e Simon, acaba lançando-os em um tempo que não se ganha, mas que se escapa a cada segundo de espera, de busca, de expectativa; este tempo salta de maneira distinta para Jeanne e Simon. Nawal a Simon: “Agora, é preciso reconstituir a história. A história está em migalhas. Devagarinho. Consolar cada pedaço. Devagarinho. Curar cada lembrança. Devagarinho. Ninar cada imagem” (MOUAWAD, 2013, p. 130). Nawal à Jeanne: “Onde começa a história de vocês? No nascimento de vocês? Então ela começa no horror. No nascimento do pai de vocês? Então é uma grande história de amor” (MOUAWAD, 2013, p. 130-131).
Se há um começo para a infância, sob tal conjuntura, ele está no próprio lugar que a heterotopia ocupa na infância. Sem heterotopia não pode haver infância. Mas como é da heterotopia a multiplicidade e a dispersão da multiplicidade, o que temos são heterotopias e com elas experiências de infâncias. Jeanne e Simon partiram ao encontro de seus contra-espaços, de suas heterotopias, encontrando, assim, uma nova urdidura de suas infâncias. Neste encontro, fizeram das serialidades de suas verdades e de suas origens a dissolução das mesmas serialidades e das mesmas origens, cedendo lugar para outras infâncias. Nawal soube indicar este momento de ruptura a Simon: “a infância é uma faca enfiada no pescoço. E você soube retirá-la” (MOUAWAD, 2013, p. 130).
Se a infância teria sido para Nawal e Nawab a faca enfiada no pescoço, faca que não saiu, para Jeanne e Simon a experiência passou a ser de outra consistência a partir do momento em que eles puderam romper com o silêncio que os destinava às verdades conhecidas desde sempre. Paradoxalmente, mesmo adultos, Jeanne e Simon passaram a ter direito à uma outra infância, à uma outra história, à uma heterotopia acerca de si mesmos e de suas composições subjetivas, infância pertencida a eles: infância com outros começos para outros fins. Talvez todo este horizonte nos sirva de base para pensarmos três conjuntos de problematização ao redor da infância.
Uma primeira questão diz respeito ao direito à infância. Isto extrapola qualquer dimensão de afirmação política oficial, porque a sua melhor intenção, ainda que necessária, não mitiga as recusas e as barreiras cotidianas interpostas à heterotopia da infância. Todavia, a infância consubstanciada na heterotopia nos convoca, sujeitos historicamente singulares e ligados a um espaço e a uma temporalidade, a lutar pelas condições afirmativas de qualquer experiência que proteja a infância para que os infantes não continuem com as facas que lhe são colocadas nas gargantas. Quer dizer, o mundo dos adultos atravessa incessantemente as condições da infância negando a meninos e a meninas o direito de romperem com as tragédias muitas vezes cruéis da adultícia. Deligny (2008, p. 242) reforçava a ideia de que “as crianças não têm uma nítida consciência de seus lugares no mundo”. Neste caso, não ter lugar no mundo é expressão de libertação dos sentidos impostos às crianças: qualquer material pode ser um objeto de brinquedo, qualquer lugar pode ser outro lugar, qualquer pessoa pode ser um afeto de outra ordem. A infância deveria ser o contra-espaço onde, na bela expressão de Guimarães Rosa (2001, p. 50), “as satisfações antes da consciência das necessidades” se efetivariam incessantemente. E, talvez assim, o que menos a infância precisa é de consciência para se realizar quando brinca, inventa, grita, pula, agita, bagunça, prova o mundo sem as “facas no pescoço”, isto é, podendo respirar livremente as suas próprias heterotopias e nelas sagrarem-se apenas infantes.
Por isso mesmo, aqueles que têm consciência de seus lugares no mundo não devem privar a infância das oportunidades autênticas e genuínas de provarem o mundo heterotopicamente. O direito político à infância, dito deste modo, é o mesmo que permitir a infância ser um lugar de experiência das sensibilidades atípicas, do experimentar o mundo pela contra-espacialidade, de poder romper com as tramas das verdades que aprisionam as infâncias nos mesmos lugares, ou mais perversamente, que as destinam a lugares e a experiências que jamais deveriam existir.
Para tanto, é preciso denunciar, desmantelar e agir contra os jogos das relações de forças que sonegam o direito às infâncias heterotópicas. Ainda são milhares de Ítalos mortos pela polícia aos 10 anos de idade; milhares de crianças marchando horas para chegar à escola, e também lutando para se manter no solo em que a sua tradição os cultivou, mas que os interesses das grandes transnacionais intentam ignorar; são incontáveis as crianças sem infância, intoxicadas no cultivo do fumo no sul do Brasil; são incalculáveis as crianças refugiadas e massacradas; são muitas as infâncias ao sopé das escadarias das muitas Candelárias; e são tantos Nihads tirados de seus pais, traficados visando as mais distintas finalidades e explorações , e o que dizer das Jeannes e dos Simons, filhos da guerra, da violência, das aniquilações raciais, dos saldos religiosos extremistas? Onde há afirmação, é preciso indagar: “Essa criança não é da tua conta [Não?]. Não é da conta da tua família, não é da conta da tua mãe, não é da conta da tua vida [Não?]. Essa criança não existe [Não?]” (MOUAWAD, 2013, p. 43).
Mas em segundo lugar, emerge uma problematização distinta. As diferentes denotações do mundo da infância não apenas devem ser respeitadas, todavia, precisam mais ainda serem estimuladas à inventividade e à busca fora da grade das verdades estabelecidas. A infância que já foi capturada pelas metas de performatividades e de eficiências, frutos dos anseios inflexionados aos pequenos pelo mundo dos adultos, deve ser lançado fora, em nome das infâncias heterotópicas. Trata-se de desfazermos dos significantes da infância e deixá-la “deslizar pelos caminhos das multiplicidades reais” (GUATTARI, 1984, p. 142). Em outros termos, há um risco de captura da infância quando a verdade infantil é dada antes do experimento infantil com a infância, capaz de ser criada por toda criança como o seu jogo próprio. Representa pensar que os termos das regras a respeito do que é a infância são constantemente contestados por aqueles que vivem a infância.
Finalmente, se as infâncias são heterotopias, cada infância é uma experiência micro revolucionária para a nossa relação com os espaços e as ordens de temporalidades estabelecidas. Falta ao nosso mundo essas infâncias, assim como faltaria infância em muitas crianças. Por isso mesmo, a singularidade da infância é um desafio. Mas aqui é preciso entender desafio por outro viés: como aquilo que vai contra toda fides, ou seja, contra toda fé, contra toda garantia ou aquilo em que se confia, como Fides, que na mitologia romana era a sagração da palavra empenhada. As infâncias heterotópicas são verdades-raios capazes de produzir um disfidare, um desfazer, nas vontades de verdades. E não repousaria aí, em toda esta conjuntura, o gesto distante, mas jamais esquecido, e cada vez tão mais necessário, da busca pelo nascimento de outras verdades em torno de várias infâncias? E saberemos tirar a faca plantada no pescoço da infância?
Parece a voz dos séculos antigos.Mas não, Sarwane, é de hoje que data a minha voz.
Mouawad (2013, p. 124)
Agamben (2009) considera por contemporâneo a marca singular do tempo histórico que, concomitantemente, permiti-nos ser coextensivos à sua especificidade com a mesma possiblidade de nos afastar desta singularidade a nos imprimir uma marca. Deste ponto de vista, as questões que intentamos analisar neste texto dizem respeito a um conjunto de problematizações contemporâneas para o campo da infância.
Ora, se tomamos o registro analítico a partir de Foucault com o intuito de mostrar a dupla relação entre busca histórica do nascimento da verdade com a própria fixação da verdade enquanto prática discursiva e não-discursiva em torno da infância, acabamos por fazer emergir a sensível aposta na necessidade para pensarmos o nascimento da infância por outras “origens”. Existem muitas histórias acerca das infâncias que não são narradas, postas em evidência, consideradas e barradas na própria possibilidade existencial de tais infâncias. Neste caso, muitas infâncias passam a ser ignoradas, escondidas, varridas para debaixo do tapete da visibilidade do mundo e apenas esquadrinhadas em algumas apostas e em lances de captura de determinados espaços.
Com efeito, e contra tal história da verdade, foi imprescindível considerar a infância como experiência vária modulada na sua condição inegociável de multiplicidade: as infâncias são heterotopias. Sendo assim, não era à toa que Deligny (2008, p. 1249; 1251) denunciava a mesquinhez de uma sociedade habituada a negar espaços sociais às crianças “refratárias à domesticação simbólica”. Também não era sem sentido que Guattari (1985) frisava o quão é urgente mitigar a função generalizada dos componentes afetivos e comportamentais a codificar os destinos, sobretudo a partir da infância. Tal codificação é tão forte na cultura ocidental que Foucault (2001) haveria de conduzir ao paroxismo o argumento de que a infância, numa série de ordens científicas normalizadoras, tal como na psiquiatria, na neurologia, na psicopedagogia, tornou-se uma armadilha de pegar adulto, isto é, um componente virtual determinante no pacto incontornável de nossos destinos: infância como faca entalada na garganta?
Poderíamos denominar de infâncias incendiárias a todas as experiências heterotópicas que, de dentro das infâncias, seriam capazes de consumir tais conjuntos de ordem de verdade, a partir do momento em que elas também são, tal como Foucault propôs acerca de seus trabalhos, uma ficção, isto é, uma outra verdade capaz de fabricar o que ainda não existe, capaz de urdir um outro princípio para outras finalidades. As infâncias incendiárias convergem entre ficção já realizada, como as de Incêndios (MOUAWAD, 2013) e as de Foucault (1994) - e tantas outras - e as que necessitam ainda de serem produzidas, para a disposição efetiva de contra-espaços a fim de que as heterotopias das infâncias e as infâncias das heterotopias não sejam uma promessa que não se cumpra.
Precisamente a este respeito, qualquer ação já é grande coisa; qualquer tensão na fixação das verdades ao redor das infâncias condenadas às mesmas origens já é tentativa de um começo de outras histórias. Jeanne e Simon assim nos atestam. Talvez sejamos deles filhos-irmãos: eis uma ficção que ainda estamos a inventar. Mas com a diferença de ela não ser apenas um lance de história que não nos pertence, mas história real tramada com a mesma carne e nervura de outras infâncias reais.
Que a gente fica com nossos livros e nosso alfabeto para achar isso “tão” lindo, achar isso “tão” belo, achar isso “tão” extraordinário e “tão” interessante! “Lindo. Belo. Interessante. Extraordinário” são escarros no rosto das vítimas. Palavras! Pra que servem as palavras, me diz, se hoje não sei o que devo fazer! O que a gente faz? (MOUAWAD, 2013, p. 89)
Alguém ousaria dizer que não somos contemporâneos a tudo isso?
***
Para a Alice, que ainda na infância
não encontrou o seu pai.